ACESSÃO INDUSTRIAL IMOBILIÁRIA
REQUISITOS
BOA-FÉ
Sumário


I - A boa- fé na acessão (industrial imobiliária) consiste no desconhecimento de que o terreno é alheio ou na autorização para a construção concedida pelo dono dele: É o que resulta do disposto no artigo 1340, n.º 4, do Cód.Civil.
II- A boa-fé do beneficiário da acessão deve existir no momento em que ocorre a construção da obra, a execução da sementeira ou da plantação porquanto é igualmente nesse momento que se devem verificar a integralidade dos requisitos substantivos do instituto; por conseguinte, deverá ser reportado a esse momento temporal o âmbito material da autorização concedida.
IV- A autorização, com o significado de permissão, não tem de provir de uma manifestação de vontade expressa, podendo ser dada de forma tácita, nomeadamente, pelo comportamento concludente do proprietário.
V- No caso, essa autorização traduziu-se na permissão pelos apelantes de utilização do espaço envolvente à moradia, com a referida área de 426,4 m2, que até quiseram depois “formalizar” através da subscrição de um documento que surge, portanto, como um elemento adjuvante do alcance da autorização oportunamente concedida.
VI- A posterior oposição a tal utilização não tem a virtualidade de destruir a boa-fé que se verificava aquando da incorporação.
VII- A lei ao impor ao beneficiário da acessão que pague o valor que o prédio tinha antes das obras (artº 1340º nº1 do Cód. Civil) é explícita no sentido de que a dívida que dele emerge é uma dívida de valor (em que o dinheiro intervém como simples meio de determinação do quantitativo da prestação) e não uma dívida de dinheiro.
VIII- Não se enquadrando as dívidas de valor no âmbito das obrigações pecuniárias, as mesmas mostram-se subtraídas ao princípio nominalista constante do estatuído no art.º 550º do Cód.Civil.
IX-Nada impede, pelo contrário tudo o justifica porque só assim se dará ao outro o que é devido, que o valor do terreno, que por força da lei é aquele que o mesmo tinha à data da incorporação, seja actualizado até à data da manifestação de vontade aquisitiva, isto é, ao momento do exercício do direito potestativo de aquisição por parte do beneficiário da acessão.
Sumário da relatora

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I. - RELATÓRIO
AS e marido FS intentaram acção declarativa sob a forma de processo comum, contra MS e mulher OS peticionando se declarem verificados os pressupostos da acessão industrial imobiliária e, em consequência, que o prédio urbano sito na Rua …, Brejos de Azeitão, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo …, e incorporado no prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob os números … e … e rústico sob o número …, inscrito na matriz sob o artigo …, pertence aos autores, mediante o pagamento do valor do terreno à data da incorporação, mais peticionado o cancelamento de todos os registos, ónus ou encargos, relativamente ao prédio.
Alegaram, em síntese, que em 1984 e com autorização dos réus, iniciaram a construção de uma moradia com 96 m2 no terreno dos réus, já inscrita nas Finanças desde 1990; que em 2002 os réus declararam doar à autora mulher a parcela de terreno onde se encontra implantada a moradia, com 426 m2, e que os autores actuaram sempre de boa-fé e com legítima convicção de serem proprietários da moradia e do terreno; o valor do prédio era à data da implantação de € 30.000,00, ao passo que o valor do terreno onde o prédio foi implantado não ultrapassava, à data, € 426,40.
Em contestação, os réus invocaram que apenas autorizaram a construção da moradia com 96 m2, que a doação de uma parcela de terreno com 426 m2 nunca se concretizou e que inclusive os réus emitiram uma declaração a revogar aquela doação; referindo que a declaração junta pelos autores é falsificada; os autores não construíram a moradia exclusivamente a expensas próprias, pois contaram também com a ajuda dos réus; os autores apenas ocupam a parcela de terreno por mera tolerância dos réus, os quais não pretendem que essa situação se mantenha; os autores sabem que os réus se opõem a essa ocupação, pois contestaram a acção que os autores intentaram com vista à aquisição da propriedade da parcela (acção 4900/04.0TBSTB); deduzem, finalmente e em consequência, reconvenção peticionando que os autores sejam condenados a desocupar o terreno (para além dos 96 m2 correspondente à moradia), demolindo os barracões que ali construíram. Mais alegam a litigância de má-fé dos autores, requerendo a sua condenação em multa e em indemnização não inferior a € 5.000,00.
Os autores replicaram, mantendo a petição inicial e concluindo pela litigância de má-fé dos réus.
Realizou-se audiência prévia, tendo sido admitida a reconvenção e fixados o objecto do processo e os temas da prova.
Realizou-se audiência final e, subsequentemente, foi proferida sentença na qual se decidiu:
“a) Declarar reconhecida a favor dos autores a aquisição, por acessão industrial imobiliária, da propriedade do prédio urbano sito na Rua …, Brejos de Azeitão, com a área de 426,4 m2 e já inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo …, a destacar do prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob os números … e … e rústico sob o número …, inscrito na matriz sob o artigo …, pertencente aos réus, mediante o pagamento a estes últimos da quantia de € 21.542,48 (vinte e um mil quinhentos e quarenta e dois euros e quarenta e oito cêntimos), correspondente ao valor do terreno à data da incorporação e actualizado desde 1990, inclusive, de acordo com o índice anual de aumento de preços no consumidor (taxa de inflação) calculado pelo Instituto Nacional de Estatística, devendo os autores depositarem tal montante nos autos no prazo de 15 dias após o trânsito em jugado desta decisão,
b) Condenar os réus a reconhecerem os autores como proprietários do prédio urbano identificado na alínea anterior;
c) Determinar que, a requerimento dos autores, sejam cancelados os registos que afectem o seu direito de propriedade sobre o prédio urbano identificado na alínea a).
B) Julgar a reconvenção improcedente e, em consequência, absolver os autores do pedido reconvencional.
C) Não julgar verificada a litigância de má-fé de qualquer uma das partes.”.

