A ameaça com um anúncio de morte, genericamente formulado, sem qualquer concretização quanto aos meios a empregar, integra a previsão da alínea a) do n.º 1 do art. 153.º do Código Penal.
I- RELATÓRIO
No 1º. Juízo do Tribunal Judicial de Vila Verde, no âmbito do processo comum singular nº. 342/08.7 GBVVD, a arguida Ana C... foi condenada pela prática de um crime de ameaça agravada p. e p. pelos art. 153.º n.º 1 e 155.º n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 10,00, pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181.º n.º1, do Código Penal, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 10,00 e, em cúmulo jurídico, na pena única de 150 dias de multa, à taxa diária de € 10,00, o que perfaz € 1.500,00.
Foi, além disso, condenada a pagar € 900,00, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, a contar da notificação (18 de Outubro de 2010) até integral pagamento a Manuel C..., a título de indemnização por danos não patrimoniais.
Inconformada recorre a mesma, rematando a respectiva motivação com conclusões, nas quais, em síntese, suscita as seguintes questões:
- nulidade da sentença por omissão de pronúncia sobre questão suscitada na contestação e nulidade insanável por violação do disposto no art. 115.º n.º1 do Código Penal;
- impugnação da matéria de facto;
- vícios previstos no art. 410.º n.º2 do CPP (erro notório na apreciação de prova);
- qualificação jurídica dos factos relativos ao crime de ameaça;
- medida das penas.
O assistente respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência.
Admitido o recurso e remetidos os autos a esta Relação, a Ex.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do mesmo, com excepção do montante diário da multa que entende dever ser fixado em € 8,00.
Foi cumprido o disposto no art.417.º n.º2 do CPP, tendo havido resposta quer do assistente quer da recorrente.
Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
Decisão recorrida
“A- Factos provados
1ºNo dia 09 de Junho de 2008, pelas 14 horas, estava o assistente Manuel C... a proceder ao restauro de um muro da sua residência, sita em Rua de C..., 7, Barbudo, em Vila Verde, quando surge, exaltada, a arguida que se lhe dirigiu dizendo “hei-de-te matar”
2ºA arguida proferiu a expressão supra referida com foros de seriedade, bem sabendo que as mesmas eram idóneas a provocar no assistente um sentimento de receio de inquietação e a afectar o mesmo na sua liberdade de determinação, o que se veio a verificar.
3ºAgiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era legalmente proibida.
4º Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar acima referidas a arguida dirigiu-se ao assistente Manuel C... chamando-lhe “ladrão”, “gatuno” e “vigarista”, o que fez com a intenção de o atingir e ofender na sua honra e consideração social e dignidade, como efectivamente atingiu e ofendeu.
5º A arguida, que agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabia censurável e penalmente sancionável a sua conduta.
6º Ao ameaçar de morte o assistente/demandante, a arguida/demandada provocou naquele sentimentos de receio e de inquietação.
7º Tendo, por isso mesmo, constrangido o demandante no seu dia a dia.
8º Por outro lado, ao injuriá-lo pela forma como o fez, a demandada ofendeu-o na sua honra e consideração, causando-lhe sentimento de vergonha, revolta e desgosto.
9º O assistente é pessoa séria e honesta, goza e sempre gozou, em todo o lado onde é conhecido, de boa reputação.
10º A arguida vive em casa de que é usufrutuária, com o marido e um filho, nora, e dois netos.
11º É usufrutuária de vários imóveis que já partilhou com os filhos, com excepção de duas bouças que ainda são sua propriedade.
12º É reformada, auferindo de reforma cerca de 400,00€ mensais, embora trabalhando na agricultura;
13º O cônjuge da arguida também se encontra reformado, auferindo uma reforma de França de cerca de 1.000,00€ mensais.
14º O casal tem uma viatura automóvel e um tractor agrícola.
B- Factos Não Provados
1- Que a arguida é pessoa perfeitamente capaz de cumprir a ameaça de morte.
2- Que a ofensa na honra e consideração provocada pela arguida ao assistente tenha sido grave.
3- A arguida é pessoa pacífica e respeitada na sociedade.
4- A arguida seria incapaz de ameaçar o assistente ou outrem, com foros de seriedade e com intuito de lhe provocar um sentimento de receio e o afectar na sua liberdade de determinação
C- Motivação de Facto
O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada e não provada com base na análise crítica e ponderada de toda a prova produzida, nomeadamente, nos documentos juntos aos autos, nas declarações da arguida e do assistente, no depoimento das testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento, conjugadamente com as regras da experiência e o princípio da normalidade, bem como no CRC da arguida.
Desde logo, o assistente e as testemunhas Fernando M..., Agostinho R..., Paulo C..., Manuel V..., Domingos S... e Luís C..., referiram de forma unânime que a arguida na altura dos factos se encontrava bastante exaltada, tendo, aliás, as três primeiras testemunhas dito que a arguida chegou ao local de tractor e bastante exaltada, que parou o veículo frente ao local de construção do muro, o que impossibilitou as testemunhas de prosseguirem com os trabalhos de construção do muro e, de forma autoritária, mandou parar as obras, dizendo ao assistente que o mesmo não tinha licença e que não podia fazer ali o muro.
