INJUNÇÃO
CAUSA DE PEDIR
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
SANAÇÃO
Sumário


1. No âmbito do requerimento injuntivo, o requerente, utilizando modelo de requerimento aprovado por portaria do Ministro da Justiça, deve, entre outros, expor sucintamente os factos que fundamentam a pretensão, como se refere no art.º 10.º/1 e 2, alíneas d) do anexo ao Dec. Lei n.º 269/98, de 1 de setembro.
2. A causa de pedir é o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido e corresponde ao núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito de direito material pretendido.
3. A omissão total de causa de pedir corresponde à falta absoluta de indicação de factos que fundamentam o efeito jurídico pretendido e só esta pode conduzir à ineptidão da petição inicial – art.º 186.º/2, al. a), do C. P. Civil.
4. O convite para suprir irregularidades, sanar insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, ao abrigo do disposto nos art.º 590.º/2, alínea b) e 4 do C. P. Civil, não pode ser utilizado para suprir a ineptidão da petição inicial, por omissão absoluta de factos constitutivos do direito alegado, ou seja, para concretizar a "causa petendi”.
5. Se a Ré interpretou devida e cabalmente a petição inicial, compreendeu qual a fonte do crédito invocado (fornecimentos de energia, no âmbito dos vários contratos firmados e respetivos períodos), exerceu plenamente o contraditório quanto ao alegado na petição inicial, mostra-se sanda a eventual ineptidão da petição, não devendo ser julgada procedente a sua arguição, em obediência ao disposto no n.º3 do C. P. Civil.

Texto Integral

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora
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I. Relatório.
1. AA Clientes, S.A.U. instaurou procedimento injuntivo contra BB, Lda., destinado a exigir o cumprimento da obrigação pecuniária emergente de fornecimento de energia, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 52.342,87 (cinquenta e dois mil trezentos e quarenta e dois euros e oitenta e sete cêntimos).
2. Para tanto, no campo destinado à exposição dos factos que fundamentam a pretensão alegou:
1 - A Requerente é uma sociedade comercial que se dedica à atividade de produção e distribuição de diversos tipos de energia, nomeadamente de eletricidade.
2 - No âmbito da sua atividade comercial, a sociedade AA Generación, S.A.U., com sede … celebrou com a Requerida diversos contratos de fornecimento de energia elétrica.
3- Refira-se que a sociedade AA Generación, S.A.U. realizou uma operação de cisão parcial, no âmbito da qual transferiu a favor da sociedade AA Clientes, S.A.U., os ativos e passivos e demais relações jurídicas afetas ao ramo de atividade de comercialização de energia a retalho.
4 - No seguimento da operação de cisão, a ora Requerente ficou sub-rogada em todos os direitos e obrigações da sociedade AA Generación, S.A.U, razão pela qual assiste à ora Requerente a legitimidade para apresentar o presente procedimento de injunção.
5 - Sucede que a Requerida deixou de cumprir os termos acordados nos diversos contratos, deixando de liquidar as seguintes faturas:
“(…); por motivos que se prendem com o limite máximo de caracteres, não foi possível identificar todas as faturas.
O que perfaz o montante global de € 52.142, 87.
6 - Não obstante ter sido interpelada por forma a proceder ao pagamento do montante em dívida, a Requerida não liquidou as referidas faturas.
7 - Ao supra referido montante acrescem juros de mora, calculados às taxas de juros comerciais em vigor e sucessivamente aplicáveis, contabilizados desde as datas de vencimento das respetivas faturas até à presente data”.
3. Notificada a Requerida, deduziu oposição, alegando, em síntese:
- No requerimento injuntivo a requerente alega que a dívida é de €52.142,87, não tendo identificado no requerimento todas as faturas referentes à divida peticionada, razão pela qual não pode analisar e deduzir oposição sobre as mesmas;
- Não sabendo quais são as restantes faturas que a requerida peticiona o pagamento, de forma a conseguir identificar se estas já foram liquidadas ou se existiu algum fundamento para que as mesmas não tivessem sido pagas.!
