FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
EXCECIONAL COMPLEXIDADE
Sumário

Sumário:
I - Só é causa de nulidade (no caso das sentenças) ou de irregularidade (no caso de despachos, aqui nos termos do artº 123º do CPP), a falta absoluta de fundamentação, não se verificando os apontados vícios perante uma fundamentação deficiente.
II – A análise da excecional complexidade de um processo e a respetiva declaração, ao abrigo do artº 215º nº 3 do CPP não é igual em todas as fases do processo, dependendo das diligências a empreender, Ou seja, o facto de um processo não ter tido excecional complexidade durante as fase de inquérito e de instrução não impede que se venha a verificar essa excecional complexidade chegados à fase do julgamento.
III - Ao exigir-se a intervenção e decisão de um juiz para declarar a excecional complexidade, garantem-se os direitos fundamentais e salvaguarda-se o direito à liberdade e à segurança, com consagração constitucional, que apenas pode ser restringido com critérios de proporcionalidade.
IV- Justifica-se a declaração de excecional complexidade considerando a natureza dos ilícitos em causa, o carácter organizado e transnacional do crime e a circunstância de estar em causa uma elevadíssima quantidade de estupefacientes, tendo presente a existência de um incidente de perda alargada de bens de considerável dimensão, cujo prazo de defesa para contestação não tinha ainda começado a decorrer aquando da prolação do despacho recorrido, e a densidade de prova documental e pericial, que exige uma acrescida análise e ponderação.

Texto Integral

Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO
Da decisão
I. No processo comum coletivo nº 171/20.0JELSB do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal de Lisboa, Juiz 1, foi proferido despacho, em 16.07.2025, que declarou a excecional complexidade dos autos.
Do recurso
II. Inconformado, recorreu o arguido AA, rematando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
«A. Através de Despacho datado de 16.07.2025, foi declarada a excecional complexidade dos presentes autos, tendo sido o ora arguido notificado para exercer o contraditório, o arguido pugnou pela improcedência da declaração de excepcional complexidade, nos termos do requerimento junto aos autos em 02.06.2025, cujo teor se dá por reproduzido.
B. Por despacho datado em 16.07.2025, o tribunal "a quo" declara a excecional complexidade do procedimento criminal a que se reportam os presentes autos, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 215.º, n.º 2, 3 e 4, do Código de Processo Penal, o arguido, ora recorrente não se conforma com o despacho de que ora se recorre.
C. Em primeiro lugar, pelo facto do tribunal "a quo" não fundamentou convenientemente a decisão que declarou a excecional complexidade dos presentes autos, designadamente não se pronunciou das questões suscitadas pela defesa do arguido;
D. Sendo omisso quanto à prática dos factos em investigação, sendo muito vago e muitopouco preciso, não servindo defundamentação à declaraçãode excecional complexidade dos presentes autos.
E. O processo em apreço não apresenta complexidade que se possa qualificarcomo excecional nos termos exigidos pelo artigo 215.º do Código de Processo Penal.
F. Os autos têm apenas um arguido ser julgado, além de considerar-se que toda a prova foi produzida e nunca em sede de inquérito se entendeu a necessidade de tal declaração, tendo a acusação sido proferida no prazo de seis meses e ainda, o Exmo. Senhor Juiz de Instrução, perante os dois requerimentos de Abertura de Instrução, não entendeu necessário a atribuição de especial complexidade, pelo que não se entende, tal interpretação e necessidade no presente momento.
G. Em bom rigor o Tribunal "a quo" não justifica o motivo de declarar a excecional complexidade do processo, limitando-se a efetuar passagens de artigos, sem qualquer suporte fáctico, o que, in casu, consubstancia a nulidade do despacho recorrido por padecer do vício de falta de fundamentação, nos termos do artigo 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal.
H. Assim, a não ponderação de todos os elementos concretos do presente caso, representa uma violação do dever de fundamentação a que o Juiz está adstrito, concretamente, a não quantificação do número real de arguidos – um, a produção de prova realizada em sede de inquérito.
I. A jurisprudência do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal de Justiça é pacífica no sentido de que a falta de fundamentação concreta e a não observância das exigências do artigo 215.º do Código de Processo Penal, constituem nulidade da decisão, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal.
J. A excecional complexidade não devia ter sido declarada, porquanto os processos podem ser considerados de excecional complexidade quando tal qualidade resulta, entre outros fatores, do elevado número de arguidos, do elevado número de ofendidos ou ainda do carácter altamente organizado do crime – o que in casu, não ocorre!
K. Resulta evidente, que a declaração de especial complexidade representa uma limitação aos direitos do ora recorrente, na medida em que aumenta os prazos máximos de prisão preventiva e viola os princípios da proporcionalidade, da proibição do excesso e do direito a uma decisão em prazo razoável.
L. Sendo certo que o prazo legalmente previsto no artigo 215.º, n.º 2 do Código de Processo Penal mostra-se suficiente e proporcional para que se tenha concluído a investigação de toda a factualidade alegadamente indiciada.
M. Sendo que o juízo sobre a complexidade do processo é um juízo prudencial, de razoabilidade, de critério da justa medida de apreciação e avaliação das dificuldades suscitadas pelo procedimento, afetando os direitos, liberdades e garantias constitucionalmente estatuídas.
