I – Não obstante os artigos 1104.º e 1105.º do Código do Processo Civil, ao regularem a tramitação do incidente de oposição ao inventário, nada estabelecerem quanto às consequências da falta de resposta dos interessados à matéria da oposição deduzida, por força do disposto no artigo 549.º, n.º 1, in fine, do CPC, deve aplicar-se, em tal sede, o preceituado no artigo 574.º, n.º 2, do mesmo código, considerando-se, por isso, admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito.
II – Não tendo a alegação do cabeça-de-casal sobre a inexistência de bens comuns a partilhar sido impugnada pela requerente do inventário para partilha de bens subsequente a divórcio, nem tendo esta assumido no processo, previamente, qualquer posição concreta incompatível com a admissão dos factos alegados, deve haver lugar à extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide.
Relator: José Nuno Duarte; 1.ª Adjunta: Teresa Fonseca; 2.º Adjunto: Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo.
Acordam os juízes signatários no Tribunal da Relação do Porto:
I – RELATÓRIO
Por apenso ao processo em que foi decretado o divórcio, por mútuo consentimento, de AA e BB, casados que foram sob o regime da comunhão de adquiridos, veio AA, através de requerimento subscrito pela respectiva patrona oficiosa, a sra. advogada CC, requerer inventário para partilha dos bens comuns do casal, terminando tal requerimento da seguinte forma: «(…) Termos em que deve a presente acção ser recebida, devendo V. Ex.ª ordenar a citação do requerido, nos termos e para os efeitos do disposto pelo artigo 1084.º n.º 2 in fine e 1102.º, ambos do CPC, designadamente para juramento e posterior apresentação da relação dos bens comuns a partilhar, com os respectivos documentos».
Por despacho de 16-01-2025, o tribunal nomeou BB como cabeça de casal e ordenou que se procedesse à sua citação “… nos termos previstos no art. 1100º nº 2 al b), com as advertências constantes do art. 1102º nº 1 do Cód. Proc. Civil”.
Efectuada a citação, o cabeça de casal, através de requerimento subscrito pelo respectivo mandatário judicial, veio juntar aos autos declaração de compromisso de honra e deduzir oposição ao inventário, apresentando, para tal, os seguintes fundamentos: «1º. Inexistem quaisquer bens comuns susceptíveis de serem partilhados entre requerente e requerida. / 2º. Com efeito, requerente e requerida aquando da separação e consequente divórcio, partilharam entre si e de mútuo acordo, os bens móveis então existentes, pois outros bens inexistiam. / 3º. Donde, o presente processo não tem qualquer fundamento, nem objecto, constituindo, mais uma vez, uma tentativa de a requerente discutir o que já não tem discussão».
Este requerimento foi notificado à requerente através de notificação entre mandatários nos termos do artigo 221.º do Código do Processo Civil.
Decorridos mais de 30 dias sem que a requerente tenha apresentado qualquer resposta, em 4-04-2025, foi proferida sentença com a seguinte parte dispositiva:
«(…) julgo procedente a oposição ao presente inventário declarando a inutilidade da lide por inexistência de bens a partilhar.
Custas a cargo da requerente.»
Nestes termos, e nos mais que V. Exas. Doutamente suprirão, requer-se a V. Exas se dignem: Admitir o presente recurso de apelação. Julgar o presente recurso procedente, e, em consequência: Revogar o Douto Despacho recorrido, determinando a prossecução do processo de inventário para partilha dos bens comuns do casal.
Termos em que e nos mais de direito, deve o recurso improceder, com as legais consequências.
Dispensados os vistos legais, cumpre decidir.
Uma vez que a recorrente, nas respectivas alegações de recurso, apresentou um documento, a primeira questão a abordar por este tribunal da Relação terá de ser a da admissibilidade da junção aos autos desse elemento probatório.
Efectuada essa apreciação, e porque, sem prejuízo da apreciação por parte do tribunal ad quem de eventuais questões que se coloquem de conhecimento oficioso [1], o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (cf. artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código do Processo Civil), as demais questões a tratar são as seguintes:
i) da nulidade assacada à sentença recorrida
ii) do mérito da sentença recorrida.
A factualidade relevante para a decisão das questões que se colocam no âmbito deste recurso é aquela que resulta dos desenvolvimentos processuais ocorridos (todos eles devidamente documentados nos autos) e que se encontram descritos no relatório pelo qual se iniciou o presente acórdão.
Apreciemos, pois, tais questões.
A) Da admissibilidade da junção do documento
O artigo 651.º, n.º 1, do Código do Processo Civil estatui que “[a]s partes apenas podem juntar documentos às alegações de recurso nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância”.
Por sua vez, dispõe o artigo 425.º do Código do Processo Civil, que “[d]epois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”.
Da conjugação destes preceitos legais resulta que, aquando da apresentação das alegações de recurso, apenas é admissível a junção de prova documental quando estejam em causa:
a) documentos cuja apresentação não tenha sido possível até esse momento; ou
b) documentos cuja junção se tenha tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.
