CONDUÇÃO DE VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
INIMPUTABILIDADE
PERÍCIA PSIQUIÁTRICA
Sumário


I – Quando em sede de julgamento houver suspeitas fundadas sobre a imputabilidade do arguido deve ser ordenada a realização de perícia psiquiátrica.

II – A falta de realização dessa perícia ao arguido consubstancia indubitavelmente a preterição de uma diligência indispensável à descoberta da verdade, mas também algo mais do que isso, pois implica a omissão por parte do Tribunal de julgamento de averiguar os factos, que, por força das disposições conjugadas dos arts. 20.º, n.º 1, do CP e 351.º, n.º 1, do CPP, se impunha que averiguasse, a saber se o arguido, ao tempo em que incorreu na conduta, pela qual foi condenado em primeira instância, tinha ou não a capacidade de avaliar a ilicitude da sua conduta e de se determinar de acordo com essa avaliação.

Texto Integral


ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I. Relatório
No processo comum nº 94/16.7GBABT, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Criminal de Abrantes, foi proferida, em 6/4/17, sentença com o seguinte dispositivo (excepto matéria de custas):

a) Condenar o arguido, L, como autor material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292.°, 1, do Código Penal, na pena de 110 (cento e dez) dias de multa, à razão diária de € 5,00 (cinco euros), ou seja, € 550,00 (quinhentos e cinquenta euros);

b) Condenar o arguido, L, na proibição de condução de veículos motorizados pelo período de 4 (quatro) meses, nos termos do art. 69.°, 1, a), do Código Penal;

c) Condenar o arguido proceder à entrega da carta de condução na Secretaria deste Tribunal, ou em qualquer posto policial, no prazo de dez dias, a contar do trânsito em julgado da presente decisão, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência, e ser ordenada a apreensão daquele título de condução - art. 500.°, 2 e 3 do Código de Processo Penal;

Com base nos seguintes factos, que então se deram como provados:

1. No dia 23 de Abril de 2016, pelas l8horas, na Rua do Cemitério, Concavada, concelho de Abrantes o arguido L conduzia o veículo automóvel ligeiro de mercadorias, de marca Peugeot, com matrícula FQ--, com uma taxa de álcool no sangue de 1,90g/l.

2. O arguido agiu livre e conscientemente, sabendo que, a quantidade de bebidas alcoólicas ingeridas em momento anterior ao início da condução lhe determinaria uma taxa de álcool superior a 1,20 g/l no sangue, e que não podia conduzir na via pública qualquer veículo com motor, como conduziu, o que o arguido quis e conseguiu.

3. O arguido agiu de forma livre, voluntária, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era prevista e punida por lei penal, não obstante não se coibiu de agir como agiu.

Mais se provou que:
4. O arguido ingeriu 4 copos grandes de vinho ao almoço, sendo que ingeriu o último copo pelas 15 horas.

5. Como estava a sentir-se atordoado, o arguido atribuiu tal circunstância ao problema de diabetes que padece, tomando medicação para tal.

6. Dirigiu-se para o seu veículo e não se recorda de nada mais, nem sequer de iniciar a atividade de condução.

7. Não se recorda de efetuar o percurso entre Vale de Mós e a Concavada, local onde foi abordado pelo órgão de fiscalização, correspondendo a este percurso cerca de 10 km.

8. O arguido tinha intenção de percorrer 30 km, deslocando-se de Vale de Mós para Abrantes.

9. Não transportava passageiros.

10. Não foi interveniente em acidente de viação.

11. Tem consciência que após a ingestão de bebidas alcoólicas se deve abster de conduzir por um período de 12 horas.

12. O arguido não ingeria bebidas alcoólicas acerca de 6 meses.

13. O arguido já se encontrava sujeito a medicação e quando ingeria bebidas alcoólicas, este ficava alterado, situação que lhe foi dada a conhecer pela mulher, pelo que o arguido sabia do efeito causado com a mistura dos medicamentos e álcool.