N. Repare-se que a especial complexidade constitui, no rigor, uma noção que apenas assume sentido quando avaliada na perspetiva do processo, considerado não nas incidências estritamente jurídico-processuais, mas na dimensão factual de procedimento enquanto sequência e conjunto de atos e revelação externa e interna de acrescidas dificuldades de investigação, composição e sequência com refração nos termos e nos tempos do procedimento. Pelo que, a decisão sobre a verificação da especial complexidade não depende da aplicação da lei a factos e da integração de elementos compostos com dimensão normativa.
O. O juízo sobre a complexidade assume-se, assim, como juízo prudencial, de razoabilidade, de critério da justa medida na apreciação e avaliação das dificuldades suscitadas pelo procedimento – sobre as dificuldades do procedimento e não estritamente do processo.
P. Tal entendimento é reforçado pela interpretação do Tribunal da Relação de Coimbra, segundo o qual, a fundamentação apenas se reputa suficiente se incluir exame crítico das provas, porquanto a mera remissão não basta.
Q. Salvo melhor opinião, os presentes autos têm apenas um arguido, toda a prova foi produzida e nunca em sede de inquérito se entendeu a necessidade de tal declaração, tendo a acusação sido proferida no prazo de seis (6) meses, o Exmo. Senhor Juiz de Instrução, perante os dois (2) requerimentos de Abertura de Instrução, não entendeu necessário a atribuição de especial complexidade, pelo que não se compreende, tal entendimento momentâneo.
R. Além do exposto acima, no caso em apreço, não está em causa a natureza organizada dos crimes investigados, a complexidade de análise dos meios de prova, o número de arguidos, o número de crimes ou a quantidade de factos e quantidade de meios de prova a analisar – porquanto sobre tais pontos fundamentais, o despacho que se recorre, é completamente omisso.
S. A atribuição de especial complexidade deve ser ponderada e ter por referência critérios de equidade e proporcionais ao caso em apreço, estando vedado, a atribuição de tal classificação apenas porque é constituído por 17 volumes e 37 apensos e a investigação patrimonial do GRA é composta por dois apensos.
Porquanto isso nunca foi impedimento para ser proferida a Acusação de fls… nem para ser proferido Despacho de Pronuncia;
T. Por todo o exposto, compreende-se que no caso concreto, não se encontram reunidos os requisitos necessários à atribuição do carácter de especial complexidade.
U. Porquanto, a morosidade, ou mesmo a eventual complexidade de uma determinada diligência não se confunde com a excecional complexidade do respetivo processo - não se compreende ou assiste nenhuma razão para que, em tal momento, opte pela declaração de excecional complexidade do processo.
V. A decisão recorrida violou e interpretou erroneamente, o disposto no artigo 215.º, n.º 2, 3 e 4, artigo 97.º, n.º 5 do Código de Processo Penal, e os artigos 20.º, n.º 1 e 32.º, n.º 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa.
W. A fundamentação não pode ser genérica nem estereotipada, precisa expor de forma concreta o motivo pelo qual, o presente processo é considerado de especial complexidade, nos termos do O artigo 97.º, n.º 5 do Código de Processo Penal.
X. O Despacho é completamente omisso, limitando-se, salvo o devido respeito, apenas repetir a lei sem explicar a aplicabilidade ao caso concreto.
Y. Nesta esteira, a decisão não cumpre o dever de fundamentação, nos termos do artigo 97.º, n.º5Código de ProcessoPenal edo artigo 205.º, n.º1 da Constituição da República Portuguesa, porquanto, a ausência de fundamentação impossibilita o exercício do contraditório e o controlo pelo tribunal superior - devendo ser revogada a declaração de especial complexidade.
Z. Não foram indicados factos concretos, dados objetivos ou elementos processuais que sustentem a invocada declaração de excecional complexidade.
AA.O despacho que declarou a excecional complexidade dos presentes autos, não se poderia limitar a transcrever a lei e a basear-se no número de volumes que constituem o presente processo.
BB.Deveria, em respeito pela aplicabilidade da lei e do bom funcionamento da justiça, ter a enunciação dos motivos de facto e de direito que justificam a decisão, permitindo o controlo pelo tribunal superior e o exercício do contraditório, de forma eficaz e cabal.
CC. O artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, garante o direito de defesa e de participação em todos os atos processuais que lhe digam respeito.
DD.Assim, uma decisão genérica impede que o arguido apresente contra-argumentos eficazes, porquanto, não há como contestar razões que não são explicitadas.
EE. Conforme mencionado supra, a declaração de especial complexidade prolonga os prazos máximos da prisão preventiva, o que significa que a restrição da liberdade é agravada.
FF. A liberdade é um direito fundamental, nos termos do artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa, e só pode ser restringida de forma estritamente fundamentada e proporcional.
GG. Uma fundamentação insuficiente significa que o arguido pode ficar preso mais tempo do que o permitido pelos prazos normais, sem que tal seja devidamente justificado, o que constitui uma clara violação dos direitos, liberdades e garantias assegurados ao arguido pela nossa Constituição.
HH. E ainda nesta senda, viola-se o princípio da presunção de inocência, nos termos do artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa e o artigo 6.º, n.º 2 da CEDH, porquanto o ora recorrente poderá permanecer mais tempo privado de liberdade, sem justificação concreta, equivalendo a impor uma sanção antecipada!
II. A ausência de fundamentação reforça essa perceção de punição sem condenação, o que viola diretamente a presunção de inocência!
JJ. Assim, sem fundamentação individualizada, o arguido fica exposto a uma restrição da liberdade que não resulta de um juízo objetivo, mas de um automatismo, o que o TEDH considera arbitrário.