2. Inconformados com tal decisão, dela apelaram os RR formulando as seguintes conclusões:
1º. – Os factos considerados provados permitiam à Meritíssima Juíza a quo decidir de forma diversa.
2º. – A matéria de facto é impugnada e impugnável uma vez que existem factos incorrectamente julgados uma vez que a prova testemunhal e documental apresentada não permite concluir que os Autores agiram de boa-fé.
3º. – Existem meios probatórios constantes dos autos que impunham decisão diversa, nomeadamente, quanto à área de utilização autorizada pelos R.R./recorrentes e a sua oposição à ocupação indevida pelos A.A.
4º.- Em matéria de direito verifica – se a violação de normas jurídicas, nomeadamente as constantes dos art.º 1333.º e seguintes Cód. Civil.
5º. – A prova produzida em audiência de julgamento não permitia concluir pela procedência da acção com a consequente condenação dos Recorrentes a reconhecer a propriedade dos A. A. sobre a parcela de terreno de 426,4m2.
6º. - A douta sentença violou o art.º 615.º do C.P.C.
Deve a douta Sentença proferida em 1ª. Instância ser substituída por douto Acórdão que dê provimento ao Recurso dos R.R. aqui Recorrentes e julgue a acção improcedente por não provada, com as legais consequências.
Pois só assim se fará a costumada JUSTIÇA! “.

