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DIREITO DE DEFESA
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
PROIBIÇÃO DE CONDUZIR
CUMPRIMENTO
Sumário
I - O art. 6.º. n.º 3, alínea c), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem apenas obriga as autoridades nacionais competentes a intervir se a carência de advogado é manifesta ou se estas forem informadas por qualquer outra forma de uma falta da defesa. II - Não há uma carência manifesta de defesa efectiva se uma defesa é apenas discutível ou inadequada por formulação de um juízo post factum, constituindo risco natural de qualquer defesa. III - O art. 170.º, n.º 1, alínea b), do Código da Estrada, na redacção da Lei n.º 72/2013, de 03.09, é aplicável aos processos pendentes, não porque seja lei interpretativa, mas por haver sucessão de leis penais no tempo a que haverá que aplicar o n.º 4 do art. 2.º do Código Penal. IV - É admissível a adequação de pena acessória de proibição de conduzir à função do trabalho do arguido, em caso deste ser primário e com taxa de álcool inferior a 2,00 g/l e sujeita ao desconto de 8%, em que demonstre nos factos a essencialidade da condução estradal e não indicie uma personalidade avessa ao direito.
Texto Integral
Recurso 99/13-0GFSTB.E1
Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
A - Relatório
No Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal correu termos o processo sumário supra numerado no qual o arguido A foi condenado, como autor material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos arts. 292º e 69º nº 1, ambos do Código Penal na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de €6.00 (seis euros), perfazendo o valor de €360,00 (trezentos e sessenta euros) e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses, nos termos do art. 69.º, n. 1, al. a) do Cód. Penal.
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A final recorreu o arguido da sentença proferida concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões:
I - O arguido confessou de forma livre, integral e sem reservas os factos pelos quais vem acusado. II - Com a sua actuação não colidiu nem causou danos a terceiros. III -- O arguido estava a 100 m de casa quando foi interceptado pela GNR IV- O arguido foi conduzido pela GNR do posto do Pinhal Novo até ao Montijo, onde foi submetido ao teste quantitativo do alcoolímetro, após ter efectuado o teste qualitativo no momento da intercepção e no qual tinha acusado 1,2 g/1. V- O arguido tem 10 anos de carta, e não tem quaisquer antecedentes criminais, designadamente no âmbito de condução automóvel, concretamente sob influência do álcool. VI- A medida de inibição de conduzir causa-lhe grande transtorno e coloca o seu posto de trabalho em causa, uma vez que é gestor de frota e a carta de condução é o seu instrumento de trabalho. VII- A sentença recorrida violou o disposto nos artigos 40º, 69º n. 1 al. a) e 71 ° n. 2. todos do C.P .. VIII- Em situações iguais à do arguido, não obstante ter sido conferida a suspensão provisória do processo, foi permitido aos arguidos no âmbito dos processos 429/12.1PCSTB e 59/12.8PTSTB que correram termos no 1º Juizo Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal, cumprirem a sanção acessória e proibição de conduzir veículos motorizados, fora do horário laboral. IX- Ora, comparando com o caso sub judice, parece ser patente e salvo melhor opinião, uma clara violação ao princípio da igualdade previsto no artigo 130 da Constituição da República Portuguesa. X- O princípio da igualdade, tem por base a obrigação de dar tratamento igual a situações que sejam juridicamente iguais, ou a obrigação de dar tratamento diferenciado a situações que sejam juridicamente diferentes. XI. In casu, o princípio da igualdade tem por base a obrigação de dar tratamento igual a situações que sejam juridicamente iguais. XII- É certo, que dentro da definição do "quantum" concreto, relativo à sanção acessória deve ser atribuído o lugar de primazia à prevenção especial de socialização do arguido e segurança. XIII· Ainda que a inibição deva assegurar o efeito de prevenção geral de intimidação, funcionará porém, um patamar inferior como limite mínimo suficiente para alcançar tal finalidade e servir de emenda cívica ao arguido, aqui recorrente. XIV· Face ao supra exposto, parece-nos que tal finalidade fica assegurada, ainda, que seja conferida ao arguido, aqui recorrente, a possibilidade de cumprir a sanção acessória a que foi condenado, fora do horário laboral. XV- Neste sentido, deve a sentença recorrida ser parcialmente revogada, no que se refere ao cumprimento de forma continuada, à sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, conferindo-se ao arguido a possibilidade de vir a cumprir tal sanção, fora do horário laboral. Nestes termos e nos melhores de Direito, que vossas excelências doutamente, suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência ser a sentença recorrida parcialmente revogada relativamente ao cumprimento em acto continuo da sanção acessória.
