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CRIME DE AMEAÇA AGRAVADA
DESISTÊNCIA DA QUEIXA
Sumário
I. É pública a natureza procedimental do crime de ameaça agravada p. e p. pelos arts. 153.º, nº,1 e 155º, nº 1, do CP.
II - Por essa razão, a desistência de queixa formulada pelos demandantes civis não tem a eficácia extintiva do procedimento criminal, na parte relativa aos crimes daquela natureza por que o arguido vinha acusado, que lhe foi atribuída pelo despacho recorrido.
Texto Integral
ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
I. Relatório
No processo comum nº 775/12.4TAOLH, que corre termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Olhão, pela Exmª Juiz desse Juízo foi proferido, em 29/10/13, um despacho com o seguinte teor:
«Nos presentes autos, foi deduzida acusação contra o arguido A, pela prática, em autoria material, de 2 crimes de ameaça agravada p. e p. pelos artigos 153º, n.º 1 e 155º, n.º 1, al. a) do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro.
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A fls. 95, B e C, queixosos nos autos, declararam pretender desistir das queixas deduzidas contra o arguido.
O arguido nada tem a opor à desistência de queixa (artigos 116º, n.º 2 do Código Penal e 51º, n.º 3 do Código de Processo Penal).
O Ministério Público opõe-se à desistência de queixa p0or entender que estão em causa crimes de natureza semi-pública.
Cumpre apreciar e decidir:
O artigo 153º do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro, estabelece que, “1- Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias. 2- O procedimento criminal depende de queixa.”.
Por sua vez, o artigo 155º do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro, com a epígrafe “Agravação”, dispõe que: “1- Quando os factos previstos nos artigos 153.º e 154.º forem realizados:
a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos; ou
b) Contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez;
c) Contra uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas;
d) Por funcionário com grave abuso de autoridade;
o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, no caso do artigo 153.º, e com pena de prisão de um a cinco anos, no caso do n.º 1 do artigo 154º”.
Nos termos do AUJ 7/2013, publicado no DR- Iª Série de 20 de Março de 2013, “A ameaça de prática de qualquer um dos crimes previstos no n.º 1 do artigo 153º do Código Penal, quando punível com pena de prisão superior a três anos, integra o crime de ameaça agravado da alínea a) do n.º 1 do artigo 155º do mesmo diploma legal”.
Assim, estando imputado ao arguido o facto de ter dito aos queixosos “que os matava com uma pistola” e que “começava pelo mais velho e acabava no mais novo”, tal facto, que integra a ameaça de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos, integraria, na esteira do supra referido AUJ 7/2013, a prática de crime de ameaça agravado p. e p. pelos artigos 153º, n.º 1 e 155º, n.º 1, al. a), por referência ao artigo 131º, todos do Código Penal.
Contudo, segundo TAIPA de CARVALHO, (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 2ª edição, 2012, pp. 588 e 589), “Uma vez que o n.º 1 do art. 153º considera como crime de ameaça (simples, e, não qualificada/agravada) a ameaça de morte ou de danificação de bens patrimoniais de considerável valor, levanta-se a questão teórica e sobretudo prático-punitiva de saber se a utilização destes meios (ameaça de morte ou de danificação de bens patrimoniais de considerável valor) para ameaçar ou para coagir deverão levar (na medida em que o crime de homicídio e o crime de dano qualificado são puníveis com pena de prisão superior a 3 anos) ou não (uma vez que o próprio legislador considera expressamente, no n.º 1 do art. 153º, estas ameaças como crime de ameaças simples) à qualificação/agravação do crime de ameaça e do crime de coacção- Entendo (…) que, tanto em relação ao crime de ameaça como ao crime de coação, o disposto nesta al. a) não tem aplicação”.