2. Interpuseram igualmente os AA recurso subordinado, concluindo como segue:
1.º- A douta Sentença recorrida reconheceu a favor dos AA. a aquisição por acessão industrial imobiliária do terreno em causa por € 21.542,48, ao invés do valor do terreno fixado em sede de relatório pericial, que foram € 9.942,00.
2.º - De acordo com o artigo 1340.º/1, o valor a pagar é o valor que o prédio tinha antes as obras, sementeiras ou plantações.
3.º - Portanto, nesta parte, deve ser a douta Sentença recorrida corrigida, para o montante a pagar pelos autores de € 9.942,00 (ao invés dos €21.542,48), por violação do artigo 1340.º/1 CC.
4.º - Quanto ao cancelamento dos registos que afectem o direito de propriedade dos autores, entendem os mesmos que, de acordo com o exposto no n.º 3 do artigo 8.º-B do Código do Registo Predial, deve ser o Tribunal a quo a ordená-los.
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO QUE V.EXAS. MUI DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVERÁ SER CONCEDIDO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO SUBORDINADO, REVOGANDO-SE A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA NA PARTE EM QUE É OBJETO DO MESMO, COM O QUE, SE FARÁ, A JÁ ACOSTUMADA JUSTIÇA!
3. Contra-alegaram igualmente os AA , concluindo do seguinte modo :
1.º - Os autores reiteram a sua concordância com os termos em que foi proferida a douta Sentença recorrida, na parte objeto de recurso dos réus.
2.º - Com efeito, o Tribunal a quo fez uma correta interpretação dos requisitos essenciais da acessão industrial imobiliária, nomeadamente da boa-fé.
3.º - Invocam os réus a falsificação de um documento, que não tem qualquer relevância para os autos, mas tão-somente demonstra que houve uma intenção dos réus doarem um terreno aos autores, que não se concretizou.
4.º - Os autores sempre reconheceram ter construído a sua benfeitoria em terreno alheio (dos réus), muito embora com o seu incentivo e consentimento.
5.º - Posto isto, restaria averiguar se existia boa-fé quer na utilização dos 96m2, quer na utilização dos 426m2 (que abrange a moradia e o terreno circundante à mesma).
6.º - Tratando-se de um terreno, onde consta uma moradia na zona central, como poderiam os autores proceder à utilização exclusiva da moradia, sem a área circundante?
7.º - Além disso, e como os réus sabem, os 426m 2 sempre foram utilizados pelos autores (prova testemunhal, nomeadamente, Paulo Santos).
8.º -Veja-se que, a boa-fé dos autores, para efeitos de acessão industrial imobiliária deve ser aferida no momento da incorporação.
9.º - O próprio Relatório Pericial indica que a moradia incorporada no terreno corresponde a uma unidade económica distinta do prédio sobrante, e que se pode considerar válida a área de 426m2.
10.º - E, parte dos 426m2 são utilizados como acesso à porta de entrada da sua habitação, não o podendo fazer, obviamente, de outra forma.
11.º - Portanto, o douto Tribunal a quo decidiu bem, ao determinar reconhecida a propriedade a favor dos autores da área de 426 m2, mediante o pagamento do terreno aos réus.
12.º - Não restam quaisquer dúvidas que a incorporação da benfeitoria foi autorizada pelos donos do terreno, na data da construção, pelo que se verifica, indubitavelmente, a boa-fé dos autores.
13.º - É o próprio Réu, em declarações de parte, quem o expressamente confessa, bem como se retira do depoimento da testemunha PS, conforme transcrições que se dão integralmente por reproduzidas.
14.º - Pelo que, estão reunidos todos os pressupostos da acessão industrial imobiliária, devendo-se confirmar, nesta parte, a douta Sentença recorrida.
15.º - Acresce ainda que, a douta Sentença recorrida reconheceu a favor dos AA. a aquisição por acessão industrial imobiliária do terreno em causa por €21.542,48, ao invés do valor do terreno fixado em sede de relatório pericial, que foram € 9.942,00.
16.º - Os autores não se conformam com isso, na medida em que, de acordo com o disposto no artigo 1340.º/1, o valor a pagar é o valor que o prédio tinha antes das obras.
17.º - Portanto, nesta parte, deve ser a douta Sentença recorrida corrigida, para o montante a pagar pelos autores de € 9.942,00 (ao invés dos €21.542,48), por violação do artigo 1340.º/1 CC.
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO QUE V. EXAS.
MUI DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVERÁ SER NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELOS RÉUS, MANTENDO-SE, ASSIM, A SENTENÇA RECORRIDA NA PARTE EM QUE É OBJECTO DE RECURSO POR PARTE DOS RÉUS, CORRIGINDO-SE APENAS A DOUTA SENTENÇA NA PARTE EM QUE CONDENA OS AUTORES AO PAGAMENTO DE 21.542,48€, EM VEZ DE 9.942,00€, COM O QUE, SE FARÁ, A JÁ ACOSTUMADA JUSTIÇA! “.

