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SIGILO BANCÁRIO
DISPENSA
PREVALÊNCIA
MEIOS DE PROVA
Sumário
1. A dispensa do sigilo bancário para a obtenção de prova em processo civil, adjetivada pelo incidente previsto no artigo 135.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, por força do n.º 4 do artigo 417.º do Código de Processo Civil, exige que o direito à prova se afirme como o interesse preponderante perante o direito que o sigilo visa salvaguardar. 2. Essa prevalência só pode estabelecer-se após um juízo casuístico de ponderação dos factos que se querem demonstrar com o meio de prova, da relevância deles no preenchimento da causa de pedir ou do fundamento das exceções e ainda (e não menos importante) da imprescindibilidade daquele meio de prova para aportar a convicção sobre essa matéria. 3. Não sendo fornecidos elementos que permitam convir pela inexistência no processo (ou pela dificuldade de obtenção) de outros meios de prova que, sem a dispensa do sigilo e consequente restrição dos direitos que este visa tutelar, permitam alcançar o resultado visado, não estão verificados os pressupostos para o deferimento do incidente. (Sumário da Relatora)
Texto Integral
Processo n.º 97/25.0T8PTM-A.E1 Forma processual – incidente de levantamento de sigilo Tribunal – Juízo Central Cível de Portimão, Juiz 3 Autor – (…) Réus – (…), (…), (…) e (…).
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Acordam os Juízes Desembargadores da 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
Relatório
I. Identificação das partes e objeto da ação.
(…) intentou ação declarativa, sob a forma comum de processo, contra (…), (…), (…) e (…).
Formulou os seguintes pedidos:
a) Declaração de nulidade, por simulação, do negócio celebrado entre o 1º Réu e o 2º Réu, levado à escritura pública de doação outorgada em 23 de fevereiro de 2024;
b) Cancelamento de todo e qualquer registo efetuado com base nessa escritura.
Alegou, em síntese, que é proprietário de um prédio rústico confinante com um prédio misto que era do 1º Réu, tendo declarado pretender exercer o direito de preferência no negócio de compra e venda cujo projeto aquele outro lhe comunicou. Aduziu que tendo o demandado declarado desistir desse negócio, lhe moveu uma ação judicial com vista à execução específica da promessa celebrada. No decurso dessa ação, constatou ter sido outorgada uma escritura pública, pela qual o 1º Réu declarou doar ao 2º Réu, que declarou aceitar, o referido prédio. Reputou esse negócio de simulado por não terem as partes, nele intervenientes, querido efetuar qualquer doação, tendo o mesmo visado exclusivamente obstar ao direito de preferência que ele exerceu nos sobreditos termos, sendo que o 2º Réu atuou nesse ato como interposto fictício, pretendendo-se encobrir uma compra e venda a favor do 3º e 4º Réus.
Juntou documentos, arrolou prova testemunhal e formulou o seguinte requerimento:
“Com base no principio do direito à prova e na descoberta da verdade material e consequente interessa na boa administração da justiça, requer-se: (i) seja oficiado o Banco de Portugal para vir informar quais as Instituições Bancárias em que o primeiro Réu é titular de contas bancárias e, subsequentemente, (ii) sejam notificadas aquelas entidades para vir juntar aos autos os extractos de conta entre Setembro de 2023 e 28 de Fevereiro de 2024, atentas as datas da comunicação de preferência e correspondente promessa com o terceiro e quarto Réus e a outorga da escritura com o segundo Réu”.
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Findos os articulados, realizou-se audiência prévia, na qual foi proferido despacho saneador, fixado o valor da ação, definido o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.
Na mesma audiência e, em sede de decisão dos requerimentos probatórios, foi proferido o seguinte despacho:
“Oficie ao Banco de Portugal para que preste as informações solicitadas pelo Autor no ponto n.º 1 da alínea b), e, posteriormente, as entidades que vierem ser identificadas, nos termos do n.º 2 da alínea b) da petição inicial – artigo 432.º do C.P.C.”.
