JUNÇÃO DE DOCUMENTO EM RECURSO
CONHECIMENTO OFICIOSO DE EXCEÇÃO PERENTÓRIA
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ
ABUSO DO DIREITO
Sumário

I - A justificação para a junção de documentos com as alegações de recurso com base na necessidade proveniente do julgamento realizado na 1.ª Instância exige que a junção se torne necessária por causa desse julgamento.
II - O conhecimento oficioso de uma excepção peremptória só tem lugar se os factos provados o exigirem.
III - A nulidade por omissão de pronúncia não se refere a factualidade alegada nem a meios de prova.
IV - A nulidade prevista no art. 615.º, n.º 1, al. c) não se refere à contradição entre factos provados.
V - A irrelevância de um facto para a decisão final torna inútil a apreciação da impugnação da respectiva decisão.
VI - As afirmações que encerrem um juízo de valor inerente à aplicação de uma norma jurídica não podem ser objecto de decisão de facto.
VII - A ampliação da matéria de facto está sujeita aos ónus previstos no art. 640.º do CPC.
VIII - Inexiste litigância de má-fé ou abuso do direito na invocação em sede de recurso de excepção peremptória que, apesar de não ter sido suscitada nos articulados, tem suporte na factualidade aí alegada, ainda que não provada.

Texto Integral

Proc. n.º 1142/24.2T8OAZ.P1 – Apelação
Origem: Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira – Juiz 3

Relatora: Carla Fraga Torres
1.º Adjunta: José Nuno Duarte
2.º Adjunta: Manuel Fernandes

Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da 5.ª Secção Judicial/3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório.
Recorrente: AA
Recorrido: BB e CC

BB e esposa CC instauraram a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra AA pedindo que a R. seja condenada a:
a) Reconhecer que os AA. são proprietários e legítimos possuidores do prédio, identificado nos artigos 2º e 3º desta Petição Inicial, onde se inclui o trato de terreno de 19,32 metros quadrados, adjacente ao portão de entrada a norte desse mesmo prédio;
b) Retirar o portão que colocou no sítio do muro que destruiu e sito a poente do trato de terreno dos AA., adjacente ao portão de entrada a norte do seu prédio, identificado nos Artigos 1º e 2º desta Petição Inicial;
c) Repor o muro e o gradeamento que encimava esse muro, muro esse a poente do trato de terreno, pertença dos AA., e supra melhor identificado em b); e
d) Abster-se de, por qualquer forma, ocupar e/ou obstruir ou calcar o dito trato de terreno, melhor identificado em b), por qualquer meio ou forma, mantendo-o livre e desimpedido de pessoas e coisas, nomeadamente veículos automóveis.
Para o efeito, alegaram, em síntese, que são proprietários de um prédio que identificam, de que faz parte uma parcela de terreno com a área de cerca de 19,32 m2, adjacente, a Norte, ao seu portão de entrada, e confinante, a Poente, com o prédio da R., e que têm vindo a utilizar esse prédio, inclusive a dita parcela, de diversas formas que descrevem, sem oposição de ninguém, à vista de todos, há mais de vinte anos, pelo que o adquiriram, inclusive à dita parcela de terreno, por usucapião, não podendo a R. destruir, como fez, o muro que, na extensão Poente daquela parcela, separava os dois prédios para a utilizar como local e passagem de pessoas e veículos automóveis.
Citada, a R. impugnou a matéria alegada pelos AA. e pediu a condenação dos mesmos como litigantes de má-fé.
Na sequência da alteração do valor da acção de 8.000,00 € para 52.623,14 € foi apreciada a excepção da incompetência em razão do valor do Juízo Local Cível de Oliveira de Azeméis e ordenou-se a remessa ao Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira da Comarca de Aveiro.
A realização de audiência prévia foi dispensada, tendo-se procedido à elaboração de despacho saneador, fixando-se o objecto do litígio, de que não houve reclamação, nos seguintes termos: “No âmbito da presente acção, cumpre aferir se o trato de terreno de 19,32 metros quadrados, adjacente ao portão de entrada a norte do prédio dos AA. se inclui neste prédio e se, consequentemente, a Ré deve retirar o portão que colocou no sítio do muro que destruiu e sito a poente do trato de terreno dos AA., adjacente ao portão de entrada a norte do seu prédio, identificado nos artigos 1º e 2º da p.i., bem como repor o muro e o gradeamento que encimava esse muro, muro esse a poente do trato de terreno, pertença dos AA., abstendo-se de, por qualquer forma, ocupar e/ou obstruir ou calcar o dito trato de terreno, mantendo-o livre e desimpedido de pessoas e coisas, nomeadamente veículos automóveis”.
Foram também fixados os temas de prova, de que também não houve reclamação.
Realizada a audiência final foi proferida sentença que julgou totalmente procedente a acção e improcedente a reconvenção, nos termos do segmento decisório que segue:
“IV – DECISÃO
Pelo exposto, julga-se procedente a acção e, em consequência, condena-se a Ré:
1. A reconhecer que os Autores são proprietários e legítimos possuidores do prédio, identificado no ponto 2. da matéria provada, onde se inclui o trato de terreno de 19,32 metros quadrados, adjacente ao portão de entrada a norte desse mesmo prédio e referido em 4. e 5. da matéria provada;
2. A retirar o portão que colocou no sítio do muro que destruiu e sito a poente do trato de terreno dos Autores, adjacente ao portão de entrada a norte do seu prédio;
3. A repor o muro e o gradeamento que encimava esse muro, muro esse a poente do trato de terreno, pertença dos Autores;
4. A abster-se de, por qualquer forma, ocupar e/ou obstruir ou calcar o dito trato de terreno, por qualquer meio ou forma, mantendo-o livre e desimpedido de pessoas e coisas, nomeadamente veículos automóveis.