4. OBJECTO DO RECURSO
4.1. DO RECURSO PRINCIPAL
No caso, como vimos, apela-se da sentença final da 1ª instância.
E apesar do inconformismo, no corpo das alegações, acerca do modo como foram valorados as declarações de parte e depoimentos testemunhais e da crítica que é feita à fundamentação de facto, mas que não foram transpostos para as conclusões, o certo é que os apelantes não extraem quaisquer consequências disso, ou seja não colocam em crise a decisão da matéria de facto com observância das exigências impostas pelo artº 640º do Código de Processo Civil, maxime através da concretização dos “ concretos pontos de facto que julga incorrectamente julgados” (nº1 a)); “ a decisão que no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas “( nº1 c)).
O incumprimento dos ónus impostos pelo artº 640º do CPC tem como cominação a rejeição do recurso, no segmento respeitante à impugnação da matéria de facto, ao abrigo do proémio do nº 1 desse artº 640º e sem possibilidade de despacho de aperfeiçoamento, mas sem prejuízo do prosseguimento do recurso quanto a outros fundamentos alegados pelo apelante, já no âmbito da impugnação de direito.
Como salienta ABRANTES GERALDES[1], a apreciação do cumprimento desses ónus deve ser feita segundo “um critério de rigor”, aditando que: “Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.
Em suma: Visou, assim, o legislador impedir a impugnação anárquica da matéria de facto fazendo recair sobre o recorrente o ónus de precisar os pontos concretos que considera incorrectamente julgados, a resposta que em seu entender relativamente aos mesmos deveria ter sido dada e com que particular fundamento, com referência a concretos meios probatórios, permitindo, deste modo, ao Tribunal de Recurso a reapreciação rigorosa dos mesmos e ao recorrido o exercício do contraditório em conformidade.
Pretendendo a lei, ao impor ao recorrente os citados ónus, desmotivar impugnações temerárias e infundadas da decisão da matéria de facto, a sua não observância acarreta a rejeição do recurso.
Face ao exposto, é evidente que o recurso não tem, nem pode ter, como objecto (também) a decisão da matéria de facto, pelo que se decide rejeitá-lo nesse segmento.
Pelo que o mesmo, face às conclusões enunciadas, se atém à questão de saber se se verificam os pressupostos da acessão industrial imobiliária no que concerne à parcela de terreno de 426,4 m2, designadamente no que concerne à boa-fé dos autores da acessão e se a sentença enferma da nulidade prevista na alínea c) do artº 615º do CPC.

4.2. DO RECURSO SUBORDINADO
Circunscreve-se o objecto do recurso subordinado, delimitado pelas enunciadas conclusões, a duas questões:
- Se o valor a pagar pelos beneficiários da acessão, em consonância com o artº 1340.º nº1 do Código Civil é o valor que o terreno tinha antes as obras, sementeiras ou plantações, ou seja de € 9.942,00, ao invés dos €21.542,48, que a sentença fixou por ter procedido à sua actualização com referência à data da propositura da acção.
- Se a sentença deveria ter ordenado, de acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 8.º-B do Código do Registo Predial, o cancelamento dos registos que afectem o direito de propriedade dos autores.