Das condições pessoais, económicas e familiares

14. O arguido vive com a esposa, a qual aufere 600,00 euros mensais.

15. O arguido é comerciante, trabalhando por conta própria, auferindo em média, o ordenado mínimo mensal.

16. O arguido tem 2 filhas, uma com 12 anos (estudante) e outra com 21 anos de idade, a qual aufere o ordenado mínimo.

17. O arguido e a esposa encontram-se em processo de insolvência.

Dos antecedentes criminais

18. O arguido não tem antecedentes criminais.

Da referida sentença o arguido L veio interpor recurso devidamente motivado, formulando as seguintes conclusões (mantém-se a numeração original, em que se repete o número II):

I O presente recurso tem como objecto a matéria de direito da sentença proferida nos presentes autos, a qual condenou o arguido na pena de 110 dias de multa, à razão diária de € 5,00 (cinco euros), ou seja, € 550,00 (quinhentos e cinquenta euros) pela prática, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292.º, 1, do Código Penal; bem como na proibição de condução de veículos motorizados pelo período de 4 (quatro) meses, nos termos do art. 69.º, 1, a), do Código Penal.

II De acordo com o princípio da culpa, não há pena sem culpa, e, atento ao artigo 40º, n.º2 do Código Penal, a medida da pena não pode ser superior à medida da culpa.

II Ao suscitarem-se dúvidas razoáveis no julgador sobre a factualidade constante da acusação, o Tribunal ao decidir em desfavor do arguido, violou o princípio do in dubio pro reo.

III Os factores a que a lei manda atender para a determinação concreta da pena são os que vêm indicados no artigo 71º do Código Penal, que, apesar de bem aplicado, na norma, conduziu, por excesso, a uma determinação da medida da pena também demasiado gravosa e desadequada.

IV O artigo 40º, n.º2 e 71º, ambos do Código Penal deviam ter sido aplicados, embora de uma forma menos gravosa e exagerada, e só por isso se recorre.

Nos termos expostos e nos demais que V. Exas. doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente, e em consequência:

- Ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra, pugnando-se, nada menos, que pela absolvição do arguido, ou:

- no caso de não absolvição, deve tal pena ser reduzida, por de elementar justiça, já que esta se determina em função da culpa do arguido e das exigências de prevenção, e no caso concreto, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, deponham a favor ou contra ele, pelo que, in casu, afigurando-se uma defeituosa avaliação dos factores de que depende a determinação concreta da pena, mostra-se a mesma desadequada às finalidades da punição.

Termos em que e nos demais de direitos, deve o presente recurso ser julgado procedente, por de elementar justiça.

O recurso interposto foi admitido com subida imediata, nos próprios autos, e efeito suspensivo.

O MP respondeu à motivação do recorrente, pugnando pela manutenção do decidido, mas sem formular conclusões.

A Digna Procuradora-Geral Adjunta em funções junto desta Relação emitiu parecer sobre o mérito do recurso, pugnando pela respectiva improcedência.

Tal parecer foi notificado ao recorrente, a fim de se pronunciar, não tendo ele exercido o seu direito de resposta.

Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.

II. Fundamentação
Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, as quais deixámos enunciadas supra.

A sindicância da sentença recorrida, expressa pelo arguido nas conclusões que formulou, versa essencialmente sobre matéria de direito e desdobra-se nos seguintes pedidos:

a) Absolvição do arguido do crime por que foi condenado;
b) Diminuição da medida da pena.

A motivação do recurso e as suas conclusões não totalmente elucidativas quanto ao fundamento do pedido de absolvição do arguido, já que este não impugna, pelo menos explicitamente, a matéria de facto fixada pela primeira instância, nem a tipicidade da sua apurada conduta objectiva.

De todo o modo, a posição assumida pelo recorrente parece assentar no entendimento, segundo o qual alguns aspectos da factualidade provada, nomeadamente, o efeito da toma conjunta de vinho e da medicação a que estava sujeito e o facto de não consumidor habitual de bebidas alcoólicas levam a concluir que o arguido terá agido sem culpa.

O tipo de crime de condução de veículo em estado de embriaguez é definido pelo nº 1 do art. 292º do CP, nos termos seguintes:

Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

Acerca da pena acessória, o nº 1 do art. 69º do CP estatui:

É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido:
a) Por crime previsto nos artigos 291º e 292º;
b) …;
c) ….

O art. 13º do CP consagra o chamado princípio da culpa, segundo o qual só é punível como crime o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos, negligência.

O crime tipificado pelo nº 1 do art. 292º do CP é punível indiferentemente a título de dolo e de negligência, sem reflexo na moldura punitiva cominada.

O art. 14º do CP tipifica as diversas modalidades do dolo:
1 – Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar.

2 – Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta.

3 – Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização.

O art. 15º do CP define as diferentes formas que pode revestir a negligência:
Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:

a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou

b) Não chegar sequer a representar a possibilidade da realização do facto.