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O Ministério Público junto do Tribunal de Setúbal respondeu às alegações do recorrente, pugnando pela improcedência do recurso (não foi apresentado ficheiro informático).
O Exmº Procurador-geral Adjunto neste tribunal emitiu douto parecer no sentido da procedência parcial do recurso quanto à suspensão da pena acessória.
Foi cumprido o disposto no artigo 417 n.º 2 do Código de Processo Penal e colhidos os vistos legais.
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B - Fundamentação B.1.1 – Factos provados:
1º O arguido conduzia no dia 26-01-2013, pelas 05.41 h o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula (…) com uma taxa de alcoolemia de 1,86 g/l.
2º O arguido foi sujeito a teste pelo aparelho Drager Alcotest 7110 MK IIIP com o nº ARAA-0024, aprovado por despacho 19684/2009 de 25-06 e verificado pelo IPQ em 26-03-2012.
3º O arguido sabia que estava sob a influência de bebidas alcoólicas que ingerira e que, nessas circunstâncias, lhe era vedada a condução de veículos na via pública, e, ainda assim, prosseguiu os seus intentos.
4º O arguido actuou de forma livre, voluntária e consciente, conhecendo as características do veículo que conduzia e da via em que seguia, conduzindo veículo motorizado bem sabendo que o fazia sob o efeito do álcool.
5º Tinha conhecimento que a sua conduta não era permitida e que era criminalmente punível.
6º O arguido confessou integralmente a sua conduta.
7º Não tem outros processos pendentes nem antecedentes criminais.
8º É gestor de frota e aufere um rendimento mensal de 1.000 €. É casado e o cônjuge trabalha na Siderurgia Nacional e aufere 800 € mensais.
9º Tem duas filhas de 6 e 10 anos de idade, pagando 300 € de ATL das filhas, e vive em casa própria, cujo empréstimo está a pagar.
10º Tem o 9º ano de escolaridade.
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Cumpre conhecer. B.2 - Tendo em mente as conclusões do recurso interposto (que resumem as razões do pedido e delimitam o objecto do recurso), o objecto deste concretiza-se nas seguintes questões: dos factos alegados no recurso; da não suspensão do processo; da pena acessória por ser desajustada, inadequada e demasiado penosa; do seu cumprimento em horário pós laboral.
Esta, no entanto, é mera aparência, já que as questões a conhecer quanto ao primeiro ponto implicam saber se:
a) Não recorrendo o arguido de facto – nem tendo apresentado contestação - os factos que só agora apresenta em sede de recurso são atendíveis?
b) Se os factos que o arguido agora apresenta não foram apresentados antes isso implica uma obrigação positiva para este Tribunal da Relação?
c) Com os factos dados como provados – e não outros – é possível alterar a forma de cumprimento da pena acessória?
A aplicabilidade da nova redacção do artigo 170º do Código da Estrada dada pela Lei n. 72/2013, de 3 de Setembro é questão a abordar, igualmente.
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B.3.1 – Invoca o arguido nas suas conclusões 1ª a 6ª vários factos que não resultaram provados (à excepção o ser gestor de frota), designadamente: Estava a 100 m de casa quando foi interceptado pela GNR; tem 10 anos de carta; a medida de inibição de conduzir coloca o seu posto de trabalho em causa, uma vez que é gestor de frota e a carta de condução é o seu instrumento de trabalho; em situações iguais à do arguido, não obstante ter sido conferida a suspensão provisória do processo, foi permitido aos arguidos no âmbito dos processos 429/12.1PCSTB e 59/12.8PTSTB que correram termos no 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal, cumprirem a sanção acessória e proibição de conduzir veículos motorizados, fora do horário laboral.
