SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
NE BIS IN IDEM
Sumário


I - A suspensão provisória do processo não envolve qualquer julgamento sobre o mérito da causa, antes se trata de um despacho proferido numa fase inicial do inquérito, que necessita da concordância do arguido, que não põe fim ao processo, o qual terminará pelo arquivamento, caso as injunções e regras de conduta se mostrem cumpridas, ou prosseguirá, em caso contrário, não podendo as prestações feitas ser repetidas.
II - Consequentemente, não pode dizer-se que a condenação na pena acessória de proibição de conduzir aplicada nesse processo – que, tendo sido suspenso provisoriamente, veio a prosseguir para julgamento – ainda que o arguido, eventualmente, tenha cumprido a injunção de inibição de conduzir no âmbito da suspensão provisória, viole o princípio ne bis in idem, pois que o arguido não foi “julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.

Texto Integral


Proc. 19/12.9GTEVR.E1

Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora.

1. No Tribunal Judicial de Vila Viçosa correu termos o Processo Comum Singular n.º 19/12.9GTEVR.E1, no qual foi julgado o arguido A, (…), pela prática, na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo disposto nos artigos 292 n.º 1 e 69 n.º 1 alínea a) do Código Penal.
A final veio a decidir-se:
1) Condenar o arguido, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos art.ºs 292 n.º 1 e 69 n.º 1 al.ª a), ambos do CP, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de 5,00 €, perfazendo o montante global de 250,00 €, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de três meses;
2) Advertir o arguido de que:
- caso não pague, voluntária ou coercivamente, a multa aplicada, nem seja autorizado a prestar trabalho comunitário, deverá cumprir 33 dias de prisão subsidiária;
- deverá entregar a sua carta de condução no tribunal ou em qualquer posto policial no prazo de dez dias após o trânsito da presente sentença (art.ºs 69 n.ºs 2 e 3 do CP e 500 n.º 2 do CPP).
2. Recorreu o arguido dessa sentença, concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões:
1 - O recorrente cumpriu integralmente as injunções que lhe foram aplicadas no âmbito dos presentes autos, procedeu ao pagamento da quantia determinada nos autos ao Lar Maria Amália, em Vila Viçosa, e à entrega da sua carta de condução, em 9 de março de 2012, conforme termo de entrega com a referência 726388.
2 - Foi promovido pela Sr.ª Procuradora-Adjunta na Comarca de Vila Viçosa, em 17 de setembro de 2012, a dedução de acusação contra o ora recorrente, por ter incumprido a injunção de inibição de conduzir, por ter requerido 2.ª via de carta de condução.
3 - Tal não é verdade, pois o recorrente, em data anterior aos factos, deu início ao processo de renovação da sua carta de condução, por esta caducar em 24 de fevereiro de 2012, conforme documento n.º 1 ora junto, sendo que, para tanto, obteve relatório de avaliação psicológica em 10 de dezembro de 2011 e atestado médico para condutor de veículos em 27 de dezembro de 2011, conforme documentos ora juntos sob os nºs 2 e 3, tendo-lhe sido entregue a carta revalidada em 7 de agosto de 2012, conforme documento n.º 4 ora junto, o mesmo é dizer, em data posterior ao cumprimento da injunção de inibição de conduzir.
4 - O recorrente nunca requereu segunda via de carta de condução nem se vislumbra como a Sr.ª Procuradora-Adjunta concluiu por tal pedido.
5 - Desta forma, o recorrente cumpriu as injunções aplicadas e o processo deveria ter sido arquivado.
6 – Acresce que o tribunal a quo deveria ter-se pronunciado sobre tal questão antes do início do julgamento e aferido se, de facto, o recorrente solicitou 2.ª via ou revalidação da sua carta.
7 - Não o tendo feito, deve a sentença recorrida ser declarada nula, por violação do disposto no art.º 379 n.º 1 al.ª c), 1.ª parte, do CPP.
8 - Foram assim violadas as normas constantes dos art.ºs 282/3 e 379/1-c), 1.ª parte, ambos do CPP, sob pena de, a não ser declarada nula a sentença proferida, ser o recorrente alvo de dupla condenação, situação claramente violadora do princípio ne bis in idem, previsto no art.º 29/5 da Constituição da República Portuguesa, suscitando assim a inconstitucionalidade desta norma.