Todas as referidas variantes de dolo e de negligência comportam um elemento intelectual e um elemento volitivo, os quais, para o tipo de crime por cuja prática o arguido foi condenado, podem ser esquematizados nos seguintes termos:

1 – O arguido sabia que era portador de uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20 g/l e quis conduzir o veículo nessas condições (dolo directo);

2 – O arguido sabia que era portador de uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20 g/l e, não obstante, conduziu o veículo (dolo necessário);

3 - O arguido representou-se a possibilidade de ser portador de uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20 g/l e conduziu o veículo, conformando-se com ela (dolo eventual);

4 – O arguido representou-se a possibilidade de ser portador de uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20 g/l e conduziu o veículo, não se conformando com ela (negligência consciente);

5 – O arguido não se representou a possibilidade de ser portador de uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20 g/l e conduziu o veículo (negligência inconsciente).

Acerca da tipicidade e dos requisitos de punibilidade da conduta do arguido apurada em julgamento, expende-se na sentença recorrida (transcrição com diferente tipo de letra):

III - ENQUADRAMENTO JURÍDICO DOS FACTOS
Estabelecido o quadro factual, importa agora proceder à qualificação jurídico-penal da conduta do arguido, no sentido de determinar qual a tutela jurisdicional que ao caso cumpre dar.

O arguido vem acusado da prática, em autoria material, de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 292.°, 1, e 69.°, 1, a), do Código Penal.

Estipula o art. 292.°, 1, do mencionado código que, "quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igualou superior a 1,2 g/ l, é punido com pena de prisão até um ano ou pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal'.

Por outro lado, o art. 69.° do diploma legal em referência, determina a condenação na proibição de conduzir veículos motorizados por um período fixado entre três meses e três anos a quem for punido pela prática do crime p. e p. pelo art. 292.° do Código Penal.

O crime de condução de veículo em estado de embriaguez, que ao arguido vem imputado, é um crime de perigo abstrato, cujo bem jurídico protegido é, não só a segurança da circulação rodoviária, como, também, de forma indireta, a vida ou a integridade física, na perspetiva da segurança das pessoas, face ao trânsito de veículos.

Tratando-se de um crime de mão própria, pode ser sujeito ativo do crime de condução em estado de embriaguez todo aquele que conduza um veículo nas condições descritas no dito art. 292.° do Código Penal, ou seja, todo aquele que:
a) Conduza um veículo, com ou sem motor;
b) Em via pública ou equiparada;
c) Com uma taxa de álcool no sangue igualou superior a 1,2 g/l.

Tendo em vista a materialidade dos factos atrás descritos, dúvidas não subsistem de que estão preenchidos todos os elementos do tipo objetivo do crime em apreço, uma vez que ficou assente que no dia 23/04/2016, pelas 18 horas e após ter ingerido 4 copos de vinho grandes e medicamentos que o deixaram em situação de não se recordar de ter iniciado a atividade de condução, o arguido conduziu o veículo automóvel, ligeiro de mercadorias, com a matrícula -FQ-, na Rua do cemitério, na concavada, na área deste Juízo local de Abrantes Albufeira, com uma TAS igual a 1,90 g/l.

No que tange ao tipo subjetivo, basta-se o crime em apreço com uma atuação negligente por parte do condutor.

Assim, sempre que o agente coloca a hipótese de ter atingido valores de alcoolemia suficientemente elevados para ultrapassar os valores proibidos por lei para a condução e, mesmo não se conformando com tal possibilidade, assume a condução de um veículo, comete um crime de condução em estado de embriaguez.

Fá-lo-á, ainda, sempre que, mesmo sem representar na sua consciência tal possibilidade, o agente assuma a condução de um veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l.

Em suma, basta-se, assim, a consumação do crime de condução em estado de embriaguez com a condução, pelo seu agente, de um veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l.
Nos autos, resultou demonstrado que o arguido se determinou com vontade livre e consciente, com o propósito de conduzir o veículo de matrícula 11-FQ-08, após ter ingerido bebidas alcoólicas (4 copos de vinho grandes), bem sabendo que as mesmas eram suscetíveis de elevarem a sua TAS para um limite superior ao legalmente admissível para o exercício daquela atividade, e que a sua conduta é proibida e punida por lei, tendo, assim, agido com dolo direto.

Medianamente claro e evidente, não é o facto de o arguido após ingerir 4 copos grandes de vinho, sentindo-se aturdido, que, tal facto lhe retira a vontade e o discernimento, tomando se de seguida medicação (cujo efeito já tinha sido previamente avisado pela mulher) de forma a excluir o dolo da sua atuação.