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Em resposta ao ofício enviado conforme determinado naquele despacho, o Banco de Portugal, por comunicação de 18 de julho de 2025, declarou:
“O Banco de Portugal, em resposta aos ofícios e assunto acima mencionados, vem expor a V. Exa. o seguinte: A informação sobre contas bancárias, constante da Base de Dados de Contas, encontra-se coberta pelo dever de segredo profissional estabelecido no artigo 80.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (…). O Banco de Portugal só poderá, legitimamente, facultar aquela informação nos termos previstos no artigo 81.º-A ou nos casos excecionais previstos no n.º 2 do artigo 80.º do referido Regime Geral, ou seja, mediante autorização expressa do interessado (titular dos dados) ou, em alternativa, mediante notificação do levantamento judicial do dever de segredo, nos termos previstos no artigo 135.º do Código de Processo Penal”.
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II. Objeto do incidente.
Na sequência do acima exposto, em 29 de outubro de 2025, foi proferido na ação despacho judicial, com o seguinte teor: “O Autor (…) veio requerer seja determinado o levantamento do sigilo bancário em relação à identificação das instituições financeiras em que o 1º Réu (…) é titular de contas bancárias e, subsequentemente, que sejam notificadas essas entidades para vir juntar aos autos os extratos de conta entre setembro de 2023 e 28 de fevereiro de 2024, atentas as datas da comunicação de preferência e correspondente promessa com o 3º e 4º Réus (…) e (…) e a outorga da escritura com o 2º Réu (…). Em suma invoca que, em sede de petição, formulou o referido pedido, que foi admitido, vindo o Banco de Portugal deduzir escusa na prestação da informação, o Réu (…) não autorizou o Banco a prestar informação sobre contas bancárias e os elementos revelam-se essenciais à descoberta da verdade e boa administração da justiça. O Réu (…) veio deduzir oposição, em suma, por entender que o pedido não tem fundamento, que recusa a autorização solicitada pelo Banco de Portugal e que o período temporal indicado é invasivo, atendendo a que a escritura de doação foi outorgada em 23 de fevereiro de 2024. Apreciando. Nos presentes autos encontra-se em discussão a simulação do negócio de doação realizado entre os dois primeiros Réus, com o intuito de ocultar um negócio oneroso celebrado entre o primeiro e os terceiro e quarto Réus e, consequentemente, obstar ao exercício, por parte do Autor de um direito de preferência. Conforme o Autor invocou, o pedido de prestação de informação acerca das contas bancárias e movimentos no indicado período, visa apurar o recebimento de quantias monetárias por conta do ato translativo da propriedade. É, assim, importante para a descoberta da verdade, o conhecimento da existência desses movimentos bancários, sendo que o primeiro Réu não autorizou o levantamento do sigilo bancário. A informação a enviar pelo Banco de Portugal e pelas entidades bancárias, para esclarecimentos destesfactos, versa sobre matéria sujeita a segredo bancário – artigo 78.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31/12, alterado pela Lei n.º 15/2019, de 12.02. (…) Posto isto, atendendo às circunstâncias do caso em apreço, nomeadamente à causa de pedir e ao pedido, pelos motivos apontados pelo Autor, justifica-se que seja prestada informação quanto à identificação das entidades bancárias onde possui contas bancárias e, subsequentemente, os movimentos bancários que ocorreram pouco antes da notificação para preferência endereçada ao Autor e que antecederam a outorga da escritura de doação, prova essa relevante para apurar se existiu efetivo pagamento de quantias monetárias por parte dos terceiro e quarto Réus ao primeiro Réu. Como tal, ao abrigo do disposto nos artigos 135.º, n.ºs 2 e 3 e 182.º, n.º 2, do C.P.P., por remissão do disposto nos artigos 417.º, n.º 4, do C.P.C. e 79.º, n.º 2, alínea e), do DL 298/92, suscita-se o incidente de quebra do sigilo bancário perante o Tribunal da Relação de Évora, para que o Banco de Portugal possam informar a identificação das entidades bancárias onde o Autor é titular de contas bancárias, e, subsequentemente, que essas instituições bancárias identificadas pelo Banco de Portugal possam enviar os extratos bancários dessas contas bancárias referentes ao período compreendido entre setembro de 2023 e 28 de fevereiro de 2024”.
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III. Pressupostos processuais
Este Tribunal da Relação de Évora é o competente em razão da matéria e da hierarquia para a decisão do incidente.
