COMPROPRIEDADE
COISA COMUM
DIREITO AO USO
ILICITUDE
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ADMINISTRAÇÃO
COMPENSAÇÃO
DIVISIBILIDADE
AÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
Sumário


I. O art. 1406º do CCiv. dispõe sobre o poder ou faculdade de «uso da coisa comum» pelos comproprietários, permitindo, nomeadamente por falta de acordo para o efeito, o exercício individual desse “uso”: «a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela»; os limites da licitude desse exercício são (1) a desconformidade ou desrespeito do uso com o fim a que a coisa se destina e (2) a privação ou o impedimento do uso ao outro ou outros comproprietários que têm direito concorrente a esse uso.
II. Se um comproprietário “usa” para o fim adequado “partes” do prédio em compropriedade e não actua em obstáculo a que o outro comproprietário “use” outra ou outras “partes” do prédio, sempre no âmbito do exercício das suas “quotas” quantitativamente iguais (metade-metade) – art. 1403º, 2, do CCiv. –, não está a revelar qualquer ocupação ilegítima à luz da titularidade e posição jurídica de comproprietário, mesmo que em certo momento seja o único a exercer efectivamente essa posição jurídica e a correspondente faculdade de uso sobre a totalidade da coisa em si mesma, seja qual for, à partida e sem mais, a quota correspondente ao seu direito na contitularidade (em conjunto com o art. 1305º, 1, CCiv.), que possa ser qualificada como acto ilícito a considerar no exercício da compropriedade a título de uso-posse e susceptível de responsabilidade civil extra-negocial (nomeadamente por abuso de direito) e correspondente direito indemnizatório ou compensatório.
III. O art. 1407º do CCiv. dispõe sobre a regulação da administração da coisa comum em compropriedade, destinada à conservação, beneficiação e fruição da coisa, estabelecendo a regra do exercício solidário do poder de administrar o objecto comum e, assim, reconhecendo a qualquer comproprietário legitimidade para praticar actos de administração com eficácia colectiva.
IV. Na ausência de acordo prévio sobre a administração da coisa e verificando-se uma situação de impasse por não se conseguir formar maioria relativamente a determinado aspecto da administração do bem comum, confere-se a qualquer comproprietário o poder de se dirigir a tribunal e pedir a resolução desse impasse, «segundo juízos de equidade», através de um processo de jurisdição voluntária de “suprimento” e só através deste processo (art. 1002º do CPC), sem prejuízo de se aferir da responsabilidade do comproprietário que realiza actos de administração contra a oposição da maioria (ou, por maioria interpretativa de razão, pelo contitular igualitário), se ocorridos prejuízos dessa conduta; se não se configura qualquer suprimento necessário em face da prática de actos de administração, não é possível gerar a aplicação do art. 1407º do CCiv.
V. Não se pode atribuir direito de compensação pelo não uso de um dos comproprietários, num quadro factual em que apenas se demonstra que, no que toca ao poder de uso-posse do prédio, e só quanto a esta faculdade jurídica secundária do direito de compropriedade, só um dos comproprietários usa a coisa comum, não por força de privação ou impedimento ao outro, mas por falta de acordo dos comproprietários quanto à destinação e rentabilização da coisa em compropriedade, sem ilicitude no uso ao abrigo do art. 1406º, 1, do CCiv., mas sem prejuízo do direito potestativo de pôr termo à compropriedade (arts. 1412º-1413º CCiv.; 925º e ss, CPC).

Texto Integral


Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I) RELATÓRIO

1. AA intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra BB, formulando os seguintes pedidos de condenação do Réu: (a) deixar de habitar e a desocupar o imóvel-“moradia” de que são comproprietários, não podendo fazer dele a sua residência; (b) permitir que o imóvel seja utilizado pela Autora de modo igual; (c) pagamento à Autora de um valor mensal correspondente a metade (1.000,00 €) da renda mensal (2.000,00 €) que seria possível de obter pelo arrendamento a terceiros do imóvel e que corresponde, pelo menos, ao prejuízo da Autora resultante da conduta abusiva e ilícita do Réu (i) desde outubro de 2021 até à presente data, que se liquida em 8.000,00 €, e (ii) desde a presente data até à data de desocupação efetiva do imóvel à referida taxa mensal de 1.000,00 €, a que acrescem juros de mora vencidos e os vincendos até integral pagamento e, bem assim, juros à taxa anual de 5% nos termos do disposto no n.º 4 do art. 829.º-A do Código Civil; (d) pagamento, nos termos do n.º 1 do art. 829.º-A do CCiv., de uma sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso no cumprimento do disposto nas alíneas a) e b) supra, enquanto o Réu continuar a ocupá-lo como sua residência e impedir que seja utilizado pela Autora de modo igual, devendo ser fixada, segundo critérios de equidade, no valor equivalente ao triplo da renda diária do imóvel (2.000,00 € / 30 dias X 3), isto é, 200,00 € por cada dia de atraso, dos quais metade destina‑se ao Estado e a outra metade à Autora.

Em síntese, alegou que Autora e Réu são, em comum e sem determinação de parte ou direito, os únicos proprietários de um imóvel, prédio urbano, doado pela mãe de ambos, por conta da quota disponível, em partes iguais e livre de ónus ou encargos; trata-se de um imóvel em propriedade total, sem andares nem divisões susceptíveis de utilização independente e, assim, indivisível; o Réu não aceita nenhuma das propostas da Autora para porem fim à indivisão e pretende usar em exclusivo o imóvel, contra a vontade da Autora; em Outubro de 2021, o Réu mudou-se para o imóvel, onde passou a residir, contra a vontade da Autora e impedindo que o imóvel seja usado para uma finalidade proveitosa para ambos, sem pagar qualquer contrapartida à Autora por essa utilização.

2. Foi proferido despacho de fixação do valor da causa em € 276.010,00, transitado em julgado, e de declaração de incompetência do Juízo Local Cível de Mafra, com remessa dos autos aos Juízos Centrais Cíveis de Sintra da Comarca de Lisboa Oeste.