KK. Nestes termos, requer-se a V. Exas., que seja dado provimento ao recurso, sendo revogado o despacho recorrido por falta de fundamentação, declarando- se inexistente a especial complexidade e, consequentemente, que sejam aplicados os prazos processuais normais previstos no artigo 215.º, n.º 1 do Código de Processo Penal».
Da admissão do recurso
III. Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, em separado, e com efeito devolutivo.
Da resposta
IV. Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público, concluindo nos seguintes termos (transcrição):
1 – O presente recurso veminterposto do douto despacho de 16.07.2025 proferido nos autos, o qual determinou a excepcional complexidade dos autos.
2 - A questão evidenciada pelo recorrente é a seguinte:
- Nulidade do despacho que declarou a excepcional complexidade dos autos por falta de fundamentação, em violação do disposto nos artigos 215.º, n.º 2, 3 e 4, artigo 97.º, n.º 5 do Código de Processo Penal, e nos artigos 20.º, n.º 1 e 32.º, n.º 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa, já que “Não foram indicados factos concretos, dados objetivos ou elementos processuais que sustentem a invocada declaração de excecional complexidade.”, sendo certo que os autos não revelam tal espécie de complexidade e a mesma apenas se reflectirá no direito à liberdade do arguido, a qual será passível de ser cerceada por mais tempo.
3 - O despacho recorrido mostra-se legal, devida e suficientemente fundamentado, tendo o douto Tribunal invocado as circunstâncias de facto e de direito que determinarama sua decisão sobre a atribuição da natureza de especial complexidade aos presentes autos, motivo pelo qual nenhuma nulidade o pode afrontar.
4 - Os presentes autos têm por objeto factos suscetíveis de integrar os crimes de tráfico de estupefacientes, este de natureza transnacional, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1 do Código Penal, 21.º, n.º 1 e 24.º, als. b) e c) da Lei n.º 15/93, de 22/01, por referência à tabela I-B anexa ao mesmo diploma legal; um crime de associação criminosa, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1 do Código Penal e 28.º, n.º 1 e 3, da Lei n.º 15/93, de 22/01; dois crimes de homicídio tentado, p. e p pelo disposto nos artigos 23.º e 131.º do Código Penal; um crime de detenção de arma proibida, p. e p pelo disposto no art. 86.º, n.º 1, al. a), conforme alínea i) do n.º 5 do art. 2.º, todos da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro.
5 - Os crimes de tráfico e de homicídio inserem-se em contexto de criminalidade violenta, especialmente violenta e altamente organizada (arts. 21º e 51º, nº 1 do DL 15/93 de 22.01 e , art. 131º do C.Penal e art. 1º, al.s j), l) e m) do CPPenal) e complexa, explanado ao longo de centenas de factos acusatórios que há que escrutinar.
6 - Em julgamento procurará apurar-se a atuação concertada dos dois arguidos, indiciariamente integrados numa rede organizada transnacional de tráfico de estupefacientes que, ao longo de vários anos, terá atuado no território nacional, com ramificações no estrangeiro. E pese embora proceder a acusação apenas contra dois arguidos, envolve dezenas de testemunhas.
7 – O julgamento abordará múltiplos factos temporalmente dilatados (ocorridos entre ........2019 e ........2024, data em que o arguido AA foi detido) com passagens do arguido por diferentes países, exigindo para o apuramento de tais factos o cruzamento sistemático de diversa, variada e extensa prova documental, pericial e testemunhal, que se prevê ser de longa produção.
8 - Assim, a declaração já efectuada nos autos é, pois, necessária e adequada para garantir a completa produção de prova e apreciação e decisão dos factos submetidos a julgamento, sem prejuízo dos prazos de prisão preventiva e demais prazos processuais».
Do parecer nesta Relação
V. Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público, tendo sido emitido parecer que, sufragando a resposta da primeira instância, concluiu pela improcedência do recurso.
Da resposta ao parecer
VI. Cumprido o disposto no art.º 417.º/2 do Código de Processo Penal, nada foi acrescentado.
VII. Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
OBJETO DO RECURSO
O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º/2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995).
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar.
Desta forma, tendo presentes tais conclusões, são as seguintes as questões a decidir:
1. Da nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação.
2. Da correção da declaração da excecional complexidade do processo.
DO DESPACHO RECORRIDO
Do despacho recorrido consta o seguinte (transcrição):
«DA EXCEPCIONAL COMPLEXIDADE DOS AUTOS
«No despacho de recebimento da pronúncia foi suscitada a eventual declaração de excepcional complexidade dos autos, para efeitos do disposto no art. 215.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, atendendo à circunstância dos autos serem constituídos por 17 volumes e 37 apensos, tendo sido deduzida acusação contra dois arguidos, a qual comporta 249 artigos, tendo sido arroladas 35 testemunhas, tendo sido ainda deduzido pedido de perda ampliada de bens a favor do Estado, nos termos da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro. Para além da abundante prova documental recolhida nos autos, mostra-se elaborada prova pericial ao sistema de comunicação SKY ECC e perícia de voz aos áudios pertencentes ao arguido AA. A investigação patrimonial do GRA é composta por dois apensos.
Face ao exposto, nos termos do n.º 4 do art. 215.º do Código de Processo Penal, determinou-se a notificação do Ministério Público, dos arguidos e da assistente para, em 10 dias, se pronunciarem quanto à eventual declaração de excepcional complexidade dos autos, para efeitos do disposto no n.º 3 da citada norma legal.
O Ministério Público manifestou a sua concordância com a declaração de excecional complexidade nos autos – cfr. promoção de 29.05.2025.