Não se verificam nulidades, exceções ou outras questões prévias que possam obstar ao conhecimento do mérito do incidente.
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Fundamentação
I. Factos provados
Os factos relevantes para a decisão do incidente são os que resultam do relatório acima efetuado, para o qual se remete.
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II. Aplicação do Direito.
No cerne do incidente encontram-se as normas do artigo 417.º, n.º 1, 3, alínea c) e 4, do Código Processo Civil, com a seguinte redação:
“1. Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados. (…) 3. A recusa é, porém, legítima se a obediência importar: (…)
c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4.
4. Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado”.
A norma para a qual este n.º 4 remete encontra-se no artigo 135.º do Código de Processo Penal e tem o seguinte teor:
“1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos. 2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento. 3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento” (sublinhado aditado ao original).
Sobre a interpretação desse artigo 135.º do Código de Processo Penal, o Supremo Tribunal de Justiça adotou jurisprudência uniforme no Acórdão nº 2/2008, de 13 de fevereiro de 2008, nos seguintes termos:
“1) Requisitada a instituição bancária, no âmbito de inquérito criminal, informação referente a conta de depósito, a instituição interpelada só poderá legitimamente escusar-se a prestá-la com fundamento em segredo bancário; 2) Sendo ilegítima a escusa, por a informação não estar abrangida pelo segredo, ou por existir consentimento do titular da conta, o próprio tribunal em que a escusa for invocada, depois de ultrapassadas eventuais dúvidas sobre a ilegitimidade da escusa, ordena a prestação da informação, nos termos do n.º 2 do artigo 135.º do Código de Processo Penal; 3) Caso a escusa seja legítima, cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente se suscitar perante o Supremo Tribunal de Justiça, ao pleno das secções criminais, decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo”.
A primeira premissa que se desprende do enquadramento legal acima traçada, é que a recusa de prestação de informação se mostre fundada numa previsão que imponha ao destinatário da requisição a preservação do sigilo sobre a informação.
A verificação desse pressuposto deve ser aferida pelo Tribunal que requisita a informação, pois que, só perante a escusa legítima poderá, com propriedade, discutir-se a quebra, levantamento ou dispensa do dever de sigilo.
Na situação em presença, o Tribunal solicitante, no despacho acima transcrito parcialmente, analisou a escusa do Banco de Portugal e teve-a como fundada.
Está em causa o artigo 80.º, n.ºs 1 e 2, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro), com esta redação:
“Artigo 80.º Dever de segredo do Banco de Portugal
1 - As pessoas que exerçam ou tenham exercido funções no Banco de Portugal, bem como as que lhe prestem ou tenham prestado serviços a título permanente ou ocasional, ficam sujeitas a dever de segredo sobre factos cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício dessas funções ou da prestação desses serviços e não poderão divulgar nem utilizar as informações obtidas. 2 - Os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados mediante autorização do interessado, transmitida ao Banco de Portugal, ou nos termos previstos na lei penal e de processo penal”.
Sendo a recusa legítima, como o foi, ingressa-se no cerne do incidente, exigindo-se, em ordem a avaliar os pressupostos da dispensa, duas condições prévias:
- a indicação da matéria de facto que se pretende demonstrar com a informação requisitada;
- o fornecimento de dados processuais que permitam analisar a adequação, a necessidade e indispensabilidade da mesma informação.
Em anotação ao citado artigo 417.º do Código de Processo Civil lê-se:
“O incidente de quebra de sigilo profissional (artigo 135.º, n.º 3, do CPP) pressupõe uma escusa legítima para depor, fundada em sigilo efetivamente existente. Nesse contexto, cabe ao tribunal superior decidir se poderá justificar-se a quebra de sigilo, face ao princípio da prevalência do interesse preponderante, parametrizado pela imprescindibilidade do depoimento / informação para a descoberta da verdade e pela necessidade de proteção de bens jurídicos” (Geraldes, Pimenta, Pires de Sousa, Código de Processo Civil anotado, vol. I, Almedina, 2018, pág. 492).
