Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Sumário
I - O critério fundamental para a fixação da indemnização devida pelo dano biológico, tanto das indemnizações atribuídas por danos patrimoniais futuros (vertente patrimonial do chamado dano biológico) como especialmente por danos não patrimoniais (dano biológico e demais danos não patrimoniais), é a equidade, tal como o impõe o art.º 496º nº 4 do CC. II - Os critérios definidos na Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, bem como nas alterações introduzidas pela Portaria n.º 679/2009, de 25 de Junho, destinam-se expressamente a um âmbito de aplicação extrajudicial. Consequentemente, os mesmos não se sobrepõem ao sobredito critério fundamental para a determinação judicial das indemnizações, a equidade. III -A compensação por danos não patrimoniais, para responder actualizadamente ao comando do artigo 496º e constituir uma efectiva possibilidade compensatória, tem de ser significativa, viabilizando um lenitivo para os danos suportados e, porventura, a suportar.
Texto Integral
Acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
Proc.º N.º 218/13.6TBABT.E1
Apelação
Recorrentes: Companhia de Seguros AA, S.A.
Recorridos: BB .
Relatório[1]
«BB, casada, assistente operacional, residente na E.N. nº …, n° …, 1°-…, Pego, Abrantes, instaurou a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra a « Companhia de Seguros AA, S.A. », com sede na …, n° …, Lisboa, pedindo a condenação da Ré no pagamento, à Autora, da quantia de € 40.000,00, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pela mesma em consequência do acidente de viação dos autos ( tendo calculado os primeiros em € 20.000,00 e os segundos também em € 20.000,00 ), acrescido dos juros de mora, desde a data da citação, até integral pagamento, sobre o montante total da indemnização pedida.
Alegou, em suma, ter sofrido um acidente de viação, no dia 9/5/2012, pelas 07.42 h., na Avenida do Paiol, em Abrantes, junto ao Hospital, o qual consistiu no atropelamento da Autora por um autocarro de passageiros, cuja responsabilidade civil por danos causados a terceiros se encontrava transferida para a Ré, autocarro esse que, tendo parado para largar passageiros, se pôs em movimento quando a Autora estava a sair do mesmo, tendo-lhe passado com uma das rodas por cima do pé direito. Em consequência, a Autora sofreu traumatismo do pé direito, o que lhe causou, e ainda causa, danos patrimoniais e não patrimoniais de diversa ordem, desde perdas salariais, dores permanentes, tristeza, dano estético e uma incapacidade permanente para trabalhar de 10%, em resultado das sequelas das lesões sofridas em consequência do acidente, pelo que pretende ser ressarcida dos prejuízos sofridos, através da presente acção.
Citada regularmente, a Ré contestou, pedindo seja a acção julgada de acordo com a prova a produzir, tendo alegado, em suma, ser manifestamente exagerada a quantia reclamada pela Autora a título de danos morais. Para além disso, alegou que a Ré já pagou, à Autora, a quantia de € 2.340,00, a título de perdas salariais durante o tempo em que a mesma esteve incapacitada para o trabalho. A Ré não pôs em causa que o condutor do autocarro de passageiros tivesse sido o culpado pela ocorrência do acidente de viação sofrido pela Autora.
Foi proferido despacho saneador, o qual julgou, pela positiva, todos os pressupostos processuais referentes à validade e regularidade da instância, sem recurso; tendo sido seleccionada a matéria de facto assente e controvertida, sem reclamação».
Procedeu-se à realização de audiência final e por fim foi proferida sentença onde se decidiu:
« …julgar parcialmente procedente, por parcialmente provada, a presente acção e, em consequência, condenar a Ré, no pagamento, à Autora, da quantia total de vinte e um mil, trinta e dois euros e setenta e dois cêntimos ( € 21.032,72 ), a título de indemnização pelos danos patrimoniais e de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pela Autora em consequência do acidente dos autos; sendo a quantia de mil e trinta e dois euros e setenta e dois cêntimos, acrescida de juros de mora, sobre o capital, à taxa de 4% ao ano, desde a citação da Ré, até integral pagamento e a quantia de vinte mil euros, acrescida de juros de mora, sobre o capital, à taxa de 4% ao ano, desde a presente data, até integral pagamento. Absolver a Ré do restante pedido».
*
Inconformada veio a R. interpor recurso de apelação, tendo rematado as suas alegações com as seguintes
Conclusões:
« l.ª- Entende-se, e salvo melhor opinião, que o valor considerado pelo Tribunal" a quo" a título de danos não patrimoniais sofridos pela Recorrida em resultado do acidente em discussão no processo é exagerado.