O arguido pugnou pela improcedência da declaração de excepcional complexidade, nos termos do requerimento junto aos autos em 02.06.2025, cujo teor se dá por reproduzido.
Apreciado.
Nos presentes autos estão em causa a prática dos seguintes crimes: - um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1 do Código Penal, 21.º, n.º 1 e 24.º, als. b) e c) da Lei n.º 15/93, de 22/01, por referência à tabela I-B anexa ao mesmo diploma legal; um crime de associação criminosa, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1 do Código Penal e 28.º, n.º 1 e 3, da Lei n.º 15/93, de 22/01; dois crimes de homicídio tentado, p. e p pelo disposto nos artigos 23.º e 131.º do Código Penal; um crime de detenção de arma proibida, p. e p pelo disposto no art. 86.º, n.º 1, al. a), conforme alínea i) do n.º 5 do art. 2.º, todos da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro.
A acusação – para a qual a pronúncia remete – foi deduzida contra dois arguidos, comporta 249 artigos, foram arroladas 35 testemunhas e foi ainda deduzido pedido de perda ampliada de bens a favor do Estado, nos termos da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro.
Estes autos são constituídos por 17 volumes e 37 apensos e a investigação patrimonial do GRA é composta por dois apensos.
O arguido AA, encontra-se preso preventivamente desde o dia ........2024.
Por seu turno, o outro arguido, BB, está em fuga, em paradeiro desconhecido, tendo sido emitidos os respetivos mandados de detenção.
Analisando os autos verifica-se que foi carreada extensa e abundante prova documental e elaborada prova pericial ao sistema de comunicação SKY ECC e perícia de voz aos áudios pertencentes ao arguido AA.
Conforme refere o Ministério Público, importa considerar a natureza dos crimes pelos quais os arguidos se encontram pronunciados, uma vez que, nos termos do art. 51.º, n.º 1 do DL 15/93, de 22 de Janeiro, “…Consideram-se equiparadas a casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada as condutas que integram os crimes previstos nos artigos 21.º a 24.º e 28.º deste diploma” o número de volumes que integram os autos e o caracter altamente organizado do crime e a extensa prova que se impõe produzir.
Nos termos do n.º 3 do art. 215.º do Código de Processo Penal, a excepcional complexidade do processo afere-se por critérios objectivos, nomeadamente, o número de arguidos ou de ofendidos ou o carácter altamente organizado do crime.
Assinala-se que a utilização da expressão «nomeadamente» permite concluir de que são meramente exemplificativas tais razões/critérios podendo o juiz encontrar outros motivos que justifiquem estar perante um processo de excepcional complexidade.
A propósito do art. 215.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, pode ler-se no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 26.01.2005 disponível in www.dgsi.pt “A noção de “excepcional complexidade” do artigo 215º, nº. 3, do Código de Processo Penal está, em larga medida, referida a espaços de indeterminação, pressupondo uma integração densificada pela análise e ponderação de todos os elementos do respectivo procedimento; a integração da noção exige uma exclusiva ponderação sobre todos os elementos da configuração processual concreta, que se traduz no essencial, em avaliação prudencial sobre factos; a especial complexidade constitui, no rigor, uma noção que apenas assume sentido quando avaliada na perspectiva do processo, considerado não nas incidências estritamente jurídico-processuais mas na dimensão factual do procedimento enquanto conjunto e sequência de actos e revelação interna e externa de acrescidas dificuldades de investigação com refracção nos termos e nos tempos do procedimento; o juízo sobre a especial complexidade constitui um juízo de razoabilidade e da justa medida na apreciação das dificuldades do procedimento, tendo em conta nomeadamente, as dificuldades da investigação, o número de intervenientes processuais, a deslocalização de actos, as contingências procedimentais provenientes das intervenções dos sujeitos processuais, ou a intensidade de utilizarão dos meios; o juízo sobre a excepcional complexidade depende do prudente critério do juiz na ponderarão de elementos de facto; as questões de interpretação e aplicação da lei, por mais intensas e complexas não podem integrar a noção com o sentido que assume no artigo 215º, nº. 2 do Código de Processo Penal.
Pelo seu lado, o Acórdão do TRL datado de 23/1/2008, no proc. nº. 10902/2007-3, decidiu que: "2. Com a entrada em vigor da Lei nº. 48/2007, de 29/8, não foram alterados os prazos da prisão preventiva como também foi revogado o artigo 54º do Decreto-Lei nº. 15/93, de 22/1, o que fez caducar o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº. 2/2004, de 11/2/2004. 3. Em face da actual lei processual penal, decorrente da entrada em vigor da Lei 48/2007 de 29/08, sempre que o crime investigado for o de tráfico de estupefacientes, estamos, pelo menos em tese e por norma, perante "crime altamente organizado" cfr. art. 1º, alínea m), do C.P. Penal e, consequentemente, de acordo com a factualidade concreta em investigação, deverá ser declarada a especial complexidade da investigação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 215º, nº. 3, in fine, do mesmo diploma. 4. O reconhecimento, constitucionalmente afirmado, do carácter excepcional da prisão preventiva (art. 28º, nº. 2, da CRP), envolve a considerarão, além do mais, de que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença que o condene (art. 32º, nº. 2, da CRP), mas essa presunção não é incompatível com a indiciação dos arguidos pelo crime supra referido, nem com a aplicação da prisão preventiva, posto que verificados os respectivos pressupostos, o que ocorreu no caso".