No depoimento do assistente e das referidas testemunhas, o Tribunal extraiu que a arguida manteve-se no local exaltada durante pelo menos uma hora e meia, e que nesse período se dirigiu ao assistente e disse-lhe que o havia de matar, chamando-o, ainda, de “ladrão”, “gatuno” e “vigarista”.
O assistente acrescentou que se sentiu incomodado, assustado e inquieto, face às palavras proferidas pela arguida que manifestou a intenção de o matar, manifestação essa que considerou séria e ameaçadora, atendendo ao que conhece da arguida e à forma como se lhe dirigiu.
As testemunhas Fernando M..., Agostinho R... e Paulo C..., afirmaram que o assistente se sentiu preocupado e assustado com as palavras proferidas pela arguida ao ponto de não se manifestar contra a arguida e, bem assim, o ter andado pelo menos durante uma semana, constrangido, incomodado, triste e angustiado, principalmente, pelo facto de a arguida ter dito que o havia de matar e mandá-lo para junto da mulher, sendo que esta tinha falecido há uns doze anos.
O Tribunal valorou os depoimentos do assistente e das testemunhas Fernando M..., Agostinho R... e Paulo C..., apesar das suas relações de proximidade e familiares com o assistente, e bem assim, apesar de se terem verificado algumas discrepâncias entre as declarações prestadas pela testemunha Agostinho R... perante a autoridade policial e as prestadas em audiência de julgamento, mas que, no essencial, se mostraram coerentes.
As testemunhas Manuel V..., fiscal da Câmara Municipal, Domingos S... e Luís C..., militares da GNR, que se dirigiram ao local, referiram que, efectivamente, a arguida estava exaltada, mas que não se recordam de ter ouvido a mesma dirigir quaisquer insultos ou ameaças ao assistente.
A circunstância de estas últimas testemunhas terem referido que não ouviram a arguida dirigir-se ao assistente e o insultar ou ameaçar, não põe em causa a credibilidade do depoimento das restantes testemunhas, pois que, por um lado, os militares da GNR e o fiscal da Câmara Municipal chegaram ao local cerca de uma hora e trinta minutos depois de se iniciarem as altercações entre a arguida, o assistente e os trabalhadores presentes no local. Por outro lado, estas testemunhas não deixaram de dizer que, quando chegaram ao local, a arguida encontrava-se exaltada, o que torna verosímil ter aquela proferido as expressões que resultam provadas.
No que concerne aos traços de seriedade inseridos na expressão que a arguida dirigiu ao assistente de “hei-de te matar”, que este considerou existirem, razão pela qual disse ter ficado receoso e preocupado, também pelas regras da experiência e da normalidade, o Tribunal forma a sua convicção de que a expressão é adequada a causar ao assistente medo e inquietação, do mesmo modo, que é adequada a prejudicar a liberdade de determinação de quem quer que seja e também do assistente, sendo certo que resultou do depoimento das testemunhas, do assistente e da própria arguida que estes últimos desde há largos anos estão zangados e vêm tendo discussões.
Também resulta das regras da experiência e da normalidade que a arguida sabia que a referida expressão era idónea a provocar no assistente um sentimento de receio e de inquietação e a afectar o mesmo na sua liberdade de determinação, tanto mais que a expressão foi proferida em voz alta e no contexto de uma discussão entre a arguida e o assistente.
Do mesmo modo, resulta das regras da experiência que a arguida bem sabia que tal conduta era proibida e punida por lei.
No que se reporta às expressões “ladrão”, “gatuno” e “vigarista”, que a arguida dirigiu ao assistente, as mesmas também são de forma a causar no assistente vergonha, tristeza e desgosto, pelo que, o Tribunal não pode deixar de valorar o depoimento do assistente e das testemunhas Fernando M..., Agostinho R... e Paulo C..., quando afirmam que o assistente se sentiu com vergonha, revoltado e desgostoso.
As testemunhas João O..., Maria M... e Maria F..., vieram aos autos depor sobre a personalidade e carácter da arguida.
O seu depoimento foi manifestamente parcial, não depuseram de forma objectiva, verdadeira, pretenderam manifestamente trazer aos autos qualidades da arguida que não resultaram demonstradas. Aliás, qualidades que a arguida, com o seu comportamento em Tribunal, desmentiu, nomeadamente, a alegação que a mesma é uma pessoa pacífica, na medida em que a mesma apresentou-se em tribunal de forma agressiva e pouco comedida.
Por outro lado, as testemunhas traçaram um carácter da arguida também nada consentâneo com os factos, pois que, referiram que a arguida seria incapaz de ameaçar o assistente ou outrem, tão pouco de proferir insultos a quem quer que fosse, o que contraria os factos provados.
É certo que também não resultou que a arguida fosse uma pessoa propensa a praticar actos de natureza criminosa relevante.
Assim, o Tribunal deu como não provado que a arguida é pessoa perfeitamente capaz de cumprir a ameaça de morte.
Do mesmo modo, não resultou provado que a arguida é pessoa pacífica e respeitada na sociedade, o que não significa que seja o contrário.