2.ª- Segundo a interpretação da Recorrente, o valor arbitrado pelo Tribunal "a quo" a título de danos não patrimoniais deve ser corrigido, no sentido da sua diminuição.
3.ª- Resulta dos autos que à Recorrida foi atribuído um "quantum doloris" de 4 pontos e um dano estético de 2 pontos.
4.ª- Para o efeito temos de ter em conta o que dispõe a Portaria n.º 377/2008, na redacção em vigor à data do acidente.
5.ª- Pela importância que tal diploma assumiu na resolução dos conflitos emergentes dos acidentes de viação (uma vez que trouxe às partes um critério transparente e objectivo na quantificação dos danos que efectivamente tenham sido sofridos pelas vítimas), a Portaria n.º 377/2008 e o regime que a mesma impôs deve ser assimilado e transposto, com as devidas adaptações, para o âmbito da resolução judicial dos litígios.
6.ª- Foi esse, aliás, o propósito da criação do novo regime sobre valoração dos danos corporais, construindo um novo paradigma acerca da justa avaliação dos danos, à semelhança, aliás, do que vem acontecendo a nível europeu.
7.ª- Partindo deste pressuposto, este diploma deverá ser tido em consideração, por forma a que, também a nível judicial, os valores respeitantes aos danos sofridos traduzam uma maior objectividade, sem com isto beliscar os princípios inderrogáveis da independência e isenção na administração da justiça.
8.ª- A desconsideração do regime previsto na Portaria n.º 377/2008 na resolução judicial dos litígios respeitantes a dano corporal leva, no entender da Recorrente à criação de dois regimes: um, da avaliação dos danos fora dos Tribunais; e o outro, da avaliação dos danos pelos Tribunais, nos processos judiciais, com as consequentes desigualdades.
9.ª- Seria uma verdadeira discriminação: o lesado que aceitou os valores apresentados na proposta razoável das seguradoras, caso não o tivesse feito, e levasse o seu caso a Tribunal, corria o risco de ver a sua indemnização subir ou descer de valor, relativamente à proposta razoável da seguradora, uma vez que o Tribunal não aplicava ou até desconsiderava os critérios da Portaria.
10.ª - Perde-se, assim a hegemonia do sistema, na medida em que para uma mesma situação (danos corporais) criam-se soluções diferentes, uma judicial e outra extra- judicial, cuja constitucionalidade é no mínimo duvidosa (artigo 13.º da CRP).
11.ª - Não foi isto que o regime instituído pela Portaria n.º 377/2008, há mais de 6 anos, pretendeu criar.
12.ª - Partindo desta premissa e efetuados os cálculos de acordo com a referida Portaria, a indemnização a arbitrar é manifestamente inferior à quantia concedida pelo Tribunal "a quo".
13.ª - Mesmo que não se aceite a aplicação da Portaria n.º 377/2008 aos presentes autos, o que por mera hipótese se admite, atendendo à idade da Recorrida na altura do acidente (59 anos), ao "quantum doloris", ao dano estético, ao défice-funcional permanente da integridade físico-psíquico da Recorrida e aos critérios de equidade, considera a Recorrente que a quantia a computar a título de danos não patrimoniais deverá ser reduzida para não mais do que 12.000,00 €, uma vez que o montante de 20.000,00 € atribuído pelo Tribunal "a quo" é excessivo, desajustado e desrespeitador da equidade, a que alude o artigo 496.º nº 4 do Código Civil.
14.ª- Pelo que, atentos os factos dados como provados, deve a douta sentença ser alterada, nesta parte, condenando-se a Recorrente no pagamento à Recorrida de quantia não superior a 12.000,00 € a título de danos não patrimoniais.
15.ª- Violou, deste modo, a douta sentença recorrida, o disposto nos artigos 496.ª n.º 4 do Código Civil.
Nestes termos
e nos mais de Direito doutamente aplicáveis, impetrando de V. Ex.ªs o mui douto suprimento, deve ser dado provimento ao recurso e, em consequência ser revogada a douta sentença recorrida, substituindo-se por outra que considerando parcialmente provado o pedido, condene apenas parcialmente a Recorrente no pagamento à Recorrida de um valor não superior a 12.000,00 € a título de danos não patrimoniais, mantendo-se o restante…..
*
Não houve resposta.
* **
Na perspectiva da delimitação pelo recorrente[2], os recursos têm como âmbito as questões suscitadas pelos recorrentes nas conclusões das alegações (art.ºs 635º nº 4 e 639º do novo Cód. Proc. Civil)[3], salvo as questões de conhecimento oficioso (n.º 2 in fine do art.º 608º do novo Cód. Proc. Civil ).