Coisa diversa, que de resto, também, não tem essa virtualidade é o facto de se não ingerisse medicamentos e álcool, não se colocava em situação de nada se recordar - o que, de resto, poderia colocar uma situação de embriaguez pré ordenada.

Inexistem causas de exclusão da ilicitude ou da culpa.

Assim sendo, importa concluir que o arguido preencheu, com a sua conduta, os elementos do tipo objetivo e subjetivo do crime condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 292.°, 1, e 69.°, 1, a), do Código Penal.

Desde logo, é possível constatar que os factos descritos no ponto 2 da matéria de facto assente são de molde a integrar os elementos típicos do dolo do tipo de crime por cuja prática o arguido foi condenado, na sua modalidade mais grave de dolo directo, de acordo com critério interpretativo perfilhado e que acima deixámos esboçado.

A esta conclusão não obsta a restante factualidade apurada, nomeadamente a circunstância, dada como provada no ponto 12, de o arguido não consumir álcool há cerca de 6 meses, pois tal facto não faz dele desconhecedor dos efeitos genéricos da ingestão de bebidas alcoólicas.

Além disso, ficou igualmente demonstrado que o arguido era conhecedor do efeito específico da toma de simultânea de álcool e da medicação a que estava a ser sujeito, por causa do problema de diabetes de que padecia (pontos 6 e 13).

No entanto, a questão mais complexa, que o quadro factual apurado nos suscita, é prévia ao ajuizamento dos pressupostos do dolo ou da negligência e prende-se com o facto, dado como provado nos pontos 5 e 6, de o arguido não se lembrar de ter efectuado o acto de condução de veículo automóvel, integrador do crime por que foi condenado, ou sequer de o ter iniciado.

Tal equivale a dizer que o arguido levou a efeito a conduta típica sob um estado alterado de consciência, que, em termos de probabilidade razoável, é de molde suscitar dúvidas sobre se ele manteve inalterada, ao praticar os factos, toda a sua capacidade de avaliar a ilicitude a sua conduta e de se determinar de acordo com essa avaliação.

Pelo menos, é do senso comum que as pessoas, em estados avançados de embriaguez ou, como será o caso, sob o efeito combinado da ingestão de álcool e fármacos, assumem comportamentos, dos quais, fora dessas circunstâncias, se teriam normalmente abstido.

As considerações agora tecidas conduzem-nos à figura da inimputabilidade por anomalia psíquica, sobre a qual rege o art. 20º do CP, cujo teor é o seguinte:

1 - É inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação.

2 - Pode ser declarado inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída.

3 - A comprovada incapacidade do agente para ser influenciado pelas penas pode constituir índice da situação prevista no número anterior.

4 - A imputabilidade não é excluída quando a anomalia psíquica tiver sido provocada pelo agente com intenção de praticar o facto.

Embora sem fazer referência a disposições legais, o Tribunal «a quo», na fundamentação jurídica da sentença, alude à eventualidade de o estado em o arguido se encontrava, no momento em que praticou os factos incriminados, se reconduzir a «uma situação de embriaguez pré ordenada», o que corresponde à previsão do nº 4 do artigo agora transcrito.

Tal disposição legal deverá ser interpretada em conjugação com o normativo do art. 295º do CP, cujos nºs 1 e 2 estatuem:

1 - Quem, pelo menos por negligência, se colocar em estado de inimputabilidade derivado da ingestão ou consumo de bebida alcoólica ou de substância tóxica e, nesse estado, praticar um facto ilícito típico é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.

2 - A pena não pode ser superior à prevista para o facto ilícito típico praticado.

Tanto o nº 4 do art. 20º, como o art. 295º do CP tratam das chamadas «actiones liberae in causa», que são aquelas situações em que o agente, através da ingestão de bebidas alcoólicas, de consumo de produtos estupefacientes ou de uso de outros meios que, por si próprios ou em conjugação com os outros, provoquem idêntico efeito perturbador da capacidade de querer e de entender daquele que o toma, se coloca em estado de não conseguir avaliar a ilicitude das suas condutas ou de se determinar de acordo com essa avaliação e comete, nessas condições um facto ilícito típico, mas incorre ainda assim em responsabilidade criminal.

No tipo criminal previsto no nº 1 do art. 295º do CP, o processo de auto-inimputabilização tem ser censurável ao agente quer a título de negligência, quer a nível doloso (vd. nesse sentido, Américo Taipa de Carvalho, «Código Conimbricense do Código Penal. Parte Especial», Tomo II, págs. 1118 a 1120).