Nesse contexto, também se teve de dar como não provado que a arguida seria incapaz de ameaçar o assistente ou outrem, com foros de seriedade e com intuito de lhe provocar um sentimento de receio e o afectar na sua liberdade de determinação, porquanto, por um lado, resultou provado o contrário e, por outro lado, nos depoimentos das testemunhas “abonatórias”, estas apenas se referiram à sua relação com a arguida, não trazendo aos autos um conhecimento profundo sobre as qualidades pessoais e de carácter daquela com as pessoas em geral.
No que diz respeito à ausência de antecedentes criminais, relevou o CRC da arguida.
Apreciação
Conforme é sabido, as conclusões do recurso delimitam o âmbito do seu conhecimento e destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões pessoais de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida, devendo conter, por isso, um resumo claro e preciso das questões desenvolvidas no corpo da motivação que o recorrente pretende ver submetidas à apreciação do tribunal superior, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente, por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções do STJ, de 19/10/1995, D.R., I – A Série, de 28/12/1995).
1- Questões Prévias
Invoca a Ex.ª PGA no respetivo parecer que o assistente veio apresentar a sua resposta, manifestamente fora de prazo, quiçá partindo do pressuposto que o prazo para o recurso e para a resposta seriam de 20 dias.
Contudo, como bem respondeu o assistente a fls. 213 a peça por si apresentada está em prazo, já que no recurso se visa impugnar a matéria de facto com reapreciação da prova gravada, sendo por isso o prazo em causa de 30 dias (arts. 411º., nº.4 e 413º., nº.2 CPP).
Questão distinta, como temos entendido, tem a ver com o mérito da dita impugnação, se na verdade é feita adequadamente, que a seu tempo se apreciará e não contende com o prazo em causa, encontrando-se já para além da apreciação preliminar imposta para delimitação do prazo do recurso.
Importa, por isso, deixar breve apontamento sobre a matéria para fazer notar que não há que conhecer da matéria cível no presente caso, uma vez que o recurso só foi admitido - corretamente, diga-se - no tocante à parte criminal, tal qual se extrai do despacho proferido a fls. 194 no Tribunal a quo.
Acresce que, mesmo que tal não se verificasse, sempre teria que ser rejeitado no tocante a tal matéria, perante os valores do pedido (€ 3.000,00) e da condenação (€ 900,00) e o estipulado no art. 400.º n.º2 do CPP.
2- Nulidade da sentença
Invoca a recorrente a nulidade da sentença por omissão de pronúncia sobre questão suscitada na contestação e nulidade insanável por violação do disposto no art. 115.º n.º1 do C.Penal.
Concretizando refere que “o ofendido apresentou queixa contra a arguida, que deu origem ao procedimento dos presentes autos, nos seguintes termos, conforme consta do auto de denúncia a fls. 3 e 4 dos presentes autos, apresentado a 10 de Junho de 2008, no dia seguinte aos alegados factos, acusando-a apenas de utilizar «palavras agressivas tais como ameaças de morte e ainda o injuriou de ladrão…».
Não obstante, na douta sentença recorrida, deu-se como provado que a arguida proferiu a expressão dirigida ao ofendido «hei-de te matar», com foros de seriedade, chamando-lhe, (além de «ladrão»), de «gatuno» e «vigarista».
Ao dar-se como provados factos não constantes da queixa/denúncia apresentada, a sentença recorrida violou o disposto no art. 115.º, nº 1 do C.Penal e constitui nulidade insanável.
Questão que foi, de resto, levantada na contestação da arguida, que o Tribunal a quo não conheceu, como devia, pelo que a sentença é nula nos termos do disposto no artigo 379º, nº 1, al. c) do CPP”.
A Ex.ª PGA no respetivo parecer invoca que “Ao contrário do que a arguida/recorrente defende o ofendido exerceu atempadamente o seu direito de queixa, uma vez que devendo o mesmo ser exercido no prazo de 6 meses (art.º 115.º n.º 1 do C.P.), e tendo os factos ocorridos em 9 de Junho de 2008, o mesmo veio apresentar queixa dois dias depois e foi ouvido em declarações, cerca de um mês e quinze depois, onde reafirmou o desejo de procedimento criminal e esclareceu o modo como os factos ocorreram e as palavras que a arguida lhe dirigiu, palavras essas que correspondem àquelas que foram dadas como provadas e que foram, como se constata denunciadas antes de passarem 6 meses sobre a prática dos factos”.
Por seu turno o assistente respondeu nos seguintes termos: “Começa a arguida/recorrente por afirmar que, quando estejam em causa crimes de natureza particular ou semi-pública, a denúncia ou participação do ofendido baliza a acusação e, consequentemente, todo o processado subsequente.
Nos casos de crimes particulares ou semi-públicos, embora a queixa do ofendido seja um pressuposto processual ou, como diz Figueiredo Dias, um “pressuposto positivo de punição”, a verdade é que, no caso que nos ocupa, a queixa existe, foi atempadamente formulada, revelando o propósito do ofendido de proceder criminalmente, condição “sine qua non” de procedibilidade em relação ao crime de natureza particular de que foi vítima. E não importa que o tenha feito, como fez, em termos genéricos ou que o tivesse feito em termos mais precisos e particularizados. Manifestada que foi, em relação aos factos que o atingiram em termos que a Lei Penal considera criminosos, a intenção de, por eles, proceder criminalmente contra o respetivo autor, está assegurada a condição ou pressuposto de procedibilidade em relação a tais factos e ao crime que consubstanciam, factos que, referidos na queixa em termos genéricos, foram particularizados e concretizados na fase de inquérito. Até porque, para além da queixa que introduz o procedimento, em caso de crimes particulares, o que verdadeiramente baliza, nestes casos, o procedimento criminal e o julgamento é a acusação.