No mesmo sentido e por um dos anotadores: “O segmento da norma do artigo 135.º, n.º 3, do CPP, que apela à «imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade», constitui, de per si, uma concretização do princípio da proibição do excesso ou da proporcionalidade em sentido amplo” (Luís Filipe Pires de Sousa, Prova testemunhal, 2016, reimpressão, Coimbra, Almedina, pág. 246 apud o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido no processo n.º 266/15.8GDL-E.E1).
No Acórdão de 9 de novembro de 2017 do Tribunal da Relação de Évora sumariou-se:
“O dever de segredo deve ceder, por prevalência do interesse do acesso ao direito e da descoberta da verdade material, com vista à realização da justiça, desde que se apure que a pretendida informação é instrumentalmente determinante, necessária e imprescindível para demonstrar a factualidade controvertida” (processo n.º 842/11.1TBVNO-B.E1, disponível em www.dgsi.pt).
Sobre o que importa efetivamente no juízo sobre a prevalência do interesse preponderante, lê-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24 de abril de 2025:
“Não bastam afirmações apriorísticas de que o interesse na realização da boa administração da justiça deverá prevalecer sobre o interesse particular do cliente bancário em não ver divulgada informação sobre a sua relação com determinada instituição bancária; ou que, estando em causa um direito de personalidade (à reserva da vida privada), o mesmo deverá prevalecer sobre o reconhecimento de um direito patrimonial (objecto da acção judicial onde se pretende obter a informação sujeita a sigilo bancário). (…) Concluindo, em sede de processo civil, a dispensa de invocado sigilo bancário e de supervisão reveste natureza excepcional; depende sempre de um juízo concreto, fundado na específica natureza da acção e na relevância e intensidade dos interesses da parte que pretende obter prova através daquela dispensa. E só deverá ser concedida se a informação pretendida for necessária, tendo em conta o pedido, a causa de pedir, os temas de prova, bem como os ónus e as regras de prova, e seja imprescindível, no sentido de não poder ser obtida de outro modo” (processo n.º 10868/23.7T8LSB-A.L1-6, no referido suporte, sublinhados no original).
No Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 14 de janeiro de 2021, o sumário é este:
“I - Em incidente de levantamento do sigilo profissional de advogado, a apreciação pelo tribunal superior do critério da prevalência do interesse preponderante pressupõe a indicação da factualidade controvertida que se pretende demonstrar com recurso ao depoimento em causa, cujo conhecimento pela testemunha se encontra abrangido pelo sigilo profissional invocado, bem como a relevância de tal depoimento, designadamente decorrente da eventual inexistência de outros meios de prova de tal factualidade; II – Não tendo sido indicada a matéria que se pretende provar com o depoimento em causa, nem a eventual inexistência de outros meios probatórios ou qualquer elemento relativo à relevância do depoimento abrangido pelo sigilo profissional, não poderá a Relação considerar verificados os critérios dos quais faz a lei depender o levantamento do sigilo profissional” (processo n.º 87/19.2T8CCH.E1, no mesmo suporte).
Regressa-se ao que acima se afirmou sobre as pré-condições que devem estar verificadas para apurar a necessidade, a adequação e a imprescindibilidade da informação coberta pelo sigilo que se pretende ver levantado.
Repetindo: há que saber qual o facto ou conjunto de factos que se pretendem provar ou infirmar com a informação, assim como há que determinar, com conhecimento dos dados concretos do processo (v.g. a prova disponível, a já produzida, as eventuais limitações que resultem do direito material probatório aplicável), se a informação a obter com a dispensa do sigilo é imprescindível para a obtenção do efeito probatório visado.
No caso concreto, no seu requerimento probatório, a parte que pediu a informação nada adiantou ou indicou sobre quais os factos que pretendia demonstrar com a informação, falhando, desse modo, o cumprimento do disposto na parte final do n.º 1 do artigo 429.º, aplicável à obtenção de informação de terceiros por força do artigo 432.º, ambos do Código de Processo Civil.
Tê-lo-á feito posteriormente, uma vez no despacho em que suscita o incidente o Tribunal de 1ª instância afirma que “conforme o Autor invocou, o pedido de prestação de informação acerca das contas bancárias e movimentos no indicado período, visa apurar o recebimento de quantias monetárias por conta do ato translativo da propriedade”.