O arguido não alegou insuficiência da matéria de facto para a decisão. Nem recorreu de facto nos termos do artigo 412º, n. 3 e 4 do Código de Processo Penal. Dá simplesmente como assentes os factos que alega no recurso e que não foram objecto de apreciação, não constam dos factos provados ou não provados.
Nem sequer resulta dos autos que o arguido tenha apresentado contestação em audiência de julgamento de onde constassem tais factos. E poderia ter feito tal contestação oralmente através da defensora nomeada, como se prevê no n. 4 do artigo 389º do Código de Processo Penal.
Ou seja, o arguido apenas no seu recurso - nas suas declarações já referiu a necessidade da carta e do risco de desemprego - vem dar a conhecer factos que entende serem relevantes para a sua defesa. Mas, sabe-se, os factos apenas alegados em recurso são irrelevantes na medida em que o tribunal de recurso só pode conhecer de questões já decididas pelo tribunal recorrido e não pode conhecer em sede recursal de questões não apreciadas, para além do conhecimento oficioso que se imponha.
E, como não apresentados em contestação, tais factos não passaram a constituir objecto do processo, não tinha o tribunal que conhecer da sua existência, a não ser que tal se impusesse no âmbito de um dever de decidir de acordo com a verdade material e no uso do poder de investigação.
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B.3.2 – Também alega - implicitamente - o arguido estar violado pela sentença recorrida o disposto no artigo 281º do Código de Processo Penal.
Das suas conclusões extrai-se a razão motivante de tal afirmação, o terem existido pelo menos dois processos, que terão sido suspensos com eventual decretamento de injunção que permitiram o seu cumprimento fora de horário laboral.
Sempre se dirá, no entanto, que o poder concedido ao Ministério Público para propor a suspensão provisória do processo não é de uso obrigatório, sendo uma opção daquela magistratura face ao caso concreto. E na fase de inquérito.
Não haverá grandes dúvidas de que o caso concreto permitiria o recurso a tal instituto – em termos abstractos - mas daqui não se pode concluir pela existência de qualquer vício ou pressuposto processual não cumprido que inviabilize a realização da audiência de julgamento e a prolação de sentença.
Era ao arguido que incumbia requerer a suspensão provisória do processo para beneficiar do por si alegado regime de tolerância do Ministério Público da comarca – artigo 384º, n. 1 do Código de Processo Penal – o que também não fez.
Assim a alegação do arguido recorrente só demonstra alguma falha de acção da sua defesa em audiência de julgamento.
De qualquer forma, sempre seria estranho que o Ministério Público propusesse suspensões de processos e juízes as aceitassem nos casos do artigo 281º do Código de Processo Penal, com a consequente permissão de não cumprimento da pena acessória de inibição de conduzir, quando o número 3 desse mesmo preceito afirma que “… tratando-se de crime para o qual esteja legalmente prevista pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, é obrigatoriamente oponível ao arguido a aplicação de injunção de proibição de conduzir veículos com motor”.
Mas é claro que uma leitura literal desse mesmo número três não inviabilizaria o cumprimento em regime não laboral.
Mas como o Ministério Público é o titular da acção penal, cabendo-lhe propor a suspensão provisória do processo e, forçosamente, a sua fiscalização bem como o cumprimento das injunções e das regras de conduta impostas, ficamos sem saber se a possibilidade de ali ocorrer uma suspensão ou especial forma de cumprimento da pena acessória é real ou não.
O arguido recorrente afirma que sim, mas limita-se à afirmação, porque não houve qualquer preocupação em provar o facto, o que se bastaria com a solicitação de junção a estes autos – em audiência de julgamento – de certidões dos processos por si referidos.
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B.4.1 – Questão está em saber se estas omissões da defesa do arguido têm reflexo processual.
Poderiam ter por si só, caso considerássemos que não tinha havido efectiva defesa do arguido, nos termos e para os efeitos do disposto na al. c) do n. 1 do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Isto porquanto o arguido teve assistência de defensora nomeada pelo tribunal no momento determinante para apurar da “efetiva” defesa, a audiência de julgamento.