Assim, o juízo sobre a complexidade assume-se como um juízo prudencial, de razoabilidade, de critério da justa medida na apreciação e avaliação das dificuldades suscitadas pelo procedimento. Mas, dificuldades do procedimento e não estritamente do processo; as questões de interpretação e de aplicação da lei, por mais intensas e complexas, não atingem a noção. As dificuldades de investigações (técnicas, com intensa utilização dos leges artis da investigação), o número de intervenientes processuais, a deslocalização dos actos, as contingências procedimentais provenientes das intervenções dos sujeitos processuais, a intensidade de utilização dos meios, tudo serão elementos a considerar, no prudente critério do juiz, para determinar que um determinado procedimento apresenta, no conjunto ou, parcelarmente, em alguma das suas fases, uma especial complexidade com o sentido, essencialmente de natureza factual, que a noção funcionalmente assume no artigo 215, nº 3 do CPP (cfr. Ac RE de 29/4/2008 in Pº 739/08-1).
Concluímos, pois, que o Código de Processo Penal não define o conceito de excepcional complexidade limitando-se, a título meramente exemplificativo, a indicar duas circunstâncias capazes de o corporizarem: o número [elevado] de arguidos ou de ofendidos e o carácter altamente organizado do crime, devendo, portanto, ser efectuada a sua devida concretização, em cada caso, passando pela ponderação das dificuldades do processo (v.g. técnicas de investigação, número de intervenientes, necessidades de deslocação, meios utilizados), finda a qual o juiz, no seu prudente critério, o qualificará ou não como de especial complexidade.
Repare-se que o Código de Processo Penal, para além dos artigos 215.º, nº 3 (prazos máximos de prisão preventiva) e 107.º, n.º 6 (prazos), encontra outros normativos que, em si, comportam a alusão a processos de excepcional complexidade – vejam-se os artºs 314º, nº 3 (vista a adjuntos), 360º, nº 3 (tempo das alegações), 390º, al. c) (reenvio do processo sumário para a forma comum) e 315º, nº 4 (número de testemunhas), o qual remete para o disposto no artº 283º, nº 7.
Entende o arguido AA que o processo em apreço não apresenta complexidade que se possa qualificar como excecional nos termos exigidos pelo artigo 215.º do Código de Processo Penal, porquanto os autos têm apenas um arguido ser julgado; a prova já foi produzida e nunca em sede de inquérito se entendeu a necessidade de tal declaração, tendo a acusação sido proferida no prazo de seis (6) meses; o JIC, perante 2 requerimentos de Abertura de Instrução, não entendeu necessário a atribuição de especial complexidade. Para além disso, com a obrigatória e necessária separação de processos será ainda mais rápida a apreciação da prova e a realização da audiência de discussão e julgamento, porquanto apenas existirá um arguido.
Tais argumentos não convencem. Desde logo, foi ordenada a emissão de mandados de detenção nacionais e internacionais contra o arguido que se colocou em fuga, sendo, pois, de admitir que o mesmo venha a ser detido antes do início da audiência de julgamento. Por outro lado, a circunstância de em sede de inquérito e de instrução não ter sido equacionada a eventual declaração de excepcional complexidade, não é fundamento para que tal declaração não seja equacionada na presente fase processual.
Como acima já se deixou expresso, nos presentes autos estão em causa a prática dos seguintes crimes: um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1 do Código Penal, 21.º, n.º 1 e 24.º, als. b) e c) da Lei n.º 15/93, de 22/01, por referência à tabela I-B anexa ao mesmo diploma legal; um crime de associação criminosa, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1 do Código Penal e 28.º, n.º 1 e 3, da Lei n.º 15/93, de 22/01; dois crimes de homicídio tentado, p. e p pelo disposto nos artigos 23.º e 131.º do Código Penal; um crime de detenção de arma proibida, p. e p pelo disposto no art. 86.º, n.º 1, al. a), conforme alínea i) do n.º 5 do art. 2.º, todos da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro.
A acusação – para a qual a pronúncia remete – foi deduzida contra dois arguidos, comporta 249 artigos, foram arroladas 35 testemunhas e foi ainda deduzido pedido de perda ampliada de bens a favor do Estado, nos termos da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro. Estes autos são constituídos por 17 volumes e 37 apensos e a investigação patrimonial do GRA é composta por dois apensos.
O arguido AA, encontra-se preso preventivamente desde o dia ........2024. Por seu turno, o outro arguido, BB, está em fuga, em paradeiro desconhecido, tendo sido emitidos os respetivos mandados de detenção.
Foi carreada extensa e abundante prova documental e elaborada prova pericial ao sistema de comunicação SKY ECC e perícia de voz aos áudios pertencentes ao arguido AA.
Por fim, importa considerar a natureza dos crimes pelos quais os arguidos se encontram pronunciados, uma vez que, nos termos do art. 51.º, n.º 1 do DL 15/93, de 22 de Janeiro, “…Consideram-se equiparadas a casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada as condutas que integram os crimes previstos nos artigos 21.º a 24.º e 28.º deste diploma”, o número de volumes que integram os autos e o caracter altamente organizado do crime e a extensa prova que se impõe produzir.
Face ao exposto, nos termos do art. 215.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, declaro a excepcional complexidade dos presentes autos.
A presente declaração determina a elevação do prazo de prisão preventiva a que o arguido AA se encontra sujeito para dois anos e seis meses sem condenação em 1.ª instância.
Implica outrossim a prorrogação dos prazos, nos termos estipulados no n.º 6 do art. 107.º do Código de Processo Penal.
Notifique e comunique».