*
Custas da acção a cargo da Ré, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
*
Registe e notifique”.

Inconformados com tal sentença, dela apelou a R., concluindo as suas alegações de recurso nos seguintes termos:
(…)

Com as suas alegações de recurso a R. juntou um documento.

Os AA. apresentaram contra-alegações em que alinharam as seguintes conclusões:
(…)

O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Recebido o processo nesta Relação, proferiu-se despacho a considerar o recurso como próprio, tempestivamente interposto e admitido com o efeito e o modo de subida adequados.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
II. Delimitação do objecto do recurso e questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2 do NCPC). Por outro lado, não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (art. 5.º, n.º 3 do citado diploma legal).
As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente e a invocação pelos recorridos da litigância de má-fé da recorrente, são as seguintes:
Conclusões da recorrente
A) Como questões prévias:
a) da admissão do documento junto pela recorrente - conclusões 24 a 25;
b) da intervenção da Câmara Municipal ... e da Junta de Freguesia ... - conclusões 21 a 23.
B) Das nulidades da sentença
a) da nulidade da sentença por omissão de pronúncia - conclusões 2 a 6, 19, 20, 27 e 28;
b) da nulidade da sentença por contradição entre os factos provados, designadamente sob os n.ºs 4, 6, 7 e 8 -conclusão 31.
C) Da impugnação da decisão relativa aos seguintes factos:
● pagamento de IMI pelos AA. (ponto 4 dos factos provados)- conclusão 32.
● a R. viu aprovado pela Câmara o licenciamento de uma entrada e saída de veículos pelo trato de terreno (al. d) dos factos não provados) – parte da conclusão 4 e parte da conclusão 15.
D) Da ampliação da matéria de facto com os seguintes pontos:
● “O terreno em causa sempre foi utilizado pela comunidade como extensão da via pública, para circulação e estacionamento de viaturas” - conclusão 4 e parte da conclusão 15.
● “O terreno em causa serviu de acesso habitual a moradores e veículos” – parte da conclusão 15 dos factos provados.
E) Da alteração da decisão de mérito – conclusões 7, 9 a 14, 18, 33 e 34.