É preciso recordar que ali, em audiência de julgamento, o tribunal recorrido viu-se confrontado com um só “objecto do processo”, os factos constantes da acusação, sem qualquer acrescento da defesa, designadamente de factos que poderiam ser normativamente relevantes e favoráveis ao arguido, os factos que agora pretende passar por meio não aceitável e não contraditável, as motivações de recurso.
Mas, agora, já com advogada constituída, suscita questões relativas aos factos como fundamento da sua defesa, designadamente a sua alegação de “violação da igualdade” (que não ocorre já que nem existe termo de comparação por não se saber o que ocorreu naqueles dois processos, não existe o dever de saber com oficiosidade e o arguido nem se preocupou em provar tais factos na devida altura).
Ou seja, de forma clara, houve uma alteração da estratégia de defesa do arguido, que passou da falta de preocupação quanto ao seu contributo para a definição dos factos relevantes que lhe poderiam ser favoráveis (fase de julgamento) para uma estratégia de tentar inserir tais factos supostamente favoráveis por via do recurso.
E a questão que se suscita é a de apurar se aquela primeira estratégia constitui uma “carência manifesta” de defesa efectiva para os termos da al. c) do n. 1 do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem
Aquilo que o TEDH consagra na sua jurisprudência é obrigatoriedade de assistência de advogado e de verificação, em concreto, da existência de uma defesa efetiva por referência a um critério de manifesta inexistência de defesa, cumprindo sempre o respeito pela independência técnica do advogado.
Como se afirmou no acórdão do caso Czekalla c. Portugal (Queixa n.º 38830/97) de 10 de Outubro de 2002: “§ 60. O Tribunal lembra … que os princípios que emanam da sua jurisprudência dizem respeito ao apoio judiciário. A Convenção que tem por finalidade a protecção dos direitos não teóricos ou ilusórios, mas concretos e efectivos, sendo que a designação de um advogado não garante por si só a efectividade do apoio jurídico a prestar ao arguido. Não podemos assim imputar a um Estado a responsabilidade por todas e quaisquer faltas cometidas por um defensor oficioso. Da independência do advogado relativamente ao Estado, decorre que a estratégia de defesa compete essencialmente ao arguido e ao seu advogado, seja este designado a título oficioso ao abrigo do apoio judiciário ou seja ele nomeado pelo arguido mediante retribuição. O artigo 6º. n.º 3 alínea c) apenas obriga as autoridades nacionais competentes a intervir se a carência de advogado é manifesta ou se estas forem informadas por qualquer outra forma da assistência de uma falta da defesa (acórdão Daud supracitado, p. 749, n.º 38)”. [1]
Ora, no caso concreto não estamos - como ocorria no caso Czekalla - perante um erro manifesto pela “… não observância por negligência de uma condição de simples forma”, a uma negligência que teve “por efeito privar o interessado de uma via de recurso, sem que tal situação seja corrigida por uma jurisdição superior”, perante um cidadão estrangeiro e perante “acusações que podiam culminar na aplicação de uma pena de prisão pesada …” (Caso Czecalla, § 65).
No caso tratava-se da não observância pela defensora nomeada de uma regra, formal, de apresentação de recurso, que não fora cumprida sem convite à correcção, tendo-se concluído (§ 68) que se tratava de um caso de uma situação de “carência manifesta” de defesa efetiva “necessitando de medidas positivas por parte das autoridades competentes”.
Ou seja as circunstâncias da causa podem impor “à jurisdição competente obrigações positivas a fim de garantir o respeito concreto e efectivo dos direitos da defesa …” do arguido (§ 71). Ali, no caso Czecalla, foi o convite à correcção das conclusões de recurso.
No caso ora em apreciação não se trata de uma acção com erro formal, não é evidente que tenha ocorrido negligência (pode ter-se tratado de mera estratégia, discutível embora, de aguardar pela decisão favorável do Tribunal), nem de impedir, por omissão ou negligência, uma via de defesa.
Por outro lado – apesar de se tratar de uma condenação e da existência dos eventuais, mas não demonstrados, riscos laborais - o facto não ganha a gravidade arcada em Czecalla ou do assumido no acórdão de 7 de Outubro de 2008 do TEDH no caso Bogumil c. Portugal (Queixa n. 35228/03), [2] no qual se concluiu que o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa não havia assegurado uma defesa efetiva ao arguido.