Das conclusões acabadas de transcrever, decorre que as questões suscitadas no recurso respeitam unicamente à medida da indemnização por danos não patrimoniais, não havendo impugnação da decisão de facto.
Dos factos
Na primeira instância foram dados como provados os seguintes factos:
« A)- No dia 9/5/2012, pelas 07.42 h., um autocarro da « Rodoviária do Tejo, S.A. », parou na Paragem do Hospital, na Avenida do Paiol, na cidade de Abrantes, para largar passageiros.
B)- A Autora era uma das passageiras do autocarro.
C)- O autocarro pôs-se em movimento, quando a Autora estava a sair do mesmo, tendo-lhe passado com uma das rodas por cima do pé direito.
D)- A Autora sofreu grave traumatismo.
E)- O condutor do autocarro pôs o veículo em andamento, sem assinalar com a antecedência devida essa intenção e sem usar das precauções necessárias para evitar o acidente.
F)- À data do acidente, encontrava-se transferida para a Ré, a responsabilidade civil emergente de acidente de viação, em relação ao autocarro aludido em A), através de contrato de seguro titulado pela apólice n° 2852344000128.
G)- Em consequência directa do acidente, a Autora sofreu traumatismo do pé direito.
H)- Teve longa assistência prestada pela Ré.
1)- Foi submetida a uma ressonância magnética, no dia 10/7/2012, a qual revelou fracturas cominutivas das falanges distais dos 1° e 2° dedos do pé direito.
J)- Em 3/8/2012, a Autora foi submetida a uma ressonância magnética, a qual revelou atrofia dos corpos musculares da face plantar do retro-pé e outros defeitos.
K)- Para se tratar, a Autor efectuou diversas deslocações a Lisboa e Tomar.
L)- Fez dezenas de sessões de fisioterapia.
M)- Esteve doente, com incapacidade absoluta para trabalhar, desde o dia 9/5/2012, até ao dia 13/11/2012.
N)- Data em que foi declarada curada.
0)- Pela Tabela de Avaliação e Incapacidades Permanentes em Direito Civil, a Autora ficou com incapacidades funcionais que somam 4 pontos.
P)- O « quantum doloris » da Autora é de 4 graus em 7.
Q)- O dano estético da Autora é de 2 graus em 7.
R)- A Autora nasceu em 6/10/1962.
S)- À data do acidente, a Autora auferia a quantia líquida mensal de € 538,27.
T)- O que perfazia a quantia líquida anual de € 7.537,00 (€ 538,27 x 14 meses).
U)- A Autora recebeu da Ré, a quantia de € 2.340,00, a título de perdas salariais durante o tempo em que permaneceu incapacitada para o trabalho.
V)- Em consequência das sequelas do acidente, a Autora ficou com dor difusa no antepé direito, que lhe dificulta a marcha (algodistrofia simpática e reflexa no membro inferior direito) e a permanência de pé.
W)- E ficou com hipersensibilidade generalizada no pé e na perna direita.
X)- Se não tivesse sofrido o acidente, atendendo ao bom estado de saúde da Autora à data do sinistro, era expectável que a mesma trabalhasse, no exercício da sua actividade profissional, até estarem verificadas as condições legais para a mesma se poder aposentar, auferindo, nesse caso, os rendimentos correspondentes e, quando se aposentasse, a pensão correspondente, sendo que, em consequência das sequelas das lesões sofridas pelo acidente, a Autora está a pensar aposentar-se mais cedo, por invalidez, ainda este ano ou no próximo ano.
Y)- Em consequência do acidente, a Autora sofreu dores intensas e grandes incómodos e perturbações e preocupações por causa das consequências do acidente.
Z)- A Autora continuará a sofrer dores, sobretudo pelas dificuldades de marcha, porque a própria marcha lhe provoca dores, assim como os inerentes incómodos e angústias.
AA)- As sequelas das lesões sofridas pela Autora são compatíveis, em termos de repercussão permanente na actividade profissional, com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços complementares.
AB)- A data da consolidação das lesões sofridas pela Autora em consequência do acidente dos autos é fixável em 27/3/2014.
AC)- O período de défice funcional temporário parcial é fixável em 687 dias, correspondendo ao período que se iniciou logo que a evolução das lesões passou a consentir algum grau de autonomia na realização desses actos, ainda que com limitações.
