I. A detenção, pelo órgão de polícia criminal, de cidadão estrangeiro em situação ilegal para ser presente a primeiro interrogatório judicial e a posterior decisão judicial que aplicou a medida de coação de colocação daquele em centro de instalação
temporária, não têm na sua génese a prática de qualquer crime, mas tão só, a existência de um processo administrativo de expulsão de cidadão estrangeiro que permaneça em território nacional em desobediência aos requisitos de documentação exigidos pela Lei 23/2007 de 04-07 (artigo 181.º, por referência aos artigos 9.º, 10.º e 32.º, n.º 1).
II. O cidadão estrangeiro para sindicar a legalidade da aplicação da medida coativa tinha de questionar o requisito geral no qual assentou a decisão judicial recorrida (de natureza penal) de o colocar em centro de instalação temporária, ou seja, a existência do perigo de fuga ou a violação dos princípios da necessidade, adequação, proporcionalidade ou subsidiariedade.
III. O recorrente invocou, todavia, a existência de uma decisão judicial do Tribunal Administrativo de Círculo na qual foi determinada a advertência de a AIMA estar proibida de executar o ato administrativo de impor ao cidadão estrangeiro o abandono do território nacional.
IV. A referida decisão administrativa do TAC não vinculava o Juiz a quo com competência penal que apreciou autonomamente os pressupostos da medida de coação e julgando-os verificados, aplicou de forma cautelar a colocação do cidadão estrangeiro em Centro de Instalação Temporária.
1. Da decisão
No Processo de Detenção de Cidadão Estrangeiro em Situação Ilegal n.º 263/25.9GBRMZ da Comarca de … Juízo de Competência Genérica de …, foi o cidadão estrangeiro AA submetido a interrogatório e a final prolatada decisão judicial com o seguinte teor:
“I. A detenção de BB e AA é válida, porquanto efetuada em flagrante delito, por entidade competente, tendo sido igualmente os referidos cidadãos apresentados a juízo dentro do prazo de 48 horas, com respeito pelo que dispõe o art.º 146º da Lei nº 23/2007 de 4 de Julho.
*
II. Tendo em consideração o que resulta do teor dos autos de notícia com as refs. ª citius … e …, das informações prestadas pela UCFE-INFOCEST relativamente à situação de permanência ilegal dos arguidos em território nacional, dos recibos de vencimento, informações adicionais prestadas pela UCFE-INFOCEST, contrato de trabalho datado de 12 de dezembro de 2024, do documento de prorrogação do contrato de trabalho pelo período de 90 dias, registo central de contribuinte, extrato de remunerações e atestado de residência da junta de freguesia de … passado ao arguido AA, informação da AIMA relativa à não concessão de autorização de residência ao cidadão AA, documento que atesta a situação do arguido BB como refugiado em Espanha e, bem assim, das declarações prestadas pelos arguidos em sede de interrogatório, consideram-se fortemente indiciados os seguintes factos:
a) No dia 9 de setembro de 2025, pelas 18h30m, foi dada ordem de paragem para fiscalização de um veículo ligeiro de passageiros de matrícula …, de marca ….
b) Ao ser efetuada a competente fiscalização, constatou-se que o condutor do aludido veículo era o cidadão BB, o qual não possuía documentos de identificação.
c) Mais se constatou que no interior do veículo também vinha o cidadão AA, o qual também não possuía documentos de identificação.
d) Logo após, foram os cidadãos BB e AA informados de que se teriam que deslocar até ao Posto Territorial da GNR de …, a fim de procederem à sua identificação completa e efetuar o pedido para os serviços do INFOCEST sobre como consta a sua situação de permanência no país.
e) Após ter sido feito o pedido de informação resultou do mesmo que o cidadão BB havia sido notificado para efetuar o abandono voluntário do país no dia 29 de maio de 2025, tendo terminado a 27 de junho de 2025, pelo que, tendo sido constatada a sua permanência ilegal em território nacional, foi detido pelas 20h28m.
f) Mais resultou do aludido pedido de informação que o cidadão AA havia sido notificado para efetuar o abandono voluntário do país no dia 24 de junho de 2025, tendo terminado a 22 de julho de 2025, pelo que, tendo sido constatada a sua permanência ilegal em território nacional, foi detido pelas 20h14m.