E nada sugere que no caso sub iudicio o tempo de preparação da defesa antes da audiência de julgamento não fosse suficiente para um caso de tal simplicidade.
Também, não é incomum na prática processual descuidar a apresentação de uma contestação com factos que podem ser normativamente relevantes – e que nenhum tribunal pode impor se apresentem – nem o deixar para as motivações de recurso a alegação de factos que já eram normativamente relevantes e poderiam ter sido alegados em momento anterior.
É uma prática muito deficiente mas muito comum e nem sempre os juízes as suprem - no âmbito do poder/dever de investigação para a obtenção da verdade material – ou podem suprir, por desconhecimento dos fatos. [3]
Também é muito comum a defesa aguardar pelo suprimento judicial de factos e depois vir, preguiçosamente, arguir a violação do poder/dever de investigação.
Ou seja, uma coisa é asseverar a existência de uma “carência manifesta” de defesa efetiva, assente numa gritante negligência, patente numa análise imediatista dos factos, outra é afirmar ou sugerir a existência de uma defesa discutível ou inadequada por formulação de um juízo post factum. Porque este é o risco natural de qualquer defesa.
Isto é, não é exigível que se reivindique uma correcção oficiosa da defesa oficiosa em termos de se concluir post factum por uma actuação ideal no caso concreto.Post factum unusquisque est bonus consiliarius («Depois do facto, qualquer um é bom conselheiro»), conclusão a que se chegaria com demasiada frequência.
A ser assim, em todos os casos de condenação se concluiria, ou se poderia concluir, que uma diferente defesa seria mais adequada ao caso, abrindo as portas à incerteza e ao abuso.
E no caso concreto a aplicabilidade da pena acessória, sem limitações, era um resultado mais que previsível face à jurisprudência maioritária.
Assim, a única circunstância que obstaria à aplicação não limitada no tempo da pena acessória seriam o facto “gestor de tráfego”, devidamente “densificado” no caso concreto, e as consequências do cumprimento da pena acessória no vínculo laboral do arguido, [4] no pressuposto de que é pensável uma alteração jurisprudencial face ao desnorte revelado pela alteração de 2013 ao Código da Estrada, designadamente da novel al. b) do n. 1 do artigo 170º.
Ou seja, a defesa assentou numa estratégia, explícita ou implícita, de aguardar por uma posição favorável do tribunal recorrido que levasse em conta as declarações do arguido em audiência.
Não houve, portanto, um comportamento gravemente negligente que se tenha concretizado numa “carência manifesta de defesa” efectiva que obrigue o tribunal a concretizar medidas positivas a fim de garantir o “respeito concreto e efectivo dos direitos da defesa” do arguido.
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B.4.2 – Um outro pressuposto determinante para a definição da existência ou não de uma efetiva defesa do arguido passa pela consideração da liberdade e independência técnica do advogado. Liberdade e independência técnica que não excluímos na defesa oficiosa, como aliás, está legislativamente consagrado. [5]
Nos termos do artigo 1º, n. 1 da Lei n. 49/2004, de 24 de Agosto “apenas os licenciados em Direito com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados e os solicitadores inscritos na Câmara dos Solicitadores podem praticar os actos próprios dos advogados e dos solicitadores”.
Desde logo, a Ordem dos Advogados é independente dos órgãos do Estado, sendo livre e autónoma nas suas regras, [6] dispõe de jurisdição disciplinar sobre os advogados, independentemente da eventual responsabilidade civil ou penal destes.
Depois, considerando que os advogados gozam de uma independência total em relação ao Estado e apenas estão vinculados pelo seu estatuto, que o exercício da advocacia em território nacional abrange o “mandato judicial, a representação e assistência por advogado são sempre admissíveis e não podem ser impedidos perante qualquer jurisdição, autoridade ou entidade pública ou privada, nomeadamente para defesa de direitos, patrocínio de relações jurídicas controvertidas, composição de interesses ou em processos de mera averiguação, ainda que administrativa, oficiosa ou de qualquer outra natureza” (Artigo 61.º EOA).
