ESCUTAS TELEFÓNICAS
VALIDAÇÃO
PRAZO
Sumário


I – Não é razoável a interpretação do n.º4 do art. 188.º do CPP, que considera esgotado o prazo de 48 horas para apresentação ao JIC dos elementos referentes às intercepções telefónicas efectuadas sem ter em conta o normal funcionamento dos serviços do Ministério Público.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

1. RELATÓRIO

Nos autos de inquérito com o número em epígrafe, correndo termos nos Serviços do Ministério Público de Faro, por despacho judicial, proferido pela Ex.ma Juiz de Instrução Criminal, em 21.05.2013, decidiu-se, indeferindo promoção do Ministério Público, que a apresentação dos elementos efectuada para os efeitos do art. 188.º, n.º 4, do Código de Processo Penal (CPP) foi extemporânea, não a validando, com fundamento, conforme do mesmo consta:

«Verifica-se que os elementos que foram trazidos ao nosso conhecimento, designadamente autos de intercepção, relatórios e suportes magnéticos se referem ao período iniciado em 2 de Maio de 2013, tendo entrado nos serviços do MP no dia 17 de Maio.

Como resulta do disposto no art. 188º, nº 4 do CPP, o MP deverá levar ao conhecimento do JIC, aqueles supra referidos elementos no prazo de ”48 horas”.

Ou seja, o JIC tem de ter conhecimento daquelas operações até ao 17º dia, contado desde o início das mesmas, dispondo, nesse “interim” o MP, de 48 horas para as levar ao conhecimento do JIC, sem prejuízo do estatuído no art.º 144º nº 2 do CPC ex vi art.º 104º/1 do CPP.

Perante tal, e não obstante não desconhecermos o AC do TRE de 13/5/2008, entendemos que a apresentação ora efectuada é extemporânea, não respeitadora do prazo legal, pelo que não a valido (neste sentido também Ac. do TRG de 25/8/2009 e TRE de 22/1/2008, ambos disponíveis em www.dgsi.pt e Comentário do Código de Processo Penal, de Paulo Pinto de Albuquerque, 2ª edição, pág. 514.
Notifique.».

Inconformado com tal despacho, o Ministério Público interpôs recurso, formulando as conclusões:

« Os autos foram apresentados pelo Ministério Publico à Mmª Juiz de Instrução Criminal para validação dos elementos relativos às intercepções telefónicas, no prazo das 48 horas estabelecido no nº 4 do artigo 188º do Código Processo Penal.

Nos termos do disposto no nº 4 do artigo 188º do Código Processo Penal, o Magistrado do Ministério Publico, após avaliar a relevância probatória das passagens seleccionadas pelo OPC, pronuncia-se sobre esses elementos na sua promoção e apresenta-os ao Juiz, no prazo máximo de 48 horas.

O Ministério Publico entende que não assiste razão à Sra. Juiz de Instrução Criminal relativamente à interpretação que confere relativamente ao prazo de 48 horas referido no nº 4 do Código Processo Penal, pois esse prazo, conta-se a partir do momento em que é aberta conclusão ao Titular do Inquérito.

O Magistrado do Ministério Publico, Titular do Inquérito, após lhe ser aberta conclusão no processo, e de acordo com o disposto no nº 4 do artigo 188º do Código de Processo Penal, tem o prazo de 48 horas para levar ao conhecimento do Juiz de Instrução Criminal, os elementos referentes às escutas telefónicas e suportes técnicos das mesmas.

Conclui-se por isso que, o prazo de quarenta e oito horas previsto no artigo 188º, nº 4 do Código de Processo Penal não foi ultrapassado e que os elementos apresentados à Juiz de Instrução Criminal foram-no dentro desse prazo.

A Mmª Juiz não procedeu a uma interpretação e aplicação correctas do disposto nos artigos 188º, nº 4 do Código de Processo Penal, devendo por isso, ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido, que não validou as intercepções telefónicas relativas ao período de 2 de Maio de 2013 a 16 de Maio de 2013 e determinar-se a sua substituição por despacho Judicial que valide as referidas intercepções telefónicas.».