II. - FUNDAMENTAÇÃO
1. Convém, por comodidade de raciocínio, reproduzir o que, a propósito dos factos alegados pelas partes, se consignou na sentença recorrida.
1.1. O tribunal “ a quo” deu como provados os seguintes factos:
“ 1. Os autores são casados entre si sob o regime de comunhão de bens adquiridos.
2. A autora é filha dos réus.
3. Os réus são donos de um prédio misto sito na Rua …, Brejos de Azeitão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob os números … a fls. 118 do Livro B30 e … a fls. 125 do Livro B e rústico sob o número …, inscrito na matriz sob os artigos … e … Secção B, com a área total de 0,5472ha.
4. Em Dezembro de 1983, os réus deram autorização aos autores para que estes construíssem a sua própria casa no referido terreno. 5. Assim, em 21 de Janeiro de 1984, com o consentimento dos réus, os autores iniciaram a construção de uma moradia com uma área aproximada de 96 m2, dois andares e seis divisões.
6. Os autores construíram a moradia à vista de todos e sem oposição de ninguém.
7. A moradia foi sendo construída ao longo do tempo pelos próprios autores e de acordo com as suas possibilidades.
8. Os autores suportaram integralmente os custos de construção da referida moradia.
9. Mas contaram com a ajuda (mão-de-obra) de familiares, incluindo os réus, e de amigos.
10. Quando a obra ficou concluída, os autores iniciaram o processo de inscrição nas finanças.
11. Assim, em 24 de Setembro de 1990, a autora e o seu pai, 1.º réu, inscreveram a moradia junto da 3.ª Repartição de Finanças do Concelho de Setúbal, como “prédio de dois pisos destinado a uma só habitação com estrutura de betão e alvenaria de tijolo, que constitui benfeitoria assente em terreno de Manuel …, com a área de 96 m2”.
12. Em 02 de Janeiro de 2002, os réus subscreveram um documento declarando doar à autora, por conta da quota disponível, uma parcela de terreno do prédio descrito em 3., com a área de 426,4 m2 e confrontando a Norte com Maria …, a Sul e Poente com os réus, e a Nascente com serventia.
13. A moradia dos autores inseria-se na referida parcela.
14. E a área de 426 m2 correspondia àquela que já era habitualmente utilizada pelos autores, sem oposição dos réus.
15. Os autores construíram nessa parcela alguns barracões e usavam esse espaço para criação de animais, estacionamento de veículos, etc.
16. Meses depois e devido a desavenças familiares, os réus pretenderam revogar aquela declaração.
17. Em 25 de Novembro de 2002 subscreveram o documento junto a fls. 45, declarando que “dão sem efeito a declaração passada em 2 de Janeiro de 2002” e “como tal não doam qualquer parcela deste prédio”.
18. Em 14 de Agosto de 2013, sem conhecimento dos réus, os autores actualizaram a inscrição matricial da construção, fazendo constar que a área total do terreno é de 426,4 m2.
19. O prédio ficou inscrito sob o artigo … da União de Freguesias de Azeitão e descrito como prédio urbano em propriedade total sem andares nem divisões susceptíveis de utilização independente, afecto a habitação, com 2 pisos e 6 divisões assoalhadas, tendo-lhe sido atribuído o valor patrimonial de € 129.210,00.
20. Em 07 de Outubro de 2004, os autores intentaram acção contra os réus, que correu termos sob o n.º 4900/04.0TBSTB na então Vara Mista deste Tribunal, peticionando a declaração da aquisição por usucapião da referida parcela com 426,4 m2, tendo os réus deduzido contestação a essa pretensão.
21. A instância veio a terminar por deserção.
22. A área de implantação da moradia é de 129,78 m2, englobando 90,84 m2 de habitação e 38,94 m2 de arrumos.
23. A edificação não se encontra licenciada nem cumpre integralmente as normas regulamentares (designadamente, quanto à altura do pé-direito e à dimensão dos degraus da escada interior).
24. A área de construção máxima para a parcela de 426,4 m2 é, de acordo com o índice de construção previsto no PDM, de 213 m2.
25. A parcela de 426,4 m2 onde se encontra implantada a moradia está actualmente delimitada do prédio sobrante por um muro de vedação e dispõe de acesso independente à via pública.
26. Parte dessa parcela é ocupada pela moradia e outra parte com logradouro e anexos/construções precárias.
27. Para que se mantenha autónoma do prédio sobrante e com possibilidade de legalização das construções, a parcela terá que manter a área actual de 426,4 m2.
28. O valor da construção à data da implantação era de € 56.081,30.
29. O valor da parcela de 426,4 m2 era, nessa altura, de € 9.942,00.
1.2. O Tribunal “ a quo” considerou não provados os seguintes factos:
– Que os autores hajam entulhado o espaço à volta da moradia e construído barracões, à revelia da vontade dos réus.
– Que a declaração de doação junta pelos autores seja falsificada.