AD)- O período de repercussão temporária na actividade profissional total é fixável num período total de 188 dias, correspondendo aos períodos de internamento ou de repouso absoluto, entre outros, ocorridos entre 10/5/2012 e 27/3/2012.
AE)- O período de repercussão temporária na actividade profissional parcial é fixável num período total de 499 dias, correspondendo ao período em que a evolução das lesões passou a consentir algum grau de autonomia na realização destas mesmas actividades, ainda que com limitações.
AF)- O défice-funcional permanente da integridade físico-psíquica da Autora é fixável em 8 pontos».
* Do direito
Defende a recorrente que a sentença recorrida ao fixar a indemnização por danos não patrimoniais, deveria ter seguido os critérios definidos na portaria nº 377/2008 e que ao não proceder assim violou tal diploma. Sustenta ainda que a indemnização fixada é excessiva e desproporcionada e consequentemente viola o disposto no nº 4 do art.º 496ºdo CC.
Quanto à questão da imperatividade da aplicação, pelos Tribunais, dos critérios definidos na Portaria nº 377/08, não assiste razão ao recorrente. Efectivamente é uniforme o entendimento de que, o critério fundamental para a fixação da indemnização devida pelo dano biológico, tanto das indemnizações atribuídas por danos patrimoniais futuros (vertente patrimonial do chamado dano biológico) como especialmente por danos não patrimoniais (dano biológico e demais danos não patrimoniais), é a equidade[4], tal como o impõe o art.º 496º nº 4 do CC.
Por isso se afirma que os critérios definidos na Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, bem como nas alterações introduzidas pela Portaria n.º 679/2009, de 25 de Junho, destinam-se expressamente a um âmbito de aplicação extrajudicial. Consequentemente, os mesmos não se sobrepõem ao sobredito critério fundamental para a determinação judicial das indemnizações, a equidade.
Será pois com base nesse critério, nas circunstâncias concretas do caso e nas decisões jurisprudenciais de casos semelhantes que se avaliará da justeza da indemnização fixada.
O que está em causa na presente apelação é a medida dos danos não patrimoniais. Hodiernamente a doutrina tem vindo a distinguir nesta categoria o chamado dano biológico, o quantum doloris e o dano estético.
Este Tribunal, em recente acórdão[5] relatado pela Exmª Des. Albertina Pedroso e onde, o aqui relator, foi 2ª adjunto, apreciando uma situação de ressarcimento de danos não patrimoniais, na sequência de acidente de viação, em processo que correu termos também na Instância de Abrantes, a propósito do regime de ressarcimento de tais danos, teceu judiciosas considerações que pela sua completude passamos a citar.
«A afectação da capacidade funcional de uma pessoa, traduzida pela atribuição de um determinado grau de incapacidade físico-psíquica constitui um dano que importa reparar, independentemente de se traduzir ou não em perda efectiva ou imediata de salários, isto é, ainda que à data do acidente o sinistrado não estivesse a trabalhar ou fosse ainda menor[6].
Porém, só «há relativamente poucos anos tem vindo a entrar na terminologia da doutrina e da jurisprudência nacionais o conceito de “dano biológico” ou de “dano corporal”. (…) Ao nível da jurisprudência o conceito tem vindo a ser utilizado sobretudo a respeito da fixação de indemnizações em caso de acidentes de viação, suscitando, em primeira linha, a dificuldade da relação com a dicotomia tradicional da avaliação de danos patrimoniais versus danos não patrimoniais»[7].
Na verdade, sendo inicialmente sempre qualificada como indemnização por danos patrimoniais futuros[8], foi sendo efectuada uma evolução do conceito no sentido de que, quando não existia uma efectiva perda de vencimento e apenas estava em causa indemnizar um esforço acrescido para o desempenho das tarefas do dia-a-dia, quer na vertente da vida profissional quer na vertente da vida pessoal, que a existência de uma incapacidade, por si só representa, melhor se enquadraria a qualificação de tal indemnização como sendo atribuída pelo dano biológico, concluindo-se em alguns casos que este era ainda um dano patrimonial e em outros que constituía um dano não patrimonial.
Exemplificativamente, considerou-se que “nos casos em que a percentagem de IPP se não traduz, na prática, numa efectiva perda de ganhos ou de capacidade de ganho proporcional ao montante dos vencimentos previsivelmente a auferir no futuro, a repercussão negativa da IPP centra-se apenas numa diminuição de condição física, resistência, e capacidade de esforços por parte do lesado, o que se traduzirá numa deficiente ou imperfeita capacidade de utilização do corpo no desenvolvimento das actividades pessoais em geral, e numa consequente e igualmente previsível maior penosidade na execução das suas diversas tarefas.