- Assim sendo, o requerimento deverá ser considerado inepto por falta do requisito da causa de pedir previsto no código de processo civil, e em consequência ser considerado nulo.!
- Após terem sido analisadas as faturas que se encontram mencionadas no requerimento injuntivo, verificou-se que algumas delas se encontram prescritas.!
- Também se verificou que foram feitos débitos na conta da requerida no valor total de €5.150,92 que também não foram considerados.
- A requerida no dia 1 de Julho de 2015 passou a efetuar a exploração dos empreendimentos turísticos denominados por … e …, que até àquela data tinham sido explorados pela empresa …, Lda., e nesta altura comunicou à requerente que pretendia assumir a posição contratual nos 111 contratos de fornecimento de energia elétrica, substituindo-se à empresa …, Lda.!
- Sucede que as faturas mensais, já respeitantes às datas de consumo de energia elétrica da aqui requerida, continuavam a ser emitidas e enviadas para a empresa …, Lda., não recebendo a requerida quaisquer faturas para pagamento.!
- O montante global a descontar no valor final da dívida é de € 26.731,90 a descontar do valor final em dívida
E termina pedindo que o requerimento injuntivo seja declarado nulo por ineptidão, ou que seja aperfeiçoado com indicação dos números das faturas em falta; que seja julgada procedente a exceção invocada da prescrição e em consequência ser a Requerida absolvida do pedido relativamente às faturas aqui mencionadas como estando prescritas no valor de €13.795,00; seja descontado do valor da divida a quantia de €5.150,92 referente a débitos na conta da requerida (pagamentos efetuados) que não foram abatidos das faturas em divida; seja retirado do valor em dívida a quantia de €3.541,40 referente a faturas que tem um saldo a zeros e o valor de €4.244,58 referente a notas de crédito que não foram descontados, reduzindo-se o pedido em € 26.731,90.
4. Os autos foram distribuídos como processo comum.
5. Em 25 de maio de 2016 foi proferido o seguinte despacho:
O que prescreve é o direito e não “as faturas”, que são meros documentos emitidos unilateralmente. Nunca uma fatura poderá constituir uma causa de pedir porque, em si mesma, não é fonte de obrigações. Inexiste, por isso, qualquer ineptidão do requerimento injuntivo apenas por falta de indicação completa das faturas emitidas pela autora. Diga-se, aliás, que o detalhe das faturas constitui alegação desnecessária e, no presente caso, até absurda, pois tornou um requerimento injuntivo num documento maçudo, quase impossível de escrutinar.
De todo modo, e porque é manifesto que a ré se pretende valer do instituto da prescrição, notifique a autora para, em dez dias, vir concretizar o alegado no requerimento injuntivo, indicando quais os acordos celebrados com a ré (não basta dizer que foram diversos…) e os períodos em que, ao abrigo dos acordos firmados, forneceu energia elétrica à ré, bem como o preço respetivo para cada um desses períodos.
Obtido o esclarecimento, terá a ré igual prazo para se pronunciar, contado da notificação entre mandatários.
Notifique”.
6. Na sequência desta notificação a Requerente veio, em 30 de maio de 2015, apresentar requerimento a solicitar o prazo de 15 dias “para junção e indicação dos elementos solicitados, uma vez que toda a documentação relativa aos contratos em causa se encontra no arquivo da Autora sediado no Reino de Espanha”.
7. Em 2 de junho de 2016 foi proferido despacho a julgar a instância local de competência cível de Albufeira incompetente, em razão do valor, para a tramitação dos presentes autos e sua remessa , após trânsito, à 2.ª Secção Cível da Instância Central do Tribunal Judicial da Comarca de Faro (Portimão).
8. Remetido o processo ao tribunal competente, este, por despacho de 1 de julho de 2016, aos 10 dias já concedidos ao requerente concedeu-lhe “um prazo improrrogável de 05 dias”.