De facto, tal Autor entende que ocorreu uma situação de deficiente técnica legislativa na distinção entre ameaça simples e agravada, pelo que a ameaça de morte engloba apenas um crime de ameaça simples e logo é admissível a desistência de queixa, nos termos do disposto nos artigos 153º, nos 1 e 2 do Código Penal, posição com a qual se concorda (ob. cit. pp. 556 a 561).
Por outro lado, atenta a ameaça supra transcrita que está imputada ao arguido, perfilha-se o entendimento de que “A ameaça com um anúncio de morte, genericamente formulado, sem qualquer concretização quanto aos meios a empregar, cabe apenas na previsão do nº1 do Artigo 153º do Código Penal” (Ac. RP de 25-03-2010, que tem coimo Relator Ricardo Costa e Silva e, no mesmo sentido, Ac. RG de 11-07-2012, que tem como Relator António Condesso, ambos com texto integral disponível em www.dgsi.pt)
Finalmente, mesmo que se entenda que está em causa um crime de ameaça agravado, ao contrário da jurisprudência dominante e, com o devido respeito por opinião contrária, entende-se que, não obstante tal circunstância, tal crime reveste natureza semi-pública.
De facto, não se vislumbram quaisquer razões de política criminal para não atribuir relevância à vontade da vítima atento o regime sancionário aplicável (pena de multa até 240 dias ou pena de prisão de 1 mês a 2 anos), sendo que as circunstâncias agravantes previstas no artigo 155º, n.º 1 do Código Penal não alteram a natureza semi-pública do crime de ameaça, só assim se respeitando “a congruência interna do Código Penal, a hierarquia de valores de que é depositário e a concordância dos interesses humanos a que se destina” (PEDRO FRIAS, O Crime de Ameaça, Revista Julgar, Janeiro-Abril 2010, pp. 49 a 57).
Nestes termos, concordando-se com as posições supra expostas, entendo que o crime de ameaça em causa nos autos reveste natureza semi-pública, pelo que decido homologar as desistências de queixa apresentadas.
Em face do exposto, por se entender que estão em causa 2 crime2 de natureza semi-pública, é admissível a desistência de queixa (cfr. artigo 153º, n.º 2 do Código Penal).
Em face do exposto, homologo as desistências de queixa supra referidas e, em consequência, declaro extinto o procedimento criminal e determino o arquivamento dos autos, nos termos dos artigos 113º e 116º do Código Penal e artigo 51º do Código de Processo Penal.
Sem custas (artigo 513º, a contrario sensu, do Código de Processo Penal.
Notifique».
Inconformado com o despacho proferido, o MP interpôs dele recurso, devidamente motivado, formulando as seguintes conclusões:
1ª Nos presentes autos foi imputado ao arguido A., em sede de libelo acusatório, a prática de dois crimes de ameaça agravada (previsto e punível pelo nº 1 do art. 153º do Código Penal, por referência à alínea a) do nº 1 do art. 155º do mesmo diploma legal ex vi art. 131º daquele diploma), eventualmente ocorrido em 30 de Setembro de 2012, em que o mesmo proferiu a seguinte expressão dirigida a B e C: os matava com uma pistola (…) e que começava pelo mais velho e acabava no mais novo”
2ª Porém, por douto despacho, em 29 de Outubro de 2013, a Mª Juiz “a quo” homologou a desistência de queixa relativamente a esse segmento factual, pugnando, na esteira da doutrina da Taipa de Carvalho, que esse segmento factual apenas é subsumível ao crime de ameaça (previsto e punível pelo nº 1 do art. 153º do Código Penal) e, por conseguinte, revestindo uma natureza semi-pública.
3ª Todavia, salvo melhor opinião, esse segmento factual preenche, ao invés, o tipo objetivo de ilícito do crime de ameaça agravada (previsto e punível pelo nº 1 do art. 153º do Código Penal, por referência à alínea a) do nº 1 do art. 155º do mesmo diploma legal ex vi art. 131º daquele diploma).