Das conclusões da recorrente
F) Da litigância de má-fé e do abuso do direito da recorrente – conclusões 4) a 6).
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III. Fundamentação
3.1. Fundamentação de facto
O Tribunal recorrido considerou provados e não provados os seguintes factos:
“A.1. Matéria provada
Da instrução e discussão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. A Ré é proprietária do prédio urbano composto de edifício para habitação, sito na Travessa ..., Freguesia ..., concelho de Oliveira de Azeméis, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...;
2. Por sua vez, os AA. são proprietários e legítimos possuidores do prédio urbano, destinado à habitação e indústria, sito na Travessa ..., Freguesia ..., concelho de Oliveira de Azeméis, inscrito na matriz predial urbana da Freguesia ... sob o Artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Azeméis sob o n.º ..., com a inscrição Ap. ... a seu favor;
3. O prédio referido em 2., e respectivo logradouro, encontra-se delimitado por muros mandados construir pelos AA., nomeadamente a poente, no trato de terreno com a área de cerca de 19,32 m2 junto ao portão de entrada que confina com o prédio da Ré;
4. Desde a data da sua aquisição e construção, pelo mesmo, desde 1981 que os AA. têm usufruído do prédio, incluindo a área de cerca de 19,32 m2, com a delimitação constante da planta topográfica junta como doc. 6 com a p.i., vivendo e usufruindo do mesmo, procedendo às suas reparações, pagando o respectivo IMI, plantando árvores e colhendo os seus frutos;
5. Utilizando o trato de terreno, com a área de 19,32 m2, adjacente ao seu portão de entrada a norte para estacionamento das suas viaturas;
6. Tendo nesse trato de terreno implantas as fossas de escoamento da sua habitação;
7. Limpando o prédio, incluindo esse trato de terreno;
8. Tendo cimentado tal trato de terreno;
9. Procedendo à manutenção do prédio, incluindo esse trato de terreno;
10. No lado poente do referido trato de terreno, há cerca de quarenta e três anos, foi construído um muro de cerca de 50 centímetros de altura e 4 metros de comprimento, que delimitava a propriedade da Ré desse trato de terreno;
11. Os muros foram mandados construir pelos AA., a suas expensas, aquando da construção da edificação, nos anos de 1981/1982, sem qualquer oposição de quem quer que fosse, nomeadamente da Ré;
12. Há cerca de 26/27 anos, aquando do restauro de edificação, os AA. substituíram e pagaram o gradeamento que encimava os muros do prédio;
13. E, também nessa altura, foi colocado em cima do muro referido em 12. gradeamento, aproveitado do anteriormente existente nos restantes muros, só tendo sido substituída a cor de preta para verde;
14. Todos esses actos foram praticados pelos AA. sem oposição de quem quer que seja, incluindo a Ré, à vista de toda a gente, há mais de vinte e mais anos;
15. Na convicção do exercício de um direito próprio sobre o prédio, incluindo o trato de terreno, correspondente ao direito de propriedade;
16. Sucede que, em finais do ano de 2020, sem qualquer justificação, a mando da R., DD, seu irmão, colocou um ferro soldado ao gradeamento do muro, situado a poente, na parte que delimita o trato de terreno dos AA. do prédio da Ré, identificado na planta anexa como documento n.º 6 e fotografia como documento n.º 7, sem a permissão dos AA.;
17. Por carta datada de 23/06/2021, os AA. interpelaram a R. para retirar o ferro soldado ao gradeamento, conforme carta junta com a p.i. como doc. 9 e aqui dada por reproduzida;
18. Sem algo que o fizesse prever, a 13 de Agosto de 2021, a mando da R., o DD destruiu o dito muro, colocando-o no chão, com uma marreta/ martelo;
19. E, além disso, retirou o gradeamento, levando-o com ele, não o tendo restituído;
20. O que causou aos AA. um prejuízo de 625,50 € do muro, mais 123,40 € do gradeamento, num total de 748,90 €, a que acresce Iva;
21. A Ré colocou dois postes no local e posteriormente uma vedação com rede sombra;
22. E apresentou perante a Câmara um projecto de obras em que previa a construção, naquele local, de uma abertura para passagem de veículos automóveis, passando, não só, pelo trato de terreno referido em 12., como pelo local do muro que mandou destruir;
23. Dizendo que a zona do dito muro / entrada é do domínio público, o que não é verdade;
24. Após estes factos, os AA. colocaram, no local do muro, uns ferros, encimados por elos em corrente, para impedir a Ré de passar por esse local;
25. Posteriormente, em 13 de Setembro de 2021, a mando da R., o DD serrou um dos ferros que sustentava a corrente, atirando-o ao chão, causando um prejuízo de 133,21 €, mais Iva;
26. E, a R., no sítio do muro, colocou um portão;
27. Pretendendo usá-lo e assim passar a usar o trato de terreno como local de passagem de pessoas e veículos automóveis;
28. No portão de entrada referido em 5. foi colocada a caixa de correio, a campainha, uma placa decorativa com nome de família personalizado “Família ...” e o número identificativo de toponímia;
29. O referido trato de terreno não se encontra vedado no lado oposto ao do portão de entrada;
30. A R. mantem uma entrada com cerca de 1 metro de largura por onde sempre teve acesso à área do logradouro da sua habitação para proceder à sua limpeza, plantação de flores, árvores, produtos hortícolas, e arranjo do solo, e para aceder ao poço, e para usar e fruir das suas utilidades;
31. No prédio da R., junto ao muro referido em 12., há cerca de trinta anos, foi plantada pelos pais da R. uma japoneira.