9 - Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, declarada nula a sentença proferida, por cumprimento integral das injunções impostas ao recorrente.
3. Respondeu o Ministério Público junto da 1.ª instância, concluindo a sua resposta nos seguintes termos:
a) Por sentença proferida nos presentes autos em 03.12.2012, foi o arguido condenado, pela prática, no dia 11.02.2012, de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.ºs 292 n.º 1 e 69 n.º 1 alínea a), na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 3 (três) meses.
b) Findo o inquérito, propôs ao arguido a suspensão do processo pelo prazo de quatro meses, mediante o cumprimento de duas injunções: entrega de €300,00 (trezentos euros) ao Lar Juvenil Maria Amália, em Vila Viçosa, e proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de três meses, ficando obrigado a entregar a sua carta/licença de condução naqueles serviços quando notificado para o efeito.
c) Tal recebeu a concordância do arguido e da Mm.ª Juiz de Instrução e, por despacho datado de 27.02.2012, determinou o MP a suspensão provisória do processo.
d) Em 09.03.2012 procedeu o arguido à entrega da sua carta de condução nos Serviços do Ministério Público, com vista ao cumprimento da injunção de inibição de conduzir pelo período de 3 meses, e em 20.07.2012 foi-lhe devolvida nestes mesmos serviços a licença de condução.
e) Em 25.07.2012 deu entrada no inquérito ofício remetido pelo IMTT com o seguinte teor: “ (…) informo que A, titular da carta de condução E-83666, requereu na DVPortalegre em 24.02.2012 a revalidação da mesma, tendo-lhe sido enviada pela INCM em 22.03.2012”.
f) O arguido apenas não procedeu ao levantamento da carta de condução renovada em 22.03.2012 porque, quando a mesma lhe foi remetida via CTT, não tinha em seu poder a carta caducada para proceder à sua entrega.
g) Ouvido o arguido em sede de inquérito, nunca o mesmo referiu que tinha em curso no IMTT um processo de revalidação da licença de condução.
h) Não só omitiu esse facto, como procedeu à entrega, em 09.03.2012, para cumprimento da injunção de inibição de conduzir, de uma licença de condução já caducada em 24.02.2012.
i) Tal facto determinou que o MP considerasse como não cumprida a injunção de inibição de conduzir e, em processo comum, deduzisse acusação contra o ora recorrente, imputando-lhe o crime de condução em estado de embriaguez.
j) Defende o recorrente que cumpriu a regra de conduta imposta, colidindo a douta sentença com o princípio ne bis in idem, defendendo que a Meritíssima Juiz a quo deveria ter apreciado a questão e ter determinado o arquivamento do processo.
k) Não assiste, porém, razão ao recorrente, pois terminado o prazo da suspensão, o MP apreciou a situação e, tendo concluindo que o arguido não cumpriu integralmente as obrigações impostas, deduziu acusação.
l) Tal opção em nada colide com o invocado princípio ne bis in idem, uma vez que só em sede de sentença foi aplicada uma pena ao arguido, tendo-se considerado como incumprida a injunção de inibição de conduzir imposta em sede de suspensão provisória do processo.
n) No caso optou o MP pelo prosseguimento do processo, deduzindo acusação, com base no invocado incumprimento, ainda que parcial, do arguido, juízo esse que cabe exclusivamente ao MP.
o) O juiz de julgamento, ao receber a acusação, não pode sindicar as razões da opção do MP, quando no final do prazo da suspensão este decide pelo prosseguimento do processo.
p) Só o arguido se pode opor à opção do MP, requerendo, depois de notificado da acusação, a competente instrução, nela demonstrando que não houve incumprimento da sua parte ou, havendo-o, ele não ocorreu por culpa sua
q) Dispõe o art.º 286 n.º 1 do CPP que a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
r) Ora, no caso, se o recorrente, notificado da acusação, nada disse é porque aceita ser submetido a julgamento, logo, aceita que incumpriu culposamente as obrigações impostas no âmbito da suspensão do processo.
s) No caso, o requerimento de abertura de instrução seria a forma processual correta de reagir contra a decisão do Ministério Público de deduzir acusação e nunca o recurso da presente sentença condenatória.
t) Pelo exposto, e porque inexistiu qualquer violação do disposto nos artigos 282 n.º 3 e 379 n.º 1 c), 1ª parte, ambos do Código do Processo Penal, e do princípio ne bis in idem, previsto no art.º 29 n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, deverá ser mantida a douta sentença que condenou o arguido, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução em estado de embriaguez, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de €5,00, e na pena acessória de inibição de conduzir pelo período de 3 meses.
