AMEAÇA
ANÚNCIO
ELEMENTOS DA INFRACÇÃO
Sumário

I - O primeiro elemento constitutivo do crime de ameaça é o anúncio de que o agente pretende infligir a outrem um mal que constitua crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade de autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor.
II - Não se sabendo qual o mal que o arguido pretendia infligir ao ofendido, e várias hipóteses se levantando quanto a tal mal, não é possível concluir pela existência do crime de ameaça.

Texto Integral



ACÓRDÃO

Acordam, em Conferência, os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório
Por decisão de 05 de Fevereiro de 2014, proferida no processo comum singular, com o número mencionado do 1º Juizo Criminal do Tribunal da Comarca de Portimão, o arguido JMGL, id. fls. 146, foi absolvido da prática, de um crime de ameaça , p. e p. no art. 153º, nº 1 do C.Penal, bem como do pedido de indemnização cível.
Inconformados o assistente e o Ministério Público recorreram.
O assistente extraiu da motivação as seguintes conclusões:
“1.Vem o presente recurso interposto da douta sentença de fls… absolveu o arguido, JMGL, como autor material de um crime de ameaça, p. e p. pelo n.º 1 do artigo 153.º do Código Penal bem como do pedido cível deduzido pelo assistente.
2. Contudo, salvo melhor opinião que foram incorretamente apreciados os requisitos que integram o crime de ameaça de facto:
3.. “ quem ameaçar outrem com a pratica de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade de autodeterminação sexula ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação é punido com pena de prisão ate 1 ano ou com pena de multa ate 120 dias”
4. São elementos constitutivos deste tipo legal de crime “a promessa ou anuncio de um mal futuro, que configure um facto ilicito típico contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal a liberdade de autodeterminação sexual ou bens matrimoniáveis de considerável valor, em ordem a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação, isto é susceptíveis de afetar ou de lesar a paz individual ou a liberdade de determinação
5. É certo que o artigo 153.º do C.P. se refere à vida, à integridade física e ao património. Contudo, a tutela conferida a estes bens jurídicos é apenas indireta, pois o que diretamente se criminaliza é a lesão da liberdade ação ou de decisão, ou seja, a liberdade pessoal.
6. Dos factos dados provados consta, “o arguido disse ao ofendido em voz alta” onde é que está a espingarda? É Hoje É hoje, dirigindo para o interior da habitação.
7. Condicionando a atuação do ofendido, limitando-o na sua liberdade de ação impedindo-o na decisão de ver o seu filho.
8. Na verdade e de acordo com a regras da experiencia comum, a verdade é que “estas” “promessas” de males futuros sejam proferidas, no âmbito de discussões, em que hajam situações de conflito.
9. Violou assim a douta sentença o estatuído no artº 153º n.º1 do Código Penal
Nestes termos e nos mais de direito que V. Exªs., doutamente suprirão, deve proceder o presente recurso:
a)Revogar a sentença proferida nos presentes autos, substituindo-se por outra que condene o arguido JMGL pela prática de um crime de ameaça p. e p. pelo artigo 153.º n.1 Do código penal
b)Condenando-se o arguido na totalidade do pedido cível deduzido pelo demande civil/assistente”.
O Ministério Público extraiu da motivação as seguintes conclusões:
«1.São elementos constitutivos do crime de ameaça, p. e p., pelo artigo 153.º, n.º 1 do Código Penal, a promessa ou anúncio de um mal futuro, que configure um facto ilícito típico contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, em ordem a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação.
2. Pelo que, o bem jurídico tutelado é a liberdade individual de decisão e de acção e se exige apenas a consciência de que o comportamento assumido seja susceptível de causar medo ou inquietação ou de perturbar a liberdade da pessoa visada.
3. Assim, o mal anunciado será um mal futuro, sempre que o agente anuncia a outrem a prática de um mal, mas mantém-se inactivo quanto à sua execução.