g) O arguido AA, cidadão …, encontra-se em território português sem autorização legal, desde o ano de 2023, onde entrou por via terrestre, tendo estado, em momento anterior e em situação ilegal, noutro países da União Europeia;
h) O mencionado arguido é titular de número de segurança social e de número de identificação fiscal, havendo ainda celebrado contrato de trabalho datado de 12 de dezembro de 2024, com data de termo a 13 de junho de 2025.
i) O referido contrato de trabalho foi prorrogado pelo período de 90 dias, com data de término em 12 de setembro de 2025.
j) O arguido apresentou manifestação de interesse junto do SEF em 8 de outubro de 2023, na sequência da qual lhe foi indeferida, pela AIMA, a concessão de autorização de residência em Portugal.
k) O arguido apenas fala a língua árabe.
l) O mencionado arguido não é titular de autorização de residência que lhe permita permanecer em território nacional ou em qualquer outro pais da União Europeia.
m) O arguido tem a sua mãe a residir na …, a qual auxilia monetariamente.
n) O arguido possui ainda um tio que se encontra a residir em ….
o) O arguido BB, cidadão …, encontra-se em território português sem autorização legal;
p) O mencionado arguido não possui contrato de trabalho em Portugal.
q) O arguido veio para Portugal em fevereiro de 2025, sem que fosse titular de qualquer visto de trabalho ou de turismo.
r) O arguido apenas beneficia do estatuto de refugiado Humanitário em Espanha, país onde se encontrava, antes de haver entrado e permanecido em Portugal.
s) O arguido apenas fala a língua árabe.
t) O mencionado arguido não é titular de autorização de residência que lhe permita permanecer em território nacional.
u) O arguido possui familiares não apenas em …, mas também em países da União Europeia, designadamente na …, … e nos ….
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III.
Diga-se, em primeira linha, que os referidos cidadãos prestaram declarações em sede de primeiro interrogatório, mediante as quais confirmaram todos os factos que resultaram fortemente indiciados, com especial enfoque na sua situação de permanência ilegal em território nacional.
Das declarações do arguido BB resultou que, efetivamente, o mesmo é apenas titular de um passaporte … e de um estatuto de refugiado em Espanha, havendo admitido, de forma clara e espontânea, haver entrado em território nacional no pretérito mês de fevereiro de 2025 e não ser titular de autorização de residência que lhe permita ou o habilite a residir legalmente em Portugal, além de que também admitiu não ser titular de qualquer visto de trabalho, pese embora trabalhe de forma esporádica, ainda que sem que houvesse celebrado qualquer contrato de trabalho.
Acrescentou possuir familiares não apenas em …, mas também em países da União Europeia, nomeadamente na …, … e ….
No mais, relatou que, após haver recebido a notificação de que deveria abandonar de forma voluntária o país, em determinado, prazo, além de o mesmo não haver reagido a tal notificação, manteve-se em território nacional, conhecendo a sua situação de permanência ilegal.
No que se refere ao arguido AA, note-se que o mesmo, efetivamente, admitiu os factos que resultaram fortemente indiciados, isto é, de que se encontra em Portugal desde 2023 a residir e a trabalhar, afirmando ter familiares na … (a mãe – a quem presta auxílio monetário) e na … (tio), ademais admitindo também haver sido notificado para abandonar voluntariamente o território nacional na sequência da decisão de indeferimento da concessão de autorização de residência, não tendo o feito, porquanto necessita de exercer atividade profissional de modo a auxiliar a sua mãe financeiramente, atenta a doença de que a mesma padece.
Contudo, admitiu tais factos, embora com uma ressalva, isto é, de que teria contratado dois advogados para reagir à decisão de indeferimento da concessão de autorização de residência, removendo um alegado impedimento do SIS, o qual obstava a que tal autorização fosse concedida.
Contudo, o arguido não logrou demonstrar a que decisão ou notificação teria, em concreto, reagido, isto é, se teria reagido à decisão de indeferimento da concessão de autorização de residência ou à notificação que lhe foi dirigida para abandono voluntário em determinado prazo, interpondo recurso de tal decisão ou intentando uma providência cautelar.