4. O Ministério Público junto deste tribunal emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
5. Cumprido o disposto no art.º 417 n.º 2 do CPP e colhidos os vistos legais, cumpre decidir, em conferência (art.º 419 n.º 3 al.ª c) do CPP).
6. Factos provados na decisão recorrida:
1) No dia 11.02.2012, pelas 01h50m, o arguido conduziu o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula RP-50-01 na EN n.º 255, Km 4, em Vila Viçosa, com uma TAS de 1,42 g/l.
2) O arguido sabia que, antes de iniciar a condução, havia previamente ingerido
bebidas alcoólicas.
3) O arguido, ciente de que, pela bebida ingerida, poderia apresentar uma taxa de álcool
no sangue superior ao limite mínimo permitido por lei, decidiu conduzir o veículo na
via pública.
4) Agiu de modo livre e consciente, bem sabendo que o seu comportamento poderia ser
proibido e punido por lei.
5) O arguido não tem antecedentes criminais.
6) O arguido trabalha para uma empresa denominada Canteiro da Felicidade,
auferindo um vencimento mensal de cerca de € 450,00.
7) Vive numa casa emprestada, com a sua esposa e com duas filhas, que têm 18 e 26 anos
de idade.
8) A sua filha mais nova encontra-se a estudar e a mais velha sofre de uma doença, carecendo de acompanhamento.
9) A esposa do arguido não trabalha.
10) O arguido contraiu alguns empréstimos, tendo deixado de os amortizar.
11) O arguido admitiu a prática dos factos.
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7. As conclusões da motivação do recurso delimitam o âmbito do conhecimento do mesmo e destinam-se a habilitar o tribunal de recurso a conhecer as razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida.
Elas devem conter, por isso, um resumo claro e preciso da motivação e, consequentemente, das questões que o recorrente pretende que sejam apreciadas e conhecidas pelo tribunal superior, sem prejuízo, naturalmente, das questão que o tribunal de recurso, oficiosamente, deva conhecer, ainda que não alegadas.
Feitas estas considerações, uma única questão vem colocada pelo recorrente à apreciação deste tribunal: a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia (art.º 379 n.º 1 al.ª c) do CPP)/violação do princípio ne bis in idem.
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A questão colocada pelo recorrente baseia-se – além do mais - nos seguintes factos:
- por despacho de 27.02.2012, e face à concordância do arguido e do Juiz de Instrução, foi determinada “a suspensão provisória do processo, ao abrigo do disposto no art.º 281 n.º 1 do CPP, pelo período de quatro meses, mediante o cumprimento pelo arguido das seguintes injunções: (…)”;
- considerando que o arguido “não procedeu ao cumprimento da injunção que lhe foi imposta de inibição de conduzir…”, o Ministério Público – consignando tal no despacho de fol.ªs 49 a 51 dos autos - deduziu acusação contra o arguido, requerendo o seu julgamento pela prática de um crime p. e p. pelos art.ºs 292 n.º 1 e 69 n.º 1 al.ª a), ambos do CP;
- efetuado o julgamento, o arguido veio a ser condenado, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos art.ºs 292 n.º 1 e 69 n.º 1 al.ª a), ambos do CP, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de 5,00 €, e na proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de três meses.
Pretende o arguido que a sentença é nula, por omissão de pronúncia, porquanto – em síntese -
entende que “cumpriu as injunções aplicadas e o processo deveria ter sido arquivado”, pelo que deveria o tribunal ter-se pronunciado sobre tal facto (art.º 379 n.º 1 al.ª c) do CPP).
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Antes de mais convém aqui deixar claro que o processo penal tem regras próprias, designadamente no que respeita à junção de documentos, pelo que é extemporânea a junção dos documentos com a motivação do recurso.
Os documentos, enquanto elementos de prova, devem ser juntos ao processo no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo isso possível, até ao encerramento da audiência em primeira instância (art.º 165 n.º 1 do CPP).
Com efeito, destinando-se os documentos a provar factos - não valendo para formar a convicção do tribunal elementos probatórios que não sejam produzidos ou examinados em audiência, salvo se constarem dos autos (art.º 355 n.º 1 do CPP) – a junção em sede de recurso, a ser considerada, violaria os princípios da imediação e do contraditório.