4. In casu, o arguido disse ao ofendido em voz alta “Onde é que está a espingarda? É hoje. É hoje” e dirigiu-se para o interior da sua habitação, querendo, desse modo, condicionar o ofendido na sua decisão de ver o filho e, consequentemente, limitá-lo na sua liberdade de acção e decisão, sendo irrelevante para efeitos de incriminação se essa susceptibilidade de afectar a sua paz individual ou a liberdade de determinação se tenha prolongado por mais ou menos no tempo.
5. Não existiram actos de execução de um crime que o arguido decidiu cometer, nos termos do disposto no artigo 22.º do Código Penal, porquanto o arguido nem sequer empunhou a arma na direcção do ofendido, muito menos premiu o gatilho.
6. Se assim fosse, já não estaríamos perante um crime de ameaça, mas perante um crime de homicídio ou de ofensa à integridade física qualificada, ainda que na forma tentada, ou de dano.
7. Só se compreende, de acordo com as regras da lógica e da experiência comum, que promessas de males futuros sejam proferidas quando os ânimos estão exaltados, pois se não existisse qualquer conflito entre os intervenientes, só então se poderia concluir que se tratou de uma mera basófia, de uma expressão proferida sem foros de seriedade, do chamado animo jocandi.
8. Acresce que para o preenchimento do tipo subjectivo do ilícito penal em apreço basta que o arguido tenha a consciência de que o comportamento assumido é susceptível de causar medo ou inquietação ou de perturbar a liberdade da pessoa visada, pelo que não é necessário que, em concreto, se provoque medo ou inquietação, sendo certo que, na situação em apreço, o ofendido EJGR sentiu medo e inquietação perante a atitude do arguido.
9. Assim, a douta sentença violou o disposto no artigo 153.º, n.º 1 do Código Penal, ao considerar que a conduta em apreço não configura a prática de um crime de ameaça.
Pelo exposto, concedendo provimento ao presente recurso, entendemos dever ser revogada a sentença proferida nos presentes autos, que deverá ser substituída por outra que, tendo por base a fundamentação acima expendida, condene o arguido JMGL pela prática do crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal.
Decidindo Vossas Excelências nesta conformidade, farão a costumada JUSTIÇA!».
O arguido respondeu aos recursos dizendo:
«1.A douta sentença recorrida deu como assente que o arguido proferiu a expressão "Onde é que está a espingarda? É hoje. É hoje", e que o assistente por via da mesma, e ante a atitude do arguido, sentiu medo e inquietação.
2. Porém, de acordo com a mesma sentença não resultou provado que arguido haja proferido tal expressão com foros de seriedade, e com intuito perturbar o sentimento de segurança do ofendido e a afectá-lo na sua liberdade.
3. Em face da concatenação de uns e outros não pode ao arguido ser imputado o crime de ameaça, a título de dolo.
4. Para além disso, não tendo a mesma expressão sido verbalizada com seriedade é impossível subsumi-la à previsão do artº 153º do CPP,
5. Do teor das expressões proferidas também não se alcança qual o anúncio do mal , e quem é o sujeito visado com o mesmo.
6. Em face do sobredito, o receio e inquietação sentidos pelo assistente extravasam, in casu, a sensibilidade homem comum, colocado na posição daquele.
7. O Tribunal recorrido alicerçou o sentido da decisão na livre apreciação do acervo probatório produzido em audiência de julgamento, nas regras da experiência e na livre convicção do julgador, encontrando-se esta devidamente fundamentada e motivada, não ocorrendo violação de nenhuma das normas indicadas pelos recorrentes.
Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas. mui doutamente suprirão, deverão os recursos improceder, e em consequência, manter-se a douta Sentença!
Fazendo-se assim a costumada e necessária Justiça!».
Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido dos recursos serem julgados procedentes.
Observado o disposto no art. 417º nº 2 do CPP, o arguido não respondeu ao recurso.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - Fundamentação