Diferentemente, no caso tratado no nº 4 do art. 20º do CP, a auto-colocação do agente em estado de inimputabilidade não pode ser meramente dolosa e muito menos negligente, mas antes tem de ser pré-ordenada, o que significa que o agente tem de colocar-se em tal estado com o específico propósito de praticar determinado crime.

Caso o agente venha a cometer, em estado de inimputabilidade auto-infligido, o crime projectado, será punido como autor desse crime, ao abrigo do disposto no nº 4 do art. 20º do CP, sendo irrelevante a inimputabilidade.

Supondo-se, a título de exemplo, que o agente se coloca a si mesmo em estado de inimputabilidade com o propósito de, nessas condições, vir a praticar, por hipótese, um crime de ofensa à integridade física, mas venha a levar a efeito factos integradores, por hipótese de um crime de dano, deverá responder como autor de um crime p. e p. pelo nº 1 do art. 295º do CP, ficando a moldura punitiva sujeita aos limites previstos para o crime de dano, por força do disposto no nº 2 do mesmo artigo.

Ora, confrontada a matéria de facto assente, dela não consta que o arguido se tenha colocado, por meio da toma conjunta quatro copos grandes de vinho e da medicação a que estava ser sujeito, para tratamento de um problema de diabetes de que padecia, no estado psíquico referenciado nos pontos 5 e 6, com a expressa finalidade de praticar um crime p. e p. pelo nº n1 do art. 292º do CP, integrado pelo acto de condução relatado nos pontos 1 e 2.

A previsão do nº 4 do art. 20º do CVP encontra-se seguramente pensada em função daquelas situações em que o agente provoca si próprio a embriaguez ou um estado equivalente com a finalidade de superar os freios éticos que, em circunstâncias normais o teriam inibido de delinquir.

Estando em causa o crime tipificada pelo nº 1 do art. 292º do CP, a ideia da embriaguez como meio auxiliar de formação da resolução criminosa surge problemática, quando a embriaguez é elemento constitutivo do tipo criminal objectivo.

Assim, que alguém se coloque em estado de embriaguez, ao ponto de não ser capaz de avaliar a ilicitude dos seus comportamentos ou de se determinar de acordo com essa avaliação, a fim de cometer um crime susceptível de ser preenchido com um grau de alcoolemia menos elevado, é algo que poderá conceber-se, em abstracto, mas que dificilmente ocorrerá na vida real.

Nesta conformidade, teremos de concluir que o contexto que se gerou o estado, em que se encontrava o arguido quando efectuou a condução de veículo incriminada, não é enquadrável na precisão do nº 4 do art. 20º do CP.

Por conseguinte, torna-se indispensável ajuizar a questão da eventual inimputabilidade do arguido, averiguando se este, quando levou a efeito a condução, estava em condições de avaliar a ilicitude desta e de se determinar em conformidade com essa avaliação.

No Acórdão desta Relação dc Évora de 7/2/17, proferido no processo 1286/15.1PBFAR.E1 (disponível em www.dgsi.pt), o Colectivo de Juízes subscritor do presente aresto tomou posição no sentido de, em caso de suspeitas fundadas sobre a imputabilidade (ou a imputabilidade diminuída do arguido), a falta de realização de perícia médico-psiquiátrica, tendente a averiguação dos pressupostos da figura penal em causa é geradora do vício previsto na al. a) do nº 2 do art. 410 do CPP e dá azo ao reenvio do processo para novo julgamento.

Seguiremos agora de perto a fundamentação do citado Acórdão.

Sobre o procedimento a seguir em caso de dúvida acerca da imputabilidade do arguido dispõe o art. 351º do CPP:

1 - Quando na audiência se suscitar fundadamente a questão da inimputabilidade do arguido, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, ordena a comparência de um perito para se pronunciar sobre o estado psíquico daquele.

2 - O tribunal pode também ordenar a comparência do perito quando na audiência se suscitar fundadamente a questão da imputabilidade diminuída do arguido.
(…)

O nº 2 do art. 410º do CPP, na parte que pode interessar, dispõe:
Mesmo nos casos em que a lei restringir a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) (…);
c) (…)

Segundo o Acórdão do STJ de 13/5/98 (CJ, Acs. do STJ, VI, tomo 2, pág. 199), a locução «decisão» inserida no texto da al. a) do nº do art. 410º do CPP, deve ser entendida como a decisão justa que ao caso deveria caber e não como a decisão concretamente proferida e objecto do recurso, sendo, portanto, com referência à primeira e não à segunda que deverá ajuizar-se da suficiência da matéria de facto provada.