4ª Na esteira, aliás, do do Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 7/2013, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, publicado em Diário da República, 1ª Série, nº 56, em 20 de Março de 2013, o crime de ameaça agravada ocorre, suposta a verificação dos demais elementos constitutivos, quando o agente ameaça com a prática de crime (obviamente um dos crimes previstos no nº 1 do art. 153º do Código Penal) punível com pena de prisão superior a 3 anos, ou seja, quando o crime objecto da ameaça (obviamente um dos crimes previstos no nº 1 do art. 153º do Código Penal) é um crime punível com pena de prisão superior a 3 anos.
5ª Logo, o crime de ameaça agravada (previsto e punível pelo nº 1 do art. 153º do Código Penal, por referência à alínea a) do nº 1 do art. 155º do mesmo diploma legal ex vi art. 131º daquele diploma) imputado ao arguido A., em sede de libelo acusatório, reveste natureza pública, não admitindo, por isso, a desistência de queixa e respetiva homologação, tal como efetuado pela Mª Juiz “a quo”.
6ª Consequentemente, a Mª Juiz “a quo” violou o tipo objetivo de ilícito consagrado no nº 1 do art. 153º do Código Penal, por referência à alínea a) do nº 1 do art. 155º do mesmo diploma legal ex vi art. 131º daquele diploma, bem como as disposições processuais penais consagradas nos arts. 48º, 49º e 51º do Código de Processo Penal.
Assim, a decisão ora em crise deverá ser revogada e alterada por outra que determine a realização da audiência de discussão e julgamento para se apurar pela verificação dos elementos objetivos do tipo de ilícito do crime de ameaça agravada imputado ao arguido A., pela circunstância de a decisão em causa, ora em crise, violar o disposto no tipo objetivo de ilícito consagrado no nº 1 do art. 153º do Código Penal, por referência à alínea a) do nº 1 do art. 155º do mesmo diploma legal ex vi art. 131º daquele diploma, bem como as disposições processuais penais consagradas nos arts. 48º, 49º e 51º do Código de Processo Penal.
O recurso interposto foi admitido com subida imediata, em separado, e com efeito devolutivo.
O arguido e os demandantes civis foram notificados da motivação do recurso, mas não exerceram o direito de resposta.
Pelo Digno Magistrado do MP em funções junto desta Relação foi emitido parecer sobre o mérito recurso, pugnando pela respectiva procedência.
O parecer emitido foi notificado aos sujeitos processuais, a fim de se pronunciarem, nada tendo eles respondido, uma vez mais.
Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.
II. Fundamentação
Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, as quais deixámos enunciadas supra.
A sindicância da decisão recorrida, que transparece das conclusões do Digno Recorrente, centra-se, em exclusivo, na reversão do juízo de homologação que recaiu sobre a desistência da queixa e consequente declaração de extinção do procedimento criminal pelos factos participados.
A decisão assentou em dois fundamentos autónomos, um primeiro que podemos qualificar de principal e um segundo que podemos designar de subsidiário, a saber:
- As ameaças contra a vida, pelo menos quando formuladas genericamente e sem especificação de meios, integram o crime de ameaça simples do art. 153º nº 1 do CP e não o crime agravado do art. 155º nº 1 al. a) do CP;
- O crime de ameaça agravada do art. 155º do CP reveste natureza procedimental semi-publica.
A promoção da acção penal rege-se pelo princípio geral da oficialidade ou publicidade, consagrado pelo art. 48º do CPP, nos seguintes termos:
O Ministério Público tem legitimidade para promover ao processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49º a 52º.
O art. 49º do CPP tem por epígrafe «Legitimidade em procedimento dependente de queixa» e o seu nº 1 é do seguinte teor:
Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo.
O nº 2 do mesmo normativo considera feita ao MP a queixa apresentada a entidade que tenha obrigação legal de a transmitir àquele.
Dos preceitos legais agora citados pode extrair-se a regra segundo a qual a legitimidade do MP para a promoção da acção penal só depende de queixa do ofendido, ou de outra pessoa a quem a lei reconheça o direito de a apresentar, nos casos exista disposição legal expressa que exija o preenchimento de tal requisito.