Ora, desconhecendo qual foi a reação que o arguido concretamente adotou quando se viu confrontado com tal decisão ou notificação, não pode o Tribunal retirar qualquer outra ilação que não seja a de que existia um período em que o arguido deveria abandonar o território nacional, e o mesmo não o fez, por sua própria opção, sendo irrelevante o facto de ter celebrado um contrato de trabalho, o qual foi, recentemente, prorrogado, encontrando-se, por esse motivo, a trabalhar.
E ainda que se admita como possível que o arguido tivesse intentado um procedimento cautelar junto dos Tribunais Administrativos por forma a suspender a eficácia do ato de notificação que lhe foi dirigida para abandono voluntário do território nacional, o que é certo é a que a notificação para abandono voluntário quer a denegação da autorização de residência, são insuscetíveis de suspensão da eficácia por não produzirem efeitos próprios que sejam lesivos para o cidadão em apreço – neste sentido, cf. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, datado de 30 de novembro de 2017.
Assim, conforme decorre dos autos os arguidos não dispõem de documento que revele autorização de permanência no território nacional, além de que não abandonaram voluntariamente o território nacional no prazo que lhes foi fixado para o efeito, ignorando, por completo, a notificação que lhes foi dirigida.
Pelo exposto, torna-se claro e por demais evidente que os detidos entraram, permaneceram e continuam a permanecer em território nacional em clara desobediência aos requisitos e documentação exigida para o efeito pela Lei nº 23/2007 de 4 de Julho, encontrando-se pois em situação ilegal, nos termos do disposto no art.º 181º, por referência ao art.º 9º, 10º e 32º, nº 1 daquele diploma legal.
*
IV. Ora, a consequência normal da permanência de um cidadão estrangeiro em território nacional sem que a mesma se faça de acordo com as regras legais, é o seu afastamento de tal território - expulsão.
Nos autos, e tendo em consideração a factualidade apurada, não se verifica nenhum dos limites à expulsão, tais quais se mostram descritos nos art.º 135º e seguintes do diploma legal supra referido.
Torna-se assim necessário definir a medida de coação a aplicar aos arguidos, enquanto os mesmos aguardam pelo resultado do processo administrativo de expulsão do território nacional.
Os arguidos já prestaram termo de identidade e residência, conforme resulta dos autos.
Contudo, tal medida não se nos afigura a mais adequada e proporcional ao caso concreto.
Com efeito, as medidas de coação são medidas judiciais impostas a cidadão estrangeiro abrangido por um processo expulsório, de forma a constrangê-lo a adotar um determinado comportamento, enquanto a expulsão não é efetivamente aplicada e a fim de que o AIMA, I.P. e a PSP possam controlar o indivíduo, de forma a que fique salvaguardada a exequibilidade da futura expulsão.
Pelo que, analisando os elementos constantes dos autos, teremos que concluir que se verifica um perigo de fuga dos arguidos ao cumprimento da decisão de expulsão do território nacional que previsivelmente lhes será aplicada no âmbito do processo administrativo previsto no artigoº 145º e seguintes da Lei nº 23/2007 de 4 de Julho, com permanência ilegal, quer em território nacional, quer no espaço Schengen, na medida em que, não decorreu das declarações dos arguidos que os mesmos pretendem abandonar voluntariamente o território nacional, além de que a razão pelo qual os mesmos foram submetidos a interrogatório foi precisamente o facto de os mesmos terem sido notificados para abandonar o território nacional num determinado prazo e não o terem feito, permanecendo ilegalmente em Portugal.
Destarte, nos termos do preceituado no artigo 142.º da Lei nº 23/2007 de 4 de Julho, e no artigo 204º, nº 1, al. a) do Código de Processo Penal, mostram-se reunidos os pressupostos de aplicação de uma medida de coação a cada um dos mencionados cidadãos ora arguidos.
Em termos de proporcionalidade e adequação, a medida a aplicar:
A aplicação das medidas de coação, constituindo uma limitação da liberdade, estão rigorosamente sujeitas ao princípio da necessidade, princípio esse de que o nº 2 do art.º 192º do CPP é expressão, tal como o é o nº 3 do art.º 193º do mesmo diploma legal, cujo sentido é o de limitar ao estritamente indispensável o prejuízo para o exercício dos direitos fundamentais do arguido, que é o mesmo dizer, limitar ao mínimo possível a danosidade.
Acrescem ainda os princípios da adequação e da proporcionalidade (neste sentido, cf. artigo 193º, n.º 1 do CPP).