Matéria não provada:
Com relevo para a decisão, nenhuns outros factos ficaram demonstrados, nomeadamente não ficou provado que:
a) O EE também destruiu o muro e retirou o gradeamento;
b) O prédio dos AA. termina a norte no muro de vedação e pilares que seguram o portão de entrada construído pelos AA. em toda a frente da sua propriedade;
c) O prédio dos AA. não inclui o trato de terreno com 19,32 m2 adjacente ao portão de entrada;
d) A R. viu aprovado pela Câmara o licenciamento de uma entrada e saída de veículos pelo trato de terreno;
e) Há cerca de 7 anos, os AA. alteraram o saneamento e transferiram as tampas de saneamento de dentro do portão de entrada para o trato de terreno, e onde anteriormente eram paralelos colocaram cimento;
f) Fizeram tal alteração só depois de terem pedido autorização à irmã do A. marido e marido da mesma, após estes acederem ao pedido e os terem autorizado, bem sabendo os AA. não actuarem como donos e legítimos possuidores exclusivos da respectiva propriedade sobre esse trato de terreno;
g) O trato de terreno era utilizado por qualquer pessoa que o pretendesse utilizar;
h) Os AA. sempre reconheceram que não eram proprietários desse espaço;
i) As tampas de saneamento foram colocadas no trato de terreno por mero favor da R. e seus antepossuidores”.
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3.2. Fundamentação de direito
Delimitadas que estão, sob o n.º II, as questões a decidir, é o momento de as apreciar.
A- Questões prévias
a) Da admissibilidade do documento junto pela recorrente;
De acordo com o art. 651.º do CPC, as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.
Por sua vez, o art. 425.º do CPC dispõe que depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.
A este respeito, o STJ, em acórdão de 30/04/2019 (Proc. 22946/11.0T2SNT-A.L1.S2, rel. Catarina Serra), diz-nos que “Da leitura articulada destas normas decorre que as partes apenas podem juntar documentos em sede de recurso de apelação, a título excepcional, numa de duas hipóteses: superveniência do documento ou necessidade do documento revelada em resultado do julgamento proferido na 1.ª instância. Como se esclarece no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 8.11.2011, Proc. 39/10.8TBMDA.C1[4], relativamente à primeira hipótese, há que distinguir entre os casos de superveniência objectiva e de superveniência subjectiva: aqueles devem-se à produção posterior do documento; estes ao conhecimento posterior do documento ou – acrescentar-se-ia – ao seu acesso posterior pelo sujeito. Explica Rui Pinto que “[a] superveniência objectiva é facilmente determinável: se o documento foi produzido depois do encerramento da discussão em 1.ª instância, ele é necessariamente superveniente. Portanto, só a superveniência subjectiva pode justificar a admissibilidade da junção[5]. Constituem exemplos de superveniência subjectiva o caso em que o documento se encontra em poder da parte ou de terceiro, que, apesar de lhe ser feita a notificação, nos termos do artigo 429.º ou 432.º do CPC só posteriormente o disponibiliza, o caso em que a certidão de documento arquivado em notário ou outra repartição pública, atempadamente requerida, só posteriormente é emitida e o caso de a parte só posteriormente ter conhecimento da existência do documento[6]. Em qualquer caso cabe à parte que pretende oferecer o documento demonstrar a referida superveniência, objectiva ou subjectiva” (in www.dgsi.pt).