É neste agravamento da penosidade (de carácter fisiológico) para a execução, com regularidade e normalidade, das tarefas próprias e habituais do respectivo múnus que deve radicar-se o arbitramento da indemnização por danos patrimoniais futuros”[9], considerando-se ainda nesse agravamento a repercussão da incapacidade na execução das normais tarefas do dia-a-dia.
Na mesma vertente da qualificação como danos patrimoniais, tem-se entendido que este denominado “dano biológico”, enquanto “diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com substancial e notória repercussão na vida pessoal e profissional de quem o sofre”, é sempre ressarcível, como dano autónomo, independentemente do seu específico e concreto enquadramento nas categorias normativas do dano patrimonial ou do dano não patrimonial (…); tal compensação do dano biológico tem como base e fundamento, quer a relevante e substancial restrição às possibilidades de exercício de uma profissão e de futura mudança ou reconversão de emprego pelo lesado, enquanto fonte actual de possíveis e eventuais acréscimos patrimoniais, frustrada irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente o vai afectar, quer da acrescida penosidade e esforço no exercício da sua actividade diária e corrente, de modo a compensar e ultrapassar as graves deficiências funcionais que constituem sequela irreversível das lesões sofridas; a perda relevante de capacidades funcionais – mesmo que não imediatamente reflectida no valor dos rendimentos pecuniários auferidos pelo lesado – constitui uma verdadeira «capitis deminutio» num mercado laboral exigente, em permanente mutação e turbulência, condicionando, de forma relevante e substancial, as possibilidades de exercício profissional e de escolha de profissão, eliminando ou restringindo seriamente qualquer mudança ou reconversão de emprego e, nessa medida, o leque de oportunidades profissionais à disposição, erigindo-se, deste modo, em fonte actual de possíveis e futuros lucros cessantes, a compensar, desde logo, como verdadeiros danos patrimoniais”[10].
Por seu turno, qualificando o dano biológico, como sendo exclusivamente um dano não patrimonial, afirmou-se que «levando os factos provados a excluir que a incapacidade permanente geral de 5% tenha repercussões funcionais directas ou indirectas, imediatas ou longínquas, não é devida indemnização, a título de danos patrimoniais futuros, esgotando-se a sua valoração e ressarcimento em sede de dano não patrimonial»[11].
Ainda noutra perspectiva, autonomizando a indemnização pelo dano biológico, entende-se que «deverá aditar-se ao lucro cessante, decorrente da previsível perda de remunerações, calculada estritamente em função do grau de incapacidade permanente fixado, uma quantia que constitua justa compensação do referido dano biológico, consubstanciado na privação de futuras oportunidades profissionais, precludidas irremediavelmente pela capitis deminutio de que passou a padecer (o lesado), bem como pelo esforço acrescido que o já relevante grau de incapacidade fixado irá envolver para o exercício de quaisquer tarefas da vida profissional ou pessoal»[12].
Concordamos com a citada autora, quando afirma que «o dano biológico, sendo um dano real ou dano-evento, não deve, em princípio, ser qualificado como dano patrimonial ou não patrimonial, mas antes como tendo consequências de um e/ou outro tipo; e também por isso, em nosso entender, o dano biológico não deve ser tido como um dano autónomo em relação à dicotomia danos patrimoniais/danos não patrimoniais».
Assim, sendo certo que «a atribuição de uma indemnização a título de danos patrimoniais pela perda de capacidade de ganho, ao abrigo do art. 566.º, n.ºs 2 e 3, do CC, não dispensa a prova da existência de danos futuros», sendo determinante nessa vertente aquilatar se o lesado ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica, e não se sabendo se «em consequência do acidente de viação de que foi vítima, deixou de trabalhar, ou, trabalhando, qual o grau de dificuldade existente no desempenho das suas tarefas como vidraceiro, se o seu rendimento laboral deixou de ser o mesmo e em que medida ou se deixou de auferir o mesmo salário e em que montante, não existem elementos fácticos que permitam avaliar a existência de um dano patrimonial futuro»[13]. Daí que, nestes casos, o dano produzido na saúde do lesado se reconduza à categoria de dano não patrimonial...