Assim, sendo a aplicação de uma medida de coação necessária, deve em concreto ser aplicada a que se mostre adequada às exigências cautelares e a proporcional à gravidade da conduta praticada e da sanção ou das sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
Não obstante os arguidos haverem manifestado interesse em trabalhar e residir em Portugal, tendo, inclusive, o arguido AA mencionado o facto de que, efetivamente, não abandonou voluntariamente o território nacional porque pretende continuar a trabalhar de modo a auxiliar a sua mãe financeiramente, encontrando-se a mesma com problemas de saúde, os arguidos não só têm familiares nos seus respetivos países de origem, mas também em países da União Europeia, conforme já supra se aludiu, o que foi facilita a transitoriedade dos arguidos nesses países.
Acresce ainda a circunstância de nenhum dos arguidos em apreço possuir título válido que lhes permita residir ou trabalhar em Portugal.
Nestes termos, importa concluir que as medidas de apresentações periódicas, de obrigação de permanência na habitação ou outras, não respondem ao perigo de fuga aqui em causa.
In casu, consideramos que o perigo de fuga é muito elevado e que apenas pode ser afastado através da medida de colocação dos mencionados cidadãos em centro de instalação temporária ou em espaço equiparado (neste sentido, artigo 142º, nº 1, al. c) da Lei nº 23/2007 de 4 de julho).
*
V. Em face do exposto, nos termos do artigo 142.º, n.º 1, al. a) da Lei nº 23/2007 de 4 de julho, determina-se que os cidadãos estrangeiros BB e AA aguardem o processo de expulsão sujeitos às seguintes medidas de coação:
a) TIR, já prestado;
b) Colocação em centro de instalação temporária, medida que não poderá ultrapassar o prazo de 60 dias.
Determina-se que se comunique a presente decisão a algum familiar que os mesmos indiquem. (…)”.
2. Do recurso
2.1. Das conclusões do cidadão estrangeiro AA
Inconformado com a decisão AA interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“a) O recorrente tem ato administrativo contra si, emitido de indeferimento de pedido de autorização de residência, com a consequente ordem de abandono voluntário e posterior coercivo, se incumprida, com data de 6 de maio de 2025 e notificada a 24 de junho de 2025.
b) O recorrente interpôs providência cautelar junto do TAC de Lisboa contra a AIMA que obteve o nº 48917/…, que se encontra a correr termos naquele tribunal, e onde pede a suspensão da execução do ato administrativo com data de 6 de maio de 2025 que indeferiu o pedido de concessão de autorização de residência, conforme doc. 2 que se junta.
c) O TAC de Lisboa na sequência de tal providência emitiu despacho, onde entre o mais, ordenou que se advertisse a AIMA no ofício de citação da proibição de executar o ato administrativo, como expressamente resulta do artigo 128º nº1 do CPTA, conforme doc. 3 que se junta.
d) A AIMA foi citada por ofício remetido do TAC de Lisboa com data de 13 de agosto de 2025, conforme doc. 4 que se junta.
e) Até este momento ainda não foi proferida qualquer decisão na providência cautelar supra identificada.
f) O recorrente encontra-se detido, tendo-lhe sido aplicado o TIR e a medida de coação de “colocação em centro de instalação temporária pelo prazo máximo de 60 dias”.
g) A decisão de que se recorre é resultante do ato administrativo de 26 de maio de 2025 que indeferiu o pedido de concessão de autorização de residência e impôs ao recorrente o abandono do território nacional.
h) Tal ato administrativo, contudo, com os seus efeitos positivos encontra-se suspenso e a AIMA proibida de o executar desde pelo menos a data em que esta foi citada para a providência cautelar e que se situa ainda em finais de agosto de 2025.
i) Ocorrendo a detenção do recorrente em 9 de setembro e a medida de coação aplicada sendo de 11 de setembro, ambas desrespeitam a decisão judicial que suspendeu o ato administrativo que gerou estas medidas de coação.
j) Tornando ilegal ambas as medidas.
TERMOS EM QUE O PRESENTE RECURSO MERECE PROVIMENTO E EM CONSEQUÊNCIA, POR SE TRATAR DE UMA DETENÇÃO ILEGAL COM MEDIDAS DE COAÇÃO NESSA SEQUÊNCIA TAMBEM ILEGAIS, SER IMEDIATAMENTE RESTITUÍDO À LIBERDADE COM TODAS AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS.