9. A Autora, em 5 de julho de 2016, apresentou requerimento, no qual “vem indicar a V. Exa. os “Contratos de Fornecimento de Energia Elétricaem causa nos presentes autos (seguindo-se a identificação dos Números dos Contratos, o Código de Ponto de Entrega e Data da sua Celebração);
Mais se requer a V. Exa. se digne admitir a junção aos autos dos seguintes documentos:
- Duplicados das faturas peticionadas no requerimento de injunção, onde se encontram discriminados os valores relativos ao fornecimento de energia elétrica, bem como os respetivos períodos de fornecimento – que ora se juntam como Doc. 1 e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para os devidos e legais efeitos;
- Cópia do “Extrato de Conta de Cliente” – que ora se junta como Doc. 2 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos;
- Cópia do “Formulário para Pedido de Alteração de Titular”, o qual indica expressamente que todos os contratos supra elencados – celebrados inicialmente com a sociedade …, Lda. – passaram para a titularidade da ora Ré – que ora se junta como Doc. 3 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos”.
10. Notificada a Ré, veio impugnar as faturas, “tendo em conta que a maior parte delas não foram enviadas para a mesma desconhecendo a Ré até à presente data os valores que vêm peticionar, pelo que precisa de as analisar cuidadosamente no sentido de saber se as mesmas se encontram corretas, mantendo tudo o alegado na sua oposição”.
11. Seguidamente, por despacho de 13 de setembro de 2016, considerando-se que o Autor omitiu, por completo, “a alegação de qualquer facto que possa vir a servir de fundamento para um qualquer direito de crédito, e que nenhuma matéria de facto existe, neste caso, não obstante a oportunidade concedida nesse sentido, numa tentativa última de salvar o processado e fazer justiça”, julgou procedente a exceção dilatória de ineptidão da petição inicial por “falta de causa de pedir”, tendo, em consequência, absolvido a Ré da instância.
12. Inconformada com este despacho veio a Autora interpor o presente recurso, formulando, no essencial, as seguintes conclusões:
A. Recorde-se que os presentes autos tiveram origem em requerimento de injunção apresentado pela Apelante, em que esta peticionou a condenação da Ré no pagamento do montante global de €52.495,87, acrescido de juros de mora calculados às taxas de juros comerciais em vigor e sucessivamente aplicáveis, contabilizados desde as datas de vencimento das respetivas faturas até àquela data e ainda juros de mora vincendos, calculados às taxa de juros legais aplicáveis, até efetivo e integral pagamento.
B. A ora Apelante apresentou procedimento de injunção, indicando ter celebrado
com a Requerida diversos contratos de fornecimento de energia elétrica, ao abrigo dos quais lhe forneceu energia elétrica.
C. Nesse âmbito, foram emitidas diversas faturas que não foram liquidadas pela
Requerida, não obstante esta ter sido para tanto instada.
D. Considerando o modelo oficial de requerimento de injunção, como configurado nos termos do DL nº 269/98, a Recorrente expôs sucintamente os factos que fundamentam a sua pretensão.
E. Sucede que em causa estavam 111 contratos, celebrados entre Requerente e Requerida, e um universo de 550 faturas vencidas e não liquidadas não passíveis de figurar no campo destinado à exposição dos factos, atentas as limitações de caracteres no campo subjacente à sua indicação.
F. A Apelante contactou o Balcão Nacional de Injunções, para indagar da possibilidade de submissão de um requerimento autónomo e complementar que fizesse menção aos elementos em falta.
G. Contudo, foi a Autora informada da impossibilidade de admissão de tal requerimento, pelo que no requerimento de injunção mencionou a insuficiência de caracteres para proceder ao elenco dos contratos e faturas.
H. Após ter sido deduzida oposição pela Requerida, a Requerente foi notificada do teor da mesma, bem como do despacho proferido pelo Tribunal a quo, em 25.05.2016, que convidava a Requerente para “concretizar o alegado no requerimento injuntivo, indicando quais os acordos celebrados com a e os períodos em que, ao abrigo dos acordos firmados, forneceu energia elétrica à ré, bem como o preço respetivo para cada um desses períodos”, por “ser manifesto que a ré se pretende valer do instituto da prescrição”.
I. Tendo a Requerente, então Autora, requerido prazo adicional para proceder à
indicação daqueles elementos, e na pendência do referido prazo, foi proferido despacho que julgou o Tribunal que recebeu a ação incompetente em função do valor para a julgar, ordenando a sua remessa para o Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Instância Central de Portimão.