Sobre o assunto a RG de 22/01/2015 (Proc. 561/12.1TBAMR-A.G1; rel. António Figueiredo de Almeida) também esclarece que “[j]á depois do encerramento da audiência, no caso de recurso, a apresentação de documentos, sendo permitida desde que juntos com as alegações, lícita/admissível é tão só desde que se verifique uma de duas situações, a saber: a) Quando a sua apresentação não tenha sido possível até ao encerramento da discussão, quer por impossibilidade objetiva (inexistência do documento em momento anterior), quer subjetiva (v.g. ignorância sobre a sua existência); b) Quando a sua junção se tenha tornado necessária devido ao julgamento na 1ª instância - v.g. quando a decisão proferida não era de todo expectável, tendo-se ancorado em regra de direito cuja aplicação ou interpretação as partes, justificadamente, não contavam. No que à situação referida em segundo lugar concerne, explica Abrantes Geraldes (In Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 2010, pág. 254) que a admissibilidade da junção de documentos em sede recursória, justifica-se designadamente quando a parte/recorrente tenha sido surpreendida com o julgamento proferido, maxime quando este se revele de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos documentos já constantes do processo. Dito de uma outra forma (cfr. Brites Lameiras, in Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, 2dª Edição, Almedina, pág. 123), “a junção só tem razão de ser quando a fundamentação da sentença ou o objeto da decisão fazem surgir a necessidade de provar factos cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes dela.” Ainda com referência à situação referida em segundo lugar, mas com a habitual clareza, sabedoria e rigor, diz-nos o Prof. Antunes Varela (em anotação ao Ac. do STJ de 09.12.1980, na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 115º, págs. 91 e segs.) que não basta, para que a junção do documento seja permitida, que ela seja necessária em face do julgamento da 1ª instância, exigindo-se outrossim que tal junção só (apenas) se tenha tornado necessária em virtude desse julgamento.
Tal equivale a dizer que, se a junção já era necessária (quer para fundamentar a ação, quer para ancorar a defesa) antes de ser proferida a decisão da 1ª instância, então não deve ela ser permitida. Em suma, esclarece o saudoso Mestre, a decisão da 1ª instância “pode criar, pela primeira vez a necessidade de junção de determinado documento, quer quando se baseie em meio probatório não oferecido pelas partes, quer quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação os litigantes justificadamente não contavam.
Só nessas circunstâncias a junção do documento às alegações da apelação se pode legitimar à luz do disposto na parte final do nº 1 do artigo 706º do Código de Processo Civil.”.
Ora, no caso concreto, o que a recorrente invoca para fundamentar a junção do documento com as suas alegações de recurso é o seguinte:
“No seguimento do recurso interposto, o Recorrente vem REQUERER A ADMISSÃO DA NOVA PROVA, CONSISTENTE NA LICENÇA EMITIDA PELA CÂMARA MUNICIPAL ... PARA A INSTALAÇÃO DE UM PORTÃO DE ENTRADA PARA VEÍCULOS, E DECLARAÇÃO DA JUNTA DE FREGUESIA ... a juntar à respectiva fotografia, já nos autos, os quais não foram devidamente analisados pelo tribunal de primeira instância, mas são elementos essenciais para o correto julgamento do caso.
A matéria que se pretende demonstrar com a admissão da Nova Prova (Licença de camara Municipal ... e Declaração da Junta de Freguesia ...)— a natureza pública do terreno em causa — constitui facto notório ou de conhecimento oficioso, pelo que se presumiu, de boa-fé, que seria devidamente valorado pelo Tribunal a quo no âmbito da sua função de livre apreciação da prova e condução oficiosa da causa, especialmente tratando-se de matéria de ordem pública.
No entanto, constatando-se que o Tribunal não considerou tal questão na sua decisão, tornou-se necessário juntar os documentos comprovativos da natureza pública do terreno em sede recursiva, a fim de assegurar a correta aplicação do direito e o apuramento da verdade material.
Salienta-se que tal junção não visa inovar o objeto do processo, mas apenas colmatar uma omissão relevante do juízo de primeira instância, que poderia e deveria ter sido suprida oficiosamente.
Nestes termos, requer-se a admissão dos documentos juntos, por se afigurarem essenciais à justa decisão da causa”.