A) Da matéria de facto
Com relevância para a boa decisão da causa, apuraram-se os seguintes factos:
I - FACTOS PROVADOS :
1.No dia 19 de Janeiro de 2013, pelas 12h30m, EJGR dirigiu-se à residência do arguido, sita na Rua (….), em Portimão, para ali visitar o seu filho, que é também neto deste e com quem o mesmo reside.
2.Ali chegado, encontrou o arguido, no exterior da casa, tendo havido uma troca de palavras entre ambos, exaltando-se os ânimos.
3. Nesta sequência, o arguido, dirigindo-se para o interior da casa, disse em voz alta: “Onde é que está a espingarda? É hoje. É hoje”.
4. Fê-lo deliberada, livre e conscientemente.
5. O ofendido sentiu medo e inquietação ante a atitude do arguido.
II - FACTOS NÃO PROVADOS:
Nenhum outro facto com relevo para a decisão se apurou, designadamente que:
1.O arguido disse ainda concretamente “Deixem-me ir buscar a espingarda”.
2. O arguido proferiu tais expressões com foros de seriedade, por forma a perturbar o sentimento de segurança do ofendido e a afectá-lo na sua liberdade, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei.

No demais não se responde por se tratar de matéria conclusiva, de direito, ou sem relevo para a decisão da causa.
B) Da convicção do Tribunal:

(………..).


