A lei configura duas situações susceptíveis de alcançarem força executiva por via do procedimento de injunção em função da natureza da obrigação incumprida:
- obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a € 15.000,00;
- obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo D-L nº 32/2003, de 17 de Fevereiro, (agora pelo D-L nº 62/2013, de 10/5).
O R. deduziu oposição, considerando inepto o requerimento inicial, por total omissão de factos e alegando desconhecimento absoluto da existência de quaisquer actos praticados pelo A. em seu nome, concluindo pela improcedência do procedimento.
2. Na sequência de despacho/convite para o efeito, o A. aperfeiçoou o requerimento inicial alegando, em resumo, que em Dezembro de 2014, a Ré incumbiu o filho do A. da gestão dos seus negócios no Algarve, que consistiam no fornecimento de café a estabelecimentos de hotelaria e similares e que, desde então, o A., mandatado pelo seu filho, passou a trabalhar directamente com a Ré, angariando clientes e prestando-lhes assistência, celebrando contratos de fornecimento de café e realizando todas as diligências necessárias à preservação da boa imagem comercial da Ré, suportando despesas e encargos que esta se mostra obrigada a reembolsar enquanto dona do negócio de que o A. se constituiu gestor.
A Ré respondeu por forma a defender a improcedência da acção e os autos prosseguiram para julgamento, no decurso do qual as partes foram notificadas para se pronunciarem quanto à excepção do erro na forma do processo e, em seguida, foi proferida decisão em cujo dispositivo se exarou:
“(…) julgo procedente ex officio a excepção de erro na forma de processo e, em consequência, declaro nulo todo o processo e absolvo a Ré da instância”.
3. O A. recorre desta decisão, exarando as seguintes conclusões que se reproduzem:
“1. O recorrente não se conforma com a decisão que julgou procedente a excepção de erro na forma de processo e declarou nulo todo o processo, absolvendo a Ré da instância.
2. Recorreu ao procedimento de injunção como meio de obter o pagamento de duas facturas, onde se descriminam montantes dos quais a requerida é devedora e o requerente é credor.
3. A situação enquadra-se nos casos previstos no artigo 7º do DL 269/98, de 1 de Setembro, pelo que é admitido o recurso ao procedimento de injunção.
4. Estamos perante uma obrigação pecuniária emergente de contrato (artigo 1º do Diploma Preambular e artigo 7º do DL 269/98).
5. Está em causa o pagamento de uma quantia que consiste no reembolso de montantes despendidos pelo recorrente, o qual adiantou pagamentos que cabiam à requerida, no âmbito da relação contratual que ambos mantinham.
6. O recorrente, gerindo os negócios da recorrida no Algarve, viu-se na obrigação de adiantar os referidos montantes em situações urgentes, por forma a evitar danos para a requerida e para os clientes.
7. O A. sempre informou a R. do andamento dos negócios, a qual nunca se opôs, conforme prova produzida em audiência de julgamento (que não chegou a ser apreciada por o Tribunal a quo não ter conhecido do mérito da causa, como deveria ter ocorrido).
8. Estamos perante uma transacção comercial, conforme previsto no DL 32/03 de 17 de Fevereiro.
9. O A. e ora recorrente praticou actos próprios de uma actividade comercial e tinha uma relação contratual com a requerida, ao contrário do considerado pela decisão recorrida.
10. A decisão recorrida refere que o Autor não pode ser considerado como empresa mas não é assim.
11. Nos autos constam todos os elementos que demonstram que o A. representava uma empresa, uma outra sociedade por quotas que tinha uma relação contratual com a Ré.
12. E ainda que o A. agisse enquanto pessoa singular estaria abrangido pelo conceito de empresa supra citado previsto no DL 32/03, de 17 de Fevereiro.
13. Não se verifica no presente caso nenhuma situação de pedido de indemnização por incumprimento contratual, como menciona a sentença recorrida.
14. A requerida é uma sociedade comercial por quotas.
15. O requerente invocou uma transacção que originou uma dívida da requerida para com o requerente, valores que foram devidamente facturados e não foram liquidados.
16. Nos termos do artigo 7º nº 1 do DL 269/98, de 1 de Setembro, na redacção que lhe foi dada pelo DL 32/2003, de 17 de Fevereiro, o requerente pode obter a satisfação do seu crédito através do processo de injunção.
17. Em nome da economia processual, não deve o Tribunal a quo anular todo o processado após seguidos todos os trâmites processuais, incluindo a realização da audiência de discussão e julgamento.
18. Não se regista in casu qualquer erro na forma do processo nem a nulidade de todo o processado, nem deve a requerida ser absolvida da instância.
Termos em que o presente recurso deve ser julgado procedente e deve ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos.
Pede Deferimento.”
Não houve lugar a resposta.
Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II. Objecto do recurso.
Considerando as conclusões da motivação do recurso importa decidir (i) se a acção configura um procedimento destinado a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias ou um atraso no pagamento de uma transacção comercial, (ii) se deve aproveitar-se o processado.
III. Fundamentação.
1. Factos.
Relevam para a apreciação do recurso os factos que resultam do relatório supra.
2. Direito.
2.1. Se a acção configura um procedimento destinado a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias ou um atraso no pagamento de uma transacção comercial.
A decisão recorrida julgou inaplicável ao caso dos autos, por erro na forma de processo, o procedimento destinado a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos ou os procedimentos especiais para o atraso de pagamento em transacções comerciais, respectivamente previstos pelo D.L. nº 269/98, de 1/9 e pelo D.L. 32/2003, de 17/2, na consideração que as quantias pecuniárias peticionadas pelo A. não emergem de incumprimento de contrato, nem resultam de nenhuma transacção comercial, havida entre o A. e o R., uma vez que o A. não se mostra abrangido pelo núcleo de sujeitos que concorrem para a definição de transacção comercial.