Nos demais casos, e abstraindo agora das situações em que é exigida acusação particular, a promoção do procedimento criminal tem carácter estritamente público.
O nº 2 do art. 116º do CP dispõe:
O queixoso pode desistir da queixa, desde que não haja oposição do arguido, até à publicação da sentença da 1ª instância. A desistência impede que a queixa seja renovada.
Contudo, a desistência de queixa, sem oposição do arguido, só tem por efeito extinguir o procedimento criminal nos casos em que lei condicione a promoção deste à apresentação daquela.
Relativamente aos crimes de natureza procedimental pública, a desistência de queixa é ineficaz.
O art. 153º do CP é do seguinte teor:
1 – Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.
2 - O procedimento criminal depende de queixa.
Por seu turno, o art. 155º do CP reza:
1 - Quando os factos previstos nos artigos 153º e 154º forem realizados:
a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos; ou
b) Contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez; ou
c) Contra uma das pessoas referidas na alínea l) do nº 2 do art. 132º, no exercício das suas funções ou por causa delas;
d) Por funcionário com grave abuso de autoridade;
o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, no caso do artigo 153º, e com pena de prisão de um a cinco anos, no caso do nº 1 do art. 154º.
2 – As mesmas penas são aplicadas se, por força da ameaça ou da coacção, a vítima ou a pessoa sobre a qual o mal deve recair se suicidar ou tentar suicidar-se.
O art. 154º do CPP ocupa-se da tipificação do crime de coacção, dispondo o seu nº 4 que o procedimento criminal depende de queixa, quando a conduta tipificada e declarada punível tenha lugar entre «cônjuges, ascendentes e descendentes, adoptantes e adoptados, ou entre pessoas de outro ou mesmo sexo, que vivam em situação análoga à dos cônjuges».
Com interesse para a questão que nos ocupa teremos de reter também o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/2013 (publicado em DR–I de 20/3/13), a que se faz referência no despacho sob recurso e que decidiu firmar jurisprudência no seguinte sentido:
«A ameaça de prática de qualquer um dos crimes previstos no n.º 1 do artigo 153º do Código Penal, quando punível com pena de prisão superior a três anos, integra o crime de ameaça agravado da alínea a) do n.º 1 do artigo 155º do mesmo diploma legal».
Aqui chegados, importa constatar que a Exmª Juiz «a quo», quanto ao fundamento principal do despacho recorrido, decidiu em contrário à jurisprudência fixada pelo citado Aresto Uniformizador.
Na fundamentação do Acórdão nº 7/2013, Pleno das Secções Criminais do STJ discutiu as teses doutrinária e jurisprudencial, que serviram de base ao despacho agora sob recurso, tendo-as rejeitado.
Aliás, um dos Acórdãos citados no despacho sob recurso, em apoio do que aí se decidiu (Ac. da RP de 25/3/10, proferido no processo nº 2940/08.0TAVNG, e relatado pelo Exmº Desembargador Dr. Ricardo Costa e Silva), serviu de «decisão-fundamento» ao recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, que motivou a prolação do Acórdão nº 7/2013, o qual veio a perfilhar o entendimento jurisprudencial oposto ao consagrado nessa decisão.
Cumpre então tecer algumas considerações sobre a força vinculativa dos Acórdãos de fixação de jurisprudência.
Acerca da eficácia dos Acórdãos do Pleno das Secções Criminais do STJ, proferidos no âmbito de recursos para fixação de jurisprudência, fora dos processos em que tem lugar a respectiva prolação, dispõe o nº 3 do art. 445º do CPP:
A decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada.
O regime contido na disposição legal agora transcrita procura estabelecer um ponto de equilíbrio entre a desejável uniformidade, segurança e previsibilidade do direito e o princípio da independência dos Tribunais e da sua vinculação exclusiva à lei, estatuído pelo art. 203º da CRP.