Ou seja, nos termos do acórdão Czecalla citado, se o artigo 6º. n.º 3 alínea c) apenas obriga as autoridades nacionais competentes a intervir se a carência de advogado é manifesta, no caso concreto essa obrigação positiva não existe por não ser patente a “carência manifesta” de defesa efetiva.
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B.5 – Passemos então à próxima questão, esquematizada no início: foram ponderados todos os factos normativamente relevantes?
A resposta, na base, tem que ser afirmativa na medida em que os factos que constavam da acusação – o “objecto do processo” – foi esgotado, por ausência de factos acrescentados pela contestação.
Mas duas circunstâncias apontam para alguma dúvida não esclarecida.
Uma, a parca densificação do conceito “gestor de frota”, podendo presumir-se a essência da tarefa, mas não se podendo adivinhar o que em concreto e quotidianamente se faz, outra, a forma como será afectado o vínculo laboral com a pena imposta.
Assim, temos que repetir-nos: a única circunstância que obstaria à aplicação da pena acessória seriam o facto “gestor de tráfego”, devidamente “densificado” no caso concreto, e as consequências do cumprimento da pena acessória no vínculo laboral do arguido.
Nesta perspectiva há “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício de conhecimento oficioso – artigo 410º, n. 2, al. a) do Código de Processo Penal.
Por isso que se imponha averiguar em sede de facto quais as reais e quotidianas funções do arguido, qual a sua entidade patronal, qual o tempo de trabalho na actual entidade patronal e qualquer outro facto para tal relevante. Isto o que se determina em termos de acção concreta.
O que pressupõe a tomada de decisão sobre o reenvio parcial para apuramento de tais factos.
Esta decisão não garante nem supõe uma tomada de decisão ou posição favorável ao cumprimento da pena acessória como pretendido pelo recorrente.
Quer apenas assegurar que – havendo forma diversa de cumprimento da pena da que aqui foi imposta – o arguido cumpra a pena de acordo com o seu grau de ilicitude e culpa.
Na base da aceitação da possibilidade de aplicação de uma pena determinada em função do trabalho do arguido estão duas ideias: o evitar um mecanicismo de aplicação de penas que não leva em conta o caso concreto; a nova redacção do Código da Estrada que, na sua incomensurável sabedoria, nos convence de uma menor rigidez na análise de casos de arguidos primários com direito a desconto de 8%, ou seja, que tenham uma taxa de álcool inferior a 2.00 g/l (Portaria nº 1.556/07), que demonstrem nos factos a essencialidade da condução estradal e se não indicie uma personalidade avessa ao direito.
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B.6 – Como se afirma no acórdão hoje lavrado nesta Relação no processo n. 287/13.9GAOLH.E1 e com os mesmos intervenientes, o artigo 170º, n. 1, al. b) do Código da Estrada na redacção da Lei n. 72/2013, de 3 de Setembro, importa para a área da punibilidade de uma conduta ilícita uma regra da metrologia legal, a aplicação dos “descontos” (Erros máximos admissíveis – EMA), pois que um dos elementos do tipo de ilícito passa a ser quantificado segundo uma regra de apreciação factual consagrada normativamente numa Portaria (Portaria nº 1.556/07, artigo 8º de Mapa Anexo) e agora numa Lei, onde anteriormente apenas se chegava por aplicação de outros princípios e outras normas, a Constituição da República Portuguesa e o Código de Processo Penal, a livre apreciação da prova, a presunção de inocência e a sua concretização no livremente apreciado in dubio pro reo.
O que esta lei nova faz, portanto, é afirmar que os erros máximos admissíveis que eram apenas critérios de metrologia legal passam, também, a ser critério de apreciação probatória em sede contra-ordenacional estradal.
Mesmo nos casos em que o crime não redunde em contra-ordenação – o que é o caso dos autos - a aplicação dos “descontos” em sede factual, concretizando-se sempre na diminuição da taxa de álcool no sangue, reflecte-se na ilicitude e, talvez, na pena (dependendo do caso concreto).
Esta nova redacção é aplicável aos processos pendentes, não porque seja lei interpretativa, o que obviamente não é, mas por haver sucessão de leis penais no tempo a que haverá que aplicar o n. 4 do artigo 2º do Código Penal.