Tudo visto, é sempre possível indemnizar, mesmo complementarmente, o dano biológico, quando o lesado «tem de suportar a onerosidade com a execução de tarefas materiais de índole pessoal, mormente no âmbito das suas lides domésticas, a qual representará, para além da respetiva penosidade anímica, uma diminuição da capacidade geral de ganho fora do âmbito profissional», já que «o chamado dano biológico abrange um espectro alargado de prejuízos incidentes na esfera patrimonial do lesado, desde a perda do rendimento total ou parcial auferido no exercício da sua atividade profissional habitual até à frustração de previsíveis possibilidades de desempenho de quaisquer outras atividades ou tarefas de cariz económico, passando ainda pelos custos de maior onerosidade no exercício ou no incremento de quaisquer dessas atividades ou tarefas, com a consequente repercussão de maiores despesas daí advenientes ou o malogro do nível de rendimentos expectáveis»[14].
Como já resulta do sobredito, o dano biológico pode «projectar-se em duas vertentes:
- por um lado, a perda total ou parcial da capacidade do lesado para o exercício da sua atividade profissional habitual ou específica, durante o período previsível dessa atividade, e consequentemente dos rendimentos que dela poderia auferir;
- por outro lado, a perda ou diminuição de capacidades funcionais que, mesmo não importando perda ou redução da capacidade para o exercício profissional da atividade habitual do lesado, impliquem ainda assim um maior esforço no exercício dessa atividade e/ou a supressão ou restrição de outras oportunidades profissionais ou de índole pessoal, no decurso do tempo de vida expetável, mesmo fora do quadro da sua profissão habitual»[15].
No caso em apreço, movemo-nos apenas no âmbito desta última vertente, posto que, não se discutem danos de natureza patrimonial.
Ora, como já se referiu supra, o critério fundamental para a fixação da indemnização devida pelo dano biológico, tanto das indemnizações atribuídas por danos patrimoniais futuros (vertente patrimonial do chamado dano biológico) como especialmente por danos não patrimoniais (dano biológico e demais danos não patrimoniais), é a equidade[16].
Na determinação do montante do montante indemnizatório o tribunal, por imposição legal (nº 4 do art.º 496 e 494 do CC), deve ter-se em consideração a gravidade do dano, o “grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso” por forma a conceder “ao ofendido uma quantia em dinheiro considerada adequada a proporcionar-lhe alegria ou satisfação que de algum modo contrabalancem as dores, desilusões, desgostos ou outros sofrimentos que o ofensor lhe tenha provocado” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Abril de 1991, BMJ n.º 406, p. 618).
“A gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo …, e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada). Por outro lado, a gravidade apreciar-se-á em função da tutela do direito: o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado” (Prof. Antunes Varela, ob. cit., pág. 600). “A indemnização reveste, no caso dos danos não patrimoniais, uma natureza acentuadamente mista: por um lado, visa reparar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente” (autor e obra citados, pág. 602). A indemnização, ou compensação, deverá constituir um lenitivo para os danos suportados, por isso que, não pode ser miserabilista, mas significativa (acórdão do STJ de 25.06.02, supra mencionado; em igual sentido, o acórdão do mesmo Tribunal, de 12.03.09, disponível em www.dgsi.pt). No seu cálculo intervém, sobretudo, critérios de equidade (mas fundados nas circunstâncias do caso concreto), de proporcionalidade (em função da gravidade do dano), de prudência, de senso prático, de ponderação das realidades da vida (Prof. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume I, 4.ª edição, pág. 449). “(…) pretende-se encontrar aquilo que, no caso concreto, pode ser a solução mais justa; a equidade está assim limitada sempre pelos imperativos da justiça real (a justiça ajustada às circunstâncias), em oposição à justiça meramente formal … a equidade é uma justiça de proporção, de adequação às circunstâncias, de equilíbrio” (Dario Martins de Almeida, Manual de Acidentes de Viação, pág. 103/105).
Para as circunstâncias do caso, hão-de relevar a natureza e o grau das lesões, as suas sequelas (físicas e psíquicas), os tratamentos médicos, mormente intervenções cirúrgicas, os internamentos, o tempo de doença, o “quantum doloris”, a afirmação social, a alegria de viver, a auto estima, a idade, a esperança de vida e perspectivas de futuro (acórdão do STJ de 02.10.2007, CJ do STJ, Ano XV, Tomo III, página 68).
O dano não patrimonial deve considerar, entre outros, os seguintes aspectos, que, em princípio, devem constar do relatório médico-legal.