3. O Réu apresentou Contestação, pedindo a improcedência da acção.

Em especial, defendeu-se por impugnação, alegando que o imóvel tem um total de três espaços autonomizáveis para habitação (designadamente, sótão e cave), sendo que a Autora e o seu marido residiram num deles (sótão) quando casaram e até ao nascimento do seu terceiro filho, pelo período de sete anos; sempre residiu na casa, com os pais de ambos, enquanto vivos e depois apenas com a sua mãe até ao falecimento desta, aí tendo permanecido após o falecimento da mãe de ambos; manteve-se disponível a parte da casa que a Autora adaptou e em que viveu durante anos com a sua família; a utilização que o Réu faz da casa não impede a sua utilização pela Autora; a Autora nunca lhe transmitiu, antes desta acção, que utilização concreta o Réu estaria a impedir.

4. Em Articulado subsequente à Contestação, no exercício do contraditório, a Autora impugnou a versão factual apresentada pelo Réu e pediu a respectiva condenação como litigante de má fé em multa e indemnização a fixar pelo Tribunal.

O Réu apresentou Resposta, pugnando pelo desentranhamento do Articulado precedente, ou considerados não escritos o desenvolvimento dos fundamentos da acção e de resposta à Contestação, assim como pela condenação da Autora em litigância de má fé, pagando ao Réu a quantia de 1 000, 00 euros, acrescidos de IVA, a título de honorários ao Mandatário do Réu.

A Autora apresentou Resposta ao pedido de condenação em litigância de má fé.

5. Após frustração da tentativa de conciliação, proferido despacho saneador, com delimitação do objecto do litígio – “Habitação exclusiva pelo Réu de imóvel de que ambas as partes são comproprietárias/responsabilidade, do Réu pelo pagamento, à Autora, de quantia com fundamento na ilicitude dessa utilização/litigância de má fé de cada uma das partes” – e realizada audiência final de julgamento, o Juiz 2 do Juízo Central Cível de Sintra proferiu sentença, na qual julgou a acção parcialmente procedente e, assim, condenar o Réu: “a) a permitir que o imóvel seja utilizado pela Autora do mesmo modo que o Réu; e b) no pagamento à Autora de um valor mensal correspondente a metade (1.000,00 €) da renda mensal (2.000,00 €) que seria possível obter com o arrendamento, a terceiros, do imóvel e enquanto o Réu ocupar o imóvel, com exclusividade, desde a data da citação do Réu (8 de novembro de 2022) até à data de desocupação efetiva do imóvel que venha a ocorrer, a que acrescem juros de mora vencidos e os vincendos, desde essa mesma data e até integral pagamento; e absolver o Réu do demais peticionado pela Autora; e, bem assim, absolver cada uma das partes do pedido de litigância de má fé deduzido contra si pela parte contrária”.

6. Ambas as partes interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), que conduziu a ser proferido acórdão, no qual se concedeu provimento ao recurso do Réu, revogando a sentença recorrida na parte em que o condenou a pagar à Autora “um valor mensal correspondente a metade (1.000,00 €) da renda mensal (2.000,00 €) que seria possível obter com o arrendamento, a terceiros, do imóvel e enquanto o Réu ocupar o imóvel, com exclusividade, desde a data da citação do Réu (8 de novembro de 2022) até à data de desocupação efetiva do imóvel que venha a ocorrer, a que acrescem juros de mora vencidos e os vincendos, desde essa mesma data e até integral pagamento”, mantendo-se a sentença no mais, e se negou provimento ao recurso da Autora.

7. Inconformada, a Autora interpôs recurso de revista para o STJ, com fundamento no art. 671º, 1, sem prejuízo da invocação do art. 629º, 2, c) e d), do CPC, visando a revogação do acórdão recorrido, ao absolver indevidamente o Réu do pedido de compensação, por violação dos arts. 1403º, 2, 1406º, 1, 1407º, 3, assim como dos arts. 562º, 564º, 334º, 473º, do CCiv., e a repristinação da decisão de 1.ª instância com a devida correcção quanto ao momento inicial da compensação mensal de 1.000,00 €, devendo esta ser fixada desde Outubro de 2021, data da ocupação exclusiva do imóvel pelo Réu e privação do uso, e não apenas desde a citação, até à cessação da privação de uso – em suma, “condenação do Réu no pagamento de compensação mensal de €1.000,00 (mil euros) à Autora, montante correspondente, por equidade, a metade do valor locativo do imóvel, desde outubro de 2021 e até à sua efetiva desocupação, acrescido de juros moratórios vencidos e vincendos à taxa legal desde o vencimento de cada prestação mensal até integral pagamento”; subsidiariamente, pede a fixação por equidade de compensação mensal à Autora, desde a privação de uso em Outubro de 2021 até à cessação de tal privação, acrescendo juros de mora vencidos e vincendos.

*

Colhidos os vistos em cumprimento do art. 657º, 2, ex vi art. 679º, do CPC, cumpre apreciar e decidir.

II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS

1. Admissibilidade e objecto do recurso

1.1. Verificam-se os pressupostos de admissão da revista interposta pela Autora, ao abrigo dos arts. 629º, 1, e 631º, 1, atento o decaimento no pedido feito e decretado pelo acórdão recorrido, único segmento decisório que não é abrangido pelo impedimento da “dupla conformidade decisória” previsto no art. 671º, 3, do CPC, à luz dos arts. 671º, 1, e 674º, 1, a), do CPC.

Fica, pois precludida a análise da revista extraordinária tendo por base as als. c) e d) do art. 629º, 2, do CPC, ficando prejudicadas as Conclusões 7.4. e 7.7. (e respectivos subpontos) da revista, relativas a esta admissibilidade, uma vez que incidem sobre o mesmo objecto que é admitido em revista.

1.2. Vistas as Conclusões da revista (arts. 635º, 2 a 4, 639, 1 e 2, CPC), o objecto da revista incide sobre o decidido na al. b) do dispositivo da sentença de 1.ª instância, revogado pelo acórdão recorrido, quanto ao direito de compensação da Autora pelo não uso do imóvel em compropriedade por parte do Réu, com base nos arts. 1406º e 1407º do CCiv., assim como ao período de contagem de juros sobre o montante fixado como compensação pela utilização do imóvel pelo Réu, questão prejudicada na sua apreciação pelo acórdão recorrido em face de tal revogação e consequente improcedência da apelação da Autora (assim se concluiu: “[p]rocedendo o recurso do R. na parte relativa à al. b) do dispositivo, (…) necessariamente improcede também o recurso da Autora quanto ao momento da contagem dos juros, isto é, o recurso na sua totalidade.”]