INCIDÊNCIAS PROCESSUAIS COM RELEVO PARA A DECISÃO
1. Após primeiro interrogatório judicial de arguido detido, o recorrente, por despacho de ........2024, ficou sujeito à medida de coação de prisão preventiva, a qual teve por fundamento «um forte e intenso perigo de continuação da atividade criminosa, com a inerente perturbação da ordem e da tranquilidades públicas (…) e um concreto e forte perigo de fuga».
2. Após instrução requerida pelo recorrente AA e a assistente CC, foi proferido, em 20.02.2025, despacho de pronúncia do recorrente AA e do arguido BB pelas razões de facto e de direito que constavam da acusação pública deduzida em 03.12.2024.
O recorrente foi então pronunciado pela prática de:
- em coautoria material com o outro arguido e concurso real (artigos 26º - segunda parte e 30º, nº1, ambos do Código Penal, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelos artigos 21º, nº1 e 24º, als. b) e c), ambos da Lei nº 15/93, de 22.01, por referência à tabela I-B anexa ao mesmo diploma legal;
- um crime de associação criminosa, previsto e punido pelo artigo 28º, nº1 e nº3 da Lei nº15/93, de 22 de janeiro,
- dois crimes de homicídio tentado, previsto e punido pelos artigos 22º, 23º, 26º e 131º, todos do Código Penal ex vi nº3 e nº4 do artigo 86º da Lei nº5/2006, de 23 de fevereiro,
- um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86º, nº1, al. a) e al. i) do nº5 do artigo 2º, ambos da Lei nº5/2006, de 23 de fevereiro.
3. O recorrente recorreu do despacho de pronúncia, tendo o recurso sido rejeitado neste Tribunal da Relação. Reclamou para a conferência, tendo sido desatendido.
4. Aquando do recebimento da pronúncia, foi determinado o exercício do contraditório sobre a possibilidade de se declarar a excecional complexidade dos autos.
5. Na acusação descrevem-se apreensões, em diversas situações de tráfico transnacional, das seguintes quantidades de cocaína (peso líquido): 62.764,300 gr, 30.101,400 gr, 32.121,040 gr, 32.084,800 gr e 30.045,000 gr.
6. Ainda na acusação, é feito um pedido de perda ampliada de bens no valor de € 1.286.288,32.
FUNDAMENTAÇÃO
1. Da nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação
Sustenta o recorrente que o despacho é nulo por falta de fundamentação, desde logo porque não se pronunciou sobre “as questões suscitadas pela defesa do arguido”, reportando-se ao requerimento que apresentou quando foi notificado para se pronunciar sobre a possibilidade de se vir a declarar a excecional complexidade do processo: ter o processo só um arguido e nunca nenhum Magistrado ter entendido necessária a declaração de excecional complexidade.
Assaca ao despacho recorrido ser “omisso quanto à prática dos factos em investigação, sendo muito vago e muitopouco preciso”.
O dever de fundamentação das decisões judiciais é uma garantia integrante do próprio Estado de direito democrático a que alude o artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.
Este dever de fundamentação mereceu consagração constitucional no artigo 205º, nº 1, da CRP.
O dever de fundamentação das decisões judiciais reforça os direitos dos cidadãos a um processo justo e equitativo, assegurando a melhor ponderação dos juízos que afetam as partes, do mesmo passo que a elas permite um controle mais perfeito da legalidade desses juízos com vista, designadamente, à adoção, com melhor ciência, das estratégias de impugnação que julguem adequadas.
Se a relevância da fundamentação das decisões judiciais é incontestável como garantia integrante do conceito de Estado de direito democrático, ela assume, no domínio do processo penal, uma função estruturante das garantias de defesa dos arguidos, muito embora o texto constitucional não contenha qualquer norma que disponha especificamente sobre a fundamentação das decisões judicias naquele domínio.
Tendencialmente, qualquer ato decisório deve bastar-se a si mesmo, de modo a que aos seus destinatários não seja necessário consultar qualquer outra peça processual ou documento, sendo o grau de exigência de fundamentação mais elevado no caso da sentença, o que se compreende por ser o ato decisório por excelência, razão pela qual a falta de fundamentação fere de nulidade a mesma, conforme já se aludiu supra.
O Código de Processo Penal, no seu artigo 97º, nº 5, consagra o princípio geral que vigora sobre a fundamentação dos atos decisórios: "os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão".
Por sua vez, o nº 1 do artigo 32º da Constituição da República consagra o princípio geral de que “o processo criminal assegura todas as garantias de de­fesa, incluindo o recurso”.
Os artigos 374º e 379º do CPP estabelecem requisitos exigentes que apenas se aplicam às sentenças e já não aos despachos. De facto, a jurisprudência vem entendendo que, nos casos em que não está em causa uma sentença que conheça a final do objeto do processo, não são exigíveis as exigências de fundamentação previstas no art. 379.º, n.º 1, al. a), ainda que se exija que o despacho contenha uma fundamentação que permita compreender as razões que conduziram ao sentido da decisão proferida. Sobre esta questão, vide parágrafo 1 da anotação ao artigo 379º do CPP da autoria de José Mouraz Lopes, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo IV, Coimbra, Almedina, 2023, págs. 808; vide ainda o acórdão desta 5ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa de ........2024, relatora Alda Tomé Casimiro, processo 100/17.8T9ALQ-B.L1-5, publicado na dgsi. E a decisão recorrida é isso mesmo: uma decisão, na forma de despacho.
E só é causa de nulidade (no caso das sentenças) ou de irregularidade (no caso de despachos, aqui nos termos do artº 123º do CPP), a falta absoluta de fundamentação, não se verificando os apontados vícios perante uma fundamentação deficiente.