ALIÁS, SITUAÇÃO SIMILAR FOI O QUE ENTRE OUTROS, JÁ OCORREU NO PROCESSO Nº 8/25…., QUE CORREU TERMOS PELO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE …, JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE … E CUJA COPIA DA RESPETIVA DECISÃO SE JUNTA.”.
2.2. Com o recurso interposto o recorrente apresentou vários documentos, designadamente a petição inicial que deu entrada no Tribunal Administrativo de Círculo em 17-07-2025.
2.3. O recurso foi admitido com subida em separado, de imediato, e com efeito devolutivo (artigos 406.º, n.º 2, 407.º, n.º 2, alínea c) e 408.º, a contrario, artigos 399.º, 400.º a contrario sensu, 401.º, n.º 1, al. b) e 411.º, n.º 1, al. c) todos do CPP).
2.4. Das contra-alegações do Ministério Público
Respondeu o Ministério Público defendendo o acerto da decisão recorrida, concluindo pelo não provimento do recurso.
2.5. Do Parecer do MP em 2.ª instância
Na Relação o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto aderiu à posição do MP em 1.ª instância.
2.6. Da tramitação subsequente
Foi observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Objeto do recurso
De acordo com o disposto no artigo 412.º do CPP e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19-10-95, publicado no DR I-A de 28-12-95 o objeto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respetiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.
2. Questão a examinar
Analisadas as conclusões de recurso a questão a conhecer é a de saber se a medida de coação de “colocação em centro de instalação temporária pelo prazo máximo de 60 dias” aplicada ao cidadão estrangeiro configura uma detenção ilegal e nesse caso se este deve ser imediatamente restituído à liberdade.
3. Apreciação do recurso interposto pelo cidadão estrangeiro
No recurso interposto da decisão proferida o cidadão … AA, inconformado com a medida de coação de colocação em centro de instalação temporária que lhe foi aplicada, pugnou pela sua imediata restituição à liberdade, considerando que a detenção sofrida e a medida de coação aplicada são ilegais.
Para o efeito o recorrente sustenta que a decisão recorrida resulta do ato administrativo, de 26-05-2025, que indeferiu o pedido de concessão de autorização de residência e impôs ao recorrente o abandono do território nacional.
Como tal ato administrativo, se encontra suspenso e a AIMA proibida de o executar desde pelo menos a data em que esta foi citada para a providência cautelar, situada em finais de agosto de 2025, a sua detenção ocorrida em 09-09-2025 e a medida de coação aplicada em 11-09-2025, desrespeitam ambas a decisão judicial do Tribunal administrativo que suspendeu o ato administrativo que gerou a detenção e as medidas de coação, tornando ambas ilegais.
Na situação em apreciação o recorrente é cidadão … AA e foi detido para ser presente a primeiro interrogatório judicial de cidadão estrangeiro em situação ilegal, no dia 09-09-2025, em virtude da sua permanência em território português, sem que para tal tivesse autorização de residência e por já ter sido notificado pela AIMA para efetuar o abandono voluntário do país no dia 24-06-2025, quando tal prazo terminou em 22-07-2025.
O interrogatório judicial teve início em 10-09-2025 e em 11-09-2025 foi aplicada ao cidadão estrangeiro a medida de coação de colocação em centro de instalação temporária, ao abrigo do disposto no artigo 142.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 23/2007, de 04-07, por se ter considerado a existência de um real e concreto perigo de fuga.
O artigo 142.º, da Lei 23/2007, de 04-07 - que regula a entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional, estabelece que:
«1. No âmbito de processos de expulsão, para além das medidas de coacção enumeradas no Código de Processo Penal, com excepção da prisão preventiva, o juiz pode, havendo perigo de fuga, ainda determinar as seguintes:
a) Apresentação periódica às autoridades policiais;
b) Obrigação de permanência na habitação com utilização de meios de vigilância electrónica, nos termos da lei;
c) Colocação do expulsando em centro de instalação temporária ou em espaço equiparado, nos termos da lei.
2. São competentes para aplicação de medidas de coacção os juízos de pequena instância criminal ou os tribunais de comarca do local onde for encontrado o cidadão estrangeiro.