O recurso foi admitido.

Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, acompanhando a motivação apresentada e no sentido da procedência do recurso.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

Definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, como pacificamente decorre do art. 412.º, n.º 1, do CPP, o objecto do recurso reside em saber se os elementos reportados às intercepções e gravações de conversações telefónicas foram levados ao conhecimento da Ex.ma Juiz no prazo a que se refere o mencionado art. 188.º, n.º 4, do CPP (prazo máximo de quarenta e oito horas) e, em caso afirmativo, o despacho recorrido deva ser revogado.

Decorre dos autos, sem que dúvida se coloque, que os elementos em causa foram apresentados pelo órgão de polícia criminal ao ora recorrente em 17.05.2013 (fls. 78 do recurso, correspondendo a fls. 444 dos autos), sendo que respeitam a período de intercepção iniciado em 02.05.2013 (fls. 61/74 do recurso, correspondendo a fls. 427/440 dos autos).

Não se suscita, pois, que o n.º 3 desse art. 188.º (“O órgão de polícia criminal referido no n.º 1 leva ao conhecimento do Ministério Público, de 15 em 15 dias a partir do início da primeira intercepção efectuada no processo, os correspondentes suportes técnicos, bem como os respectivos autos e relatórios”) não tivesse sido respeitado.

Ao invés, quanto ao disposto no seu n.º 4 (“O Ministério Público leva ao conhecimento do juiz os elementos referidos no número anterior no prazo máximo de quarenta e oito horas”) foi entendido como tendo sido preterido, na medida em que apenas em 21.05.2013 tais elementos foram levados ao conhecimento da Ex.ma Juiz, ou seja, segundo o que se perfilhou, para além do 17.º dia a partir do início da primeira intercepção.

Enveredou-se pela posição expendida por Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Universidade Católica, Lisboa, 2.ª edição, 2008, pág. 514, secundada pelo mencionado acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25.08.2009 (no proc. n.º 8/09.0GABCL.G1, relatado pela Ex.ma Desembargadora Teresa Baltazar), bem como, mas aqui divergindo da sua real abordagem, no citado acórdão desta Relação de Évora de 22.01.2008 (no proc. n.º 3104/07-1, relatado pelo Ex.mo Desembargador António Latas).

Analisando:
Nos termos do art. 34.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP), “É proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvo os casos previstos na lei em matéria de processo criminal”.

Tal proibição de ingerência assenta em que a mesma atinge o núcleo de direitos fundamentais inscrito no art. 26.º, n.º 1, da CRP (“A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação).

Qualquer restrição desses direitos terá, pois, de obedecer aos princípios de necessidade, adequação, proporcionalidade e determinabilidade, de acordo com o art. 18.º, n.º 2, da CRP, limitando-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, o que, sempre, imporá uma cuidada ponderação no confronto entre a medida da restrição e a dimensão da lesão dos direitos correspondentes.

Conforme se acentuou no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 407/97, de 21.05, disponível em www.dgsi.pt, a previsão legal carecerá sempre de ser compaginada com uma exigente leitura à luz do princípio da proporcionalidade, subjacente ao art.18º, nº.2, da CRP, garantindo que a restrição do direito fundamental em causa se limite ao estritamente necessário à salvaguarda do interesse constitucional na descoberta de um concreto crime e punição do agente,

Na verdade, o princípio da proporcionalidade assume uma tripla dimensão: (i) princípio da adequação ou da idoneidade, segundo o qual as medidas restritivas legalmente previstas devem revelar-se como meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei; (ii) princípio da exigibilidade ou da necessidade, isto é, que as medidas restritivas previstas na lei devem revelar-se necessárias e indispensáveis, porque os fins visados não podem ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias; (iii) princípio da proporcionalidade em sentido restrito, significando que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa justa medida, para impedir a desproporção das medidas relativamente a esses fins (Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., págs. 392/393, e Jorge Miranda/Rui Medeiros, in “Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra, 2005, tomo I, pág. 162).