Além de o recorrente não ter arguido qualquer irregularidade no prazo a que alude o artigo 123º do CPP, o despacho recorrido está fundamentado, na medida em motiva a declaração de excecional complexidade de um modo tal que pode ser sindicada pelos seus destinatários e também por este Tribunal.
Acrescenta-se que é desrazoável o recorrente dizer que as questões suscitadas pelo recorrente aquando do exercício prévio do contraditório não foram abordadas no despacho recorrido. Revisitando o despacho recorrido, aí se pode ler:
«Entende o arguido AA que o processo em apreço não apresenta complexidade que se possa qualificar como excecional nos termos exigidos pelo artigo 215.º do Código de Processo Penal, porquanto os autos têm apenas um arguido ser julgado; a prova já foi produzida e nunca em sede de inquérito se entendeu a necessidade de tal declaração, tendo a acusação sido proferida no prazo de seis (6) meses; o JIC, perante 2 requerimentos de Abertura de Instrução, não entendeu necessário a atribuição de especial complexidade. Para além disso, com a obrigatória e necessária separação de processos será ainda mais rápida a apreciação da prova e a realização da audiência de discussão e julgamento, porquanto apenas existirá um arguido.
Tais argumentos não convencem. Desde logo, foi ordenada a emissão de mandados de detenção nacionais e internacionais contra o arguido que se colocou em fuga, sendo, pois, de admitir que o mesmo venha a ser detido antes do início da audiência de julgamento. Por outro lado, a circunstância de em sede de inquérito e de instrução não ter sido equacionada a eventual declaração de excepcional complexidade, não é fundamento para que tal declaração não seja equacionada na presente fase processual».
Improcede este segmento do recurso.
2. Da correção da declaração da excecional complexidade do processo
Nos termos do artigo 215º do CPP, sobre os prazos máximos de duração da prisão preventiva:
«(…)
3 - Os prazos referidos no n.º 1 são elevados, respetivamente, para um ano, um ano e quatro meses, dois anos e seis meses e três anos e quatro meses, quando o procedimento for por um dos crimes referidos no número anterior e se revelar de excecional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime.
4 - A excecional complexidade a que se refere o presente artigo apenas pode ser declarada durante a 1.ª instância, por despacho fundamentado, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, ouvidos o arguido e o assistente.
(…)».
Como refere Maria do Carmo Silva Dias, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo III, 2ª edição, Coimbra, Almedina, 2022, anotação 42ª ao artigo 215º, «A decisão de declaração de excecional complexidade do processo (que cumulativamente por um dos crimes referidos no n.º 2 do art. 215.°) depende da verificação de determinados pressupostos, indicados na lei de forma exemplificativa (e não taxativa), como sucede com os critérios apontados no n.° 3 do mesmo artigo ("número de arguidos ou de ofendidos" ou o "carácter altamente organizado do crime."). A opção pela indicação exemplificativa desses critérios (e não outros) revela que o legislador teve em atenção o quotidiano dos tribunais da 1ª instância, apercebendo-se que, muitas vezes, a excecional complexidade pode dever-se (para além da gravidade do crime em investigação), ao "número de arguidos ou de ofendidos" ou ao "carácter altamente organizado do crime. "(veja-se que, esses mesmos critérios são também invocados exemplificativamente no artigo 390.°/1/c, para permitir o reenvio de processo sumário para outra forma processual)».
Ao exigir-se a intervenção e decisão de um juiz para declarar a excecional complexidade, garantem-se os direitos fundamentais e salvaguarda-se o direito à liberdade e à segurança, com consagração constitucional (artº 27º, nº 1, da CRP), que apenas pode ser restringido com critérios de proporcionalidade (artº 18º, nº 2, da CRP).
Seguindo de perto o acórdão desta Relação de Lisboa de 04.01.2019, relator Fernando Estrela, processo 128/15.2JBLSB-B.L3-9, publicado na dgsi «A análise da especial complexidade de um processo, nos termos do artº 215º nº 3 do C.P.P. não se apresenta igual em todas as fase do processado uma vez que as diligências a efetuar em cada uma delas difere. Assim, pode um processo ter especial complexidade durante a fase de inquérito e depois em sede de julgamento o não ser, ou pode, pelo contrário, não ser de especial complexidade durante o inquérito, mas em fase de julgamento pode vir a sê-lo face ao número de testemunhas a ouvir, ao número de factos elencados na acusação ou pronúncia e à análise da prova documental existente nos autos que carece de ser analisada, ou seja pode existir no desenrolar do processo uma alteração dos pressupostos ou circunstâncias em que assentaram aquela decisão».
A declaração de excecional complexidade impõe a prévia análise do caso concreto.
O despacho recorrido, no essencial, argumentou assim:
«(…) nos presentes autos estão em causa a prática dos seguintes crimes: um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1 do Código Penal, 21.º, n.º 1 e 24.º, als. b) e c) da Lei n.º 15/93, de 22/01, por referência à tabela I-B anexa ao mesmo diploma legal; um crime de associação criminosa, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1 do Código Penal e 28.º, n.º 1 e 3, da Lei n.º 15/93, de 22/01; dois crimes de homicídio tentado, p. e p pelo disposto nos artigos 23.º e 131.º do Código Penal; um crime de detenção de arma proibida, p. e p pelo disposto no art. 86.º, n.º 1, al. a), conforme alínea i) do n.º 5 do art. 2.º, todos da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro.