Por outro lado, não pode esquecer-se que o recurso não visa um novo julgamento, o conhecimento de questões novas, mas reapreciar a decisão recorrida, tendo em conta o direito aplicável ao caso concreto e os elementos de prova que lhe servem de fundamento.
Consequentemente, não pode este tribunal atender nesta fase aos documentos juntos com a motivação do recurso, os quais, por isso, não serão considerados.
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É nula a sentença quando o tribunal “deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar” (art.º 379 n.º 1 al.ª c) do CPP), entendendo-se por questões “os problemas concretos a decidir e não as razões, no sentido de simples argumentos, opiniões, motivos ou doutrinas expendidas pelos interessados na apresentação das respetivas posições, na defesa das teses em presença” (acórdão do STJ de 14.05.2009, in www.dgsi.pt).
No caso em apreço não consta – nem o arguido tal alega – que o arguido tenha colocado ao tribunal qualquer questão (concretamente, no que respeita ao cumprimento ou incumprimento das injunções impostas) ou tenha alegado quaisquer factos, em sede de contestação, sobre os quais o tribunal não se tenha pronunciado, por outro lado, em audiência de julgamento o arguido confessou os factos que lhe eram imputados, “integralmente e sem reservas”, o que declarou fazer “de livre vontade e fora de qualquer coacção” - considerando-se, por isso, tais factos como provados, sem produção de qualquer outra prova – pelo que aqueles factos não podem também ter resultado da discussão da causa (o que, aliás, o arguido não alega).
Consequentemente, não fazendo tais factos parte do objeto do processo, não tinha o tribunal que se pronunciar sobre os mesmos; e se o arguido entendia que os mesmos eram relevantes deveria tê-los alegado, oportunamente, o que – repete-se – não o fez.
Não deixará de se acrescentar que a questão agora suscitada pelo recorrente – no que respeita à violação do princípio ne bis in idem, questão que, a existir, poderia obstar ao conhecimento do mérito da causa - não era questão de que o tribunal devesse conhecer, quer porque não lhe foi colocada, quer porque, em face dos elementos constantes dos autos, essa questão não se colocava, não havia - manifestamente - quaisquer razões para fundamentar a sua existência e, consequentemente, para conhecer da mesma.
De facto, ainda que se entendesse que o arguido cumpriu a injunção imposta – de inibição de conduzir pelo período de três meses – questão de que, repete-se, aqui não cabe conhecer, aquela injunção (a entrega da carta no âmbito do cumprimento da injunção, com a qual concordou, com vista à suspensão provisória do processo) não envolve qualquer julgamento sobre o mérito da causa, quando é certo que o princípio ne bis in idem visa obstar a que ninguém seja julgado “mais do que uma vez pela prática do mesmo crime” (art.º 29 n.º 5 da CRP).
A suspensão provisória do processo não envolve qualquer julgamento sobre o mérito da causa, antes de trata de um despacho proferido numa fase inicial do inquérito, que necessita da concordância do arguido, despacho (provisório) que não põe fim ao processo, o qual terminará pelo arquivamento, caso as injunções e regras de conduta se mostrem cumpridas, ou prosseguirá, em caso contrário, não podendo as prestações feitas ser repetidas (art.ºs 281 e 282 n.ºs 3 e 4 al.ª a) do CPP).
Consequentemente, não constituindo aquela decisão – a suspensão provisória do processo – qualquer julgamento sobre o mérito da causa, não pode dizer-se que a condenação na pena acessória de proibição de conduzir aplicada nesse processo – que, tendo sido suspenso provisoriamente, veio a prosseguir para julgamento – ainda que o arguido, eventualmente, tenha cumprido a injunção de inibição de conduzir no âmbito da suspensão provisória, viole o princípio ne bis in idem, pois que o arguido não foi “julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime” (em sentido idêntico pode ver-se o acórdão do TRL de 6.03.2012, in www.dgsi.pt).
Improcede, por isso, o recurso.
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8. Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal deste tribunal em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido e, consequentemente, em confirmar a sentença recorrida.
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Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
(Este texto foi por mim, relator, elaborado e integralmente revisto antes de assinado)
Évora, 2013 /06/18

Alberto João Borges
Maria Fernanda Pereira Palma