J. A Autora não foi notificada pela Meritíssima Juiz da Instância Central de Portimão, para apresentar petição inicial aperfeiçoada, tendo antes mantido o despacho antecedente, nada acrescentando.
K. Sendo de presumir então que a Autora deveria unicamente responder aos concretos factos apontados pelo Juiz que primeiro recebeu o processo.
L. Motivo pelo qual respondeu ao despacho de 25.05.2016 concretizando especificamente os aspetos que o julgador entendeu essenciais.
M. Não se conceberá que o primeiro julgador pudesse vir a julgar inepta a petição inicial, quando acompanhada dos demais elementos específicos, que a Autora concretizou em resposta ao mesmo despacho.
N. Pelo que será de considerar que a valoração dada ao requerimento da Autora ficou severamente afetada pela circunstância de o julgador que recebeu o aludido requerimento não ser o mesmo que proferiu o mencionado despacho.
O. Sucede que a menção a cada fatura – com os respetivos períodos de fornecimento e preço da energia e tipo de contrato levaria à necessidade de confronto direto e permanente entre os dados e a informação plasmada em cada artigo e o respetivo documento de suporte (fatura).
P. O que levaria a um articulado de proporções gigantescas quando multiplicado
por 505 faturas, tornando-se, assim, de compreensão difícil, morosa e extremamente complexa.
Q. Na lógica de simplificação processual, pretendeu-se complementar a petição inicial apresentada com os documentos juntos.
R. O Tribunal a quo fundamenta a sentença, alegando que “a requerente limitou-se a colocar os dizeres “contrato de prestação de serviços” e a indicar qual a natureza da sua atividade comercial. Nada mais alegou.”
S. Contudo, a Requerente não se pode conformar com tal entendimento, já que alegou os factos essenciais, fazendo ainda menção ao objeto social da Autora e à qualificação dos contratos celebrados como “contratos de fornecimento de energia elétrica”, donde decorrem as correspondentes obrigações de pagamento pela Requerida, contraprestações contratuais e verdadeiras obrigações sinalagmáticas cujo incumprimento constitui, in casu, a causa de pedir.
T. O requerimento junto pela Autora fazia ainda menção aos documentos juntos e aos elementos neles ínsitos, tais como os valores relativos ao fornecimento de energia elétrica, bem como os respetivos períodos de fornecimento.
U. Assim, não poderá o referido requerimento deixar de ser visto como um complemento da petição inicial, devendo forçosamente ser apreciado de forma complementar e nunca substitutiva, já que visava, ao abrigo do disposto no artigo 590º nº 4 do CPC, suprir as imprecisões na concretização e exposição da matéria de facto alegada, completando o requerimento inicialmente apresentado, não estando, assim, sujeito ao disposto no artigo 552° do CPC.
V. Também de forma contrária ao entendimento plasmado na sentença de que ora se recorre, e que denota a incorreta interpretação da lei pelo Tribunal a quo, a Requerida inteligiu de forma suficiente a causa de pedir, chegando a confessar-se devedora de montantes avultados, devendo ter aqui aplicação o disposto no art. 186º, nº 3 do CPC.
W. Verificando-se, então, que o Tribunal a quo procedeu à incorreta aplicação do disposto no artigo 186º, nº 1 e al. a) do nº 2 e art. 278º, nº 1 al. b), sendo violados os artigos 186º, nº 3, 278º, nº 1 al. b) e ainda o artigo 590.º nº 4, todos do C.P.C. por incorreta apreciação dos factos que importariam a verificação da alegada exceção dilatória.
E termina pedindo que a decisão recorrida seja substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos.
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A Ré não contra-alegou.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente e com efeito devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. Âmbito do Recurso.
Perante o teor das conclusões formuladas pela recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso - arts. 608.º, nº2, 609º, 620º, 635º, nº3, 639.º/1, todos do C. P. Civil em vigor, constata-se que a questão essencial a decidir consiste em saber se a petição inicial é inepta, por falta absoluta de causa de pedir.