Assim, e sintetizando, poderemos dizer que o referenciado vício de decisão verifica-se sempre o Tribunal deixe de emitir juízo probatório sobre um facto relevante para a justa decisão da causa.

Qualquer dos vícios tipificados no nº 2 do art. 410º do CPP terá de ser inferido do próprio texto da sentença, por si ou conjugado com as regras de experiência comum, não podendo ser tomados em consideração elementos exteriores, nomeadamente, meios de prova cujo conteúdo não esteja de alguma forma reflectido no texto da decisão.

Conforme já aflorámos, a apurada circunstância de o arguido não se recordar de ter iniciado e levado a cabo o acto de condução incriminado (pontos 5 e 6 da matéria provada), aparentemente em resultado da toma conjunta de quatro copos de vinho e da medicação a que estava sujeito, por causa de um problema de diabetes, suscita-se razoáveis dúvidas sobre a sua imputabilidade, no momento da prática dos factos.

O art. 151º do CPP estatui:
A prova pericial tem lugar quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos.

Por seu turno, o art. 163º do CPP é do seguinte teor:
1 - O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.

2 - Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.

A verificação dos pressupostos da inimputabilidade penal, em razão de anomalia psíquica, depende de um conhecimento científico de que o Tribunal não dispõe.

A exigência da prova pericial não é uma formalidade do processo, mas sim um verdadeiro requisito «ad substanciam» para a demonstração de determinados factos, pelo que a sua preterição não poderá ser resolvida, por aplicação do regime das irregularidades e nulidades processuais.

A falta de realização da perícia psiquiátrica ao arguido consubstancia indubitavelmente a preterição de uma diligência indispensável à descoberta da verdade, mas também algo mais do que isso, pois implica a omissão por parte do Tribunal de julgamento de averiguar os factos, que, por força das disposições conjugadas dos arts. 20º nº 1 do CP e 351º nº 1 do CPP, se impunha que averiguasse, a saber se o arguido, ao tempo em que incorreu na conduta, pela qual foi condenado em primeira instância, não tinha a capacidade de avaliar a ilicitude da sua conduta e de se determinar de acordo com essa avaliação.

A averiguação de tais factos é necessária uma justa decisão da causa penal, tendo em atenção as dúvidas que se suscitam sobre se o arguido reúne na sua pessoa os pressupostos da imputabilidade penal, aquando da prática dos factos incriminados, devido ao estado psíquico em que se encontrava.

Em face disso, teremos de concluir, de acordo com o critério interpretativo adoptado, que a sentença sob recurso enferma do vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, previsto na al. a) do nº 2 do art. 410º do CPP.

O nº 1 do art. 426º do CPP estatui:
Sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do nº 2 do artigo 410º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio.

O reenvio a determinar afectará a totalidade do objecto processual, mas terá um alcance estritamente limitado á questão da inimputabilidade do arguido.

Somos de entender que não deverá ser considerada a figura da imputabilidade diminuída, a que se refere o nº 2 do art. 20º do CP, pois a previsão desta norma não abrange, se bem compreendemos, anomalias psíquicas de caracter passageiro e auto-infligidas.

Nesta conformidade, importa que a primeira instância proceda à seguinte actividade judicativa:

a) Realização da perícia psiquiátrica ao arguido L, tendente a averiguar se, ao tempo em que praticou os factos por que responde, não tinha capacidade de avaliar a ilicitude da sua conduta e de se determinar de acordo com essa avaliação, ou se tinha tal capacidade sensivelmente diminuída;

b) Produção dos meios de prova complementar, que o Tribunal entenda adequados para o mesmo fim, nos termos do art. 340º nº 1 do CPP;

c) Prolação de nova decisão com consideração expressa da questão da inimputabilidade do arguido, devendo o Tribunal extrair todas as consequências que se imponham dos factos que vierem a apurar-se em sede de reenvio, por si mesmos ou conjugados com os que foram dados como provados na sentença recorrida.

III. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em declarar verificado na sentença recorrida o vício de insuficiência para decisão da matéria de facto provada e determinar, após trânsito em julgado, o reenvio do processo para novo julgamento, limitado às finalidades enunciadas supra.

Sem custas.
Notifique.

Évora 23/1/18 (processado e revisto pelo relator)

(Sérgio Bruno Povoas Corvacho)

(João Manuel Monteiro Amaro)