Segundo Manuel da Costa Andrade, in “Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal”, Coimbra Editora, 1992, pág. 283, As escutas telefónicas são, na verdade, portadoras de uma danosidade social polimórfica e pluridimensional que, em geral, não é possível conter nos limites, em concreto e à partida tidos como acertados. Tanto no plano objectivo (dos bens jurídicos sacrificados) como no plano subjectivo (do universo de pessoas atingidas), as escutas telefónicas acabam invariavelmente por desencadear uma mancha de danosidade social, a alastrar de forma dificilmente controlável.

Deste modo, o respeito pelo regime legalmente imposto impõe dar satisfação não só aos requisitos formais-procedimentais, mas também a um conjunto de pressupostos materiais (sobre o tema, v. mesmo Autor, in “Escutas Telefónicas, Conhecimentos Fortuitos e Primeiro Ministro, na RLJ, n.º 3962, ano 139.º, Maio-Junho.2010).

O recurso a tal meio de obtenção de prova, previsto nos arts. 187.º e 188º do CPP, terá assim de ser analisado à luz de tais parâmetros, seja quanto às suas condições de admissibilidade, seja acerca dos formalismos a que obedecem as subjacentes operações.

Não é por acaso que a preterição desses preceitos é cominada com nulidade (art. 190.º do CPP), não podendo a prova obtida por essa via ser utilizada (art. 126.º, n.º 3, do CPP).

Deste modo, não é indiferente, antes pelo contrário, o cuidado posto pelo legislador na utilização desse meio de obtenção de prova, dada a sua especificidade e a intromissão que desencadeia, mormente consumando a lesão irreparável do direito à palavra falada, pelo que ao julgador é exigível a decorrente ponderação na sua realização, além de que, no que ora releva, o adequado acompanhamento nessa realização, o que se tornou ainda mais visível com a alteração legal introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29.08.

Por via desta, as constantes divergências interpretativas a que se prestava o termo “imediatamente” contido no n.º 1 desse art. 188.º na versão anterior à introduzida pela Lei n.º 48/2007- embora aqui reportando-se à apresentação que era feita directamente ao Juiz e não, como agora acontece, ao Ministério Público - vieram a ser ultrapassadas, através da fixação de prazos rígidos.

As exigências legais de acompanhamento próximo e de adequado controlo judicial, vertidas nesse art. 188.º, têm uma dupla finalidade – fazer cessar, tão depressa quanto possível, escutas que se venham a revelar injustificadas ou desnecessárias e submeter a um crivo judicial prévio a aquisição processual das provas obtidas por esse meio -, conforme acentuou José Manuel Damião da Cunha, in “A Jurisprudência do Tribunal Constitucional em matéria de escutas telefónicas” (Jurisprudência Constitucional, n.º 1, Janeiro-Março.2004, págs. 50/56).

Não sem que, como resulta da matéria agora questionada, se suscitem, porém, divergências quanto ao entendimento sobre a interpretação do “prazo máximo de quarenta e oito horas” definido nesse n.º 4 do art. 188.º.

Na interpretação acolhida pelo despacho recorrido, essas quarenta e oito horas (equivalente a dois dias) correriam de seguida aos 15 dias que o órgão de polícia criminal dispunha para levar os elementos ao conhecimento do Ministério Público, o que, no caso “sub judice”, imporia que o tivesse feito até 19.05.2013, que, por corresponder a um domingo, o faria transitar para o dia útil seguinte (art. 144.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, “ex vi art. 104.º, n.º 1, do CPP), isto é, para 20.05.2013, independentemente de se tratar, ou não, da prática de acto processual urgente, já que, atento o disposto no art. 152.º da Lei n.º 52/2008, de 28.08 (aprova a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais), as secretarias judiciais não funcionam aos domingos (v. citado acórdão desta Relação de 22.01.2008).

Esses elementos, não obstante levados ao conhecimento do Ministério Público em 15 dias, foram-lhe apresentados, conforme conclusão nos autos, em 20.05.2013, motivando então que o recorrente os tivesse, por sua vez, levado ao conhecimento da Ex.ma Juiz em 21.05.2013.