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III. Fundamentação fáctico-jurídica.
1. Tendo em conta a dinâmica processual descrita no antecedente relatório, vejamos, pois, se deve manter-se a decisão recorrida ao considerar inepta a petição inicial, por falta de causa de pedir, com consequente absolvição da ré da instância.
2. De acordo com o disposto no artº 5.º /1 do C. P. Civil, em obediência ao princípio do dispositivo, cabe às partes alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocada.
Aos factos essenciais, como ensina Teixeira de Sousa, “Estudos Sobre o Novo Código de Processo Civil”, 1997, 2.ª edição, pág. 72, “são necessários à identificação da situação jurídica invocada pela parte e, por isso, relevam, desde logo, na viabilidade da ação ou da exceção: se os factos alegados pela parte não forem suficientes para se perceber qual a situação que ela faz valer em juízo ( qual o crédito, por exemplo), existe um vício que afeta a viabilidade da ação ou da exceção”.
O juiz só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo dos factos instrumentais que resultem da discussão da causa, os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar, e os factos notórios, nos termos do n.º2 do citado art.º 5.º.
Por isso que na petição inicial o autor tenha de “expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação” – alínea d), do n.º1, do art.º 552.º do C. P. Civil.
E, no caso de injunção, como sucedeu nos presentes autos, o requerente, utilizando modelo de requerimento aprovado por portaria do Ministro da Justiça, aí deve “expor sucintamente os factos que fundamentam a pretensão”, e “formular pedido, com discriminação do capital, juros vencidos e outras quantias devidas” – art.º 10.º/1 e 2, alíneas d) e e) do anexo ao Dec. Lei n.º 269/98, de 1 de setembro.
A causa de pedir, como decorre da definição legal constante do art.º 581.º/4 do C. P. Civil, traduz-se no facto jurídico concreto em que se baseia a pretensão deduzida em juízo, isto é, o facto jurídico concreto de que emerge o direito em que o autor funda o pedido ( Acs. STJ de 20/01/1994, BMJ 433.º-495 e de 25/09/2012, Proc. n.º 3371/07.4TBVLG.P1.S1, www.dgsi.pt), ou como referem Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2.ª edição, pág. 245, “A causa de pedir é o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido”.
Idêntico entendimento partilha o Prof.º Lebre de Freitas, “Ação Declarativa Comum, Á Luz do C. P. Civil de 2013”, pág. 41, para quem a causa de pedir “corresponde ao núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito de direito material pretendido”.
E é delimitada pelos factos jurídicos dos quais procede a pretensão que o autor formula, cumprindo a este a alegação desses factos (cf. Prof.º Remédio Marques, “Ação Declarativa à Luz do Código Revisto”, 3.ª Edição, pág. 226/227).
De acordo com o disposto no art.º 186.º/1 do C. P. Civil, é nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial, considerando-se esta inepta “Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir – alínea a) do seu n.º2.
Todavia, esta nulidade será sanável, porque a arguição não é julgada procedente, quando, o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão, e ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial – n.º3.
Como realça o Prof.º Lebre de Freitas, ob. cit., pág. 49, “A nulidade do processo por ineptidão inicial é sanável quando, resultando da ininteligibilidade (ou, mais dificilmente da falta) do pedido ou da causa de pedir, o réu conteste, ainda que arguindo a ineptidão, e se verifique, após audição do autor, que interpretou convenientemente a petição inicial”.
No que respeita à ineptidão da petição inicial, com base na falta de causa de pedir, também a jurisprudência tem seguido o entendimento de que “há ineptidão da petição por falta de causa de pedir “quando a omissão se traduza em falta do núcleo essencial da causa de pedir ou de defesa por exceção” – cf. Acórdão do STJ de 21/11/2006 ( Sebastião Póvoas), in www.dgsi.pt.