A acusação – para a qual a pronúncia remete – foi deduzida contra dois arguidos, comporta 249 artigos, foram arroladas 35 testemunhas e foi ainda deduzido pedido de perda ampliada de bens a favor do Estado, nos termos da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro. Estes autos são constituídos por 17 volumes e 37 apensos e a investigação patrimonial do GRA é composta por dois apensos.
O arguido AA, encontra-se preso preventivamente desde o dia ........2024. Por seu turno, o outro arguido, BB, está em fuga, em paradeiro desconhecido, tendo sido emitidos os respetivos mandados de detenção.
Foi carreada extensa e abundante prova documental e elaborada prova pericial ao sistema de comunicação SKY ECC e perícia de voz aos áudios pertencentes ao arguido AA.
Por fim, importa considerar a natureza dos crimes pelos quais os arguidos se encontram pronunciados, uma vez que, nos termos do art. 51.º, n.º 1 do DL 15/93, de 22 de Janeiro, “…Consideram-se equiparadas a casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada as condutas que integram os crimes previstos nos artigos 21.º a 24.º e 28.º deste diploma”, o número de volumes que integram os autos e o caracter altamente organizado do crime e a extensa prova que se impõe produzir».
Efetivamente, o recorrente está pronunciado por:
-em coautoria material com o outro arguido e concurso real (artigos 26º - segunda parte e 30º, nº1, ambos do Código Penal, um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelos artigos 21º, nº1 e 24º, als. b) e c), ambos da Lei nº 15/93, de 22.01, por referência à tabela I-B anexa ao mesmo diploma legal;
- um crime de associação criminosa, previsto e punido pelo artigo 28º, nº1 e nº3 da Lei nº15/93, de 22 de janeiro,
- dois crimes de homicídio tentado, previsto e punido pelos artigos 22º, 23º, 26º e 131º, todos do Código Penal ex vi nº3 e nº4 do artigo 86º da Lei nº5/2006, de 23 de fevereiro,
- um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86º, nº1, al. a) e al. i) do nº5 do artigo 2º, ambos da Lei nº5/2006, de 23 de fevereiro.
O outro arguido, contra quem foram emitidos mandados de detenção, está igualmente pronunciado pelo crime de associação criminosa.
A acusação, para onde a pronúncia remete, relata uma associação com uma atividade transnacional, em que os intervenientes comunicavam através do serviço telefónico encriptado SKY ECC.
Refere várias situações de transporte internacional de cocaína, tendo sido apreendidas, no aeroporto de Lisboa, as seguintes quantidades de cocaína (peso líquido): 62.764,300 gr, 30.101,400 gr, 32.121,040 gr, 32.084,800 gr e 30.045,000 gr.
De fls. 4106 dos autos até 4114, elenca-se a prova documental e pericial, incluindo ao mencionado sistema de comunicação encriptado e aos áudios do recorrente (perícia de voz).
A seguir, a acusação, que tem 249 artigos, arrola 35 testemunhas.
De fls. 4119 até 4156 segue um pedido de perda ampliada de bens no valor de € 1.286.288,32, referente ao património do recorrente e da sua companheira.
À data em que o despacho recorrido foi proferido o recorrente ainda não tinha sido notificado para contestar e apresentar os seus meios de prova.
O despacho recorrido ponderou a natureza dos ilícitos em causa, o carácter organizado do crime e a circunstância de estar em causa uma elevadíssima quantidade de estupefacientes, tendo presente a existência de um incidente de perda alargada de bens de considerável dimensão, cujo prazo de defesa para contestação não tinha ainda começado a decorrer.
A análise e discussão da prova é complexa, particularmente no que respeita ao incidente de perda alargada de bens.
Há uma densidade de prova documental e pericial que exige uma acrescida análise e ponderação.
O processo tem, assim, elementos objetivos que, conjugados, conduzem à excecional complexidade do processo.
A declaração de excecional complexidade, elevando o prazo máximo da prisão preventiva, fá-lo para prazos definidos por lei e não sujeitos ao arbítrio do julgador, não colidindo com o direito de o recorrente ser julgado no prazo mais curto possível nem com os seus direitos de defesa. O prazo para contestar e /ou para interpor ou responder ao recurso, sendo alargado nos termos do artigo 197º, nº 6, do CPP, permite-lhe exercer os seus direitos com mais tempo. E o recorrente continua a presumir-se inocente até ao trânsito em julgado da (eventual) decisão condenatória.
Não foram violados os princípios e/ou as normas invocadas pelo recorrente nem quaisquer outras.
Em suma, entende-se estarem verificados os pressupostos da declaração de excecional complexidade do processo, o que conduz à improcedência do recurso.
DECISÃO
Nestes termos, e face ao exposto, acordam os juízes desembargadores deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar não provido o recurso interposto pelo arguido AA, confirmando, assim, o despacho recorrido.
Mais se condena o recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 Uc’s – artigos 513.º e 514.º, ambos do Código de Processo Penal e artigo 8.º/9 do Regulamento das Custas Processuais aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, por remissão para a tabela III ao mesmo anexa.
Comunique de imediato à primeira instância.
Notifique.
O presente acórdão foi integralmente processado a computador e revisto pela signatária relatora, seguindo-se a nova ortografia excetuando na parte em que se transcreveu texto que não a acolheu, estando as assinaturas de todos os Juízes apostas eletronicamente – art. 94º, nº 2, do CPP.

Lisboa, 2 de dezembro de 2025,
Ana Cristina Cardoso
Pedro José Esteves de Brito
Sandra Oliveira Pinto