Este posicionamento do legislador, contrário à jurisprudência maioritária anterior (que, inclusive levou à prolacção de acórdão do plenário das secções criminais em 25-10-2010 [7]), emite sinais contraditórios – aqui de maior tolerância – em contraste com o agravamento da proibição relativamente aos condutores que caibam na previsão do novel artigo 81º do Código da Estrada.
Mas porque o sinal é claro, somos levados a alterar o nosso posicionamento anterior [8] e a proceder ao apontado desconto, do que resulta dever alterar-se o facto dado como provado em 1) e a taxa de álcool no sangue de 1,86 g/l passa a ser de 1,71 g/l. [9]
Esta alteração, como é óbvio, não resulta da existência de qualquer “erro notório” na apreciação da prova, sim o resultado que se reflecte nos factos de uma alteração legislativa inovadora.
Assim, o facto provado sob 1) passará a ter a seguinte redacção: “O arguido conduzia no dia 26-01-2013, pelas 05.41 h o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula 09-71-SM com uma taxa de alcoolemia de 1,71 g/l”.
Isto implicará, naturalmente, o reponderar das medidas das penas e da forma de execução da acessória.
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C - Dispositivo: Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 2ª Subsecção Criminal deste tribunal: - em alterar o facto dado como provado em 1) que passará a ter a seguinte redacção: “O arguido conduzia no dia 26-01-2013, pelas 05.41 h o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula (…) com uma taxa de alcoolemia de 1,71 g/l”; - em conceder parcial provimento ao recurso e determinar que se averigue quais as reais e quotidianas funções do arguido, qual a sua entidade patronal, qual o tempo de trabalho na actual entidade patronal e qualquer outro facto para tal relevante. - em determinar que se lavre nova decisão sobre as medidas das penas e a possibilidade de cumprimento da pena acessória em horário pós laboral de acordo com o que vier a ser apurado. Sem tributação. Notifique.
Évora, 18 de Fevereiro de 2014
(Processado e revisto pelo relator)
João Gomes de Sousa
Ana Bacelar Cruz
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[1] - Referência ao caso Daud c. Portugal, de 21 April 1998.
[2] - Disponível em língua portuguesa no HUDOC: http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-88781.
[3] - Aqui, no caso concreto, debatemo-nos com um problema: haveria que deles conhecer se fosse certo que ocorrem suspensões de processos com uma forma de cumprimento da pena acessória contra jurisprudência maioritária que se vem a aplicar na sentença final. Mas para disso conhecer teremos que considerar existente “insuficiência da matéria de facto para a decisão”, não invocada expressamente no recurso, com base no alegado factualmente no recurso quanto à existência dos dois processos ali indicados. Ou seja, teríamos que atribuir valor aos factos “alegados” em recurso.
[4] - Se foi ou não devidamente “densificado” será questão diversa.
[5] - Desde a Lei n.º 2/2013, de 10 de Janeiro, que estabelece o regime jurídico de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais, à Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro (Estatuto da Ordem dos Advogados), sem esquecer o direito comunitário (Directiva 98/5/CE) e a soft law (Princípios Básicos Relativos à Função dos Advogados, adoptados pelo Oitavo Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes, realizado em Havana, Cuba, de 27 de Agosto a 7 de Setembro de 1990) se estabelece um sistema estadual, comunitário e corporativo de defesa e protecção da independência do advogado.
[6] - Nos termos do artigo 1.º, n. 2 da Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro (Estatuto da Ordem dos Advogados).
[7] - In C.J., 2010, T. III, 245.
[8] - - Como expresso pelo relator no acórdão desta Relação de Évora de 16-12-2008 (proc. 2220/08-1) e da Relação de Coimbra de 03-02-2010 (proc. 80/08.0PTVIS.C1).
[9] - Não cabe neste processo fazer referência ao contra-senso resultante da aplicação de duas únicas taxas de “desconto” de 8 e 30 % num agravar intolerável da insegurança jurídica e, provavelmente, num inviabilizar ou dificultar os objectivos de prevenção na condução sob efeito do álcool.