Como se escreveu no Acórdão do STJ de 26/09/2013 (Lopes do Rego), disponível em www.dgsi.pt., “ A nulidade principal de ineptidão da petição inicial implica a inexistência ou ininteligibilidade de elementos essenciais para a definição do objeto do processo ( formulação inteligível do pedido e invocação de um núcleo fáctico essencial da causa de pedir) – não podendo, na aplicação prática do instituto, confundir-se tal inexistência, inidoneidade ou ininteligibilidade do objeto da causa com a simples inconsistência ou inconcludência da fundamentação jurídico normativa da ação proposta, determinante, quando muito, da improcedência desta”.
Portanto, a falta de causa de pedir consiste numa omissão de factos essenciais, podendo essa omissão ser total ou funcional.
A omissão total corresponde “à falta absoluta de indicação de factos da causa de pedir” – cf. Acórdãos do STJ de 2/7/1991 (Simões Ventura) e de 12/1/1995 (Araújo Ribeiro).
A omissão será funcional quando “o autor se limita a indicar vagamente” factos (cf. Acórdão do T. Rel. do Porto, de 29/11/2006 (Ataíde das Neves), em que não se está perante uma completa falta de factos que consubstanciam a causa de pedir, mas ocorre uma “grave insuficiência de alegação da matéria de facto que se traduza na falta de indicação da causa de pedir” - cf. Acórdão do STJ, de 6/7/2004 (Araújo Barros).
Ora, no caso concreto, a Autora/recorrente tinha de alegar sucintamente os factos que fundamentam a sua pretensão, isto é, os factos de que afirma derivar o seu crédito sobre o réu.
E a verdade é que a autora alegou ser uma sociedade comercial que se dedica à atividade de produção e distribuição de diversos tipos de energia, nomeadamente de eletricidade, tendo sucedido à sociedade AA Generación, S.A.U., com sede na Plaza Euskadi, n.º 5, Bilbau, Espanha, que esta celebrou com a Requerida diversos contratos de fornecimento de energia elétrica, esta deixou de cumprir os termos acordados nos diversos contratos, deixando de liquidar as faturas que discriminou, e que por motivos que se prendem com o limite máximo de caracteres, não foi possível identificar todas as faturas, que totalizam o montante global de € 52.142, 87, a requerida, não obstante ter sido interpelada por forma a proceder ao pagamento do montante em dívida não liquidou as referidas faturas.
E, na sequência de notificação que lhe foi dirigida para, em dez dias, “concretizar o alegado no requerimento injuntivo, indicando quais os acordos celebrados com a ré e os períodos em que, ao abrigo dos acordos firmados, forneceu energia elétrica à ré, bem como o preço respetivo para cada um desses períodos”, veio, dentro do prazo judicialmente concedido, em 5 de julho de 2016, apresentar requerimento, no qual indicou os “Contratos de Fornecimento de Energia Elétrica”, seguidos da identificação dos Números dos Contratos, o Código de Ponto de Entrega e Data da sua Celebração, juntando ainda os duplicados das faturas peticionadas no requerimento de injunção, onde se encontram discriminados os valores relativos ao fornecimento de energia elétrica, bem como os respetivos períodos de fornecimento e outros documentos.
Assim, a Autora concretizou a causa de pedir, alegando factos de que derivam o seu direito de crédito, a saber: contratos de fornecimento de energia que celebrou com a Ré, a energia que forneceu no âmbito desses contratos, respetivos períodos e montantes, identificada nas faturas juntas, que a Ré não liquidou, correspondendo o valor em dívida ao valor que peticionou.
Dito de outro modo, a Autora “expôs sucintamente os factos que fundamentam a pretensão”, tal como lhe é exigido no art.º 10.º/1 e 2, alíneas d), do anexo ao Dec. Lei n.º 269/98, de 1 de setembro.
Daí não se poder falar de falta absoluta de causa de pedir, e só esta poderia conduzir à ineptidão da petição inicial.
Tanto assim é que a senhora juíza entendeu que o requerimento injuntivo apresentava deficiências ao nível da factologia alegada e decidiu convidá-lo a suprir essas deficiências.
Ora, tal convite só faz sentido caso a omissão seja funcional, ou seja, quando o autor indica vagamente factos, existe uma insuficiência quanto à alegação da matéria de facto.