Do que vem de se dizer, verifica-se que a situação invocada pela recorrente para justificar a junção de documentos com as suas alegações é a segunda das apontadas situações que o art. 651.º, n.º 1 do CPC prevê para o efeito, ou seja a necessidade da junção em virtude do julgamento proferido na 1.ª Instância, e, dentro desta, por a respectiva sentença se ter fundado em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação os litigantes justificadamente não contavam.
Ora, o objecto da presente acção, na sequência dos pedidos e da causa de pedir, sucintamente descrita no relatório supra, foi identificado pelo tribunal recorrido nos seguintes termos: “No âmbito da presente acção, cumpre aferir se o trato de terreno de 19,32 metros quadrados, adjacente ao portão de entrada a norte do prédio dos AA. se inclui neste prédio e se, consequentemente, a Ré deve retirar o portão que colocou no sítio do muro que destruiu e sito a poente do trato de terreno dos AA., adjacente ao portão de entrada a norte do seu prédio, identificado nos artigos 1º e 2º da p.i., bem como repor o muro e o gradeamento que encimava esse muro, muro esse a poente do trato de terreno, pertença dos AA., abstendo-se de, por qualquer forma, ocupar e/ou obstruir ou calcar o dito trato de terreno, mantendo-o livre e desimpedido de pessoas e coisas, nomeadamente veículos automóveis”.
Por sua vez, na sentença recorrida, para fundamentar o segmento decisório que condenou a R. a “reconhecer que os Autores são proprietários e legítimos possuidores do prédio, identificado no ponto 2. da matéria provada, onde se inclui o trato de terreno de 19,32 metros quadrados, adjacente ao portão de entrada a norte desse mesmo prédio e referido em 4. e 5. da matéria provada”, escreveu-se que se encontra “plenamente efectuada a prova da propriedade dos Autores sobre o prédio e sobre o trato de terreno com 19,32 m2, dada a aquisição originária do direito de propriedade por usucapião, impondo-se, por isso, a procedência deste pedido”.
De onde, resulta à evidência que a sentença recorrida não se fundou em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação os litigantes justificadamente não contavam. Na verdade, a decisão da 1.ª Instância, em respeito pelo objecto da acção identificado em função do pedido e da respectiva causa de pedir alegada pelos recorridos, decidiu com base em regras de direito cuja aplicação ou interpretação eram uma possibilidade de enquadramento jurídico com o qual os litigantes, inclusive a recorrente, embora discordando, podiam contar. A natureza pública da parcela em causa, que a recorrente alega ter sido ignorada pelo tribunal recorrido e a cuja prova destina os documentos que ora pretende juntar, não foi expressamente suscitada pela recorrente na sua Contestação, embora já então tivesse alegado factualidade nesse sentido (cfr. arts. 20.º e 24.º da Contestação) e já existisse a actual realidade, cuja necessidade de ser demonstrada a recorrente não podia desconhecer, exigindo-se-lhe a oportuna apresentação dos meios de prova adequados para o efeito. Significa isto que, podendo contar com o enquadramento legal realizado pelo tribunal a quo, a recorrente não podia ignorar a necessidade de juntar os meios de prova favoráveis à sua própria defesa, designadamente no que respeita à eventual natureza pública da parcela reivindicada pelos recorridos. A necessidade dos documentos cuja junção a recorrente pretende advém, pois, da própria defesa em ordem a evitar o efeito jurídico pretendido com uma acção de reivindicação, como é o caso, e não da sentença da 1.ª Instância que corresponde a um dos resultados possíveis, e, nessa medida, previsível numa acção desse género.
De onde, se conclui que a junção dos documentos requerida em sede recursória pela recorrente não tem a cobertura do art. 651.º do CPC, decidindo-se, como tal, pelo seu indeferimento.