Ao contrário do antigo instituto dos Assentos, que se caracterizava pela sua obrigatoriedade para a generalidade dos Tribunais e cuja compatibilidade com o postulado constitucional da vinculação exclusiva destes à lei era, por isso, problemática, os actuais Acórdãos de fixação de jurisprudência revestem uma força vinculativa tendencial, ou seja, os Tribunais podem divergir da orientação neles consagrada, mas, fazendo-o, ficam sujeitos a um especial dever de justificar a divergência.
Neste contexto, somos de entender que, sob pena de se esvaziar de conteúdo útil o propósito unificador da instituição dos Acórdãos a que nos vimos referindo, os Tribunais só devem afastar-se da doutrina acolhida por essas decisões perante razoes ponderosas, como seja, por exemplo, a convicção de que orientação jurisprudencial preferida pelo STJ é manifestamente incompatível com algum princípio jurídico basilar, geralmente aceite, ou violadora de normas constitucionais expressas.
Na fundamentação do despacho sob recurso, o Tribunal «a quo» não indica qualquer razão comparável àquelas que acabámos de evocar, para divergir da jurisprudência fixada, tendo-se limitado a fazer apelo as teses doutrinárias e jurisprudenciais rejeitadas pelo Acórdão Uniformizador.
.De todo o modo, também não vislumbramos razão que pudesse justificar a preterição da orientação jurisprudencial preferida pelo Pleno das Secções Criminais do STJ, à luz do critério por nós adoptado.
Nesta ordem de ideias, deveria o Tribunal ter tratado a questão que lhe competia dirimir no despacho recorrido, com observância da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/2013.
A acusação deduzida nos autos imputa ao arguido o ter ele manifestado aos dois queixosos o propósito de lhes tirar a via, fazendo uso de uma pistola.
Tal comportamento deve ser subsumido a uma ameaça com a prática de um crime de homicídio p. e p. pelo art. 131º do CP, ao qual é cominada pena de 8 a 16 anos de prisão, pelo que se encontra abrangido pela previsão de agravação modificativa da al. a) do art. 155º do CP.
Soçobra, assim, o fundamento principal do despacho sob recurso.
Quanto ao fundamento subsidiário, seguiremos aqui de perto a posição assumida no Acórdão da Relação de Lisboa de 13/10/10, proferido no processo nº 36/09.6PBSQR.L1-3 e relatado pelo relator do presente acórdão (publicado na Base de Dados do ITIJ).
No direito penal português, são numerosos os casos em que a lei penal faz depender de queixa o procedimento criminal por determinados crimes, na sua variante simples (isto é não qualificada ou agravada), consagrando o carácter público do procedimento relativo aos crimes qualificados ou agravados.
Tal é o que sucede, por exemplo, desde a entrada em vigor da reforma do Código Penal introduzida pelo DL nº 48/95 de 15/3, com grande parte dos crimes contra propriedade e contra o património, como sejam os crimes de furto, abuso de confiança, dano, burla, burla relativa a seguros, burla informática, abuso de cartão de garantia ou de crédito e usura (vd. arts. 203º, 204º, 205º, 212º, 213º, 214º, 217º, 218º, 219º, 221º, 225º e 226º do CP).
No caso dos crimes de furto, dano e burla, a definição do tipo criminal básico e a cominação da pena aplicável à variante simples destes ilícitos constam de determinado artigo da lei, enquanto que em artigo ou artigos subsequentes se encontram descritas as circunstâncias qualificativas do crime e cominadas as molduras punitivas aplicáveis às respectivas variantes qualificadas.
Nestes casos, o artigo relativo ao crime simples contém a disposição «o procedimento criminal depende de queixa», sendo esta aplicável apenas às situações tipificadas nesses artigos e que não incluam qualquer das circunstâncias qualificativas previstas nos artigos subsequentes.