3. Para efeitos do disposto no n.º 1, o perigo de fuga é aferido em atenção à situação pessoal, familiar, social e económica ou profissional do cidadão estrangeiro, com vista a determinar a probabilidade de se ausentar para parte incerta com o propósito de se eximir à execução da decisão de afastamento ou ao dever de abandono, relevando, nomeadamente, as situações nas quais se desconheça o seu domicílio pessoal ou profissional em território nacional, a ausência de quaisquer laços familiares no País, quando houver dúvidas sobre a sua identidade ou quando forem conhecidos atos preparatórios de fuga.».
Foi ao abrigo deste normativo que o recorrente foi colocado num centro de acolhimento temporário.
Entretanto já após a prolação da referida decisão o recorrente juntou prova documental da interposição de uma providência cautelar junto do Tribunal Central Administrativo de Lisboa, contra a Agência para Integração, Migrações e Asilo – AIMA, I.P., na qual pediu a suspensão da execução do ato administrativo, datado de 06-05-2025, que indeferiu o seu pedido de concessão de autorização de residência em território português.
Na sequência da referida providência, o Tribunal Central Administrativo de Lisboa emitiu despacho no qual ordenou que se advertisse a AIMA, I.P. da proibição de executar o referido ato administrativo.
Apreciemos, então, a questão suscitada pelo recorrente, tendo em consideração que à data da decisão prolatada em 1.ª instância, não constava do processo nem cópia da petição inicial apresentada no TAC, no dia 17-07-2025, nem do despacho prolatado pelo TAC, em 12-08-2025, no qual foi determinado que a “Entidade Requerida deve ser advertida, no ofício de citação, da proibição de executar o ato administrativo, como expressamente resulta do artigo 128º, nº 1, do CPTA.”.
Em primeiro lugar cumpre assinalar que a detenção do recorrente para ser presente a primeiro interrogatório judicial de cidadão estrangeiro em situação ilegal, pelo órgão de polícia criminal e a posterior decisão judicial que mandou aplicar a medida de coação de colocação do recorrente em centro de instalação temporária, não têm na sua génese a prática de qualquer crime, mas a situação irregular do cidadão estrangeiro em território português.
O cidadão estrangeiro permanecia em Portugal, desde 2023, indocumentado tendo sido notificado para abandonar voluntariamente o país em 24-06-2025 até 22-07-2025.
A medida imposta ao recorrente pelo Tribunal recorrido constitui uma medida privativa de liberdade, pois limitadora da sua liberdade de locomoção e livre circulação.
Para a sua decretação, a lei não exige a existência de fortes indícios da prática pelo cidadão estrangeiro de um crime doloso enquadrável numa das alíneas do n.º 1, do artigo 202.º, mas tão só que no âmbito de um processo de expulsão aquele permaneça em território nacional em desobediência aos requisitos de documentação exigidos pela Lei 23/2007 de 04-07, ou seja, em situação ilegal, nos termos do disposto no artigo 181.º, por referência aos artigos 9.º, 10.º e 32.º, n.º 1.
À data da prolação do despacho confirmativo da detenção e da colocação em centro temporário do cidadão estrangeiro, a este já havia sido denegada autorização de residência e inclusive havia sido notificado para abandonar voluntariamente o País.
Na situação em apreciação o recorrente para sindicar a legalidade do decidido pelo Juiz a quo tinha de questionar o requisito geral no qual assentou a decisão recorrida de o colocar em Centro de Instalação Temporária, ou seja, tinha de colocar em crise a existência do perigo de fuga ou a violação dos princípios da necessidade, adequação, proporcionalidade ou subsidiariedade.
O recorrente, todavia, para fundamentar a ilegalidade da detenção e colocação num centro de instalação temporário não convocou a inexistência de perigo de fuga ou a violação dos princípios da necessidade, adequação, proporcionalidade ou subsidiariedade.
O recorrente invocou, em rigor, a existência de uma decisão judicial do TAC, na qual é determinada a advertência de a AIMA estar proibida de executar o ato administrativo de impor ao cidadão estrangeiro AA o abandono do território nacional (cf. alínea g) das conclusões).
Essa determinação do TAC, contudo, impõe-se exclusivamente à AIMA que não poderá executar o afastamento do recorrente do território nacional sem a ação administrativa estar decidida.