Do objecto do recurso não faz parte a fundamentação desse direito à luz do art. 473º do CCiv., alegada pela Recorrente nas Conclusões 7.6.19 (na parte correspondente) e 7.6.21., uma vez que a aplicação do regime do “enriquecimento sem causa” é questão nova – e, portanto, insusceptível de conhecimento – em face do decidido pela Relação e agora reapreciado em revista.

2. Factualidade assente

1. Foram considerados provados os seguintes factos:

1. Por escritura de doação outorgada em 9-12-2016, a mãe dos ora Autora e Réu declarou doar-lhes, por conta da sua quota disponível, em partes iguais e livre de ónus ou encargos, o prédio urbano, sito na Localização 1, Ericeira, Concelho de Mafra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Mafra sob o n.º ..87, da freguesia da Ericeira e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ..95; tendo, aqueles Autora e Réu, declarado aceitar a doação.

2. A propriedade do prédio urbano situado naLocalização 1, composto de casa de cave, R/C, 1º andar e sótão para habitação com 175 m2 – anexo para garagem com 52 m2 e logradouro com 235 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Mafra, freguesia da Ericeira, sob o nº ...........11 e inscrito na matriz predial urbana sob o artº ..95, mostra‑se inscrita em nome dos aqui Autora e Réu na proporção de ½ para cada um, por ter sido adquirida por doação (Ap. .46 de 2016/12/14).

3. Conforme descrito na respetiva matriz predial urbana, sob o artº ..95, este trata-se de prédio em propriedade total sem andares nem divisões suscetíveis de utilização independente, destinado à habitação de um “locatário” composto de cave com garagem, wc, 1 assoalhada e arrecadação, no r/c três assoalhadas, cozinha, despensa, 2 wc, no 1º andar com 3 assoalhadas, 2 wc e pequeno terraço e no sótão com 3 assoalhadas, dependência anexa para garagem e logradouro.

4. O acesso à moradia faz-se designadamente pela porta da frente.

5. O acesso da cave ao rés-do-chão e deste piso ao 1.º andar é feito pelas escadas interiores da moradia.

6. O acesso ao sótão é feito por umas escadas interiores do 1.º andar para o sótão.

7. O valor patrimonial do Imóvel encontra-se fixado em 268.010,00 €, por avaliação feita pela Autoridade Tributária em 2015.

8. O valor de mercado da moradia não será inferior a 400 000, 00 euros.

9. A moradia em apreço poderá ser arrendada pelo menos, pelo valor mensal de 2 000, 00 euros.

10. A Autora propôs ao ora Réu que colocassem o imóvel à venda e repartissem entre ambos o produto da venda, em igual medida; proposta que fez, pelo menos, em 26/11/2021; correspondendo, essa pretensão de venda a terceiros, o único destino que a Autora pretende dar à moradia.

11. O ora Réu nunca equacionou a proposta de venda do imóvel a terceiros; e entende não ter meios que lhe permitam adquirir a metade da propriedade da ora Autora; pretendendo, contudo, continuar a utilizar o imóvel para sua habitação, contra a vontade da ora Autora e sem lhe prestar qualquer contrapartida.

12. Desde outubro de 2021, o Réu passou a habitar ininterruptamente no imóvel.

13. O ora Réu dorme no quarto do 1.º andar do imóvel acima descrito, com casa de banho e vista de mar.

14. O aqui Réu utiliza a cozinha e nela confeciona as suas refeições.

15. O Réu utiliza a sala de jantar para refeições e a sala de estar para ver televisão e ter momentos de lazer.

16. O Réu ocupa um quarto do 1.º andar do imóvel acima descrito como escritório, com secretária e computador, onde desenvolve a sua atividade profissional e passa momentos de lazer.

17. O Réu tem aparcados na garagem do imóvel dos autos o seu veículo automóvel, a sua mota e a sua bicicleta.

18. Pelo menos, nos anos de 2022 e 2023, o ora Réu deu de arrendamento o seu apartamento em Lisboa, a terceiros, recebendo as correspondentes rendas, no valor mensal de 1 500, 00 euros.

19. A ora Autora propôs, contra o aqui Réu, ação de divisão de coisa comum incidente sobre o imóvel objeto destes nossos autos, ação que se mostra distribuída ao Juízo Local Cível de Mafra deste Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste sob o nº 10101/22.9T8SNT.

20. A acima indicada cave do imóvel foi disponibilizada, em certa altura, pelos pais de Autora e Réu, para habitação de um hóspede, tratando-se de um espaço com um quarto com cerca de 5 m2, uma casa de banho e uma garagem com um espaço para um carro, além de um espaço com um lava loiça em pedra.

21. A ora Autora casou com CC em 5 de abril de 1997 e, com o consentimento dos pais de Autora e Réu, o casal passou a viver com exclusividade no último andar do imóvel, ou seja, no sótão.

22. Para esse efeito, a ora Autora e seu marido realizaram as obras que acharam convenientes e que se mostraram possíveis.

23. O casal residiu nesse local durante sete anos; tendo mudado de residência por altura do nascimento do terceiro filho, por decisão própria.

24. A ora Autora edificou uma escadaria exterior à moradia que dá acesso ao 1º andar desta; andar pelo qual, por meio de uma escada de caracol aí existente, como antes referido, se acede ao referido sótão em que a Autora e o seu agregado familiar residiram.

25. No cimo dessa escadaria, acede-se por uma porta ao 1º andar da moradia; porta, essa, que está protegida por um alpendre edificado na parte superior das acima referidas escadas.

26. Esse andar da moradia (sótão) tem uma instalação própria ao nível de água e, quando em utilização, tem associado um contrato de fornecimento de água diferente do resto do prédio.

27. Fruto de alterações feitas pela própria autora, de acordo com as suas conveniências e em vista da satisfação de necessidades de habitação de um agregado familiar distinto, como o fez, o sótão do imóvel em causa é dotado de uma área de cozinha (ou kitchenette) lareira, dois quartos (um sem janela, mas, em que a Autora instalou uma janela velux; e ambos, esconsos) casa de banho e espaço comum ou sala.

28. A Autora considerou que o pé direito do sótão era adequado à sua residência e do seu agregado familiar no local considerando que aí residiu pelo período de sete anos.

29. Residindo nesse espaço do sótão, a Autora tinha vista de mar.

30. A outra parte da casa era utilizada pelos pais de Autora e Réu, enquanto vivos e pelo Réu, pelo menos, até cerca do ano de 2006.