Analisando tais questões e sendo certo ter o ofendido exercido tempestivamente o respetivo direito de queixa que se impunha formular in casu, importa atentar no seguinte:
- na contestação - ao contrário do afirmado pela recorrente - não foi suscitada nesta sede qualquer questão que se impusesse ao Tribunal a quo apreciar, já que a arguida se limitou a falar de forma inócua acerca de pretensa contradição entre epítetos (vd. pontos 14 a 16 de fls. 80), não tendo suscitado quaisquer questões do género das que aqui agora formula ex novo, esquecendo que os recursos não se destinam a tratar de questões novas mas a reapreciar as decisões recorridas.
Daí que não se verifique qualquer nulidade da sentença por omissão de pronúncia, nem tenha este Tribunal ad quem que pronunciar-se sobre matérias novas, não integrantes da peça alvo de recurso.
Não obstante, sempre se dirá que a tese da recorrente relativa à pretensa nulidade insanável por violação do disposto no art. 115.º n.º1 Código Penal não colhe.
Desde logo por não se acomodar ao princípio da legalidade das nulidades expressamente consignado no art. 118.º do CPP, a que acresce o facto do elenco das nulidades insanáveis ser taxativo, do mesmo não constando a esgrimida pela recorrente.
Depois porque o objecto do processo se fixa com a acusação e jamais com a queixa, como pretende a recorrente que faz apelo para o efeito a uma leitura equívoca dos textos legais, maxime do art. 115.º do C.Penal.
A queixa foi devida e tempestivamente formulada contra a arguida e pelos crimes em causa, servindo o inquérito para apurar em concreto as situações ocorridas e a final a acusação para fixar o objecto do processo nessa sede.
Não se segue daí que a acusação tenha que ser formulada no momento da queixa tal qual resultaria da tese errónea da recorrente.
Improcede por conseguinte esta vertente do recurso.
3- Impugnação da matéria de facto
Para apreciarmos a questão relativa à impugnação da matéria de facto, haverá que ter presente que, ao contrário do que por vezes se pensa, o recurso nesta sede não tem por finalidade nem pode ser confundido com um "novo julgamento" da matéria de facto, assumindo-se antes como um “remédio” jurídico.
Como várias vezes salientou o Prof. Germano Marques da Silva, presidente da Comissão para a Reforma do Código de Processo Penal:
- “… o recurso é um remédio para os erros, não um novo julgamento” (conferência parlamentar sobre a revisão do Código de Processo Penal, in Assembleia da República, Código de Processo Penal, vol. II, tomo II, Lisboa 1999, pág. 65);
- “o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância” (Forum Justitiae, Maio/99);
- “Recorde-se que o recurso ordinário no nosso Código é estruturado como um remédio jurídico, visa corrigir a eventual ilegalidade cometida pelo tribunal a quo. O tribunal ad quem não procede a um novo julgamento, verifica apenas da legalidade da decisão recorrida, tendo em conta todos os elementos de que se serviu o tribunal que proferiu a decisão recorrida. Daí que também a renovação da prova só seja admitida em situações excepcionais e, sobretudo, o recorrente tenha que indicar expressamente os vícios da decisão recorrida.” (Registo da prova em Processo Penal. Tribunal Colectivo e Recurso, in Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, C..., 2001).
Da mesma forma, na jurisprudência pode ler-se, por exemplo, no acórdão do STJ de 15-12-2005 (proc.n.º 2.951/05, relatado pelo Conselheiro Simas Santos), “o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª Instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª Instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros”.
E, como se refere no acórdão da Relação do Porto de 26-11-2008 (publicado na RLJ, ano 139º, nº 3960, págs. 176 e segs., relatora Maria do Carmo Silva Dias), “não podemos esquecer a percepção e convicção criada pelo julgador na 1.ª instância, decorrente da oralidade da audiência e da imediação das provas. O juízo feito pelo Tribunal da Relação é sempre um juízo distanciado, que não é colhido directamente e ao vivo, como sucede com o juízo formado pelo julgador da 1ª. Instância”.
Daí que o recurso da decisão da primeira instância em matéria de facto não sirva para suprir ou substituir o juízo que aquele tribunal formulou, apoiado na imediação, sobre a maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. O que a imediação dá, nunca poderá ser suprimido pelo tribunal da segunda instância. Este não é chamado a fazer um novo julgamento - como parece entender a recorrente - mas a remediar erros que não têm a ver com o juízo de maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. Esses erros ocorrerão quando, por exemplo, o tribunal considera provados factos com base em depoimentos de testemunhas que nem sequer aludem aos mesmos, ou afirmam o contrário.