A referida decisão administrativa do TAC, prolatada em 12-08-2025, todavia, não vinculava o Juiz a quo (decisão essa, aliás, com que o juiz só foi confrontado verbalmente, pois a cópia da mesma só foi apresentada em sede de recurso) que apreciou autonomamente os pressupostos da medida de coação e julgando-os verificados, aplicou de forma cautelar a colocação do cidadão estrangeiro em Centro de Instalação Temporária. Na situação apreciada o cidadão estrangeiro, apesar de permanecer em Portugal desde o ano de 2023, não dispunha de documento de autorização de permanência em território nacional e apesar de já ter sido notificado para abandonar voluntariamente o País no prazo que lhe foi fixado, em processo organizado pela AIMA (Agência para a Integração, Migrações e Asilo, IP), não o fez.
Note-se que ao contrário do pretendido pelo recorrente a aplicação da referida medida coativa não constitui início de execução do ato administrativo proferido pela AIMA, mas sim uma decisão autónoma com base em pressupostos legalmente previstos na Lei n.º 23/2007 de 04-07 e no Código Penal.
No recurso o requerente teria de colocar em causa a decisão do Juiz a quo, pois é ela que determina a sua colocação no centro de instalação temporária a aguardar o prazo de sessenta dias, mas ao invés o recorrente coloca em crise a decisão da AIMA determinativa do seu abandono coercivo do país.
Em rigor, o requerente pretende servir-se do recurso como meio de reação à decisão administrativa de recusa de autorização de residência em Portugal, visando através dele alcançar a discussão da legalidade dos fundamentos da decisão administrativa, não configurando essa circunstância fundamento de recurso em sede penal.
Na data da decisão recorrida o Tribunal recorrido teve por base a circunstância de o recorrente se encontrar indocumentado, permanecer ilegalmente em território nacional desde 2023 e até já ter uma ordem administrativa para abandonar voluntariamente o território nacional, que não cumpriu, sendo que a execução da expulsão, de cariz administrativo, não se confunde com a decisão judicial de colocação em centro de acolhimento temporário, esta de natureza penal.
Independentemente de a ordem de expulsão ter ou não a eficácia suspensa, a situação de permanência do recorrente em Portugal era ilegal, à data da prolação da decisão recorrida, pois aquele mantinha-se em território nacional desde 2023 indocumentado e contra ele já pendia processo na AIMA.
A medida coativa aplicada tem, pois, fundamento na situação de falta de documentação do recorrente e baseia-se no perigo de fuga. Não se dirige à execução do ato administrativo de expulsão, nem consubstancia o início da execução do mesmo. Face à sua natureza cautelar a colocação do cidadão estrangeiro em centro de instalação temporária visa apenas e tão só garantir que o perigo de fuga apurado no caso não se concretizará, impedindo a oportuna execução da decisão administrativa de afastamento coercivo do requerente do território nacional, por parte da competente Autoridade Administrativa.
Como o processo de expulsão do recorrente se mantinha à data da decisão e não se encontrando nas conclusões do recurso qualquer demonstração, mesmo ténue, de que no caso concreto inexistia o perigo de fuga, que esteve na base da decisão judicial de aplicação da medida de coação de colocação do recorrente em centro de instalação temporária, ou das quais resultasse, uma distinta situação pessoal, familiar, social, económica e profissional na qual o recorrente se encontrasse aquando da aplicação da referida medida de coação, estavam reunidos os pressupostos que estiveram na base da aplicação da medida de coação de colocação do recorrente em centro de instalação temporária, proferida no dia 11-09-2025.
A medida de coação foi aplicada dentro das condições legalmente previstas e à data da sua prolação existiam as circunstâncias que justificaram a sua aplicação, não assistindo qualquer razão ao recorrente, não merecendo qualquer acolhimento o recurso interposto.
III. DECISÃO
Nestes termos e com os fundamentos expostos:
1. Nega-se provimento ao recurso interposto pelo cidadão estrangeiro AA e, em consequência, mantém-se na íntegra a decisão recorrida.
2. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (artigos 513.º, n.ºs 1 e 3 e 514.º, n.ºs 1 do CPP e artigo 8.º, n.º 9 e tabela III anexa, do RCP).
Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP consigna-se que o presente Acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelas signatárias.
Évora, 11 de novembro de 2025.
Beatriz Marques Borges
Laura Goulart Maurício
Carla Francisco