2. DO MÉRITO DO RECURSO PRINCIPAL
2.1. A (pretensa) nulidade da sentença
Referem os recorrentes que ao condená-los “ a sentença fez, assim, uma incorrecta aplicação dos factos ao direito, incorrendo numa manifesta contradição com os factos que resultaram provados, designadamente nos pontos 4, 5, 11, 17, 18, 20, 21 e 22 dos factos provados e que constituem a fundamentação de facto da sentença recorrida “incorrendo na violação do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC.
De acordo com o que no referido normativo se dispõe, a sentença será nula quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão”, ou seja, quanto exista contradição entre os fundamentos de facto e de direito e a decisão final proferida pelo tribunal; quando a motivação aponta para um determinado sentido e a decisão tomada foi em sentido oposto.
Como é também consabido, esta causa de nulidade só ocorre quando a construção da sentença é, em si mesma, viciosa na respectiva estrutura.
Significa isto, que a referida nulidade se verifica quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão mas a resultado oposto.
Ora, analisando a sentença recorrida, com facilidade se alcança que a mesma não enferma de tal vício porquanto na elaboração do correspondente silogismo judiciário, não se detecta qualquer oposição ou contradição.
Questão diferente é a do erro na interpretação dos factos ou da aplicação do direito que são reconduzíveis ao erro de julgamento e que não se confunde com a nulidade da sentença.
Pelo exposto, e sem necessidade de maiores considerações, improcede a nulidade suscitada.

2.2. Da verificação dos pressupostos da acessão industrial imobiliária no que concerne à parcela de terreno de 426,4 m2, designadamente no que concerne à boa-fé dos autores da acessão.
Como se salientou na sentença recorrida, a discórdia entre as partes centra-se essencialmente na área em concreto que os apelantes autorizaram que fosse utilizada pelos apelados: se, como estes defendem, se circunscreveu tão-só à área na qual foi construída a moradia (cerca de 96m2) ou se contemplou igualmente uma área adjacente num total de 426, 4 m2.
Antes de entrarmos na apreciação desta questão, justifica-se que teçamos, porém, umas brevíssimas considerações sobre a acessão industrial imobiliária, uma das modalidades de acessão, cuja noção consta do artº1325º do Cód. Civil: “Dá-se a acessão quando uma coisa que é propriedade de alguém, se une e incorpora outra coisa que não lhe pertencia.”
Ocorre acessão industrial imobiliária quando uma das coisas adjuntas é um imóvel.
No caso que nos ocupa, as obras foram executadas em terreno alheio, regendo, por isso, o disposto no artigo 1340º do Cód. Civil que estabelece como requisitos substantivos da acessão: a incorporação da construção em terreno alheio; com materiais pertencentes ao seu autor; de boa-fé e que o valor trazido pelas obras ao prédio seja maior do que o valor que este tinha antes.
A boa- fé na acessão consiste no desconhecimento de que o terreno é alheio ou na autorização para a construção concedida pelo dono dele: É o que resulta do disposto no artigo 1340, n.º 4, do Cód.Civil.
De facto, a lei determina de forma taxativa os casos de boa-fé para o efeito da acessão.
“No que respeita à autorização para a prática dos actos materiais em que a acessão se traduz, pode ela ser concedida através de vontade expressa pelo proprietário da coisa, ou ser resultado v.g. de um contrato translativo nulo por falta de forma ou de um contrato promessa onde é convencionada a entrega imediata da coisa ao promissário para dela justamente se servir como pertença já sua se tratasse”.[2]
A boa-fé do beneficiário da acessão deve existir no momento em que ocorre a construção da obra, a execução da sementeira ou da plantação porquanto é igualmente nesse momento que se devem verificar a integralidade dos requisitos substantivos do instituto.
Por conseguinte, deverá ser reportado a esse momento temporal o âmbito material da autorização concedida.

2.3. Retomando o caso concreto, dúvidas não há que a falada incorporação ocorreu com a construção pelos apelados de uma moradia numa parcela do prédio dos Réus.
E que essa construção foi autorizada expressamente pelos apelantes em 1983 também decorre expressamente dos pontos 4 e 5 da matéria de facto provada que se manteve incólume.

É certo que a área de implantação da moradia não perfaz os 426,4 m2 do terreno cuja aquisição, por via da acessão, os apelados reclamam.