Ora, a recorrente limita-se a contestar basicamente o juízo do tribunal da primeira instância sobre a credibilidade, a pretensa parcialidade e fiabilidade atribuída ao depoimento do assistente e das testemunhas Fernando M..., Agostinho R... e Paulo C... e a invocar que, em seu entender, face aos depoimentos das testemunhas Manuel V..., Domingos S... e Luís C... que não presenciaram quaisquer insultos ou ameaças de morte, os factos 1 a 8 deveriam ser considerados não provados.
Fundamentalmente, está em causa a credibilidade de depoimentos que o tribunal da primeira instância aceitou como credíveis mas que a recorrente entende que não deveriam ser aceites como tal.
Decorre do supra exposto que esta é uma questão que escapa ao juízo do tribunal da segunda instância, por estar estreitamente dependente da imediação.
Não está aqui em causa qualquer erro de julgamento (no sentido acima indicado), mas tão só a contestação da decisão do tribunal da primeira instância sobre a credibilidade e fiabilidade dos depoimentos em causa.
Refira-se, a este propósito, que o recurso da matéria de facto não posterga o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no art. 127º. do CPP. A decisão do Tribunal há-de ser sempre uma "convicção pessoal - até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais" - Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, voI. I, ed.1974, pág. 204.
Por outro lado, a livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância. Como ensinava Alberto do Reis “a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de prova legal”. E concluía aquele Professor, citando Chiovenda, que “ao juiz que haja de julgar segundo o princípio da livre apreciação é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar” CPC anotado, vol. IV, págs. 566 e segs.
O art. 127º. do CPP indica-nos, contudo, um limite à discricionariedade do julgador: as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.
Relembre-se parte significativa da fundamentação da matéria de facto efectuada na sentença recorrida, donde resulta claro que a mesma está de acordo com as regras da experiência comum, sendo que tudo o alegado pela recorrente não compromete o que aí se escreveu: “… No depoimento do assistente e das referidas testemunhas, o Tribunal extraiu que a arguida manteve-se no local exaltada durante pelo menos uma hora e meia, e que nesse período se dirigiu ao assistente e disse-lhe que o havia de matar, chamando-o, ainda, de “ladrão”, “gatuno” e “vigarista”.
O assistente acrescentou que se sentiu incomodado, assustado e inquieto, face às palavras proferidas pela arguida que manifestou a intenção de o matar, manifestação essa que considerou séria e ameaçadora, atendendo ao que conhece da arguida e à forma como se lhe dirigiu.
As testemunhas Fernando M..., Agostinho R... e Paulo C..., afirmaram que o assistente se sentiu preocupado e assustado com as palavras proferidas pela arguida ao ponto de não se manifestar contra a arguida e, bem assim, o ter andado pelo menos durante uma semana, constrangido, incomodado, triste e angustiado, principalmente, pelo facto de a arguida ter dito que o havia de matar e mandá-lo para junto da mulher, sendo que esta tinha falecido há uns doze anos.
O Tribunal valorou os depoimentos do assistente e das testemunhas Fernando M..., Agostinho R... e Paulo C..., apesar das suas relações de proximidade e familiares com o assistente, e bem assim, apesar de se terem verificado algumas discrepâncias entre as declarações prestadas pela testemunha Agostinho R... perante a autoridade policial e as prestadas em audiência de julgamento, mas que, no essencial, se mostraram coerentes.
As testemunhas Manuel V..., fiscal da Câmara Municipal, Domingos S... e Luís C..., militares da GNR, que se dirigiram ao local, referiram que, efectivamente, a arguida estava exaltada, mas que não se recordam de ter ouvido a mesma dirigir quaisquer insultos ou ameaças ao assistente.
A circunstância de estas últimas testemunhas terem referido que não ouviram a arguida dirigir-se ao assistente e o insultar ou ameaçar, não põe em causa a credibilidade do depoimento das restantes testemunhas, pois que, por um lado, os militares da GNR e o fiscal da Câmara Municipal chegaram ao local cerca de uma hora e trinta minutos depois de se iniciarem as altercações entre a arguida, o assistente e os trabalhadores presentes no local. Por outro lado, estas testemunhas não deixaram de dizer que, quando chegaram ao local, a arguida encontrava-se exaltada, o que torna verosímil ter aquela proferido as expressões que resultam provadas…
… No que se reporta às expressões “ladrão”, “gatuno” e “vigarista”, que a arguida dirigiu ao assistente, as mesmas também são de forma a causar no assistente vergonha, tristeza e desgosto, pelo que, o Tribunal não pode deixar de valorar o depoimento do assistente e das testemunhas Fernando M..., Agostinho R... e Paulo C..., quando afirmam que o assistente se sentiu com vergonha, revoltado e desgostoso”.
Note-se que o art.412.º n.º3 al.b) do CPP dispõe que quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar as concretas provas que “impõem” decisão diversa da recorrida e não as que “permitiriam” decisão diversa. É que há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.
Como bem se observa no Acórdão do STJ de 26/1/2000 (publicado na Base de Dados da DGSI (www.dgsi.pt) sob o nº SJ200001260007483), “não são os sujeitos processuais (nem os respectivos advogados) quem fixa a matéria de facto, mas unicamente o Tribunal que apura os factos com base na prova produzida e conforme o princípio da livre convicção (artigo 127º do Código de Processo Penal), aplicando, depois, o direito aos mesmos factos, com independência e imparcialidade”.