No caso sub judice, a recorrente pretende juntar aos autos a acta de uma diligência judicial realizada em 22-11-2017 na qual ela própria foi uma das partes intervenientes. Seja devido à anterioridade desse documento em relação à decisão objecto do presente recurso (a decisão recorrida foi proferida em 4-04-2025), seja devido ao facto de não se cogitar que a recorrente dele não tenha tido conhecimento (pois esteve presente na diligência judicial em causa), é de excluir que a junção do documento em causa seja admissível devido à impossibilidade da sua apresentação anterior.
Subsiste, consequentemente, a questão de saber se a junção do documento se tornou necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.
Quanto a este pressuposto, apesar da literalidade do preceito poder gerar dúvidas quanto ao seu alcance, partilhamos do entendimento, claramente consolidado na nossa doutrina e na nossa jurisprudência [2], de que a mera surpresa quanto ao resultado da decisão não pode justificar que o recorrente se apresente a juntar documentos para provar factos que já antes da decisão sabia estarem sujeitos a prova. No caso sub judice, afigura-se-nos claro que a ora recorrente não podia desconhecer que, face aos fundamentos da oposição ao inventário que o seu ex-marido havia deduzido, havia a possibilidade de o tribunal vir a proferir decisão como aquela que foi proferida. Por isso, para defender a sua posição, a mesma podia ter procedido à junção do documento que só agora, em sede de recurso, surge a apresentar. Como tal não aconteceu, esgotou-se a correspondente possibilidade, não se mostrando, pois, reunidas as condições necessárias para que, com base no disposto no artigo 651.º, n.º 1 do Código do Processo Civil, o documento em causa ora possa ser junto a estes autos.
Acrescente-se, por fim, que, sustentando a própria recorrente que o tribunal a quo, quando proferiu a decisão recorrida, podia já ter valorado o documento em causa, por o mesmo se encontrar no processo de divórcio relativamente ao qual os presentes autos de inventário constituem apenso, é óbvio que, segundo a sua própria tese, não se mostra necessário para a apreciação do recurso que tal documento seja junto neste processo.
Pelo exposto, não se admite a junção aos autos do documento que a recorrente apresentou com as suas alegações.
B) Da nulidade da sentença
A recorrente alegou que a sentença recorrida padece de nulidade por omissão de pronuncia, já que o tribunal a quo não procedeu a qualquer análise da acta da tentativa de conciliação efectuada no âmbito do processo do divórcio entre si e o ora recorrido, não se pronunciando, assim, sobre o que aí consta quanto à existência de bens a partilhar.
O vício arguido está previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código do Processo Civil e ocorre sempre que “[o] juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”.
Esta nulidade processual articula-se directamente com o disposto no artigo 608.º do Código do Processo Civil, preceito legal que exige que o tribunal, ao nível da sentença, resolva todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação ou que, de acordo com a lei, devam ser conhecidas oficiosamente, com excepção apenas daquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
No caso sub judice, cumpria ao tribunal a quo apreciar a oposição ao inventário deduzida pelo cabeça-de-casal. Nesse requerimento de oposição ao inventário, o requerido havia alegado que inexistiam bens a ser partilhados. A requerida, por sua vez, havia silenciado qualquer resposta a esta alegação, jamais introduzindo nos autos, por isso, qualquer questão relativa aos acordos que estabelecera com o seu ex-marido no âmbito da tentativa de conciliação que culminou com o decretamento do divórcio de ambos, por mútuo consentimento, ou à necessidade de ser considerado o teor da acta dessa diligência judicial. Nessa conformidade, o tribunal a quo, pelo facto de não ter vertido na sentença que proferiu qualquer considerando sobre tais acordos ou sobre o teor dessa acta, não incorreu em qualquer vício processual, não se verificando – manifestamente – qualquer omissão de pronúncia que torne nula a decisão recorrida.
Indefere-se, pois, a arguição de nulidade efectuada pela recorrente.
C) Do mérito da sentença
Resta aferir se a sentença recorrida deve ser confirmada ou se, tal como propugna a recorrente, deve ser determinada a prossecução do processo de inventário para partilha dos bens comuns do ex-casal.
Resulta dos autos que, conforme foi afirmado pelo tribunal a quo e não foi minimamente questionado no presente recurso, a ora recorrente, AA, depois de ter sido regularmente notificada do requerimento de oposição ao inventário deduzido pelo seu ex-marido, BB, não apresentou qualquer resposta quanto ao mesmo. Por isso, e dado que a oposição ao inventário se baseou na alegação de que inexistiam bens comuns a partilhar, é mister saber se, tal como foi também entendimento do tribunal a quo, a falta de impugnação dessa alegação produziu os efeitos cominatórios que, nos termos gerais do processo comum de declaração, se encontram previstos no artigo 574.º, n.º 2, do Código do Processo Civil.