Retomando aqui algumas considerações sobre estes regimes especiais para cobrança de dívidas, por razões de enquadramento expositivo, posto que o A. não parece divergir da leitura que, em abstracto, deles foi retirada pela decisão recorrida, situando-se a sua divergência nos juízos classificatórios do caso concreto, importará reter que o regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a (euro) 15 000, aprovado o D.L. nº 269/98, de 1/9 e que já vai na 16ª versão[1], considera “injunção a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1.º do diploma preambular, ou das obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro”.
Configura a lei, por esta forma, duas situações susceptíveis de alcançarem força executiva por via do procedimento de injunção em função da natureza da obrigação incumprida:
- que se trate de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a (euro) 15.000;
- que se trate de obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro, remissão esta que se deve considerar feita para o D. L. nº 62/2013, de 10/5, que entrou em vigor em 1/7/2013 e revogou o D.L. nº 32/2003 (cfr. artºs 13º e 15º, do D.L. nº 62/2013).
Atenta a data do início dos factos, Dezembro de 2014, é aplicável o D. L. nº 62/2013, cujas alterações ao regime revogado não relevam para a decisão, com incidência em todos os pagamentos efectuados como remuneração de transacções comerciais (artº 2º, nº 1) e que define a «transacção comercial», como “uma transacção entre empresas ou entre empresas e entidades públicas destinada ao fornecimento de bens ou à prestação de serviços contra remuneração” e «empresa» como a “entidade que, não sendo uma entidade pública, desenvolva uma actividade económica ou profissional autónoma, incluindo pessoas singulares” [artº 3º, als. b) e d)].
Visto o caso dos autos à luz destes considerandos, a decisão recorrida parece-nos certa.
O A. pretende com o procedimento, o reembolso de encargos e de despesas que suportou, enquanto gestor de negócios da Ré e a gestão de negócios ocorre quando uma pessoa assume a direcção de negócio alheio no interesse e por conta do respectivo dono, sem para tal estar autorizada (artº 464º, do CC).
A pretensão do A. não emerge, assim, de contrato, pois este pressupõe o acordo das partes (artº 405º, do CC), ou seja, duas ou mais declarações de vontade, que traduzam uma proposta, de um lado e uma aceitação do outro, o que não se verifica na gestão de negócios.
E também não emerge de transacção comercial, tal como a lei a define, porque a fonte da obrigação não resulta do fornecimento de bens ou da prestação de serviços contra remuneração; o A. não alega que prestou serviços ao R., alega que prestou ou realizou serviços no interesse e por conta do R., o que é diferente; diferença que não é de mera terminologia ou forma, mas de substância, porque também o regime do D.L. nº 62/2013, tal como o seu antecessor, supõe a final a existência de um contrato [cfr. artº 13º], um contrato que conceba e discipline a transacção comercial e cuja violação legitima o uso do procedimento, o que não ocorre no caso da gestão de negócios.
Acresce, como se anotou na decisão recorrida, que o A. não alegou factos que permitam concluir que exerce, enquanto profissional liberal, uma actividade económica ou profissional autónoma, por forma a incluir-se no núcleo de sujeitos - “empresa” – normativamente relevante para a caracterização da “transacção comercial” e as razões que agora acrescenta no recurso a este propósito, não contribuem para o esclarecimento desta questão, acrescentam-lhe dificuldades, ao dar a entender que nas relações havidas com a Ré actuou em nome próprio, ao contrário do que alegou no requerimento inicial, mas como representante doutrem - o A. representava uma empresa, uma outra sociedade por quotas que tinha uma relação contratual com a Ré (concl. 11ª).
Não emergindo a pretensão pecuniária do A. de contrato ou de transacção comercial, é inaplicável o procedimento de injunção.
2.2. Se deve aproveitar-se o processado.
Por haver reconhecido a existência de erro na forma de processo, a decisão recorrida declarou nulo todo o processo e absolveu a Ré da instância.
O A., invocando razões de economia processual, defende que o processo não deverá ser anulado uma vez que nele se esgotaram diversas fases processuais, incluindo a realização da audiência de discussão e julgamento.
A lei processual civil não é estranha ao argumento do A.; de facto, como princípio, o erro na forma de processo apenas envolve a anulação de actos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei (artº 193º, nº 1, do CPC), mas este princípio comporta uma importante limitação, pois não devem aproveitar-se os actos já praticados, se do facto resultar uma diminuição de garantias do réu (artº 193º, nº 2, do CPC).
A situação posta nos autos, constitui precisamente uma situação em que o aproveitamento dos actos já praticados resultaria numa diminuição de garantias de defesa da Ré e isto porque aos actos já praticados o foram ao abrigo dum regime processual caracterizado pela simplicidade e celeridade (cfr. preâmbulo do DL nº 269/98) designadamente em matéria de prazos para o exercício da defesa (cfr. artºs do 1º, nº 2, artº 12º, nº 1, por comparação com o que dispõe o artº 569º, nº 1, do CPC).
A lei obsta à pretensão do A. e, assim, não se lhe reconhece razão.
Improcede o recurso, restando confirmar a decisão recorrida.
Em conclusão, os procedimentos especiais a que se reportam o D.L. nº 269/98, de 1/9 e o D.L. nº 62/2013, de 10/5, não são aplicáveis a acções fundadas no instituto da gestão de negócios.
IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, na improcedência do recurso, em confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente.
Évora, 6/4/2017
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho__________________________________________________
[1] Alterações do diploma disponíveis em:
http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=574&tabela=leis