31. Embora tivesse residência própria, até ao falecimento de sua mãe, o aqui Réu permanecia, com pernoita, na casa em questão nos autos, concretamente, algumas noites, quando ambos os pais eram vivos; e muitas vezes, aos fins-de-semana, após a morte de seu pai.

1. Julgaram-se não provados os seguintes factos:

1. O ora Réu impede a aqui Autora de usar o imóvel em apreço nos autos concretamente para habitação desta.

2. A ora Autora pretende dar o imóvel objeto dos autos, de arrendamento a terceiros e o Réu, com a sua conduta, impede a Autora de o fazer.

3. O sótão do imóvel em causa tem um contador de eletricidade independente.

4. O espaço do sótão do imóvel beneficia de licença de habitação.

5. O imóvel em causa dispõe de três frações autónomas.

6. Depois da doação do imóvel ao réu e à autora na proporção de ½ a cada um era pacificamente entendido por todos que a Autora poderia fazer o uso que entendesse da parte que autonomizou e que o reu podia continuar a residir (à data, a meio tempo) com a mãe na outra parte do prédio doado.

7. O prédio com as divisões reais que lhe foram feitas, com três espaços distintos destinados à satisfação de necessidades habitacionais, fica valorizado, quer considerando a possível venda quer o arrendamento, duplicando o valor do prédio no mercado imobiliário.

3. Apreciação de direito

3.1. Ao contrário do decidido pela 1.ª instância, a Relação considerou que a Autora não tinha direito, enquanto comproprietária do imóvel, a qualquer direito que a compensasse da utilização pelo Réu do imóvel titulado por ambos em compropriedade.

Fundamentou assim:

“Para o Réu não faz sentido algum fixar-se-lhe um valor de compensação a pagar à irmã, porque está provado que ele não a impede de utilizar o imóvel. A questão do Réu não é a do recurso à equidade, para a fixação do valor, mas a própria questão da compensação, que entende que não tem que fazer porque não impede – o próprio tribunal o disse – a irmã de usar o imóvel. Adicionalmente o Réu entende que, a haver condenação, tem de ser meramente simbólica, e entende ainda que a contagem dos juros deverá iniciar-se a partir de cada mês em que seja devida alguma compensação.

Lê-se com efeito na sentença recorrida, já a finalizar, a síntese “No caso dos autos, cremos assim, como exposto, que é lícita a utilização, pelo Réu, da moradia, para sua habitação, de modo que não existirá fundamento para o condenar numa indemnização com fundamento em responsabilidade civil, por habitar o imóvel. Mas constatamos, nos termos igualmente expostos, que essa posição processual do Réu, priva a Autora/comproprietária de retirar quaisquer benefícios do facto de ser comproprietária do imóvel em apreço. Consequentemente, admite-se a utilização do imóvel pelo Réu, mas, julga-se equilibrado e justo que este Réu compense a comproprietária por esse seu uso exclusivo”.

O artigo 1305º do Código Civil dispõe que: “O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”, e o artigo 1403º nº 1 do Código Civil dispõe que: “Existe propriedade em comum, ou compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa”, sendo ainda que, nos termos do nº 2 do mesmo preceito “Os direitos dos consortes ou comproprietários sobre a coisa comum são qualitativamente iguais, embora possam ser quantitativamente diferentes; as quotas presumem-se, todavia, quantitativamente iguais na falta de indicação em contrário do título constitutivo”. Já o artigo 1406º nº 1 do Código Civil estabelece que “1. Na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contanto que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito”.

Finalmente, o artigo 1407º do Código Civil estabelece, nos seus números 1 e 2, que “1. É aplicável aos comproprietários, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 985.º; para que haja, porém, a maioria dos consortes exigida por lei, é necessário que eles representem, pelo menos, metade do valor total das quotas. 2. Quando não seja possível formar a maioria legal, a qualquer dos consortes é lícito recorrer ao tribunal, que decidirá segundo juízos de equidade. (…)”.

Relativamente ao poder do proprietário de dispor livremente da coisa, verificamos que na compropriedade tal possibilidade desde logo não existe, porque o que pertence ao comproprietário é uma quota, e não a coisa em si, e a alienação de parte especificada da coisa comum está vedada sem o consentimento dos demais comproprietários – artigo 1408º do Código Civil.

Como, por outro lado, ninguém é obrigado a permanecer na indivisão, para o comproprietário que queira apenas servir-se da coisa mediante a sua disposição, a sua venda, trocando, por assim dizer, a coisa, por dinheiro, o caminho jurídico, na falta de acordo com os seus consortes, é a acção de divisão de coisa comum.

Para, concretamente, a serventia que se apurou nos autos que a Autora queria dar à casa – apenas vendê-la, não usá-la, não arrendá-la – o caminho já foi iniciado e está pendente. A lei não estabelece a favor do comproprietário que queira dividir ou chegar à indivisão que permite a alienação a um só ou a terceiro, qualquer mecanismo compensatório pelo tempo que a acção de divisão dure e até que se obtenha a sentença que permita o resultado desejado.

Vamos então ao uso.

O artigo 1305º do Código Civil, acima transcrito, distingue claramente entre os poderes de uso e de disposição. Donde, quando nos deparamos com o artigo 1406º do mesmo diploma, a referência a uso não pode significar usar ou dispor, usar ou vender. Quer isto dizer que usar, é dar uso, à coisa, sem dispor dela, mantendo-a, usando-a segundo as potencialidades de uso que ela dá, ou seja, no caso de uma casa de habitação, habitando-a, temporária ou permanentemente, acedendo a ela, passando tempo nela, arrendando-a, arrendando-a por períodos maiores ou menores.

Está provado no presente caso que a Autora não quer usar a casa, habitando-a, ou passando nela períodos temporários, e que também não quer arrendar a casa a terceiros, e que nem sequer quer arrendar a casa ao Réu, pois que se opõe à utilização que este faz da casa. De resto, repare-se, o pedido de condenação do Réu a pagar uma compensação foi feito a título de indemnização pela ocupação não autorizada e, segundo a Autora, ilícita. Isto é tão claro quanto no recurso da A., como veremos, ela invoca precisamente a responsabilidade por facto ilícito para marcar a data do facto ilícito como termo inicial da contagem de juros de mora.

Está claro, nos autos, que não há acordo quanto à utilização da casa comum. O elemento “Na falta de acordo” constante do artigo 1406º já referido, tanto significa a pura e simples não existência de acordo – nem sequer foi falado – como a oposição dalgum comproprietário ao uso que algum outro faça.

A oposição por parte dum comproprietário ao uso que outro esteja a fazer da coisa, torna a ocupação ilícita? Respondeu a sentença julgando improcedente o primeiro pedido da Autora – condene o R. a desocupar – pois que os direitos de cada consorte são qualitativamente iguais.

Continuemos no artigo 1406º: as restrições à licitude do comproprietário se servir da coisa – e a coisa não é a quota, e por isso o uso pode ser total e exclusivo – são o não emprego dela para fim diferente daquele a que se destina, e que “não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito”.

Dispensamo-nos da dissertação sobre a jurisprudência relativamente à caracterização da privação de uso, porque não está em causa no recurso do Réu e não está também em causa no recurso da Autora (que incide sobre contagem de juros, sem na realidade pôr em causa a conclusão do tribunal recorrido sobre a licitude do uso feita pelo R.). Assentemos que a privação de uso é apurada em concreto competindo ao lesado alegar e provar os factos que a integram. “Esse uso que fazes, porque o fazes, não o posso eu fazer, que o queria fazer, por isso insto-te a que pares” – ora isto falha precisamente no presente caso, em que, apesar de até haver condições, embora não idênticas, para o uso da casa por ambas as partes, está provado que a A. não quer habitar a casa nem quer arrendá-la, só querendo vendê-la. É indiferente que a A. não concorde com a ocupação feita pelo Réu e que lho tenha comunicado, porque não lhe comunicou que queria fazer a mesma utilização.

Neste sentido, veja-se o seguinte trecho do Ac. TRL proferido no processo 1690/12.7TBMTA.L1-1 em 12-04-2016 (Pedro Brighton): “Nessa situação, embora o gozo pelos demais consortes não seja materialmente possível, os mesmos não estão dele privados porque não o pretendem em concreto exercer e enquanto tal se verificar. Caso o pretendam, podem fazer cessar de imediato a utilização exclusiva, pela declaração dessa pretensão. Quando a mesma não seja acatada, cessa a licitude da utilização, na medida em que passa a ocorrer privação do gozo pelo consorte em violação do disposto no artº 1406º nº 1 do Código Civil”.

Donde, temos de confirmar a sentença quando, percorridos os requisitos que condicionam a licitude do uso exclusivo da coisa por um comproprietário só, na falta de acordo quanto ao uso, conclui que o R. podia fazer o uso que fez e faz, conclui, portanto, pela licitude da conduta do R.

Se a conduta é lícita, se ele está no seu direito, como, através de que mecanismo jurídico, é ele condenado a compensar a A. por metade do valor de uma locação?

Através do mecanismo da responsabilidade civil – artigos 483º e seguintes do Código Civil – não pode ser, porque falha precisamente o requisito da ilicitude.

Então através de que outro mecanismo? Através do artigo 1407º nº 2 do Código Civil. Este preceito refere-se a administração da coisa e não a uso. Podemos equiparar? Ao remeter para as regras da administração de uma sociedade e ao colocar-se perante a impossibilidade de formar uma maioria decisória, num caso, como o concreto, em que há dois comproprietários com quotas iguais, voltamos a estar perante uma “Na falta de acordo”. Na falta de acordo pedimos ao tribunal – artigo 1407º – que decida o quê, por equidade? Qual a administração que vai ser feita. Em lado algum do preceito se referem compensações. Quer isto dizer: – temos de ter um comproprietário que diz que quer usar/administrar a coisa de determinada maneira – por exemplo residindo nela – e temos de ter outro comproprietário que exprima a sua vontade administrativa ou de uso na fórmula “eu quero que a coisa renda dinheiro” por isso, tribunal, condene o residente a pagar-me a parte do todo da renda que, se estivéssemos de acordo em alugar a terceiro, receberíamos.

Serve isto a dizer que não se concebe que o tribunal condene um dos consortes que usa licitamente a coisa, a compensar o outro ou outros, sem que estes lhe peçam.

Não é caso dos autos: o pedido feito quanto a compensação assenta na ocupação ilícita e é feito até à desocupação, que era objecto do primeiro pedido formulado pela Autora. Esta desocupação nada tem com a eventual desocupação que o R. venha a fazer em resultado da acção de divisão de coisa comum.

A jurisprudência que a sentença cita – Ac. TRL de 26.5.22 (Nelson Borges Carneiro) e Ac. STJ de 27.9.2018 (Conselheira Graça Trigo) – não tem de facto, como bem nota o recorrente, aplicação ao caso concreto, pois que no primeiro caso, se concluiu, a partir da licitude da utilização feita pelo comproprietário, por não lhe ser devida qualquer indemnização, e no segundo caso acabou a haver acordo quanto à utilização da casa por um comproprietário pedindo a autora o pagamento da compensação.

Consequentemente, não logramos alcançar como, sem pedido, possamos confirmar a sentença na parte em que condenou o Réu a pagar à Autora “um valor mensal correspondente a metade (1.000,00 €) da renda mensal (2.000,00 €) que seria possível obter com o arrendamento, a terceiros, do imóvel e enquanto o Réu ocupar o imóvel, com exclusividade, desde a data da citação do Réu (8 de novembro de 2022) até à data de desocupação efetiva do imóvel que venha a ocorrer, a que acrescem juros de mora vencidos e os vincendos, desde essa mesma data e até integral pagamento”.

3.2. Julgamos ser de aderir aos fundamentos do acórdão recorrido, sufragando o seu resultado decisório em aplicação do art. 663º, 5, ex vi art. 679º, do CPC.

Apontemos as razões.

(I) As instâncias comungam de um dado fáctico-jurídico essencial: a ocupação pelo Réu de partes do imóvel – 1.º andar e “anexo para garagem”: cfr. factos provados 3. (“prédio em propriedade total sem andares nem divisões suscetíveis de utilização independente, destinada à habitação”), 12. a 17. – em compropriedade com a Autora, nas condições em concreto demonstradas, não configura qualquer ilicitude no exercício das faculdades jurídicas inerentes à compropriedade.

A 1.ª instância enquadrou bem o regime legal aplicável:

“Conforme o art. 1403, nº 1, do Código Civil, existe propriedade em comum, ou compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa.

É o caso dos nossos autos, em que o direito de propriedade sobre o imóvel aqui em causa se mostra inscrita no registo predial em nome de ambos (Autor e Ré) por a terem adquirido por doação, no ano de 2016.

Os direitos dos consortes ou comproprietários sobre a coisa comum são qualitativamente iguais, embora possam ser quantitativamente diferentes; as quotas presumem-se, todavia, quantitativamente iguais na falta de indicação em contrário do título constitutivo – nº 2, deste art. 1403º.

E, assim, na situação aqui em apreço, Autora e Réu são comproprietários com quotas quantitativamente iguais: cada um, na proporção de 50%.

Os comproprietários exercem, em conjunto, todos os direitos que pertencem ao proprietário singular; separadamente, participam nas vantagens e encargos da coisa, em proporção das suas quotas – art. 1405º, nº 1, do Código Civil.

Mais se sabe que qualquer comproprietário, na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, pode servir-se do imóvel (de que é comproprietário) contanto que o não empregue para fim diferente daquele a que o imóvel se destina e que não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito – art. 1406º, nº 1, do Código Civil.”

Neste contexto, quando os comproprietários não dispõem sobre o poder ou faculdade de «uso da coisa comum», nomeadamente por falta de acordo para o efeito, a lei permite a todo o comproprietário o exercício individual desse “uso”, enquanto “utilização directa da coisa ou como aproveitamento imediato das aptições naturais dela”1objecto de incidência do art. 1406º do CCiv.

O art. 1406º, 1, do CCiv. estabelece de forma clara a regra do exercício singular do poder ou faculdade de uso sobre a coisa, que recai sobre a posse do objecto comum: «a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela» (na decorrência do art. 1405º, 1, 2.ª parte, do CCiv., facultando a actuação autónoma de cada titular da comunhão: «nos termos dos artigos seguintes)2.

Os limites da licitude desse exercício são (1) a desconformidade ou desrespeito do uso com o fim a que a coisa se destina e (2) a privação ou o impedimento do uso ao outro ou outros comproprietários que têm direito concorrente ao uso; se assim não se provar, a actuação singular é lícita.

Assim, se o Réu, como comproprietário, “usa” para o fim adequado3 (no caso, habitação: cfr. factos provados 2. e 3.) “partes” do prédio em compropriedade e não actua em obstáculo (por ex., vedando o acesso ao prédio) a que o outro comproprietário “use” outra ou outras “partes” do prédio, sempre no âmbito do exercício das suas “quotas” quantitativamente iguais (metade-metade) – art. 1403º, 2, do CCiv. –, não está a revelar qualquer ocupação ilegítima à luz da titularidade e posição jurídica de comproprietário, mesmo que em certo momento seja o único a exercer efectivamente essa posição jurídica e a correspondente faculdade de uso sobre a totalidade da coisa em si mesma, seja qual for, à partida e sem mais, a quota correspondente ao seu direito na contitularidade4 (em conjunto com o art. 1305º, 1, CCiv.).

Logo, se não se demonstra, como não se demonstrou, que a Autora-comproprietária pretendeu exercer em concreto esse “poder de uso”, no contexto da sua finalidade enquanto prédio urbano, durante o período de utilização e fruição do prédio pelo Réu-comproprietário, ininterrupta desde Outubro de 2021, e esse pretendido uso – que até poderia ser o de uso das “partes” usadas pelo outro comproprietário, aqui Réu – tenha sido privado ou impedido ilegitimamente – nomeadamente quando se comprova que tinha a Autora deixado de utilizar uma outra “parte” do prédio, para habitação permanente da sua família, em 2004 (“sótão”: cfr. factos provados 2., 20. a 29.), antes de ser comproprietária pela doação feita mais tarde (então com o consentimento de pais e irmão, aqui Réu) –, não há sequer que averiguar se o outro comproprietário, ao usar outra ou outras “partes” do prédio, está a usar ilicitamente da coisa titulada em compropriedade – pois não há qualquer acto ilícito a considerar no exercício da compropriedade a título de uso-posse.

Isto também quer significar que o uso do bem por qualquer comproprietário não fica ferido de qualquer licitude se, na falta de consenso para um uso simultâneo e acordado previamente, o comproprietário interessado o usa – participando da “vantagem” sobre a coisa, enquanto “actuação isolada de cada um dos contitulares” e “de harmonia com a medida da fracção ideal de cada um deles no direito de propriedade sobre a dita coisa”: art. 1405º, 1, 2.ª parte, CCiv.5 – e não pode ser privado de o usar se o outro comproprietário não o quer usar ou, querendo, não é impossibilitado de o fazer.

E usa uma “parte” sem censura, desde que a «parte especificada» da coisa comum não seja alienada nem onerada sem consentimento do consorte, uma vez tido em linha de conta o art. 1408º, 1 e 2, do CCiv.

E usa tal “parte” sem que tal possa ser qualificado como «posse exclusiva» ou «posse de quota superior à dele», nos termos gerais do art. 1406º, 2, do CCiv.

Por isso é que a 1.ª instância andou no trilho certo, desde logo para julgar improcedente o pedido de condenação do Réu a deixar de habitar o imóvel:

“(…) é lícita a utilização exclusiva da coisa em compropriedade por um dos consortes, mesmo quando a coisa não seja suscetível de utilização simultânea por todos; e porque a melhor interpretação do artº 1406º nº 1 do Código Civil será aquela que implica que a utilização exclusiva apenas esteja vedada quando, em concreto, o uso por um comproprietário, prive o outro de usar a coisa numa concreta utilização pretendida.

E a verdade é que, no caso dos autos, a Autora (comproprietária) manifestamente não pretende usar a moradia para habitação (independentemente dos cómodos mais ou menos autónomos de que esta dispõe) ou para qualquer outro fim, como o arrendamento a terceiro ou outro.

(…) a Autora apenas pretende dispor do seu direito de compropriedade, vendendo a moradia em apreço; não pretendo usá-la ou dela fruir, por meio de arrendamento.

(…)

O que sucede é que os dois comproprietários (Autora e Réu) não conseguem obter consenso quanto ao destino a dar à moradia de que ambos são comproprietários. O Réu acha que tem direito a habitá-la. E nos termos acima expostos, diremos que, concretamente, nas circunstâncias de facto aqui em causa, sim, tem esse direito. E a Autora pretende vender o imóvel, assim, o rentabilizando, com proventos para ambos.”

Conduzindo, assim, à coincidência e apoio do acórdão recorrido:

“Está claro, nos autos, que não há acordo quanto à utilização da casa comum. O elemento “Na falta de acordo” constante do artigo 1406º já referido, tanto significa a pura e simples não existência de acordo – nem sequer foi falado – como a oposição dalgum comproprietário ao uso que algum outro faça.

A oposição por parte dum comproprietário ao uso que outro esteja a fazer da coisa, torna a ocupação ilícita? Respondeu a sentença julgando improcedente o primeiro pedido da Autora – condene o R. a desocupar – pois que os direitos de cada consorte são qualitativamente iguais.

Continuemos no artigo 1406º: as restrições à licitude do comproprietário se servir da coisa – e a coisa não é a quota, e por isso o uso pode ser total e exclusivo – são o não emprego dela para fim diferente daquele a que se destina, e que “não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito”.

(…)

Assentemos que a privação de uso é apurada em concreto competindo ao lesado alegar e provar os factos que a integram. “Esse uso que fazes, porque o fazes, não o posso eu fazer, que o queria fazer, por isso insto-te a que pares” – ora isto falha precisamente no presente caso, em que, apesar de até haver condições, embora não idênticas, para o uso da casa por ambas as partes, está provado que a A. não quer habitar a casa nem quer arrendá-la, só querendo vendê-la. É indiferente que a A. não concorde com a ocupação feita pelo Réu e que lho tenha comunicado, porque não lhe comunicou que queria fazer a mesma utilização.

(…)

Donde, temos de confirmar a sentença quando, percorridos os requisitos que condicionam a licitude do uso exclusivo da coisa por um comproprietário só, na falta de acordo quanto ao uso, conclui que o R. podia fazer o uso que fez e faz, conclui, portanto, pela licitude da conduta do R.”

Posto isto, não vemos como ter base jurídica para lograr vencimento a pretensão da Autora que, uma vez tendo ganho de causa em condenar o Réu “a permitir que o imóvel seja utilizado pela Autora do mesmo modo que o Réu” (caso julgado material assim formado), seja ressarcida, em sede de responsabilidade civil extra-negocial (nomeadamente por força de actuação abusiva decorrente do art. 334º do CCiv., conducente à aplicação do art. 483º, 1, do CCiv.), ao pagamento de um valor mensal correspondente a metade (1.000,00 €) da renda mensal (2.000,00 €), que seria possível de obter pelo arrendamento a terceiros do imóvel e que corresponderia, pelo menos, ao prejuízo da Autora resultante da conduta abusiva e ilícita do Réu desde outubro de 2021 – o que, à luz do art. 1406º, 1, do CCiv. não subsiste.

(II) No entanto, poderia julgar-se que o art. 1407º, 1 e 2, do CCiv. apontará – como apontou a decisão de 1.ª instância – para uma solução sucedânea à da responsabilidade civil, fundada na equidade e legitimada pela falta de acordo dos comproprietários quanto ao destino da coisa comum e à indisponibilidade da Autora para coincidirem simultaneamente no uso (mesmo que não estritamente habitacional); aliás, falta de acordo essa já traduzida processualmente numa acção de divisão de coisa comum pendente, resultante do direito acionado pela Autora nos termos dos arts. 1412º e 1413º do CCiv. e 925º e ss do CPC – cfr. factos provados 10., 11. e 19 (e devidamente salientado no acórdão recorrido).

Vejamos.

Prescreve assim essa normatividade:

«1 – É aplicável aos comproprietários, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 985.º; para que haja, porém, a maioria dos consortes exigida por lei, é necessário que eles representem, pelo menos, metade do valor total das quotas.

2 – Quando não seja possível formar a maioria legal, a qualquer dos consortes é lícito recorrer ao tribunal, que decidirá segundo juízos de equidade.

3 – Os actos realizados pelo comproprietário contra a oposição da maioria legal dos consortes são anuláveis e tornam o autor responsável pelo prejuízo a que der causa.»

Estamos aqui perante a regulação da administração da coisa em titularidade comum, destinada à conservação, beneficiação e fruição da coisa, diferentemente do uso da coisa comum, regulado, como vimos, no art. 1406º do CCiv.6.

O n.º 1, em face da remissão para o regime da sociedade civil, “estabelece a regra do exercício solidário do poder de administrar o objeto comum, reconhecendo a qualquer comproprietário legitimidade para praticar atos de administração com eficácia coletiva. Simultaneamente, no entanto, concede-se aos outros consortes um poder de oposição”, que “requer uma decisão maioritária a dois níveis. Ela deve expressar a vontade da maior parte dos consortes que simultaneamente representem pelo menos metade do valor total das quotas.” De tal modo que, “[n]a falta de acordo prévio sobre a administração da coisa e verificando-se uma situação de impasse por não se conseguir formar maioria relativamente a determinado aspeto da administração do bem comum, o n.º 2 do artigo aqui em exame faculta a qualquer comuneiro o poder de se dirigir a tribunal e pedir a resolução desse impasse, “segundo juízos de equidade”, uma vez que, julgando-se sobre “adequação, conveniência e oportunidade, faz sentido decidi-la à luz da equidade (art. 1002.º do CPC)”7 – ou seja, superando o impasse através de um processo de jurisdição voluntária de “suprimento” e só através deste processo.

Ora, no caso dos autos, não se discute – atento o pedido da Autora – qualquer acto singular do comproprietário Réu que, a pretexto de um alegado uso exclusivo sobre a coisa comum, tenha incidido sobre a administração do prédio – o que seria legítimo enquanto poder solidariamente exercido com os restantes comproprietários (por ex., pinturas, colocação de elevadores, corte de árvores no “logradouro”, demolição de paredes, em geral obras de melhoramento ou inovação ou alterações estruturais, locações das suas “partes” autónomas, etc.).

E, por isso, não se discute qualquer oposição ou veto por parte da outra comproprietária Autora a esse acto ou actos de administração, que, na falta de formação – ou da possibilidade de formação – da maioria legal para o efeito em razão de uma compropriedade com quotas quantitativamente iguais, possa ser suprido por uma decisão judicial com recurso à equidade.

E, por fim, não se discute qualquer responsabilidade a cargo do Réu pela realização de actos de administração contra a oposição da maioria, se ocorridos prejuízos dessa conduta, nos termos do n.º 3 do art. 1047º. E só esta responsabilidade pode ser fundada nos exactos termos de uma conduta ilícita quanto à administração da coisa comum não consentida pela maioria (ou, por maioria interpretativa de razão, pelo contitular igualitário) e, como tal, violadora de um dever especial de conduta para com os consortes na compropriedade8 (ou, independente disso, se for o caso, causadora de proveitos injustificadamente recebidos no contexto de uma contitularidade de repartição).

Logo, não há lugar no caso dos autos à aplicação do art. 1407º do CCiv.

(III) O que a Autora alega é, no que toca ao uso-posse do prédio, e só quanto a esta faculdade jurídica secundária do direito de compropriedade9, que o Réu é o único a usar a coisa comum, mesmo que não seja a totalidade, e quereria sustar essa utilização para dar azo à (por si pretendida) alienação do imóvel.

Porém.

O que ficou demonstrado é a falta de acordo dos comproprietários quanto à destinação e rentabilização da coisa em compropriedade – a Autora quer vender a terceiros; o Réu não quer e pretende manter-se a usar o prédio – cfr. factos provados 10. a 12.

O que não ficou demonstrado foi que o Réu impeça a Autora de usar o imóvel, concretamente para a habitação desta – cfr. facto não provado 1. – ou outra finalidade compatível com a afectação do prédio.

O que não ficou demonstrado foi que o Réu impeça a Autora de arrendar o imóvel a terceiros – cfr. facto não provado 2.

O que não ficou demonstrado foi que o Réu pretenda ou exerça o seu direito com a intenção de possuir a coisa comum como proprietário único e de forma exclusiva (ou excludente do outro comproprietário) ou como comproprietário de uma quota superior à que lhe pertence – cfr. facto não provado 1.

E, assim sendo, só no art. 1406º, 1, poderia a Autora fundar uma ilicitude susceptível de gerar uma responsabilidade, indemnizatória ou compensatória, quanto ao uso da coisa comum.

E, consequencialmente, vista a materialidade factual assente:

a. a Autora não demonstra que tenha havido qualquer manifestação de vontade com pretensão sua para usar a coisa e tenha sido impedida ou privada do uso pretendido pelo Réu;

b. a Autora não demonstra que tenha havido qualquer acordo que estipulasse a proibição de divisão material e de uso privativo de parcelas da coisa comum, neste sentido obviando à sua pretensão de uso, a que tem direito como comproprietária;

c. a Autora não demonstra que tenha havido qualquer entendimento sobre o uso exclusivo de todo o prédio a favor Réu, do qual resultasse que este ficaria obrigado a compensar a inerente privação do uso a que a Autora ficaria sujeita na sua “quota-parte”.

E, ainda e por fim, assiste à Autora, por isso, o direito potestativo a pôr termo à compropriedade, isto é, a dissolução da situação de contitularidade, sendo que um dos meios de divisão disponíveis é justamente a alienação a um terceiro (sendo a coisa “indivisível”), repartindo-se o produto na proporção das respectivas quotas (art. 925º do CPC)10.

Falecem, por isso e em conjunto, as Conclusões pertinentes 7.2.1. a 7.4.3., 7.6.1 a 7.6.16., 7.6.19. (na parte apreciada) e 7.6.20. da revista.

3.3. Assim concluído, prejudicada fica, como prejudicada ficou na decisão da apelação da Autora, a questão do período de contagem dos juros devidos à indemnização ou compensação, uma vez esta rejeitada no caso concreto, em aplicação do art. 608º, 2, 1.ª parte, ex vi arts. 663º, 2, e 679º, do CPC (Conclusões 7.6.17. e 7.6.18. da revista).

III) DECISÃO

Em conformidade, julga-se improcedente a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente (art. 527º, 1 e 2, CPC).

STJ/Lisboa, 9 de Dezembro de 2025

Ricardo Costa (Relator)

Anabela Luna de Carvalho

Luís Espírito Santo

SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC)

____________________________________________________


1. PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, “Artigo 1406.º”, Código Civil anotado, Volume III (Artigos 1251.º a 1575.º), colab.: M. Henrique Mesquita, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1987 (reimp.), pág. 356.↩︎

2. ELSA VAZ SEQUEIRA, “Artigo 1406.º”, Comentário ao Código Civil. Direito das Coisas, coord.: Henrique Sousa Antunes, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2021, pág. 392.↩︎

3. Trata-se do “fim concretamente determinado pela afectação da coisa comum, podendo esta afectação resultar da lei, do título ou do acordo das partes ou provir da efectiva aplicação da coisa”, nada impedindo, de todo o modo, que “o comproprietário use a coisa para um fim diferente do seu fim usual, contanto que não prejudique a utilização dela para esta finalidade”: PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, “Artigo 1406.º”, ob. cit., pág. 358.↩︎

4. V. ELSA VAZ SEQUEIRA, “Artigo 1406.º”, ob. cit., pág. 394.↩︎

5. PIRES DE LIMA/ANTUNES, “Artigo 1405.º”, Código Civil anotado, Volume III (Artigos 1251.º a 1575.º), colab.: M. Henrique Mesquita, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1987 (reimp.), pág. 352.↩︎

6. V., ex professo, RUI PINTO DUARTE, Curso de direitos reais, 4.ª ed., Principia, Lisboa, 2020, pág. 73.↩︎

7. V., para a delimitação do âmbito da norma e transcrições de explicitação do seu conteúdo, ELSA VAZ SEQUEIRA, “Artigo 1407.º”, Comentário ao Código Civil. Direito das Coisas, coord.: Henrique Sousa Antunes, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2021, págs. 397-399.↩︎

8. ELSA VAZ SEQUEIRA, “Artigo 1407.º”, ob. cit., pág. 400.↩︎

9. Sobre as faculdades jurídicas secundárias, como “manifestações ou irradiações de direitos subjectivos existentes”, através das quais “juridicamente se desdobra o seu conteúdo ou o seu licere (o que é lícito ao titular desse direito, através e por força de tal mecanismo de autonomia” v. ORLANDO DE CARVALHO, Teoria geral do direito civil, Centelha, Coimbra, 1981, págs. 92 e ss.↩︎

10. ELSA VAZ SEQUEIRA, “Artigo 1412.º”, Comentário ao Código Civil. Direito das Coisas, coord.: Henrique Sousa Antunes, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2021, pág. 425.↩︎