III – Apreciação do recurso
O objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação, arts. 403º, nº 1 e 412ºnº 1 do CPP.
As conclusões do recurso destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões da discordância do recorrente em relação à decisão recorrida, a nível de facto e de direito, por isso, elas devem conter um resumo claro e preciso das razões do pedido (cfr. neste sentido, o Ac. STJ de 19-6-96, in BMJ 458, 98).
Perante as conclusões do recurso a única questão a decidir consiste em saber se a matéria provada integra todos os elementos constitutivos do crime de ameaça p. e p. no art. 153º, nº 1 do C. Penal.
Estabelece o nº 1 do art. 153º do C.Penal: “Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com multa até 120 dias”.
Deste preceito resulta que os elementos constitutivos do crime são:
a) o anúncio de que o agente pretende inflingir a outrem um mal que constitua crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade de autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor;
b) que o agente tenha actuado com dolo ( em qualquer das suas modalidades constantes do art. 14º nº 1 do C.Penal);
c) que o anúncio seja objectivamente (ou seja, do ponto de vista do homem médio) adequado a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação.
Deste último requisito infere-se que o crime de ameaça, de acordo com o Código Penal de 1995, deixou de ser um crime de resultado e de dano e passou a ser um crime de mera acção e de perigo, por isso, já não é exigido que a ameaça cause efectiva perturbação na liberdade do ameaçado, ou que lhe cause medo ou inquietação, pois basta que a ameaça seja adequada a provocar no ameaçado medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.
Como referem Simas Santos e Leal Henriques, em Código Penal Anotado, 3ª edição, pág 305, “Como desde logo se alcança, parece-nos não se tratar agora, e ao invés do que antes sucedia, de um crime de resultado. Na verdade, enquanto o nº 1 do art. 1t55º do texto de 1982 se exigia que o agente tivesse provocado no sujeito passivo receio, medo, inquietação, ou lhe tivesse prejudicado a sua liberdade de determinação, agora basta que o agente se tenha servido de expediente adequado a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação. Assim desde que a ameaça seja adequada a provocar medo, mesmo que em concreto o não tenha provocado, verifica-se o crime”. Neste sentido se pronunciou Figueiredo Dias no seio da Comissão Revisora do Código Penal- cfr. acta nº 45.
Como se refere no Comentário Conimbricense do Código Penal, pág. 348, “ O critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação, ou de modo a prejudicar a liberdade de determinação é objectivo individual: objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do “homem comum”); individual, no sentido de que devem relevar as características psico-mentais da pessoa ameaçada (relevância das “sub-capacidades do ameaçado”.
No caso concreto, a Mma. Juiz considerou que não estava preenchidos os elementos constitutivos do crime e por isso absolveu o arguido, tese de que os recorrentes discordam.
A Mma Juiz considerou, em síntese, que arguido não anunciou o mal que a norma incriminadora exige e que em concreto se impunha demonstrar, não sendo o seu comportamento concludente, de forma a do mesmo se extrair, qual a sua intenção ao dirigir-se para o interior da sua habitação e que não se verifica o elemento futuro (atenta a iminência da sua actuação). Mais entendeu, que o arguido quando proferiu a expressão se encontrava exaltado com o ofendido, o que lhe retira os necessários foros de seriedade ao que o mesmo disse em voz alta, mais se tratando de uma forma de extravasar a fúria sentida contra o ofendido e para acabar com a “conversa” e que a mesma não era adequada a provocar medo ou inquietação no ofendido ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.
Analisemos, o primeiro elemento constitutivo do crime de ameaça, o anúncio de que o agente pretende inflingir a outrem um mal que constitua crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade de autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor a que acima se aludiu.
Ameaçar é anunciar o propósito de fazer mal a alguém.
O conceito de ameaça pressupõe um mal (que constitua crime contra a vida a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor) que seja futuro, e além disso, que a ocorrência desse mal futuro dependa ou apareça como dependente da vontade do agente.
No caso em apreço, provou-se que o assistente dirigiu-se à residência arguido, para ali visitar o seu filho, que também é neto deste. Ali chegado, o arguido encontrava-se no exterior da habitação e após uma troca de palavras entre ambos os ânimos exaltaram-se, tendo nesta sequência, o arguido se dirigido para o interior da sua casa, dizendo em voz alta: Onde está a espingarda? É hoje, é hoje”, o que fez de forma deliberada, livre e conscientemente. O ofendido sentiu medo e inquietação perante esta atitude do arguido.
Na sequência da contenda verbal entre o ofendido e o arguido, este dirigiu-se para dentro de casa dizendo que ia buscar uma arma de fogo, conduta de que o ofendido teve receio.
A questão que se coloca é desde logo saber, qual o mal que o arguido, ao anunciar que ia buscar a espingarda pretendia infligir ao ofendido, e várias hipóteses se levantam nomeadamente, podia querer matar o ofendido, causar-lhe lesões físicas, disparando para as pernas, disparar para o ar, para os pneus do carro ou obstar a que o arguido contactasse o neto e várias outras hipóteses se suscitam.
Esta variedade de hipóteses não nos permitem concluir com a necessária segurança que o arguido pretendesse praticar um ilícito criminal
Na verdade, a conduta do arguido desacompanhada de qualquer outra factualidade, face às várias actuações possíveis não nos permite aferir, qual o mal que o arguido pretendia inflingir ao ofendido.
Por outro lado, o objecto do processo penal é o objecto da acusação, sendo esta que delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal e a extensão do caso julgado.
É a este efeito que se chama a vinculação temática do tribunal, que visa assegurar as garantias de defesa do arguido e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade ou da indivisibilidade, de acordo com os quais o objecto do processo deve manter-se o mesmo da acusação até ao trânsito em julgado da sentença.
Assim, os factos susceptíveis de integrarem o crime de que o arguido é acusado devem constar da acusação, para que ele não possa ser surpreendido em julgamento com os factos que a acusação não lhe tivesse dado a conhecer.
Ora, da acusação não consta qual o mal futuro que o arguido pretendia com a sua actuação infligir ao ofendido e se o mesmo é susceptível de integrar qualquer dos ilícitos criminais típicos previstos no art. 153º nº 1 do C.Penal.
Assim sendo, por não estar preenchido, desde logo, este elemento constitutivo do crime de ameaça, impõe-se absolver o arguido.

IV – Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas pelo assistente com taxa de justiça que fixo em 3 Ucs.
Notifique.

(texto elaborado e revisto pelo signatário)

Évora, 02-06-2015

José Maria Martins Simão

Maria Onélia Vicente Neves Madaleno