Está, assim, em causa saber se numa conta bancária titulada pelo 1º Réu existe um movimento a crédito, proveniente do 3º e 4º Réus (os interessados na compra), correspondente ao preço da alienação do prédio.
Sabendo que a causa de pedir da ação é a nulidade do contrato de doação celebrado entre o 1º e 2º Réus por simulação absoluta, aquele é apenas um facto probatório ou elemento indiciário.
Sobre o conceito de facto probatório, ensinam os Professores Lebre de Freitas e Isabel Alexandre “a natureza da prova em processo civil impunha-o já quando o CPC de 1961 (antes da revisão) não era expresso em dizê-lo: para chegar à conclusão sobre a realidade dos factos principais, o tribunal, exceto, por vezes, na prova por inspeção, lança mão de regras da experiência que estabelecem a ligação entre eles e os factos (probatórios) com os quais é diretamente confrontado, tidos em conta factos (acessórios) que permitem a aferição concreta dessa ligação” (Código de Processo Civil anotado, volume 1º, 4ª edição, Almedina, pág. 37).
A partir desse facto probatório, conjugado com outros e usando o raciocínio próprio das presunções judiciais (artigo 349.º do Código Civil) pretender-se-á demonstrar o que se afirma nos artigos 33º, 34º, 37º e 38º da petição inicial, ou seja:
- que o 1º Réu não quis doar ao 2º Réu o imóvel;
- que o 2º Réu não quis aceitar a liberalidade que aquele outro declarou;
- que prestaram essas declarações negociais por acordo entre eles e com o 3º e 4º Réus, para que estes, através do 2º Réu, viessem a comprar ao 1º Réu, o imóvel, assim enganando o Autor enquanto titular do direito de preferência.
Compreende-se a pertinência da informação sobre o ingresso do valor do preço numa qualquer conta bancária do 1º Réu.
Contudo essa pertinência é insuficiente, uma vez que, como se viu, o princípio da prevalência do interesse preponderante exige a indispensabilidade da informação e, no caso, não são fornecidos dados que permitam convir pela inexistência ou pela dificuldade na obtenção de outros meios de prova que conduzam à apreensão daquela factualidade.
Não basta que a informação que está a coberto do sigilo seja relevante para a convicção sobre os factos da causa de pedir ou do fundamento da exceção. É necessário que se possa afirmar que não existem, com menor custo (para o direito que o sigilo quer salvaguardar) outros instrumentos de alcançar a mesma convicção ou que esses meios apenas com muita dificuldade podem ser acedidos.
Questiona-se no caso: não existem na ação e dificilmente podem ser obtidos outros meios de prova que permitam convir que o 1º Réu não quis doar o imóvel ao 2º Réu e este não quis ser agraciado com essa dádiva?
Existem os antecedentes relativos ao frustrado exercício da preferência.
Por outro lado, estando em causa a arguição da simulação por um terceiro não se aplicam as limitações à produção da prova testemunhal e ao uso de presunções judiciais, existindo, neste segundo domínio, certamente todo um raciocínio probatório relevante a desenvolver em torno do animus donandi subjacente ao negócio declarado (artigos 394.º, n.º 2 e 351.º do Código Civil).
Não vindo fornecidos, na instrução do incidente, dados que permitam convir pela imprescindibilidade do meio de prova, sem que a mera configuração da causa de pedir permita a este Tribunal aceder-lhes, o pedido de levantamento do sigilo deve ser indeferido.
Conclui-se, assim, que a insuficiência de elementos para o preenchimento dos requisitos de procedência do incidente impõe o seu indeferimento, o que não impedirá a eventual renovação do meio processual, devidamente fundamentado, se e quando as condições para o preenchimento dos seus pressupostos se verifiquem.
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III. Responsabilidade tributária
Uma vez que o incidente foi suscitado oficiosamente não há tributação do mesmo.
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Decisão
Face ao acima exposto, acordam os Juízes que compõem a 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, em indeferir o pedido de levantamento do sigilo bancário formulado neste incidente.
Sem custas.
Évora, 27 de novembro de 2025
Maria Emília Melo e Castro
Vítor Sequinho dos Santos
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
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SUMÁRIO (elaborado nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil)
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