Como refere o Prof. Teixeira de Sousa, ob. cit.,pág. 304, "o articulado é deficiente quando contenha insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto (cf. art.º 508.º, n.º3), isto é, quando nele não se encontrem articulados todos os factos principais ou a sua alegação seja ambígua ou obscura. A deficiência respeita, por isso, ao conteúdo do articulado e à apresentação da matéria de facto; esse vício pode traduzir-se, por exemplo, na insuficiência dos factos alegados ou em lacunas ou saltos na sua exposição”.
Daí o convite efetuado ao Autor para suprir essas irregularidades, sanar essas insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, ao abrigo do disposto nos art.º 590.º/2, alínea b) e 4 do C. P. Civil.
E tal convite nunca poderia ser utilizado para suprir a ineptidão da petição inicial por omissão absoluta de factos constitutivos do direito alegado, ou seja, para concretizar a "causa petendi”.
Portanto, se o Autor foi convidado a suprir deficiências na exposição da matéria de facto é porque se considerou inexistir ineptidão da petição inicial, pelo que não poderia, após o Autor a ele ter aderido, e a Ré exercido devidamente o contraditório, considerar inepta a petição inicial.
Acresce que, tal como decorre do art.º 186.º/3, do C. P. Civil, a falta de causa de pedir só conduz à ineptidão da petição se o Réu, apesar de a invocar, não tiver interpretado convenientemente a petição inicial.
E não foi esse o caso, pois como facilmente se constata da sua contestação, o réu aceitou a celebração dos contratos de fornecimento de energia, invocou a prescrição do direito de crédito relativamente a vários fornecimentos de energia e mencionados nas faturas que identificou, bem como a existência de várias notas de crédito que não estão contabilizadas na quantia peticionada, concluindo por reconhecer dever cerca de metade da quantia peticionada ( tendo em conta os montantes que considerou prescritos e notas de crédito).
Portanto, a ré interpretou devida e cabalmente a petição inicial, compreendeu qual a fonte do crédito invocado (fornecimentos de energia, no âmbito dos vários contratos firmados e respetivos períodos), exercendo plenamente o contraditório, quer quanto ao alegado na petição inicial, quer posteriormente quanto à concretização da matéria de facto na sequência do aludido convite.
Resumindo, a petição inicial não padece do vício de ineptidão, razão pela qual o despacho recorrido não pode ser mantido, o mesmo é dizer que procede a apelação.
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IV. Sumariando, nos termos do art.º 663.º/7 do C. P. C.
1. No âmbito do requerimento injuntivo, o requerente, utilizando modelo de requerimento aprovado por portaria do Ministro da Justiça, deve, entre outros, expor sucintamente os factos que fundamentam a pretensão, como se refere no art.º 10.º/1 e 2, alíneas d) do anexo ao Dec. Lei n.º 269/98, de 1 de setembro.
2. A causa de pedir é o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido e corresponde ao núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito de direito material pretendido.
3. A omissão total de causa de pedir corresponde à falta absoluta de indicação de factos que fundamentam o efeito jurídico pretendido e só esta pode conduzir à ineptidão da petição inicial – art.º 186.º/2, al. a), do C. P. Civil.
4. O convite para suprir irregularidades, sanar insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, ao abrigo do disposto nos art.º 590.º/2, alínea b) e 4 do C. P. Civil, não pode ser utilizado para suprir a ineptidão da petição inicial, por omissão absoluta de factos constitutivos do direito alegado, ou seja, para concretizar a "causa petendi”.
5. Se a Ré interpretou devida e cabalmente a petição inicial, compreendeu qual a fonte do crédito invocado (fornecimentos de energia, no âmbito dos vários contratos firmados e respetivos períodos), exerceu plenamente o contraditório quanto ao alegado na petição inicial, mostra-se sanda a eventual ineptidão da petição, não devendo ser julgada procedente a sua arguição, em obediência ao disposto no n.º3 do C. P. Civil.
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IV. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e revogar o despacho recorrido, devendo os autos prosseguir os seus regulares termos.
Custas da apelação pelo vencido a final.
Évora, 2017/05/11
Tomé Ramião
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro