I. O contrato-promessa de compra e venda, não é suscetível de, só por si, transmitir a posse ao promitente comprador. Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário.
II. Os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, exceto achando-se invertido o título da posse; mas, neste caso, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título.
III. A factualidade apurada, só por si, evidencia que o autor não desconhecia que a sua situação jurídica perante a fração pretendida adquirir era precária e que seria necessário celebrar a escritura de compra e venda para que fosse efetivada a entrega do imóvel, sendo esta a condição para que o mesmo viesse a considerar extinto o seu direito de crédito.
IV. Mesmo que o imóvel tenha sido imediatamente entregue ao autor e que no contrato promessa se tenha feito referência ao pagamento integral do preço, não se nos afigura plausível conjeturar que o autor, ao ter acesso ao imóvel, tenha alguma vez agido com a convicção de que era já, naquele momento, seu proprietário, concretizando tal intencionalidade específica.
V. É o comportamento do próprio autor, posterior à não realização da escritura pública, com a declaração resolutiva do contrato promessa e a menção à perda de interesse na aquisição da fração, e, bem assim, com a invocação do direito de retenção por se intitular credor da sociedade e a propositura de ação de verificação de créditos no processo de insolvência, que o demonstra, de forma inequívoca e que afasta a presunção prevista no n.º 2 do art. 1252.º do Código Civil.
VI. O animus não se pode manter ou presumir contra os próprios atos do possuidor.
VII. O autor em todos os momentos processuais de que fez uso, assumiu a postura de titular de um direito de crédito e não a de titular de um direito de propriedade.
1-Relatório:
Por apenso ao processo de insolvência, contra a devedora Euro 2007 – Construção Civil, Lda., declarada insolvente por sentença datada de 06-06-2013, transitada em julgado em 01-07-2013, veio AA intentar ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra a Massa Insolvente da Empresa Euro 2007 – Construção Civil, Lda., representada pela Administradora de Insolvência BB, os Credores da identificada massa insolvente e a Insolvente Euro 2007 – Construção Civil, Lda., formulando os seguintes pedidos:
a) Que seja reconhecida a aquisição, originária, por usucapião, pelo autor, da fração H, incluindo o apartamento no 3.º andar esquerdo e o lugar de estacionamento na cave que a integra, do prédio sito na Rua 1, ... Cascais;
b) Que seja ainda ordenado o cancelamento de todas as inscrições, hipotecas e penhoras e/ou outras registadas na Conservatória do Registo Predial que ofendam a posse e a propriedade do autor, reconhecida e a justificar, por, além do mais, serem ineficazes.
A massa insolvente da devedora contestou a ação, tendo sido realizada audiência prévia na qual se apreciou a conveniência da tramitação conjunta do apenso H no apenso J, concretamente, da matéria da reconvenção daquele apenso H, única para cuja apreciação de mérito prosseguiam os referidos autos.
Alegou, em síntese, que a fração objeto do litígio está registada como propriedade da insolvente e está na posse do autor, ininterruptamente, desde outubro de 2005, com entrega da chave pelos sócios da insolvente imediatamente após a sua conclusão; usa e frui a fração, desde abril de 2006, por si ou através da sua filha, de forma pública, pacífica e de boa-fé, na convicção de que exerce um direito próprio; a referida fração foi dada ao A., nesse mês de Outubro de 2005, em cumprimento parcial de uma obrigação de dívida de honorários por serviços prestados; a posse passou a ser titulada em 11/10/2006, data em que foram reconhecidas as assinaturas das partes em acordo feito em 10/8/2006, tendo sido redigidos os termos do contrato promessa para formalizar o negócio enquanto, por falta de constituição da propriedade horizontal e passagem das licenças finais, não era possível realizar a escritura pública definitiva; o autor interpelou repetidamente a gerência e sócios da ora insolvente para celebração da escritura pública, interpelou ainda para comparência em cartório notarial para outorga da escritura; o A. acabou por demandar a insolvente, pedindo em juízo a devolução do sinal em dobro, através de ação que intentou em Abril de 2009, e que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste - Juízo Central Cível de Cascais - Juiz 1, sob o número de processo 2973/09.9TBCSC, pedindo a declaração de resolução do contrato e a restituição do sinal em dobro, que veio a ser julgada improcedente em 1ª instância, onde se considerou que a entrega do apartamento fora uma dação em pagamento de honorários; o recurso interposto veio a obter declaração de inutilidade superveniente por decorrência da sobrevinda declaração de insolvência da devedora, mas pode e deve considerar-se assente a decisão na parte do julgamento da matéria de facto, porquanto o A./ recorrente, não recorreu da matéria de facto; a atuação do autor enquanto promitente comprador que beneficiou da entrega do imóvel deve ser entendida como prática de atos de posse enquanto verdadeiro proprietário, concluindo que nem a declaração de insolvência, nem quaisquer vicissitudes do processo de insolvência (ainda pendente) se apresentam como passíveis de ter qualquer impacto na qualificação da posse ou na contagem do prazo prescritivo de aquisição.
A massa insolvente apresentou contestação, concluindo pela improcedência da ação e a consequente absolvição da ré Massa Insolvente do pedido.
Em 30.10.2024 foi proferido saneador-sentença que, conhecendo do mérito da causa, julgou a ação integralmente improcedente e absolveu os réus do pedido, ordenando-se o prosseguimento dos autos para apreciação do pedido reconvencional deduzido no apenso H.
Inconformado, o autor interpôs recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa, proferido acórdão, com o seguinte teor a final:
«Nos termos e fundamentos expostos, acordam as juízas desta secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente a apelação e, em consequência, em confirmar a decisão recorrida».
Uma vez mais inconformado, veio o autor interpor recurso de revista excecional para este STJ., concluindo as suas alegações:
1ª O presente recurso de revista, interposto nos termos dos arts. 671.º, n.º 1 e 672.º, n.º 1, al. a), e al. c) do CPC, visa a reapreciação de questões de manifesta relevância jurídica e com impacto na boa aplicação do Direito e a apreciação das contradições do douto aresto recorrido em relação a outros, já transitados em julgado, da mesma Relação de Lisboa e deste Supremo Tribunal de Justiça.
2ª Tal como referido na anotação ao art. 672.º, n.º 1, alínea a), do CPC, no Código de Processo Civil Anotado – Volume I: Parte Geral e Ação Declarativa, de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís F. P. Sousa (Almedina, 2018), justifica-se a admissibilidade da revista quando a questão jurídica suscitada, como acontece no presente caso, assume uma natureza paradigmática e ilustrativa, com relevância para além do interesse concreto das partes, sendo transponível para outras situações e contribuindo para a uniformização da jurisprudência.
3ª As questões jurídicas centrais no presente recurso — i. saber se, num caso, como o dos autos, em que que se discute a usucapião, a invocação de direitos de crédito por parte do possuidor descaracteriza automática e necessariamente a posse idónea para usucapir, dispensando as instâncias de julgar a demais matéria de facto alegada, de que se produziu e ofereceu prova; ii. saber se, no mesmo caso, a invocação do direito de retenção pelo mesmo possuidor opera a inversão do título da posse no sentido de ele deixar de ter a posse idónea para usucapir, passando a ter uma posse precária, ou simples detenção; iii. saber se, no mesmo caso, a invocação do direito de retenção pelo mesmo possuidor transforma automática e necessariamente o respectivo animus domini, ou possidendi em animus detinendi, próprio da mera detenção, dispensando as instâncias de julgar a demais matéria de facto alegada, de que se produziu e ofereceu prova — assumem um claro interesse de grande relevância social e jurídica, dado o impacto que pode ter na estabilidade e coerência do sistema jurídico e na solução de milhares de situações possessórias similares, frequentemente verificadas na prática.
4ª Face à jurisprudência do douto acórdão recorrido, torna-se, mais detalhadamente, claramente necessário o julgamento deste Supremo Tribunal para uma melhor aplicação do Direito, nos termos do art. 672º n. 3 a) do CPC, pelo menos, das seguintes questões jurídicas, ora reabertas por ele:
i. Se o disposto no art. 1263º a) do CC se refere ao momento da constituição, e se os respectivos requisitos devem considerar-se mantidos, nos termos do art. 1257º e até do 1254º n. 1 do mesmo código, ao longo de todo o prazo da duração da posse (até que se torne possível o exercício da usucapião que regularizará juridicamente o direito de propriedade) se não ocorrer entretanto «acto de terceiro capaz de transferir a posse» (cfr. art. 1265º in fine do CC) ou alguma das outras situações de perda da posse tipificadas no art. 1267º do CC;
ii. Se os casos de inversão do título da posse tipicamente previstos no art. 1265º CC devem ser considerados numerus clausus, ou são meramente exemplificativos.
iii. Se os casos de perda da posse juridicamente relevante tipicamente previstos nos arts. 1265º e 1267º CC de perda da posse devem ser considerados numerus clausus, ou, pelo contrário, meramente exemplificativos.
iv. Se a invocação, pelo possuidor, com posse idónea para usucapir, ou posse juridicamente relevante, de direitos de crédito relacionados com o prédio por si possuído na pendência da posse afasta liminarmente as presunções previstas nos arts. 1252º n. 2 e 1257º n. 2 do Código Civil (CC);
v. E é incompatível com o animus do exercício da sua posse como dono, implicando, automaticamente, a respectiva perda, ou que dela abdique.
vi. Se a invocação de direitos de crédito relacionados com o prédio e/ou a invocação do direito de retenção sobre ele porventura têm por consequência o abandono, pelo possuidor, para os efeitos do art. 1267º n. 1 a) do CC, ou o fim da duração da actuação correspondente ao exercício do direito, ou a possibilidade de a continuar, para os efeitos do art. 1257º a contrario do mesmo código;
vii. Se o reconhecimento dessa invocação dispensa liminarmente o conhecimento e julgamento da demais factualidade alegada pelo A e a prova que apresentou em juízo como possuidor;
viii. Tornando possível o julgamento do caso no saneador.
ix. Se a invocação do direito de retenção pelo possuidor constitui automaticamente, sem necessidade de ser verificada a situação de facto que lhe subjaz, uma inversão do título da posse a seu desfavor, transformando a posse juridicamente relevante, ou idónea para usucapir, em posse precária, ou mera detenção.
5ª O recorrente pretende ver reconhecida a existência de posse idónea para usucapir sobre a fracção em causa, com base na traditio da coisa ocorrida em 2005, a título de dação em cumprimento, com o acordo da anterior proprietária, antes e independentemente da celebração de contrato-promessa, em 2006 e de que este foi instrumental, só tornado conveniente pela demora da constituição da propriedade horizontal, e no subsequente exercício, de forma pública, de boa-fé, pacífica e ininterrupta dos poderes correspondentes ao direito de propriedade, para efeitos de aquisição originária por usucapião. O que requer.
6ª O douto acórdão recorrido não atendeu aos factos essenciais alegados e à prova oferecida e produzida nos autos, que deveria ter julgado, ou mandado julgar, desconsiderando a tradição da coisa, a sua causa e data e o animus domini do recorrente;
7ª Confundindo o título, ao assumir, erradamente, contra o que foi alegado expressamente e tinha que ser conhecido, que a tradição ocorreu com a celebração do contrato-promessa e não antes e independentemente dele, através da entrega voluntária do apartamento e lugar de estacionamento, em Outubro de 2005, pela proprietária ao A./recorrente, para pagamento da sua dívida.
8ª O aresto recorrido interpretou os arts. 1252.º, n.º 2, 1257.º, ns. 1 e 2, 1265º a contrario, e 1267.º do Código Civil incorrectamente, contra legem e contra a demais Jurisprudência, alguma dela indicada e citada na alegação, que se dá por reproduzida, violando as presunções legais de existência e continuidade da posse.
9ª Foi ainda violado o disposto no art. 1263.º al. a) do CC, ao desconsiderar que a posse se adquire mediante a prática dos actos correspondentes ao exercício do direito, e que, in casu, essa prática se manteve ao longo do tempo.
10ª O douto acórdão recorrido interpretou erroneamente os arts. 1253.º, 1265.º e 1267.º do CC ao considerar que a invocação, pelo possuidor, de direitos de crédito e do direito de retenção sobre o prédio possuído configura, automaticamente, a renúncia à posse ou conversão da mesma em detenção.
11ª O entendimento adoptado no douto aresto recorrido encontra-se em contradição com jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça, designadamente os Acs. STJ de 01-03-2012 (proc. 158/2000.L1.S1), de 12-09-2019 (proc. 1333/15.7T8LMG.C1.S1), de 14-05-1996 (AUJ, proc. 085204) e de 14-03-2000 (BMJ 495/310), que constituem acórdãos-fundamento, nos termos do art. 672.º, n.º 1, al. c), do CPC;
12ª Para além de muita outra, designadamente a que se identificou e até citou na alegação, e que se dá aqui por reproduzida.
13ª Foi igualmente infringido pelo douto aresto recorrido o regime das presunções legais (arts. 349.º, 350.º e 351.º do CC), bem como o princípio do dispositivo e as regras de julgamento e fundamentação das decisões judiciais consagrados no CPC.
14ª Como alegou nas instâncias, o recorrente mantém, desde 2005, a posse do imóvel como se de verdadeiro proprietário se tratasse, sem qualquer acto de abandono, transmissão, interrupção da posse, como exige o art. 1257.º do CC, ou inversão do título dela como exige o art. 1265.º do mesmo código.
15ª Ao considerar que o exercício paralelo de direitos de crédito afasta imediata e necessariamente o animus possidendi e descaracteriza a posse e ao abster-se de conhecer, ou mandar conhecer os factos alegados, provados e para os quais se ofereceu prova, o douto acórdão recorrido falhou na aplicação dos arts. 1252.º, n.º 2 e 1268.º do CC.
16ª O douto aresto recorrido contradisse toda jurisprudência invocada supra, incluindo os quatro acórdãos fundamento, violou os arts. 1251º, 1252º n. 2, 1253º a contrario, 1254º n. 1, 1257º, 1263º b), 1265º a contrario, 1267º, 1268º n. 1, 1287º, por referência aos arts. 1258º a 1262º, e 1316º, todos do CC, para além dos arts. 3º, 5º, 413º, 608º n. 2, do CPC e é nula nos termos do art. 615º d) do mesmo código do CPC.
17ª O aresto recorrido deve ser revogado, por violação dos arts. 1252.º, 1253.º, 1254.º, 1257.º, 1263.º, 1265.º, 1267.º e 1268.º do CC e, para além dos já citados, aos arts. 607.º ns. 3 e 4 do CPC, sendo substituído por acórdão que, conhecendo os factos alegados, reconheça a posse idónea e a consequente aquisição da propriedade por usucapião, ou determine a baixa dos autos para julgamento da matéria de facto e produção de prova, nos termos legais.
Não consta dos autos a apresentação de contra-alegações.
Foram colhidos os vistos.
2- Cumpre apreciar e decidir:
As conclusões do recurso delimitam o seu objeto, nos termos do disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil.
Da admissibilidade do recurso:
Os presentes autos foram apresentados à Formação, tendo a revista excecional sido admitida, estribando-se no pressuposto previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC., dado estar em causa, uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Assim, há que conhecer do recurso.
As questões identificadas pela Formação e a dirimir consistem em aquilatar:
- Se a invocação, pelo possuidor de direitos de crédito relacionados com o prédio por si possuído na pendência da posse, afasta liminarmente as presunções previstas nos arts. 1252.º, n.º 2 e 1257.º, n.º 2 do Código Civil (CC);
- Se a invocação, pelo possuidor, de direitos de crédito relacionados com o prédio por si possuído na pendência da posse, para além de afastar as presunções previstas nos arts. 1252.º, n.º 2 e 1257.º, n. 2 do CC implica, necessária ou diretamente, a conclusão de que o possuidor perdeu a posse passando a ter uma posse precária, ou simples detenção e;
- Se o reconhecimento dessa invocação dispensa liminarmente o conhecimento e julgamento da demais factualidade alegada pelo autor e a prova que apresentou em juízo como possuidor;
- Se a invocação do direito de retenção pelo possuidor constitui uma inversão do título da posse a seu desfavor, transformando a posse juridicamente relevante, ou idónea para usucapir, em posse precária, ou mera detenção.
- Se os casos de inversão do título da posse tipicamente previstos no art. 1265.º do CC devem ser considerados numerus clausus ou meramente exemplificativos.
- Se os casos de perda da posse juridicamente relevante tipicamente previstos nos arts. 1265.º e 1267.º, ambos do CC, devem ser considerados numerus clausus, ou, pelo contrário, meramente exemplificativos.
- Se a invocação de direitos de crédito relacionados com o prédio e/ou a invocação do direito de retenção sobre ele te(ê)m por consequência o abandono, pelo possuidor, para os efeitos do art. 1267.º, n.º 1, al. a) do CC, ou o fim da duração da atuação correspondente ao exercício do direito, ou a possibilidade de a continuar, para os efeitos do art. 1257.º, a contrario, do mesmo código.
A matéria de facto delineada e consolidada nas instâncias foi a seguinte:
1) Encontra-se descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Cascais o prédio urbano sito na Rua 1, freguesia e concelho de Cascais, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo n.º ....29.º.
2) O prédio encontra-se inscrito a favor da Ré mediante a apresentação n.º 51, de 5 de janeiro de 2007.
3) O prédio mostra-se constituído em regime de propriedade horizontal, existindo, além do mais, a fração autónoma designada pela letra “H” (doravante designada por “fração”).
4) Por documento reduzido a escrito, de 10 de agosto de 2006, intitulado por “Contrato Promessa de Compra e Venda”, junto como Doc.1 nestes autos, a Ré, designada por promitente vendedor, prometeu vender ao Autor, que, por seu turno, prometeu comprar, designado por promitente comprador, pelo preço global de €170.000,00, a fração.
5) O documento foi assinado presencialmente, com reconhecimento, no Cartório Notarial de CC, em Lisboa, em 11 de outubro de 2006.
6) Consta da cláusula 3.ª do documento que “O pagamento do preço se encontra integralmente satisfeito”.
7) Consta do ponto 1. da cláusula 4.ª do documento que “A escritura de compra e venda será celebrada no prazo de 60 dias contados da data da Escritura de constituição de propriedade horizontal que o promitente vendedor marcará logo após a emissão das licenças necessárias pela C. M. de Cascais”.
8) A Ré outorgou a escritura de constituição da propriedade horizontal, o que se mostra registado mediante a apresentação n.º 95, de 22 de março de 2007.
9) A fração, a par de outras frações autónomas, tem constituída hipoteca voluntária a favor da Caixa Económica Montepio Geral, mediante a apresentação n.º 99, de 16 de novembro de 2004, hipoteca esta que veio a ser reforçada mediante as apresentações n.ºs 63 e 64, de 17 de janeiro de 2005.
10) Por carta registada com aviso de ressecção, datada de 6 de janeiro de 2009, remetida pelo Autor à Ré, que recebeu, cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 21, aquele comunicou que procedera “à marcação da escritura, no Cartório da Dr.ª CC, na Rua 2, Lisboa, no dia 23 de janeiro de 2009, pelas 12 horas”.
11) Por fax de 20 de janeiro de 2009, remetido pela Ré ao Autor, que recebeu, cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 26, aquela informou que “não nos foi ainda possível obter o certificado energético, o que se prevê acontecer nos próximos 15 dias úteis, sendo que, logo que possível, diligenciaremos pela marcação da escritura. Quanto à regularização da hipoteca, estamos a proceder perante o Montepio Geral por forma a tentar que coincida com a entrega do referido certificado”.
12) A Ré não compareceu no local e data referidos em J).
13) A Ré nunca notificou o Autor para a outorga da escritura de compra e venda.
14) A Ré nada disse ao Autor decorridos dois meses sobre a data do envio do fax referido em 11).
15) Por fax de 27 de março de 2009, remetido pelo Autor à Ré, que recebeu, cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 27-28, aquele comunicou que “(…) após o decurso do prazo de 15 dias úteis requerido por V. Exas., considero por vós definitivamente incumprido o contrato, perdendo interesse na aquisição da fração. 10. O incumprimento do contrato por V. Exas. determina, nos termos do contrato celebrado, a obrigação de indemnização pelo valor em dobro das quantias entregues a título de sinal e antecipação de pagamento, a saber 340.000,00 €. 11. Assim, ficam V. Exas. notificados de que a partir desta data passo a possuir a fração não com intenção de aquisição na qualidade de promitente comprador, qualidade que assumi até hoje, mas sim na qualidade de credor com direito de retenção sobre a fração até ao pagamento daquela indemnização. 12. Por este motivo, entregarei a fração contra o recebimento da quantia de 340.000,00 €, o que aguardarei pelo prazo de 10 dias (…)”.
16) Por fax de 30 de março de 2009, remetido pela Ré ao Autor, que recebeu, cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 31, aquela comunicou que “(…) já conseguimos obter o Certificado Energético da fração em epígrafe e envidámos todos os esforços que nos foram possíveis junto ao Montepio Geral para que nos fornecesse o documento de cancelamento das hipotecas sobre essa fração. A agência de Alfragide na pessoa do seu gerente está a proceder a uma nova análise da situação dos distrates das várias frações por forma a libertar esta. Como não depende só de nós, solicitamos que nos conceda uma prorrogação do prazo que menciona no fax até ao final do mês de abril (…)”.
17) Por fax de 3 de abril de 2009, remetido pela Ré ao Autor, que recebeu, cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 32, aquela comunicou que “Não tendo até esta data recebido a sua confirmação de que nos pode conceder um prazo mais alargado para a resolução da situação a contento de todos, com a celebração da escritura da fração em epígrafe, renovamos o pedido por forma a nos permitir ter mais tempo para pressionar o Montepio Geral a emitir o termo de cancelamento das hipotecas sobre a referida fração”.
18) O Autor não habita na fração.
19) O Autor é advogado e titular da cédula profissional n.º ...7L.
20) Sem prejuízo do referido em F), o Autor não entregou à Ré, nem esta recebeu daquele, a quantia de € 170.000,00.
21) Foi acordado entre o Autor e os sócios da Ré que a transação da fração consubstanciaria uma dação em cumprimento pelo crédito de honorários, que aquele detinha sobre estes, a título de serviços de advocacia prestados até maio de 2003.
22) O gerente da R. informou o Autor que a escritura seria celebrada até ao fim de janeiro de 2008.
23) A R. foi instada posteriormente pelo Autor para indicar a data da celebração da escritura pública de compra e venda.
24) Tendo informado que só posteriormente poderia ser outorgada.
25) Em finais de junho de 2008, a Ré assumiu perante o Autor que realizaria a escritura tão breve quanto o possível.
26) A aquisição da fração, por parte do Autor, destinava-se à cedência a seus filhos.
27) Que pretendiam declarar prometer comprar a fração, através de cessão da posição contratual do Autor, se a Ré nisto consentisse.
28) O que era do conhecimento dos sócios da Ré.
29) A filha e o genro do Autor vêm habitando a fração desde agosto de 2007.
30) O Autor demandou a insolvente, pedindo em juízo a devolução do sinal em dobro, através de ação que intentou em abril de 2009, e que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste - Juízo Central Cível de Cascais - Juiz 1, sob o número de processo 2973/09.9TBCSC.
31) Nesse processo foi proferida sentença em 13.4.2012, julgando a ação improcedente, da qual o Autor interpôs recurso, não impugnando a decisão de facto contida naquela sentença.
32) O Venerando Tribunal da Relação de Lisboa declarou a inutilidade superveniente do recurso por decisão de 3.2.2016.
33) Em 13.8.2018, o Autor instaurou ação que constitui o apenso H, nos termos da qual pediu, além do mais, “se digne reconhecer, nos termos legais e da jurisprudência uniformizada, o direito de retenção do requerente sobre a fração identificada no pedido supra, com efeitos sobre a graduação dos seus créditos.”
34) Na ação mencionada em 33) o Autor invocou a seu favor, por diversas vezes, o direito de retenção, designadamente argumentando “22- Nessa ação e desde essa ação, o requerente sempre invocou o Direito de retenção sobre a fração prometida vender (…)”.
35) No apenso H) foi proferida sentença em 1.7.2022 que conheceu do pedido, na qual se lê, além do mais “Efetivamente, atendendo ao teor do acima vertido ponto O), por comunicação de 27.03.2009, remetida à ali ré e aqui insolvente, que recebeu tal comunicação, o autor declarou “considero por vós definitivamente incumprido o contrato, perdendo interesse na aquisição da fração”.
A resolução do contrato consiste na destruição do vínculo negocial, em princípio retroativamente (n.º 1 do artigo 434º do Código Civil), e, entre as partes, com os efeitos previstos para a nulidade e anulação (artigo 433º do Código Civil).
Opera-se mediante declaração à outra parte (n.º 1 do artigo 436º do Código Civil), salientando Brandão Proença que como estrutura negocial, a resolução surge-nos como negócio jurídico unilateral receptício, integrando, normalmente, uma declaração extrajudicial, não sujeita a qualquer formalidade (in A resolução do contrato no direito civil, vol. XXII, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1982, p. 76).
Consistindo numa declaração recetícia, torna-se eficaz logo que chegue ao poder do seu destinatário (n.º 1 do artigo 224º do Código Civil) e torna-se, desde então, irrevogável (n.º 1 do artigo 230.º).
Retornando ao caso vertente, o autor comunicou de forma eficaz à agora insolvente que havia considerado definitivamente incumprido o contrato-promessa, perdendo o interesse na aquisição da fração. A partir do momento em que esta declaração chegou ao conhecimento do seu destinatário – a agora insolvente –, a opção do autor consolidou-se, passando a tutela da sua posição, enquanto contraente adimplente, a situar-se no interesse contratual negativo, ou seja, na reparação dos danos causados pelo não cumprimento definitivo do contrato-promessa.
O comportamento do autor posterior à comunicação acima aludida confirma, precisamente, a escolha de caminho trilhado pelo autor: à comunicação resolução de 27.03.2009 sucedeu-se a propositura, em 16.04.2009 (cfr. artigo 14.º da petição inicial), da referida ação n.º 2973/09.9TBCSC em que peticiona a resolução do contrato (1) e a restituição do sinal em dobro.
A circunstância de, posteriormente à resolução extrajudicial, ser judicialmente peticionada a resolução não invalida a declaração resolutiva já emitida que, tendo chegado ao destinatário, se tornou eficaz e irrevogável, apenas tornando, isso sim, o pedido de declaração judicial da resolução inadmissível judicial (sendo admissível, outrossim, o pedido de apreciação judicial da resolução já efetuada) – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.01.2011, rel. Sousa Leite.
Com relevância para a apreciação do objeto do recurso, resulta da consulta eletrónica efetuada ao apenso H, que:
36) A ação foi instaurada pelo aqui autor/apelante contra a massa insolvente, os credores e a devedora como “ação de verificação ulterior de créditos e de outros direitos, para reconhecimento e graduação de crédito e execução específica”, concluindo o autor com o seguinte pedido:
“Termos em que requer a V. Exa. que, reconhecendo provada a existência do negócio e que o requerente cumpriu integralmente a sua obrigação no contrato bilateral não cumprido pela insolvente, se digne declarar, in casu, a não admissibilidade de recusa de cumprimento pela Senhora Administradora de Insolvência, devendo esta concluir o negócio.
Para tanto, requer a separação do bem objeto do negócio – a fração autónoma designada pela letra H, correspondente ao 3º andar Esquerdo no prédio sito no Lote 4, ..., sito na Rua 1, ..., em Cascais, inscrito na matriz sob o art. ...49 e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o número ..10 da freguesia de Cascais -, devendo ele ser separado da relação de bens apreendidos, ser expurgada a hipoteca e vendido ao requerente, reconhecendo-se que o preço já foi pago, devendo a Senhora Administradora de Insolvência outorgar escritura de compra e venda;
Caso assim não se entenda, ou a Senhora Administradora de Insolvência não cumpra o pedido anterior, requer a Vossa Excelência se digne, com os mesmos fundamentos, proferir sentença que produza os efeitos da declaração negocial da faltosa, declarando a venda ao A. da fração autónoma identificada no pedido anterior;
Caso assim não se entenda, no que não se concede, se se considerar admissível e verificada a opção da Senhora Administradora de Insolvência pela recusa da conclusão do negócio requer que seja reconhecido e graduado como privilegiado o crédito do A. sobre a massa falida no valor de 170.000,00€ (cento e setenta mil euros), correspondente ao valor da contraprestação da devedora na parte incumprida e ainda, no valor de 25.000,00€, a título de indemnização pelos prejuízos causados pelo incumprimento, no valor total de 195.000,00 (cento e noventa e cinco mil euros);
Em qualquer caso, requer a V. Exa. se digne reconhecer, nos termos legais e da jurisprudência uniformizada, o direito de retenção do requerente sobre a fração identificada no pedido supra, com efeitos sobre a graduação dos seus créditos”
37) A sentença referida em 35) transitou em julgado e contém o seguinte dispositivo: “nos termos e pelos fundamentos expostos, julgo improcedente a ação e, em consequência, absolvo a ré de todos os pedidos contra si formulados pelo autor”, sendo ali determinado o prosseguimento dos autos apenas para apreciação do pedido reconvencional deduzido pela massa insolvente.
Vejamos:
Nos presentes autos, o autor, DD, peticiona o reconhecimento da aquisição originária, por usucapião, da fração autónoma designada pela letra H, correspondente a um apartamento e lugar de estacionamento sitos na Rua 1, em Cascais.
Alega o autor que ocupa o imóvel de forma ininterrupta desde 2005, por lhe ter sido entregue pela insolvente, em cumprimento de dívida de honorários relativos a serviços jurídicos prestados e que exerce desde então posse pública, pacífica e contínua, com convicção de agir como proprietário.
A massa insolvente contestou, sustentando que o autor não possuiu em nome próprio, mas a título precário, por força do contrato-promessa de compra e venda celebrado em 2006, e que, após a resolução desse contrato em 2009, o próprio autor passou a invocar o direito de retenção, o que descaracteriza o animus de proprietário.
Com base na factualidade documentalmente provada e admitida por acordo das partes, o Tribunal da primeira instância considerou que a posse exercida pelo autor não era idónea à usucapião, por ter origem contratual e não traduzir animus possidendi, bem como, que a declaração resolutiva de 2009 constituiu ato inequívoco de renúncia à intenção aquisitiva, transformando a posse em mera detenção (detenção creditícia).
Concluiu, por isso, não estarem preenchidos os pressupostos dos artigos 1251.º e 1287.º do Código Civil, uma vez que a posse posterior à resolução e à invocação do direito de retenção não é exercida como proprietário, mas como detentor.
O Tribunal da Relação de Lisboa confirmou integralmente a decisão recorrida, reafirmando que foram os comportamentos exteriorizados pelo autor, ao longo de todo o período que se seguiu à formalização do contrato promessa, que contrariam a tese que o mesmo pretende fazer vingar na presente ação.
Para tanto, escreve-se no acórdão recorrido: «O autor/apelante não aceitou a extinção imediata da obrigação da ré por efeito da tradição da fração, como o evidencia a sua opção por formalizar a vontade de extinção dos efeitos do contrato-promessa pela via da resolução e pela expressa manifestação de desinteresse na aquisição do imóvel (factos 15 e 30), mantendo o exercício de poderes de facto sobre o bem no que assumiu corresponder ao exercício do direito de retenção em garantia do crédito de que sempre se arrogou ser titular – quer na carta remetida à ré aludida em 15, quer na ação instaurada contra a ré referida em 30 (cujo pedido se encontra resumido no documento 2 anexo à contestação), quer ainda no apenso H, cujo pedido se transcreve no facto 36.
A posse, como resulta do disposto no art. 1263º, al. a) do Código Civil, adquire-se pela prática reiterada dos atos materiais correspondentes ao exercício do direito, sendo a aquisição por usucapião uma faculdade autorizada àquele que mantém a posse “do direito de propriedade” por certo lapso de tempo, atuação reiterada que lhe permite adquirir o direito “a cujo exercício corresponde a sua atuação” – art. 1287º».
Contra tal se debate o autor/recorrente, que vem alegar que, ao longo de todo o tempo em que exerceu o poder de facto sobre o imóvel, manteve sempre intacta a “atuação correspondente ao direito de propriedade”, defendendo que a circunstância de ter invocado o direito de retenção para um determinado efeito (e num momento em que não podia ainda usucapir) não pode invalidar a sua posse para efeitos de usucapião.
Assim, importa determinar se os poderes de facto exercidos pelo autor sobre o imóvel se podem ter como manifestação do exercício de uma posse idónea à aquisição da propriedade por usucapião, à luz dos artigos 1251.º, 1252.º, 1260.º e 1287.º, todos do CC, ou se, como entenderam ambas as instâncias, a resolução do contrato-promessa e a invocação do direito de retenção fizeram cessar o animus possidendi, transformando a posse em mera detenção.
Com efeito, o problema jurídico em questão, consiste em apurar se a conduta do autor, tal como provada nos autos, é compatível ou não com a existência ab initio e manutenção de uma posse apta à usucapião, sendo que todas as problemáticas particularizadas pelo recorrente no recurso de revista excecional e tal como delimitadas supra, não são mais do que questões de direito intrinsecamente associadas à análise dogmática da posse usucapível, ou seja, tendente à aquisição do direito de propriedade do imóvel reivindicado nos autos.
Ora, nos termos do art. 1251.º do CC, a posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.
A propósito do enquadramento dogmático da posse, Rui Pinto Duarte, in Curso de Direitos Reais, Principia, 2020, 4ª. ed., pág. 470, esclarece que, «acerca da posse debatem-se duas conceções doutrinárias básicas. Uma é dita subjetivista por sustentar que a posse envolve, para além da materialidade da situação em que consiste, um elemento de cariz subjetivo, consistente numa intenção. A outra é dita objetivista, por se contentar com a materialidade da situação, caracterizando-se a primeira pela exigência de dois elementos – elementos esses tradicionalmente designados por corpus e animus».
Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, Coimbra Editora, 1987, p. 4 e ss., partindo da conceção subjetiva da posse, que entendem ter sido a acolhida pelo legislador, distinguem os dois elementos essenciais da posse: o corpus, correspondente ao exercício material de poderes sobre a coisa; e o animus possidendi (ou animus domini), isto é, a intenção de exercer esses poderes como titular do direito.
No âmbito doutrinário, apesar de não se ignorar existirem dissensões (nomeadamente, Menezes Cordeiro, in A posse: Perspetivas dogmáticas atuais, 3ª. ed., 2000, Almedina, pág. 129, Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, pág. 239 e Menezes Leitão, O enriquecimento sem causa no Direito Civil, pág. 692, que acolhem a orientação objetivista), o entendimento subjetivista da posse é o maioritário. Tal a posição, para além da de Pires de Lima e Antunes Varela, a de Henrique Mesquita, Direitos Reais, Mota Pinto, Direitos Reais, por Álvaro Moreira/Carlos Fraga e de Orlando de Carvalho, Introdução à Posse, RLJ 122, 1989, pág. 65.
Também assim no âmbito jurisprudencial, como consta no Acórdão do STJ de 29-11-2022, não publicado, no processo n.º 903/13.2TBSCR.L2. S1, onde se escreveu que «A doutrina maioritária e a quase totalidade da jurisprudência portuguesa propugnam o entendimento de que o Código Civil acolhe uma conceção subjetivista da posse invocando, para o efeito, o que dispõem os arts. 1251.º e 1253.º do CC.».
No mesmo sentido, vejam-se os Acórdãos do STJ de 02-02-2023, in www.dgsi.pt., de 5-5-2020, in https://juris,stj.pt/ecli e de 7-03-2019 (processo n.º 170/06.4TBVRS.E1.S1, não publicado).
Nesta medida, numa ação como a que está em causa nos autos, necessário se torna demonstrar, para além do corpus, o animus possidendi, sendo que a aferição deste elemento subjetivo da posse reconduz-se à questão de saber se os atos materiais praticados pelo pretenso possuidor denotam o exercício coadunável com o animus correspondente ao exercício do direito de que se arroga.
Em caso de dúvida, o legislador estatuiu que, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, pessoalmente ou por intermédio de outrem (art. 1252.º do CC), presunção essa, todavia, sempre suscetível de ser ilidida mediante prova em contrário (art. 350.º, n.º 2, do CC).
Em anotação ao art. 1251.º do CC e mobilizando as considerações acabadas de tecer para um caso de contrato-promessa com traditio, Pires de Lima e Antunes Varela, com relevância para a apreciação do presente caso, escreveram o seguinte:
“O contrato-promessa, com efeito, não é suscetível de, só por si, transmitir a posse ao promitente comprador. Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário. (…) São concebíveis, todavia, situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche excecionalmente todos os requisitos de uma verdadeira posse. Suponha-se, por exemplo, que havendo sido paga a totalidade do preço ou que, não tendo as partes o propósito de realizar o contrato definitivo (a fim de, v.g., evitar o pagamento da sisa ou precludir o exercício de um direito de preferência), a coisa é entregue ao promitente-comprador como se sua fosse já e que, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito da propriedade. Tais actos não são realizados em nome do promitente vendedor, mas sim em nome próprio, com a intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real. O promitente comprador actua, aqui, uti dominus, não havendo, por conseguinte, qualquer razão para lhe negar o acesso aos meios de tutela da posse.”.
No caso concreto, o autor vem invocar a aquisição originária do direito de propriedade, através do instituto da usucapião, alegando ter sido investido na posse do imóvel em 2005 e ter-se mantido nessa situação ininterruptamente, por um período mínimo de 15 anos.
Dispõe o art. 1287.º do CC que, a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação: é o que se chama usucapião.
Prevê, por sua vez, o art. 1296.º do CC que, não havendo registo do título de aquisição nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de quinze anos, se a posse for de boa fé, e de vinte anos, se for de má fé.
Como escreve Menezes Cordeiro, in, A Posse: perspetivas dogmáticas atuais, 3ª. ed., Almedina, pág. 129 «A usucapião pode ser definida como a constituição, facultada ao possuidor, do direito real correspondente à sua posse, desde que esta assuma determinadas características e se tenha mantido pelo lapso de tempo determinado na lei».
Salienta o mesmo autor que “a usucapião assenta na posse”, não chegando, para o efeito, “a mera detenção, a menos que passe a posse, pela inversão – art. 1290.º.”.
Estatui, com efeito, o art. 1290.º do CC que, os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, exceto achando-se invertido o título da posse; mas, neste caso, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título.
A figura do detentor ou possuidor precário corresponde à situação daquele que, tendo embora o corpus da posse, a detenção da coisa, não exerce o poder de facto com o animus de exercer o direito real correspondente (com animus possidendi) – cfr. Pires de Lima e Antunes Varela.
Também no que respeita à mera detenção, José Alberto Vieira, Direitos Reais, Coimbra Editora, 2008, pág. 552, defende que a mesma “resulta da incidência de uma norma jurídica que retira ao corpus a sua consequência normal de atribuição de posse. Nesta matéria o preceito fundamental é o art. 1253.º, que afasta a posse em três grupos de casos (…)”
Ora, prevê o art. 1253.º do CC que, são havidos como detentores ou possuidores precários: a) Os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito; b) Os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito; c) Os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem.
No que respeita à inversão do título da posse, prevista no art. 1265.º do CC, a mesma exige ato inequívoco de oposição ao titular do direito, revelador da intenção de passar a agir em nome próprio.
Colocados estes parâmetros legais, importa analisar o caso concreto.
Tendo em conta a factualidade apurada, a qual se encontra estabilizada nos autos, cumpre aferir se o autor adquiriu a posse da fração em apreço e, em caso afirmativo, se essa posse reúne as características previstas no citado art. 1287.º do CC, suscetíveis de conduzir à aquisição, por usucapião, do respetivo direito de propriedade.
A questão central reside, pois, em determinar se o autor, ao entrar na posse da fração H, adquiriu efetivamente a posse ad usucapionem, ou se o seu poder de facto sobre o imóvel deve ser qualificado como mera detenção precária, destituída do elemento intencional exigido pelos arts. 1251.º e seguintes do CC.
Resulta provado, no facto indicado em 21), que foi acordado entre o autor e os sócios da ré que a transação da fração consubstanciaria uma dação em cumprimento pelo crédito de honorários que aquele detinha sobre estes, a título de serviços de advocacia prestados até maio de 2003.
Por outro lado, da matéria de facto provada em 2) a 7) resulta que, em 10-08-2006 foi celebrado um contrato promessa de compra e venda do imóvel, onde se declarou, na cláusula 3.ª que, o pagamento do preço encontra-se integralmente satisfeito.
Do contrato promessa de compra e venda, assinado presencialmente perante notária, ficou convencionado que a escritura pública de compra e venda seria celebrada no prazo de 60 dias, algo que o autor tentou, por diversas vezes, que fosse cumprido, o que, no entanto, não se mostrou possível, porquanto a sociedade vendedora não logrou obter o cancelamento das hipotecas existentes sobre essa fração.
Considerando este enquadramento factual, bem como todas as vicissitudes que se lhe seguiram, não há como não concluir que a entrega do imóvel por parte da ora insolvente ao autor, para pagamento de dívida, sempre pressupôs que seria celebrado, entre as partes, o negócio definitivo da compra e venda, não sendo, para além do mais, desconhecido de nenhum dos outorgantes do contrato promessa que sobre a fração incidiam várias hipotecas (cfr. facto 9).
Só a esta luz, se compreende todo o comportamento posterior do autor e concretizado nos factos provados em 10) (em que o autor comunica à insolvente que procedera à marcação da escritura pública) e 15) (em que o autor comunica à insolvente que considera por esta incumprido definitivamente o contrato promessa de compra e venda e que perdera interesse na aquisição da fração).
Esta factualidade, só por si, evidencia que o autor não desconhecia que a sua situação jurídica perante a fração pretendida adquirir era precária e que seria necessário celebrar a escritura de compra e venda para que fosse efetivada a entrega do imóvel, sendo esta a condição para que o mesmo viesse a considerar extinto o seu direito de crédito.
Cotejados todos os factos prévios, concomitantes e posteriores à celebração do contrato promessa de compra e venda, não se vê, pois, que o acordo estabelecido entre as partes (e descrito no facto 21) tenha consubstanciado uma verdadeira dação em pagamento e que, por essa via, se tenha imediatamente extinguido a obrigação em dívida perante o autor.
Desde logo, não se pode ignorar que, à data, o imóvel se encontrava onerado com hipotecas, razão pela qual não se nos afigura plausível que o autor tenha considerado saldada a sua dívida com a mera entrega do imóvel, sem aquisição por título válido e sem que as hipotecas se mostrassem devidamente canceladas. Aliás, uma das condições para a celebração da escritura pública era justamente a obtenção prévia do cancelamento das hipotecas, o que nunca veio a suceder.
Por outro lado, é o próprio autor que o desmente, quando, posteriormente, ao declarar resolvido o contrato promessa de compra e venda, exige o pagamento da quantia tida como sinal e antecipação em pagamento, em dobro, e invoca o direito de retenção sobre a fração até ao pagamento de tal quantia.
Entende-se, assim, que no caso, as partes outorgantes não equacionaram senão uma possível futura dação em cumprimento, cuja previsão legal tem assento no art. 837.º do CC.
Trata-se, esta, de uma causa extintiva das obrigações, consistindo na realização de uma prestação diferente da que é devida, visando extinguir imediatamente a obrigação ou parte dela. Tal causa extintiva tem por características fundamentais o facto de pressupor um acordo entre os contraentes no sentido de alterarem o meio de cumprimento da obrigação (aqui a liquidação da dívida a título de honorários seria efetuada mediante a entrega da referida fração) e de tal meio de cumprimento implicar a imediata satisfação do direito de crédito do credor e, consequentemente, levar à sua extinção e exoneração do devedor.
Ora, torna-se evidente que entre as partes outorgantes não houve uma efetiva dação em cumprimento, mas tão só uma eventual promessa de dação em cumprimento, ou seja, um acordo através do qual o autor declarou permitir à ora insolvente libertar-se da sua obrigação mediante a prestação futura de coisa diversa da devida.
Nem podia ser de outra forma, já que a aquisição do imóvel por banda do autor, que a ora insolvente lhe propôs, só podia ser realizada através da forma legalmente estipulada para o efeito (art. 875.º, do CC), do que todas as partes pareciam estar bem cientes (sendo que o autor não podia igualmente desconhecer que a fração se mostrava onerada com hipotecas a favor de terceiro e que foi essa situação de facto que inviabilizou a celebração imediata da escritura pública de compra e venda).
Cremos, porém, que a sociedade insolvente e o autor se limitaram, numa fase negocial prévia, a decidir, por consenso, que a dívida daquela, decorrente de serviços de advocacia prestados pelo autor até maio de 2003, seria extinta por dação em pagamento da referenciada fração pertencente àquela.
Daí que se conclua que entre as referidas partes não foi celebrado nenhuma dação em pagamento, apenas concordaram em vir a celebrar tal contrato no futuro, sendo que a sociedade ora insolvente apenas e só com a realização da mencionada escritura pública de dação em cumprimento ficaria desvinculada de qualquer obrigação perante o autor.
À luz desta realidade material e que se extrai dos factos provados na ação, considera-se que, mesmo que o imóvel tenha sido imediatamente entregue ao autor e que no contrato promessa se tenha feito referência ao pagamento integral do preço, não se nos afigura plausível conjeturar que o autor, ao ter acesso ao imóvel, tenha alguma vez agido com a convicção de que era já, naquele momento, proprietário do imóvel, concretizando tal intencionalidade específica.
É o comportamento do próprio autor, posterior à não realização da escritura pública, com a declaração resolutiva do contrato promessa e a menção à perda de interesse na aquisição da fração, e, bem assim, com a invocação do direito de retenção por se intitular credor da sociedade, que o demonstra, de forma inequívoca e que afasta a presunção prevista no n.º 2 do art. 1252.º do CC (sendo certo que esta presunção só funciona nos casos de dúvida - cf. Acórdão do STJ de 13-10-2020 , processo n.º 439/18.5T8FAF.G1.S1., in www.dgsi.pt).
Nenhum destes atos, adotados pelo autor no período temporal posterior à celebração do contrato promessa, se afigura compatível com uma atuação correspondente ao exercício de um direito de propriedade. Pelo contrário, do comportamento do autor ressalta a convicção inversa, ou seja, a de que a fração era, ainda, propriedade da sociedade insolvente e que a dívida de honorários não se mostrava extinta. O autor mantinha um direito, mas de natureza obrigacional.
Com efeito, do quadro factual assente nos autos – em particular o facto de, in casu, ter sido prevista data posterior para a celebração da escritura pública de compra e venda, a qual o promitente-vendedor acabou por não poder celebrar e a circunstância de o autor se assumir, perante a não celebração da escritura, como um credor da sociedade insolvente, declarando não pretender adquirir a fração – e apesar da existência de traditio para o autor, nada há que permita concluir, pela existência, ao tempo da promessa, de uma vontade comum das partes no sentido da transferência, imediata e definitiva, da posse correspondente ao direito de propriedade.
Nesta medida, considerando-se como não demonstrada a factualidade tendente a consubstanciar o animus possidendi, por parte do autor, não é lícito concluir que este tenha exercido uma posse relevante para efeitos de aquisição da coisa por via da usucapião, devendo ser antes tido como mero detentor ou possuidor precário (cf. arts. 1253.º, al. a) e 1290.º, ambos do CC).
A solução também não seria diferente, caso se admitisse a posição defendida pelo autor: a de que as partes acordaram, no momento da entrega do imóvel ao autor, que esta entrega pressupunha a transferência imediata do respetivo direito de propriedade e que, portanto, o autor passou a estar investido na posse da fração, exercendo os atos materiais sobre a mesma com animus possidendi, i.e. com a intenção de agir como titular do direito real de propriedade.
Mas, ainda que se partisse desta hipótese factual, a conclusão de que não se mostram preenchidos os pressupostos para efeitos de aquisição do imóvel por usucapião, manter-se-ia.
Com efeito, mesmo que se entendesse que o autor entrou na posse da coisa convencido de que a mesma lhe fora entregue a título definitivo, agindo como seu proprietário, o ponto decisivo está em saber se esse animus possidendi subsistiu após o desenrolar posterior dos factos, sendo precisamente aí que se manifesta a fronteira entre aquela que é considerada uma posse idónea para usucapir e uma posse juridicamente ineficaz para esse efeito.
Vejamos os factos:
Resultou provado que em 27-03-2009, o autor, depois de tentar, sem sucesso, que a escritura pública do contrato definitivo se concretizasse, resolveu o contrato-promessa, por declaração dirigida à promitente-vendedora, na qual expressamente afirma “perder interesse na aquisição da fração” e “passar a possuí-la como credor com direito de retenção”.
Ao chegar ao conhecimento da destinatária, esta declaração resolutiva produziu dois efeitos simultâneos com inegável relevância para a solução a alcançar no caso: não só destruiu retroativamente o vínculo contratual firmado com a celebração da promessa de compra e venda (arts. 433.º e 434.º do CC), como, a nosso ver, requalificou a relação possessória, substituindo o interesse aquisitivo por um interesse de garantia de um direito de crédito.
O comportamento assim assumido pelo autor não deixa de demonstrar que o mesmo sabia, desde o início, que o acordo alcançado com a sociedade devedora – no sentido de extinguir a dívida de honorários que lhe era devida, só se materializaria com a celebração da escritura pública de compra e venda do imóvel. Só assim se explica que o autor tenha, perante a não celebração desse negócio, declarado “perder o interesse na aquisição da fração”, reconhecido a não extinção da sua dívida com a entrega do imóvel, peticionando, ao invés, a indemnização pelo valor em dobro das quantias entregues a título de sinal e antecipação do pagamento e, bem assim, ter declarado expressamente que, a partir desse momento, passava a possuir o imóvel na qualidade de credor com direito de retenção da fração até ao pagamento da indemnização pelo incumprimento contratual.
Não há como negar que, a partir desse momento, o poder de facto do autor sobre o imóvel passou a fundar-se num invocado direito de retenção e não num exercício do direito de propriedade, a cuja aquisição o autor renunciou expressamente, sendo que a invocação de um direito de crédito (ainda que com garantia real sobre o imóvel) é incompatível com o direito de propriedade.
O animus não se pode manter ou presumir contra os próprios atos do possuidor. E aqui, os atos são inequívocos: a resolução contratual, a invocação do direito de retenção e a propositura de ação de verificação ulterior de créditos no processo de insolvência em que se afirma credor, não proprietário, eliminam qualquer dúvida sobre a intenção subjetiva.
Neste contexto, é irrelevante saber se o autor continuou a exercer poderes de facto sobre o imóvel, pois o exercício material (corpus) não basta: a intenção é, como vimos, o elemento qualificativo e delimitador da posse.
Como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 6-11-2008 (processo n.º 5429/08-2, in www.dgsi.pt) «Havendo corpus, em princípio há posse, salvo quando o possuidor revele uma vontade segundo a qual ele age sem animus possidendi, sendo este elemento negativo que desvaloriza ou descaracteriza o corpus».
E nem se diga que, com isto, estamos a admitir a inversão de posse boa em posse inidónea, como parece pretender o autor. É que o que aqui se verifica é algo mais perentório, ou seja, é a manifestação inequívoca da cessação da posse correspondente ao exercício do direito de propriedade.
O autor parece assim confundir a inversão do título da posse, que ocorre quando o detentor passa a agir como possuidor, com a perda do animus possidendi, que sucede quando o possuidor abandona a intenção de agir como proprietário do bem, ou seja, quando há uma renúncia expressa ao animus, seguida de comportamento compatível com essa mesma renúncia, que foi precisamente o que sucedeu no caso concreto.
Todo o circunstancialismo fáctico é, ainda, de molde a concluir pelo reconhecimento expresso, por parte do autor, de que, afinal, a proprietária do bem era ainda a sociedade promitente vendedora, como efetivamente era.
De realçar que o autor não efetuou apenas uma mera diligência para conseguir regularizar a situação do incumprimento definitivo do contrato. Fez mais do que isso. Declarou expressamente desistir da aquisição da fração e apresentou-se, por diversas vezes e em várias instâncias, como credor de uma indemnização devida pelo incumprimento do contrato. Atente-se que o mesmo, para além da ação em que pediu a declaração da resolução judicial do contrato, reclamou o seu crédito na insolvência por via do incidente de verificação ulterior de créditos.
Em suma, mesmo que se admitisse que o autor entrou inicialmente na posse com intenção de agir enquanto proprietário do imóvel, o seu comportamento posterior é ostensivo e absolutamente incompatível com a manutenção dessa qualidade, não fazendo qualquer sentido, neste caso, recorrer a presunções.
Como se escreveu no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27-09-2018 (processo n.º 11680/15.2T8LRS.L1-6, disponível em www.dgsi.pt): «1. O exercício de direito de retenção constitui contexto substancialmente distinto do de «posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo», para os efeitos do disposto no art. 1287.º do Código Civil que fornece a definição normativa de usucapião.
2. Nesse quadro circunstancial, é insofismável, in casu, a ausência de «animus» (intenção de atuar sobre a coisa com um específico estatuto jurídico, id est, fenómeno do foro psicológico, cognitivo e volitivo que materializa uma expressão de pensamento coerente e compatível com o corpus – laço físico e material assente no contacto e na expressão de uma relação entre o sujeito e o objeto no domínio da matéria, ou seja, possibilidade de exercer influência sobre a coisa não toldável pela ação de terceiros.
3. Tendo-se demonstrado, de forma clara, a inexistência de «animus possidendi» e a não materialização de um «corpus» relevante e próprio, nenhum sentido teria o proposto recurso a presunções; estas destinam-se a extrair de factos conhecidos outros de natureza desconhecida; ora, se conhecemos os factos, não tem qualquer sentido tratá-los como desconhecidos para a eles chegar por caminhos ínvios».
E nem se diga diretamente transponível para o presente caso o decidido no Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 19-11-2002 (Processo n.º 8205/2002-7), que é citado na petição inicial do autor e alegações recursivas, cuja decisão aí proferida está marcadamente dependente da idiossincrasia fáctica aí apurada. Não se escamoteando a pertinência do caso aí apreciado e do argumento principal aí esgrimido no sentido de que, a tentativa de o promitente comprador defender os seus interesses por cada uma das vias que a lei lhe consente não pode significar, de modo imediato, a renúncia aos efeitos derivados da invocação da posse, a verdade é que tal asserção encontra no caso sob escrutínio dois grandes obstáculos: o primeiro deriva de ser evidente, em nossa perspetiva, que o autor nunca adquiriu a posse relevante para poder invocar a usucapião; o segundo decorre das atuações reiteradas levadas a cabo pelo autor a que correspondem uma renúncia expressa à aquisição do imóvel e, por inerência, ao direito de propriedade.
Como decorre também do expendido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13-02-2025 (Processo n.º 17619/17.3T8SNT.L1-2, disponível em www.dgsi.pt), «A posse boa para usucapir há de ser considerada e ponderada de forma casuísta, “em função da análise do conteúdo do negócio, das circunstâncias concomitantes à sua celebração e das vicissitudes que se lhe seguiram, referenciando-se, exemplificativamente, as situações em que o preço foi totalmente (ou quase) pago, em que tenha sido acordado não realizar a escritura pública do contrato prometido para evitar as despesas associadas, que a coisa tenha sido entregue ao promitente-adquirente com natureza definitiva como se fosse já dele, passando a praticar sobre a mesma atos materiais correspondentes ao direito de propriedade, não em nome do promitente-vendedor, mas antes em nome próprio”; “exige-se, assim, que se extraia da factualidade apurada e, nomeadamente do ato de tradição do objeto do contrato prometido, terem querido as partes antecipar na totalidade os efeitos do contrato definitivo (transferência da propriedade para o comprador e perceção do preço pelo vendedor), cuja celebração não pretendem ou pretenderam na realidade outorgar, de forma a que o promitente comprador passou a agir sobre a coisa como se fosse o seu efetivo dono ou proprietário”».
Também assim no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-06-2016 (Processo 299/05.6TBMGD.P2.S2, in www.dgsi.pt/JSTJ.NSF), onde se escreveu:
«I. Quando, no âmbito de um contrato-promessa, a coisa prometida vender tenha sido logo entregue pelo promitente-vendedor ao promitente-comprador, tal entrega traduzir-se-á numa aquisição derivada da posse, nos termos previstos na alínea b) do artigo 1263.º do CC, a qual se presume, por força do n.º 2 do artigo 1257.º do mesmo Código, que continua em nome de quem a começou, ou seja, do promitente-vendedor.
II. Nessas circunstâncias, o promitente-comprador fica investido na situação de mero detentor, enquadrável no art.º 1253.º do CC, ainda que, dada a sua expectativa de realização do contrato definitivo, se lhe reconheça a titularidade de um direito pessoal de gozo, de base contratual, mais precisamente o acordo respeitante à traditio.
III. Não obstante isso, a sobredita presunção da continuação da posse em nome do promitente-vendedor pode ser ilidida no sentido de que a vontade das partes fora a de transferir, desde logo, para o promitente-comprador, por razões especificas, alicerçadas em situações excecionais, a título definitivo, a posse da coisa correspondente ao direito de propriedade.
IV. Não se tendo provado quaisquer dessas situações excecionais, considerando-se antes como não provada a factualidade tendente a consubstanciar o animus possidendi, por parte do promitente-comprador, não é lícito concluir que este tenha exercido uma posse relevante para efeitos de aquisição da coisa por via da usucapião».
Ora, in casu, como já se deixou acima explanado, todos os factos praticados pelo autor após a celebração do contrato promessa só podem ser razoavelmente interpretados sob a insígnia de que o mesmo, pelo menos a partir de 2009, deixou de ter a intenção de agir como proprietário da fração, tendo declarado expressamente ter deixado de ter interesse na respetiva aquisição.
O demais alegado e provado não representa, por sua vez, qualquer inversão do título da posse, sendo que o facto de o autor ter vindo a usar a fração e a permitir que outros familiares a utilizem, no contexto factual acima analisado, nada tem de significativo em termos de posse efetiva.
Tal como se aludiu no Acórdão do STJ de 12-01-2021 (Processo n.º 8279/16.0T8LRS.L1.S1, in www.dgsi.pt), «Tal situação de facto não constitui mais que a condição conatural à circunstância de ter sido autorizado a fazê-lo, ou seja, de ser detentora legítima (no sentido de ter permissão para tanto) do imóvel que ocupa.(…)
Dizendo ainda o mesmo acórdão «Para finalizar, transcreve-se aqui a seguinte passagem de Menezes Cordeiro (A Posse, Perspectivas Dogmáticas Actuais, 3ª ed. Actualizada, p. 61), cujo teor se mantém válido e que não deixa de abonar a bondade do que fica dito: “A jurisprudência portuguesa tem ampliado a noção de tolerância, levando-a para além da mera simpatia ou da obsequiosidade entre vizinhos. Aproveitando as fórmulas divulgadas por Henrique Mesquita e por nós próprios, a jurisprudência veio a centrar a mera tolerância no exercício tácita ou expressamente autorizado pelo proprietário, mas sem a concessão, por este último, dum direito. Os tribunais superiores têm tido em vista, como sendo de detenção, situações de intenso controlo: assim o viver numa casa, o ocupar um terreno durante 12 anos, nele construindo uma casa com anexos, ou o construir uma casa com autorização do dono do terreno. Nenhum destes casos daria lugar a posse, por haver simples tolerância».
Na inversão do título da posse, os atos materiais sobre a coisa têm de exprimir a inequivocidade da inversão, com o conhecimento do titular do direito, em nome do qual se possuía, com animus possidendi, o que aqui inexiste.
Perante todo o enunciado supra, sempre seria inútil fazer prosseguir os autos para produção de prova sobre as circunstâncias concretas em que o autor adquiriu a posse, já que, a prova sobre tal matéria de facto sempre seria inidónea para alterar a solução jurídica a conferir ao caso concreto e não sendo lícito realizar no processo atos inúteis, conforme dispõe o art. 130º do CPC.
Os factos assentes nos autos, já têm a devida e necessária amplitude para o conhecimento do mérito, como sucedeu nas instâncias.
E como se aludiu a este respeito no acórdão recorrido, nomeadamente: « Nesta medida, ainda que o tribunal considerasse provada a matéria factual alegada pelo autor e mencionada nas conclusões 56 e 63 a 74, a solução jurídica da causa não seria diferenciada, porquanto ainda que se viesse a apurar que o autor adquiriu a posse em outubro de 2005 e passou nessa ocasião a praticar atos correspondentes ao exercício de direito de propriedade, não poderia desconsiderar-se a evidente alteração de animus que resulta dos factos provados, sendo que estes têm por base a atuação do próprio autor.
Não existe fundamento para se recorrer a presunções ou necessidade de produzir prova acrescida, quando o animus que acompanhou o período de exercício de poderes de facto pelo autor/apelante que se desenvolve, pelo menos, a partir de março de 2009 (facto 15) torna manifesta a circunstância de aquele se assumir, em todos os momentos, como titular de um direito de crédito (ainda que com invocada garantia real sobre o imóvel ocupado) e não como titular de um direito de propriedade».
Mas, ainda que assim não fosse, certo é que, no caso, muito dificilmente a posse poderia ser considerada de boa-fé.
Dispõe o art. 1260.º, n.º 1 do CC que, a posse diz-se de boa-fé, quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem.
Por sua vez, o n.º 2 do mesmo preceito legal dispõe que, a posse titulada presume-se de boa-fé e a não titulada de má-fé.
Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, escrevem, a este propósito, que «A ignorância de que se lesa o direito de outrem (a ausência de má fé) resulta, na generalidade dos casos, da convicção (positiva) de que se está a exercer um direito próprio, adquirido por um título válido, por se desconhecerem, precisamente, os vícios da aquisição. Mas a lei não exige que assim seja sempre. O possuidor pode saber que o direito não é seu e estar convencido, apesar disso, de que, exercendo-o, não prejudica o verdadeiro titular. Ou pode mesmo estar convencido de que não existe nenhum direito de terceiro que seja lesado com a sua posse».
Ora, quando a fração lhe é entregue pela sociedade, o autor não podia desconhecer, por um lado, que não havia sido celebrado o negócio jurídico que lhe permitira adquirir a titularidade do imóvel (a dação em cumprimento), razão pela qual a sua posse sempre se presumiria de má-fé.
Por outro lado, a mera circunstância de o imóvel lhe ter sido entregue pelo respetivo proprietário não é suficiente, no contexto factual em causa, para ilidir a presunção de má-fé. Com efeito, o autor não desconhecia que sobre o imóvel incidiam hipotecas, registadas em novembro de 2004 e janeiro de 2005 (facto 9), constituindo-se estas como garantias reais de direitos de crédito de entidades terceiras.
Com este circunstancialismo, o autor não podia deixar de perspetivar que a invocada transferência de propriedade do imóvel para a sua esfera jurídica, sem formalização do negócio e sem que, por essa via, os credores hipotecários tivessem oportuno conhecimento de tal vicissitude, poderia vir a dificultar a satisfação dos direitos de crédito de tais terceiros (desde logo, obrigando os credores hipotecários a fazer valer a sua garantia contra um terceiro; muito embora não se desconheça que no confronto entre o direito real de garantia de hipoteca voluntária, registada, titulado por um credor terceiro e o eventual direito de propriedade decorrente de transmissão anterior, não registada, prevalece o direito real de garantia de hipoteca (cfr. art. 686.°, n.º 1 do CC).
Perante o explanado, não se nos afigura óbvio ou linear que o autor tivesse agido na ausência de conhecimento de estar, ao adquirir a posse, a lesar o direito de outrem, razão pela qual não consideraríamos ilidida a presunção de má-fé a que alude o art. 1260.º, n.º 2 do CC.
Neste caso, a usucapião só poderia dar-se no termo de vinte anos (cf. art. 1296.º do CC), prazo que, à data da instauração da presente ação, não se mostrava ainda decorrido.
Resulta, assim, que a postura levada a cabo pelo autor em todos os momentos processuais de que fez uso, foi a de se assumir como titular de um direito de crédito e não como titular de um direito de propriedade, jamais podendo adquirir a propriedade da fração por usucapião, não se materializando os pressupostos aplicáveis a tal figura jurídica.
E não se materializando uma tal posse, prejudicado fica o conhecimento das inerentes questões suscitadas, nos termos do disposto no nº. 2 do artigo 608º do CPC.
Por tudo quanto se aludiu, soçobra a pretensão do recorrente, em toda a sua plenitude.
Sumário:
-O contrato-promessa de compra e venda, não é suscetível de, só por si, transmitir a posse ao promitente comprador. Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário.
- Os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, exceto achando-se invertido o título da posse; mas, neste caso, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título.
- A factualidade apurada, só por si, evidencia que o autor não desconhecia que a sua situação jurídica perante a fração pretendida adquirir era precária e que seria necessário celebrar a escritura de compra e venda para que fosse efetivada a entrega do imóvel, sendo esta a condição para que o mesmo viesse a considerar extinto o seu direito de crédito.
- Mesmo que o imóvel tenha sido imediatamente entregue ao autor e que no contrato promessa se tenha feito referência ao pagamento integral do preço, não se nos afigura plausível conjeturar que o autor, ao ter acesso ao imóvel, tenha alguma vez agido com a convicção de que era já, naquele momento, seu proprietário, concretizando tal intencionalidade específica.
- É o comportamento do próprio autor, posterior à não realização da escritura pública, com a declaração resolutiva do contrato promessa e a menção à perda de interesse na aquisição da fração, e, bem assim, com a invocação do direito de retenção por se intitular credor da sociedade e a propositura de ação de verificação de créditos no processo de insolvência, que o demonstra, de forma inequívoca e que afasta a presunção prevista no n.º 2 do art. 1252.º do Código Civil.
- O animus não se pode manter ou presumir contra os próprios atos do possuidor.
- O autor em todos os momentos processuais de que fez uso, assumiu a postura de titular de um direito de crédito e não a de titular de um direito de propriedade.
3- Decisão:
Nos termos expostos, acorda-se em julgar improcedente a revista, mantendo-se o acórdão proferido.
Custas a cargo do recorrente.
Lisboa, 25-11-2025
Maria do Rosário Gonçalves (Relatora)
Ricardo Costa
Luís Correia de Mendonça