Relativamente aos restantes ilícitos referenciados, as normas que descrevem o tipo criminal fundamental e cominam a pena aplicável ao crime simples e aquelas que prevêem as circunstâncias, que qualificam o crime, e as penalidades cominadas ao crime qualificado contam de um mesmo artigo da lei, encontrando-se intercaladas por uma disposição «o procedimento criminal depende de queixa», a qual, segundo é entendimento pacífico, vigora apenas para as situações previstas para as situações a que se referem os segmentos normativos que, no texto do artigo, a antecedem.
Nesta ordem de ideias, tudo parece indicar que o regime procedimental do crime de ameaça se inscreverá na mesma tendência, isto é de semi-publicidade, quanto ao crime simples, e de publicidade, relativamente ao crime qualificado ou agravado.
Importa dizer, ainda assim, que no art. 155º do CP, cuja redacção acima transcrita foi introduzida pela Lei nº 59/07 de 4/9, a lei penal utilizou uma técnica de qualificação pouco usual, ao definir num mesmo artigo os pressupostos de qualificação comuns a dois tipos de crime, definidos, por seu turno, nos dois artigos antecedentes.
Na redacção do CP imediatamente anterior à Lei nº 59/07 de 4/9, o único caso de agravação qualificativa do crime de ameaça correspondia à hipótese agora prevista na al. a) do nº 1 do art. 155 do CP da versão actual e vinha previsto no nº 2 do art. 153º do CP, cujo nº 1, tal como no texto vigente, opera a definição do tipo básico desse crime, figurando neste artigo um nº 3 cujo conteúdo corresponde ao do nº 2 actual.
Os pressupostos de qualificação do crime de ameaça e o respectivo regime procedimental, que vigoravam antes da Lei nº 59/07 de 4/9, tinham, por assim dizer, longa tradição, pois remontam à versão inicial do CP de 1982, aprovada pelo DL nº 400/82 de 23/9.
De todo o modo, importa verificar que o conteúdo normativo do art. 155º do CP, na redacção anterior à Lei nº 59/07 de 4/9, era idêntico ao da versão actual, com diferença de, na lei antiga, se reportar unicamente ao crime de coacção, tipificado, antes e agora, no art. 154 do CP.
Por seu turno, o texto do referido art. 154º passou da redacção anterior do CP para a actual, sem qualquer alteração, a não ser uma ampliação pontual do âmbito das excepções à natureza procedimental pública do crime de coacção («simples»), previstas no nº 4 desse normativo.
Confrontando o texto dos normativos legais em referência, na versão anterior à Lei nº 59/07 de 4/9 e na introduzida por este diploma, não é possível extrair outra conclusão que não a de que o legislador desta Reforma do Código Penal pretendeu unificar os pressupostos da agravação qualificativa dos crimes de ameaças e de coacção, bem como a natureza procedimental da variante agravada desses crimes, mediante a generalização aos dois ilícitos do regime até então privativo do crime de coacção, mantendo inalterado o regime de procedimentalidade de cada um desses crimes, na sua modalidade simples, que é semi-público, no caso do crime de ameaças, e público com excepções, no que toca ao crime de coacção.
Como tal, terá constatar-se que é pública a natureza procedimental do crime de ameaça agravada p. e p. pelos arts. 153º nº 1 e 155º nº 1 do CP.
Por essa razão, a desistência de queixa formulada pelos demandantes civis não tem a eficácia extintiva do procedimento criminal, na parte relativa aos crimes daquela natureza por que o arguido vinha acusado, que lhe foi atribuída pelo despacho recorrido.
Por conseguinte, e sem necessidade de ulteriores considerações, terá o presente recurso de proceder e de ser determinado o normal prosseguimento do processo, quanto aos crimes em referência.
III – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
a) Conceder provimento ao recurso e revogar decisão recorrida;
b) Determinar o normal prosseguimento do procedimento criminal relativo aos crimes de ameaça agravada p.e p. pelos arts. 153º nº 1 e 155º nº 1 al. a) do CP por que o arguido vinha acusado.