A resposta à pergunta que se acaba de enunciar, desde já se pode dizer, é positiva, pois, em virtude de o artigo 1105.º do Código do Processo Civil não referir qual a consequência da falta de resposta à oposição ao inventário, impõe-se recorrer, face ao preceituado no artigo 549.º, n.º 1, in fine, do Código do Processo Civil, àquilo que se encontra estabelecido para o processo comum, sede em que, inelutavelmente, somos reconduzidos para o disposto no artigo 574.º, n.º 2, do Código do Processo Civil. Isto mesmo, de resto, é sustentado por António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa quando, em anotação ao artigo 1105.º do Código do Processo Civil [3], escrevem: “[A] não ser que a lei disponha de modo diverso, por aplicação supletiva das regras gerais, a falta de resposta, quanto aos fundamentos da contestação ou a algum facto novo aduzido, determina a aplicação do efeito cominatório semipleno, nos termos da conjugação dos artigos 549º, nº1, e 587º, nº1. Assim, como regra geral e sem embargo das exclusões legais (v.g. prova documental necessária), ocorre a admissão dos factos que não tenham sido impugnados por qualquer dos requeridos diretamente interessados na sua resposta, ou antecipadamente” [4].
Pode haver até alguma margem de discussão sobre se o artigo 574.º, n.º 2, do Código do Processo Civil se aplica ao caso por remissão directa do 549.º, n.º 1, in fine, do Código do Processo Civil, ou se apenas se chega à aplicação supletiva das regras do processo comum após se percorrer o disposto nos artigos 1091.º e 293.º, n.º 2, do Código do Processo Civil. De uma forma ou de outra, parece-nos indiscutível que, em virtude de o artigo 1105.º do Código do Processo Civil, ao regular a tramitação subsequente ao exercício pelos interessados das faculdades de oposição, impugnação ou reclamação previstas no n.º 1 do antecedente artigo 1104.º, nada estabelecer quanto às consequências da falta de resposta dos interessados às questões suscitadas, é imperioso recorrer ao artigo 574.º, n.º 2, do Código do Processo Civil e, logo, devem ser considerados admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito; somente a admissão de factos instrumentais é que pode ser afastada por prova posterior.
Aqui chegados, temos como certo que, no caso dos autos, devido à falta de resposta da ora recorrente, os factos que o pelo cabeça-de-casal alegou quanto à inexistência de bens comuns a partilhar devem ser tidos como admitidos, pois é manifesto não se verificar qualquer das excepções ao efeito cominatório previstas no n.º 2 do artigo 574.º do Código do Processo Civil, designadamente se considerarmos que: (i) a excepção da oposição dos factos com a defesa no seu conjunto, por ter inexistido defesa, não se aplica ao caso, nem sequer se podendo recolher in casu qualquer tomada de posição da requerente do inventário concretamente incompatível com a admissão dos factos alegados [5]; (ii) a definição da existência e da enumeração dos bens a partilhar constitui matéria susceptível de confissão, porque não subtraída à disponibilidade das partes; (iii) nenhuma norma impõe, também, que a prova dessa factualidade careça de ser feita por documento escrito.
Finalmente, refira-se que não se nos afigura ter razão a recorrente quando argumenta que, não obstante não ter apresentado articulado de resposta à oposição ao inventário, será possível valorar o teor da acta da conferência de tentativa de conciliação e as demais provas documentais que se encontram no processo de divórcio apenso a estes autos de inventário para, com base nos mesmos, se formular um juízo sobre a existência de bens a partilhar. Isso acontece, desde logo, porque tais meios de prova não foram indicados com os requerimentos e/ou respostas dos interessados, tal como se encontra previsto no n.º 2 do artigo 1105.º do Código do Processo Civil. Por outro lado, apesar de o n.º 3 deste artigo aludir à possibilidade de o tribunal desenvolver diligências oficiosas para decidir os incidentes de oposição ao inventário (ou de impugnação ou reclamação), essa possibilidade só se verifica quando, face à posição assumida pelas partes nos respectivos articulados, há controvérsia quanto às questões a dirimir; não quando, como aconteceu no caso dos autos, nenhuma impugnação houve quanto à alegação do cabeça-de-casal sobre a inexistência de quaisquer bens a partilhar, com a consequente produção do efeito cominatório previsto no artigo 574.º, n.º 2, do Código do Processo Civil.
Nenhuma censura merece, pois, a decisão proferida na primeira instância que julgou procedente a oposição ao inventário e, por inexistência de bens a partilhar, declarou a inutilidade da lide, o que, nos termos do artigo 277.º, al. e) do Código do Processo Civil, constitui causa de extinção da instância.
A recorrente, atento o seu decaimento, deve suportar as custas da apelação (cf. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código do Processo Civil).
Pelos fundamentos expostos, acorda-se em:
a) negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida;
b) condenar a recorrente no pagamento das custas da apelação.
Notifique.
(Elaborado pelo relator nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do C.P.C.)
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(redigido pelo primeiro signatário segundo as normas ortográficas anteriores ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990)