Na situação dos autos, reapreciados todos os elementos probatórios indicados, conclui-se que a versão dos factos dados como provados pelo Tribunal recorrido está inteiramente de acordo com os meios de prova ao seu dispor, apreciados na sua globalidade, não se evidenciando que tenha sido cometido qualquer erro de julgamento, sendo inteiramente pertinentes os raciocínios desenvolvidos na fundamentação efectuada na peça recorrida.
Face ao exposto, no presente caso não se vislumbra que se impusesse decisão de facto distinta da que foi tomada, nem tão pouco se patenteia qualquer violação do princípio da livre apreciação de prova.
Por tais motivos improcede esta parcela do recurso.
4- Vícios previstos no art. 410.º n.º2 do CPP
Alude também a recorrente ao vício de erro notório na apreciação de prova quer no tocante à expressão “hei-de-te matar” que segundo refere tem uma linguística elaborada, pelo que violaria as regras da experiência comum aceitar que a arguida a pudesse ter produzido, quer no tocante à expressão “ladrão” que teria de ser contextualizada, não estando a ser usada no seu sentido habitual, mas apenas com o sentido concreto da ocasião, querendo significar que, no entender da arguida, o ofendido estava a apoderar-se de parte do caminho, algo com natureza cível e não uma vontade de ofender criminalmente.
Sendo certo recair sobre o Tribunal de recurso a apreciação oficiosa dos vícios da sentença previstos no art. 410.º n.º 2 do CPP, analisemos, então, os vícios em causa.
Dispõe o artigo 410.º nº 2, do CPP: “Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova”.
Como decorre expressamente da letra da lei, qualquer um dos elencados vícios tem de dimanar do texto da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos externos à dita decisão, salientando-se também que as regras da experiência comum, no dizer de Germano Marques da Silva “não são senão as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece, englobando as regras da lógica, os princípios da experiência e os conhecimentos científicos”.
Sinteticamente diremos que a insuficiência a que se reporta a citada al. a) é um vício que ocorre quando os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida, ou, quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do juiz.
Tal vício consiste na formulação incorrecta de um juízo, ou seja, ocorre quando a conclusão extravasa as premissas por a matéria de facto provada ser insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada, não se confundindo, por isso, com qualquer insuficiência da prova para a decisão de facto proferida.
Por sua vez, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, apenas se verificará quando, analisada a matéria de facto, se chegue a conclusões antagónicas entre si e que não possam ser ultrapassadas, ou seja, quando se dá por provado e como não provado o mesmo facto, quando se afirma e se nega a mesma coisa, ao mesmo tempo, ou quando simultaneamente se dão como provados factos contraditórios ou quando a contradição se estabelece entre a fundamentação probatória da matéria de facto, sendo ainda de considerar a existência de contradição entre a fundamentação e a decisão.
Finalmente, o erro notório na apreciação da prova é prefigurável quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária ou visivelmente violadora do sentido da decisão e/ou das regras de experiência comum, constituindo entendimento unânime da doutrina e jurisprudência que tal erro nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que o recorrente entende que seria a correcta face à prova produzida; só podendo verificar-se quando o conteúdo da respectiva decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, patenteie, de modo que não escaparia à análise do homem comum, que no caso se impunha uma decisão de facto contrária à que foi proferida.
Assim, no dizer de Simas Santos e Leal Henriques (in “Recursos em Processo Penal, 7ª ed., 2008, Editora Rei dos Livros, pág. 77) existe erro notório na apreciação da prova quando “… um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência, se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, ou desrespeitou regras sobre o valor da prova vinculada ou das legis artis…”.
Vistas quer a motivação do recurso quer as conclusões do mesmo, a recorrente esquece que, em sede de apreciação destes vícios, a matéria de facto só é sindicável quando o vício de que a mesma possa enfermar “resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum” (corpo do nº. 2 do art. 410º. do CPP). E, no presente caso, não se vislumbra no conteúdo da respectiva decisão, nem por si só, nem conjugada com as regras da experiência comum, que se impusesse decisão de facto distinta da que foi tomada quanto a tal matéria que se encontra, além do mais, devidamente fundamentada, tendo-se explanado de forma consequente os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu à formação da convicção do tribunal.
Não estamos pois confrontados com qualquer situação em que um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência, se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, ou desrespeitou regras sobre o valor da prova vinculada ou das legis artis.
Pelo contrário, todo o texto da sentença é lógico e coerente e aponta no único sentido possível face aos factos provados, qual seja, o da condenação da recorrente.
Não é assim a peça em causa merecedora de qualquer censura nesta sede, não sendo detetáveis in casu quaisquer dos vícios a que aludem as diversas alíneas do nº.2 do art. 410º. CPP, maxime a al. c).
5- Qualificação jurídica dos factos relativos ao crime de ameaça
Invoca a recorrente que a mera utilização da expressão «hei-de-te matar», genericamente formulada, sem qualquer concretização dos meios a utilizar, sem mais, apenas permite tipificar o crime como de ameaça simples e não de ameaça agravada.