Admite-se que, pela sua natureza, o acto processual em apreço deva revestir carácter urgente, enquadrando-se na alínea f) do n.º 2 do art. 103.º do CPP, o que se compagina, aliás, com a excepcionalidade do meio de obtenção de prova em causa, com as exigências que lhe são colocadas e com apertada proximidade de controlo judicial que impõe.

Todavia, se assim é, não é menos verdade que o Ministério Público só pode levar ao conhecimento do juiz os elementos de que disponha, não se prescindindo, inevitavelmente, de saber quando o inquérito, em que os mesmos lhe foram apresentados, foi presente através dos respectivos serviços.

O relevo prende-se com o disposto no art. 106.º do CPP, sendo que os funcionários de justiça só estão obrigados a apresentá-los, antes dos dois dias que aí se prevê, se se tratar de prazo diferente legalmente previsto e/ou existam arguidos detidos ou presos e esse prazo fixado possa afectar o tempo da privação da liberdade, o que, em concreto, não sucede.

Pese embora o cuidado que esses funcionários devam ter face àquela previsão das referidas quarenta e oito horas, de forma a não protelar aquela apresentação, afigura-se que a interpretação segundo a qual esse prazo se esgota sem ter em conta o normal funcionamento dos serviços não é razoável.

Tal como se entendeu no acórdão desta Relação de 13.05.2008, no proc. n.º 403/08-1, relatado pelo Ex.mo Desembargador Martinho Cardoso (www.dgsi.pt ), e decorre do seu sumário, este prazo de quarenta e oito horas do art.º 188.º, n.º 4, é fixado ao agente do M.º P.º e não à simbiose do agente do M.º P.º com os respectivos serviços do M.º P.º.

A situação em análise diverge daquelas em que expressamente a lei determinar prazo para a prática de acto, à luz do disposto no n.º 2 daquele art. 106.º, como sejam os casos a que se referem os arts. 141.º, n.º 1, e 254.º, n.º 1, do CPP, relativamente aos quais tem de entender-se que o mesmo corre conjunta e simultaneamente para os funcionários de justiça e a autoridade judiciária.

Ainda, não se envereda pelas reservas colocadas pelo citado acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, no sentido de que a tese que leve em conta o prazo para conclusão dos autos ao magistrado poderia, em concreto, conduzir a que o juiz tomasse conhecimento dos elementos sem dependência de qualquer prazo, já que as mesmas são dissipadas pelo estrito cumprimento dessa sucessão de prazos nos termos que ficaram definidos, sem que a urgência requerida pela natureza desse acto seja postergada.

Afigura-se, pois, que o despacho recorrido fez interpretação demasiado restritiva e, até, sem cabal apoio legal.

Na verdade, tendo os elementos em causa sido levados ao conhecimento do recorrente em 20.05.2013 e, assim, dentro de prazo para que o funcionário de justiça a tanto procedesse (por maioria de razão, interpondo-se fim de semana, que decorreu em 18 e 19 anteriores) e, havendo aquele os enviado à Ex.ma Juiz no dia seguinte (21.05.2013), não se mostra violado o art. 188.º, n.º 4.

3. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, decide-se:

- conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, assim,

- revogar o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que aprecie os elementos constantes da promoção do Ministério Público.

Sem custas.

Processado e revisto pelo relator.

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(Carlos Berguete Coelho)

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(Fernando Ribeiro Cardoso) - Presidente da Secção Criminal -

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(João Gomes de Sousa) – vencido, conforme declaração seguinte

Votei vencido por entender que o prazo do número 4 do artigo 188º do Código de Processo Penal é um prazo urgente e, em conjunção com o nº 3 que o precede, visa reduzir de forma peremptória o tempo de constrição dos direitos fundamentais atingidos pela norma e, admitindo que o acto possa ser praticado no primeiro dia útil seguinte, não é admissível que se pretenda alargar tal prazo com a introdução de outras 48 horas para a burocracia do Ministério Público em nome de uma injustificada permanência dos autos nas mãos de funcionário deste.