Mas a verdade é que decorre da factualidade enunciada, que tal área correspondia à parcela do terreno dos apelantes que já era habitualmente usada pelos apelados, sem oposição daqueles e que contemplava, para além da moradia, um logradouro e anexos /construções precárias ( cfr. pontos 13), 14), 25 e 26).
Consentirá a matéria de facto provada a conclusão de que a autorização concedida pelos apelantes se estendia à integralidade dos 426,4 m2 e não apenas à área de implantação da moradia?
Cremos, à semelhança da 1ª instância, que sim.
E tal convicção é reforçada pela subscrição, pelos apelantes, do documento a que se alude no ponto 12 da matéria de facto no qual declararam “doar à autora, por conta da quota disponível, uma parcela de terreno do prédio descrito em 3., com a área de 426,4 m2 e confrontando a Norte com Maria …, a Sul e Poente com os réus, e a Nascente com serventia”, na qual se mostrava já implantada a moradia dos apelados e que já era utilizada pelos mesmos, sem oposição daqueles (pelo menos até esse momento) como logradouro e no qual haviam construído anexos/construções precárias.
Por conseguinte, acompanhamos o raciocínio da 1ª instância quando refere que a autorização, com o significado de permissão, não tem de provir de uma manifestação de vontade expressa, podendo ser dada de forma tácita, nomeadamente, pelo comportamento concludente do proprietário.
E que essa autorização se traduz na permissão pelos apelantes de utilização do espaço envolvente à moradia, com a referida área de 426,4 m2, que até quiseram depois “formalizar” através da subscrição do citado documento que surge, portanto, como um elemento adjuvante do alcance da autorização oportunamente concedida.
Concordamos, portanto, com o entendimento de que “esse documento, datado de início de 2002, mais não é do que o reafirmar daquela situação fáctica anterior, já consolidada, daí não resultando qualquer alteração à configuração da autorização (pré-existente) de que dependia a boa-fé dos autores”.
E em consequência, “também por isso se pode afirmar que a posterior “desistência”, e que corporiza o momento em que os réus passaram a opor-se à utilização do terreno que até aí se verificava, não tem a virtualidade de destruir a boa-fé que se verificava aquando da incorporação (momento relevante para este efeito, como se disse)”.
Em suma: A incorporação que releva não se limita à edificação da moradia mas a todo o espaço envolvente, desde sempre utilizado e ocupado pelos autores como serventia da casa, aí tendo construído anexos e barracões, com a permissão, tácita, dos apelantes.
E é precisamente esta a parcela (constituída pelo conjunto de moradia e terreno) que é apta à acessão, comprovando-se a boa-fé dos autores a coberto da autorização dos réus (num primeiro momento tácita, e depois expressamente declarada) e reportada ao momento do início dos correspondentes actos materiais de construção/ocupação.
E é também essa parcela com a área de 426,4 m2 que , desde o seu início, constitui a “nova unidade económica” que dela emergiu e que notoriamente vale muito mais do que valor que o terreno tinha antes da sua construção (sem a incorporação).
Verificam-se, deste modo, os requisitos cumulativos da acessão que enunciámos, maxime o requisito da boa-fé dos apelados/AA, e por consequência improcede a apelação dos RR.

3. DO MÉRITO DO RECURSO SUBORDINADO
3.1. Pretendem os apelantes que o valor a pagar por si, como beneficiários da acessão, seja o valor que o terreno tinha antes as obras, ou seja de € 9.942,00, ao invés dos €21.542,48, que a sentença fixou por ter procedido à sua actualização com referência à data da propositura da acção.
Para fundamentar o seu entendimento, os ora apelantes suscitam a inaplicabilidade do disposto no artº 551º do Código Civil por o artº 1340º nº1 do mesmo código o não consentir.
Vejamos.
Antes de mais, cumpre salientar que a decisão neste contestado segmento tem amparo jurisprudencial e doutrinário (que aí vem assinalado) e, por conseguinte, não constitui nenhuma “ inovação”.
E constitui, outrossim, o corolário lógico da afirmação de que a acessão imobiliária, como maioritariamente é aceite pela doutrina e pela jurisprudência, é uma forma potestativa de aquisição do direito de propriedade, de reconhecimento necessariamente judicial, que depende, para se concretizar, de manifestação de vontade nesse sentido por parte do respectivo titular beneficiário reportada ao momento da propositura da competente acção.
É certo que essa manifestação de vontade se traduz num mero momento revelador do exercício do direito, direito esse que já está previamente constituído, uma vez que existia desde a incorporação : a aquisição retroage os seus efeitos à data dos actos materiais da incorporação ( cfr. art. 1317º, alínea d), do Cód. Civil).