Mais uma vez não assiste razão à recorrente.
Dispõe o art. 153.º n.º 1 do Código Penal “quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a sua vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”.
E de acordo com a alínea a) do n.º1 do art. 155.º do mesmo diploma legal, se o facto (ameaça) se traduzir na prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.
A recorrente, louvando-se no Ac.R.Porto de 25/3/2010, proc.nº 2940/08.0TAVNG, relatado pelo Desembargador Ricardo Costa e Silva, entende que a ameaça com um anúncio de morte, genericamente formulado, sem qualquer concretização quanto aos meios a empregar, se enquadra tão-só na previsão do n.º 1 do art. 153.º do Código Penal, ficando reservada a previsão do crime agravado (alínea a) do art. 155.º) para aqueles casos em que é feita a descrição dos meios mediante os quais a ameaça – no caso, contra a vida – se poderá vir a concretizar.
Salvo o devido respeito por opinião contrária, não concordamos com este entendimento.
Diferentemente da redação inicial do Código Penal de 1982 (em que bastava a ameaça da prática de um qualquer crime), a revisão de 1995, efectuada através do DL n.º48/95, de 15-3, veio especificar que o crime, objeto da ameaça, tem de ser “contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor”.
Aliás, no âmbito da Comissão Revisora do Código Penal de 1995, o Prof. Figueiredo Dias referiu “Quanto às ameaças, propõe-se um alargamento da matéria proibida e, por outro lado, estreita-se a sua aplicação pela indicação dos bens ameaçados”, ou seja, “o legislador de 1995, entendendo que a referência genérica à “prática de crime” seria suscetível de nela fazer integrar qualquer facto ilícito típico, restringiu o âmbito da norma, passando a constituir ameaça apenas a promessa de cometimento dos crimes enunciados no nº 1 do artº 153º.
A ratio da agravação prevista na alínea a) do n.º 1 do art. 155.º do Código Penal “consiste na razoável consideração de que há, no geral dos casos, uma proporção directa entre a gravidade do crime objecto de ameaça e a perturbação da paz individual e da liberdade de determinação: quanto mais grave aquele for maior será esta perturbação. Este nº 2 do artº 153º prevê, portanto, um crime de ameaça qualificada pela gravidade do crime ameaçado. Acentue-se, porém, que as espécies de crimes que podem ser objeto das ameaças qualificadas são exatamente as mesmas do nº 1 do artº 153º, isto é, os bens jurídicos cuja ameaça de lesão constitui ameaça qualificada são os mesmos que vêm mencionados no nº 1. A especificidade do disposto no nº 2 reduz-se, exclusivamente, à exigência de que a pena estabelecida para os crimes (objeto da ameaça) referidos no nº 1 tenha um limite máximo superior a 3 anos de prisão. '' - Américo Taipa de Carvalho in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, página 345, em anotação ao art.153.º n.º2, correspondente ao atual art.155.º n.º1 alínea a), na redação anterior à Lei nº 59/2007 de 04.09.
Pretender introduzir um requisito que a lei não prevê como exigência de preenchimento da circunstância agravante, qual seja a necessidade de descrição dos meios mediante os quais a ameaça se poderá vir a concretizar, não tem apoio legal. É certo que a letra da lei – do art. 153.º n.º 1 e do art. 155.º n.º 1 al. a) – é suscetível de levar o intérprete a concluir que a ameaça de morte tanto pode integrar o crime de ameaça simples como o crime qualificado. Porém, o legislador apenas pretendeu enunciar no tipo base do art. 153.º n.º 1 quais os factos ilícitos típicos que podem ser objeto de ameaça, sem prejuízo de, relativamente a parte deles, os vir a enquadrar na previsão da ameaça qualificada do art. 155.º n.º1 – neste sentido, v. Ac.R.Porto de 29/2/2012, proc. n.º723/08.6PBMAI, relatado pela Desembargadora Eduarda Lobo.
Aliás, a descrição dos meios de concretização da ameaça contra a vida não traduz, por si só, uma conduta mais lesiva para o bem jurídico tutelado (a liberdade de decisão e de acção) de forma a poder fundamentar a agravação punitiva.
Em conclusão, o anúncio de morte, genericamente anunciado, integra a previsão do art.155.º n.º1 alínea a) do Código Penal, pelo que soçobra este fundamento do recurso.
6- Medida das Penas de Multa
A recorrente censura, finalmente, as penas de multa aplicadas considerando-as excessivas, entendendo que face aos padrões da sociedade e às penas concretas de multa que vêm sendo aplicadas em situações similares, não se justifica a aplicação no caso das injúrias, de uma multa superior a 40 dias, à taxa de € 5,00 / dia e, nas ameaças, de 60 dias à mesma taxa diária e, ainda, em cúmulo jurídico, da pena única de 80 dias, à taxa diária de € 5,00/ dia, invocando que aufere € 400,00 mensais de reforma e não tem antecedentes criminais.
Sobre a matéria pronunciou-se também a Ex.ª PGA no respectivo parecer pugnando pela diminuição do quantitativo diário da multa fixada para € 8,00 por entender que melhor se coaduna com os rendimentos da arguida.