1) a IPP ou, se for caso disso, a incapacidade temporária total geral, que diz respeito às tarefas da vida corrente, e a incapacidade temporária total especial, para a actividade desenvolvida, ou seja, a projecção dessa incapacidade no exercício da actividade específica do sinistrado;
2) a graduação do quantum doloris (numa escala de 1 a 7: muito ligeiro, ligeiro, moderado, médio, considerável, importante e muito importante), que se reporta ao período que começa com o acto lesivo e acaba no momento em que o estado do lesado não pode ser melhorado, de acordo com os conhecimentos médicos existentes a esta última data;
3) o prejuízo estético, graduado naquela mesma escala;
4) o prejuízo de afirmação pessoal (alegria de viver) que deve ser graduado também de acordo com a escala valorativa da quantificação da dor.
No caso sub judicio, o dano violado foi a integridade física e psicológica da Autora, que viu o acidente causar-lhe danos corporais com significativa gravidade, que deixaram sequelas permanentes, a nível físico, psicológico e estético, componentes que entendemos não deverem ser nesta sede objecto de divisão mas sim de uma avaliação global, porque é globalmente considerados que se reflectem na vida da autora.
Assim, com relevância nesta avaliação temos que o acidente foi causado por culpa exclusiva do segurado da Ré, do qual resultaram lesões para a autora, geradoras de um défice funcional temporário total fixável num período de 687 dias, sendo 188, com repercussão total na actividade profissional, ou seja, entre a data do acidente ocorrido em 9-05-2012 e a data da consolidação das lesões que foi fixada em 13-11-2012. E de um défice temporário parcial da actividade profissional de 499 dias, entre 14/11/2012 e 27/03-2014. Esse período, conforme definido no relatório médico-legal, corresponde ao período durante o qual a autora, em virtude do processo evolutivo das lesões no sentido da cura ou consolidação, viu condicionada a sua autonomia na realização dos actos correntes da vida diária, familiar e social. No mesmo foi considerado ainda um quantum doloris fixável no grau 4, numa escala de sete graus de gravidade crescente.
Depois, seguindo ainda o mesmo relatório, no âmbito do período de danos permanentes são valorizáveis, entre os diversos parâmetros do dano, o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica, que se refere à afectação definitiva da integridade física e/ou psíquica da pessoa, com repercussão nas actividades da vida diária, independente das actividades profissionais, e que relativamente à capacidade integral do indivíduo, de 100 pontos, considerando a globalidade das sequelas (corpo, funções e situações de vida), e sendo causa de sofrimento físico, limitando a autora em termos funcionais, foi fixada em 8 pontos.
Por seu turno, no mesmo âmbito dos danos permanentes, foi considerado o dano estético permanente, correspondente à repercussão das sequelas, numa perspectiva estética e dinâmica, envolvendo uma avaliação personalizada da afectação da imagem da vítima quer em relação a si próprio, quer perante os outros, o qual, tendo em conta as cicatrizes que a autora ostenta no rosto, foi fixado no grau 2 duma escala de sete graus de gravidade crescente.
Este colectivo em acórdão proferido, em 17/11/2011, no proc. nº 1174/04.7TBSTR.E1, atribuiu numa situação semelhante à dos presentes autos, em que a vitima ficou com uma IPP de 8% (5 %, e mais 3% de dano futuro) um quantum doloris de grau 5, numa escala de 7, e dano estético de grau 3, numa escala de 7, uma indemnização por danos não patrimoniais de €25.000,00. Tendo em conta o tempo decorrido entre esta decisão e a presente, o aumento do custo de vida (inflação) e a depreciação do poder de compra da generalidade da população, entendemos que a indemnização fixada na sentença não merece reparo. Se peca é por defeito e não por excesso…!
Na verdade tal como tem vindo a decidir o STJ, «a compensação por danos não patrimoniais, para responder actualizadamente ao comando do artigo 496º e constituir uma efectiva possibilidade compensatória, tem de ser significativa, viabilizando um lenitivo para os danos suportados e, porventura, a suportar»[17]. Deve ainda ter-se em conta a evolução dos valores mínimos de cobertura do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, que hoje se situam em € 600.000,00.[18] Essa evolução não teve e deveria ter, a necessária correspondência na fixação do “quantum indemnizatur”... afinal ela não pode servir apenas de pretexto para aumento dos prémios de seguros...!!
As lesões sofridas, as sequelas deixadas, os padecimentos sofridos e bem assim os que irá, infeliz e necessariamente, suportar no futuro, são graves e merecem ser compensados adequadamente. Por outro lado a culpa do segurado da R. é exclusiva e a R., responde na medida dessa culpa por força do contrato de seguro.
A indemnização fixada na sentença é justa e equilibrada. Improcede, por isso a apelação.