Porém, contende frontalmente com o princípio da justiça comutativa, que o valor a pagar pelo beneficiário da acessão, não seja actualizado, com referência à data do exercício do direito potestativo, mais a mais quando a dilação temporal entre o momento da incorporação e este último é tão significativa, como sucede no caso em apreço.

A lei ao impor ao beneficiário da acessão que pague o valor que o prédio tinha antes das obras (artº 1340º nº1) é explícita no sentido de que a dívida que dele emerge é uma dívida de valor (em que o dinheiro intervém como simples meio de determinação do quantitativo da prestação) e não uma dívida de dinheiro.
Não se enquadrando as dívidas de valor no âmbito das obrigações pecuniárias, as mesmas mostram-se subtraídas ao princípio nominalista constante do estatuído no artº. 550º do Cód.Civil.
Nada impede, pelo contrário tudo o justifica porque só assim se dará ao outro o que é devido, que o valor do terreno, que por força da lei é aquele que o mesmo tinha à data da incorporação, seja actualizado até à data da manifestação de vontade, isto é, do exercício do direito potestativo de aquisição por parte do beneficiário da acessão.
O montante de € € 21.542,48 correspondente à actualização do valor do terreno nos moldes efectuados na sentença - de acordo com os índices de preços no consumidor, com exclusão da habitação - representa, pois, uma exigência que os beneficiários da acessão devem satisfazer como contrapartida do reconhecimento da sua aquisição, por acessão, da referida parcela.
2.3. Entendem estes apelantes que a sentença deveria ter ordenado, de acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 8.º-B do Código do Registo Predial, o cancelamento dos registos que afectassem o seu direito de propriedade ao invés de ter determinado o cancelamento, a requerimento dos mesmos, de registos que hajam sido lavrados relativamente ao indicado prédio e que se mostrem incompatíveis com o seu direito de propriedade, ora declarado.
Vejamos.
No dispositivo da sentença (que não foi posto em crise) declarou-se “reconhecida a favor dos autores a aquisição, por acessão industrial imobiliária, da propriedade do prédio urbano sito na Rua …, Brejos de Azeitão, com a área de 426,4 m2 e já inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo …, a destacar do prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob os números … e … e rústico sob o número …, inscrito na matriz sob o artigo …, pertencente aos réus, mediante o pagamento a estes últimos da quantia de € 21.542,48 (vinte e um mil quinhentos e quarenta e dois euros e quarenta e oito cêntimos), correspondente ao valor do terreno à data da incorporação e actualizado desde 1990, inclusive, de acordo com o índice anual de aumento de preços no consumidor (taxa de inflação) calculado pelo Instituto Nacional de Estatística, devendo os autores depositar tal montante nos autos no prazo de 15 dias após o trânsito em julgado desta decisão”.( sublinhado nosso).
Portanto, na lógica da sentença, a aquisição da dita parcela de terreno por parte dos beneficiários da acessão ficou condicionada ao pagamento da referida quantia nos moldes assinalados.
É certo que de acordo com as disposições conjugadas dos art.º 2º nº1 a), 3º nº1 a) e c) e 8º-B nº3 a) do Cód. Registo Predial, o Tribunal deveria promover o registo da aquisição ora declarada.
Porém, ao ter decidido como decidiu, não poderia ter determinado oficiosamente o registo da decisão logo após o seu trânsito já que o reconhecimento do direito ficou dependente de um pagamento ainda não ocorrido à data da sua prolação.
Por conseguinte, a sua decisão neste conspecto, também, não pode ser alterada.

III- DECISÃO
Termos em que se julgam ambos os recursos (principal e subordinado) totalmente improcedentes, mantendo-se integralmente a decisão recorrida.
Custas do recurso principal pelos RR. e do subordinado pelos AA.
Évora, 12/01/2017
Maria João Sousa e Faro (relatora)
Florbela Moreira Lança
Bernardo Domingos
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[1] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3ª ed.pag.143.
[2] In “Acessão” de António Carvalho Martins, reimpressão Coimbra Editora, pag.127