Apreciando
A recorrente, foi condenada pela prática de um crime de ameaça agravada p. e p. pelos art. 153.º n.º 1, e 155.º n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 10,00, pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181.º nº1 do Código Penal, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 10,00 e, em cúmulo jurídico, na pena única de 150 dias de multa, à taxa diária de € 10,00, o que perfaz € 1.500,00.
As penas abstratas cominadas para os tipos de crime aqui em causa são de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias para o caso da ameaça agravada e de prisão até 3 meses ou multa até 120 dias para a injúria.
A medida da pena há-de, primordialmente, ser dada por considerações de prevenção geral positiva, isto é, prevenção enquanto necessidade de tutela dos bens jurídicos que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida, que fornece uma “moldura de prevenção”, ou seja, um “quantum” de pena que varia entre um ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias e onde, portanto, a medida da pena pode ainda situar-se até atingir o limiar mínimo, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar.
A culpa constitui o limite inultrapassável da medida da pena, funcionando assim como limite também das considerações preventivas (limite máximo), ligada ao princípio de respeito pela dignidade da pessoa do agente.
Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva - entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável - podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena.
No presente caso as razões de prevenção geral são relevantes, uma vez que se generalizou o tipo de comportamentos como o adoptado pela arguida em caso de conflitos, havendo a necessidade de reforçar a confiança da comunidade na tutela do ordenamento jurídico, mas são muito menos vincadas as de prevenção especial, dado que a arguida não tem antecedentes criminais, está inserida social e familiarmente e os factos já ocorreram há cerca de 4 anos; a ilicitude é mediana e o dolo é direto.
Tudo ponderado, afigura-se adequada a pena de 100 dias de multa pelo crime de ameaça agravada e de 60 dias de multa, pelo crime de injúria, sendo que a pena de 90 dias de multa aplicada pelo tribunal a quo por este crime se afigura desajustada.
Quanto ao quantitativo diário da multa, é sabido que a cada dia de multa corresponderá, segundo o art. 47.º n.º 2 do Código Penal, uma quantia fixada, entre € 5,00 e € 500,00, de acordo com a situação económica e financeira do arguido e dos seus encargos pessoais.
Como refere o Prof. Taipa de Carvalho “a multa enquanto sanção penal, não pode deixar de ter um efeito preventivo e, portanto, não pode deixar de ter uma natureza de pena ou sofrimento, isto é e por outras palavras, não pode o condenado na multa deixar de a “sentir na pele” (As Penas no Direito Português após a Revisão de 1995, in Jornadas de Direito Criminal-Revisão do Código Penal, ed. do Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 1998, vol II, pág. 24).
No mesmo sentido salientou o Ac. do STJ de 2-10-1997 (Col. de Jur., Ano V, tomo 3, págs. 183-184) “como a multa é uma pena, o montante diário da mesma deve ser fixado em termos de tal sanção representar um sacrifício real para o condenado, sob pena de se estar a desacreditar esta pena, os tribunais e a própria justiça, gerando um sentimento de insegurança, de inutilidade de impunidade”.
Na sentença em apreço, a propósito da situação económica da recorrente e dos seus encargos pessoais, ficou provado que a arguida recebe uma reforma de €400,00 mensais, vive em casa de que é usufrutuária, com o marido, um filho, nora e netos, é usufrutuária de vários imóveis que já partilhou com os filhos, o seu marido é reformado, auferindo uma reforma de França de cerca de €1000,00 mensais.
Ponderadas estas circunstâncias, afigura-se que a taxa diária de €10,00, fixada pelo tribunal a quo, é demasiado elevada, mostrando-se antes adequada a taxa diária de €8,00, sendo que um valor inferior não representaria um sacrifício para a arguida e consequentemente a pena de multa perderia a sua eficácia penal.
No que se reporta ao cúmulo jurídico das penas parcelares, conforme decorre do art.77.º nº 1 e 2 do C.Penal, a pena aplicável ao concurso de crimes tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos de prisão e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
In casu os limites abstratos da pena conjunta variam entre o mínimo de 100 dias de multa (pena parcelar mais grave) e o máximo de 160 dias multa (soma das duas penas).
Com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente pelo conjunto dos factos criminosos, enquanto revelador da gravidade global do comportamento delituoso do agente, dado que a lei estabelece que se pondere, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. Nas palavras de Figueiredo Dias – in Direito Penal Português, Parte Geral II, As Consequências Jurídicas do Crime, pág.290 – “como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado”.
Ponderando o conjunto dos factos e a relação entre os mesmos, tendo ocorrido quase simultaneamente, mostra-se adequada a pena única de 120 dias de multa, à taxa diária de €8,00, perfazendo o total de €960,00.
III- Decisão
Face ao exposto, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães em conceder parcial provimento ao recurso e, consequentemente, condenar a arguida Ana C... pela prática de um crime de ameaça agravada p. e p. pelo art. 153° nº 1 e 115.º n.º1 al.a) do C.Penal, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 8,00, pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181.º n.º1 do Código Penal, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 8,00 e, em cúmulo jurídico, na pena única de 120 dias de multa, à mesma taxa diária de € 8,00, perfazendo o total de € 960,00.
Sem custas.