*
**
Em síntese:
I - O critério fundamental para a fixação da indemnização devida pelo dano biológico, tanto das indemnizações atribuídas por danos patrimoniais futuros (vertente patrimonial do chamado dano biológico) como especialmente por danos não patrimoniais (dano biológico e demais danos não patrimoniais), é a equidade, tal como o impõe o art.º 496º nº 4 do CC.
II - Os critérios definidos na Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, bem como nas alterações introduzidas pela Portaria n.º 679/2009, de 25 de Junho, destinam-se expressamente a um âmbito de aplicação extrajudicial. Consequentemente, os mesmos não se sobrepõem ao sobredito critério fundamental para a determinação judicial das indemnizações, a equidade.
III -A compensação por danos não patrimoniais, para responder actualizadamente ao comando do artigo 496º e constituir uma efectiva possibilidade compensatória, tem de ser significativa, viabilizando um lenitivo para os danos suportados e, porventura, a suportar.
Concluindo
Pelo exposto, acorda-se na improcedência da apelação e confirma-se a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Notifique.
Évora, em 20 de Outubro de 2016.
---------------------------------------------------
(Luís Mata Ribeiro – 2º Adjunto)
__________________________________________________
[1] Transcrito da sentença.
[2] O âmbito do recurso é triplamente delimitado. Primeiro é delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na 1.ª instância recorrida. Segundo é delimitado objectivamente pela parte dispositiva da sentença que for desfavorável ao recorrente (art.º 684º, n.º 2 2ª parte do Cód. Proc. Civil) ou pelo fundamento ou facto em que a parte vencedora decaiu (art.º 684º-A, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil). Terceiro o âmbito do recurso pode ser limitado pelo recorrente. Vd. Sobre esta matéria Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa –1997, págs. 460-461. Sobre isto, cfr. ainda, v. g., Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, Liv. Almedina, Coimbra – 2000, págs. 103 e segs.
[3] Vd. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, pág. 56.
[4] Cfr. Ac. do STJ de 04-06-2015, proferido no processo n.º 1166/10.7TBVCD.P1.S1, e disponível em www.dgsi.pt.
[5] Acórdão de 6/10/2016 , proc. Nº 866/11.9TBABT.E1.
[6] Neste sentido, cfr. Ac. STJ, de 19-11-2009, proferido na revista n.º 585/09.6YFLSB, 1.ª secção e disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos, onde se afirma que “estamos perante danos patrimoniais indirectos quando o dano, atingindo embora valores ou interesses não patrimoniais, se reflecte no património do lesado, daí que possa concluir-se que nem sempre o dano patrimonial resulta da violação de direitos ou interesses patrimoniais”.
[7] Cfr. artigo doutrinário de 2011 da autoria de Maria da Graça Trigo, actualmente Juíza Conselheira no Supremo Tribunal de Justiça, com o título Adopção do Conceito de “Dano Biológico” pelo Direito Português, acessível na Internet, no qual é efectuada uma análise de Acórdãos significativos do Supremo Tribunal de Justiça a este respeito. Para mais desenvolvimentos, vd. João António Álvaro Dias, in Dano Corporal – Quadro Epistemológico e Aspectos Ressarcitórios, Almedina, Colecção Teses, Set. 2001, sobretudo em págs. 395 e segs.
[8] Veja-se exemplificativamente o acórdão acabado de citar.
[9] Acórdão do STJ, de 07-02-2002, Revista n.º 3985/01 - 2.ª Secção.
[10] Cfr. Ac. STJ de 20-01-2011, proferido no processo n.º 520/04.8GAVNF.P2.S1, e disponível em www.dgsi.pt.
[11] Cfr. Ac. STJ de 20-01-2010, proferido no processo n.º 203/99.9TBVRL.P1.S1, e disponível em www.dgsi.pt.
[12] Cfr. Ac. STJ de 10- 10-2012, proferido no processo n.º 632/2001.G1.S1, e disponível em www.dgsi.pt..
[13] Cfr. o recente Ac. STJ de 30-06-2016, proferido no processo n.º 161/11.3TBPTB.G1.S1, e disponível em www.dgsi.pt. , decisão em que a citada autora é adjunta.
[14] Cfr. o recente acórdão do STJ, de 02-06-2016, proferido no processo n.º 2603/10.6TVLSB.L1.S1, e disponível em www.dgsi.pt..
[15] Cfr. citado Ac. STJ de 16-06-2016.
[16] Cfr. Ac. do STJ de 04-06-2015, proferido no processo n.º 1166/10.7TBVCD.P1.S1, e disponível em www.dgsi.pt. .
[17] Cfr. Acórdão de 28-05-1998, Revista nº 337/98.
[18] cfr. DL n.º 301/01 de 23/11