b) Da intervenção da Câmara Municipal ... e da Junta de Freguesia ...
A recorrente requereu “A ADMISSÃO DA JUNTA DE FREGUESIA ... E DA CÂMARA MUNICIPAL ... COMO INTERVENIENTES PRINCIPAIS ACESSÓRIAS NOS PRESENTES AUTOS, COM VISTA À DEFESA DO DOMÍNIO PÚBLICO E À REPARAÇÃO DA ILEGALIDADE PRESENTE NA DECISÃO DO TRIBUNAL DE 1.ª INSTÂNCIA”.
Para o efeito, invocou o disposto nos arts. 316.º e 318.º do CPC.
O art. 316.º do CPC dispõe que:
1. ocorrendo preterição de litisconsórcio necessário, qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com legitimidade para intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.
2. nos casos de litisconsórcio voluntário, pode o autor provocar a intervenção de algum litisconsorte do réu que não haja demandado inicialmente ou de terceiro contra quem pretendia dirigir o pedido nos termos do artigo 39.º.
3. o chamamento pode ainda ser deduzido por iniciativa do réu quando este:
a) mostre interesse atendível em chamar a intervir outros litisconsortes voluntários, sujeitos passivos da relação material controvertida;
b) pretenda provocar a intervenção de possíveis contitulares do direito invocado pelo autor.
De acordo com o art. 318.º, n.º 1 do CPC, o chamamento para intervenção só pode ser requerido:
a) no caso de ocorrer preterição do litisconsorte necessário, até ao termo da fase dos articulados, sem prejuízo do disposto no artigo 261.º;
b) nas situações previstas no n.º 2 do art. 316.º, até ao termo da fase dos articulados;
c) nos casos previstos no n.º 3 do artigo 316.º e no artigo anterior, na contestação ou, não pretendendo o réu contestar, em requerimento apresentado no prazo de que dispõe para o efeito.
Dos referidos preceitos legais extrai-se que a intervenção principal a que a recorrente - pese embora também mencione “acessória” - lança mão, nos casos previstos no art. 316.º, n.ºs 2 e 3 do CPC, só pode ser requerida até, respectivamente, ao termo da fase dos articulados ou na contestação/requerimento apresentado no prazo de que dispõe para o efeito, o que, manifestamente, já não sucede. No caso de ocorrer preterição do litisconsórcio necessário, a intervenção só pode ser requerida até ao termo da fase dos articulados, sem prejuízo do disposto no artigo 261.º.
Este art. 261.º do CPC, no seu n.º 1, permite que, até ao trânsito em julgado da decisão que julgue ilegítima alguma das partes por não estar em juízo determinada pessoa, pode o autor ou reconvinte chamar essa pessoa a intervir nos termos dos artigos 316.º e seguintes.
Ora, no caso, nenhuma das partes foi julgada ilegítima por não estar em juízo determinada pessoa, e, como tal, não há lugar à requerida intervenção principal, que, em todo o caso, sempre teria de ser requerida pelos recorridos, naturalmente, perante o tribunal de primeira instância, como, de resto, todas as outras intervenções, inclusive a intervenção acessória a que a recorrente também alude em sede inapropriada, porquanto é na contestação/requerimento apresentado no mesmo prazo que o respectivo chamamento deve ser deduzido. Na verdade, por força do art. 91.º do CPC, o tribunal competente para a acção, necessariamente de 1.ª Instância (cfr. arts. 29.º, n.º 3; 33.º; 37.º, n.º 1; 40.º, n.º 2; 42.º, n.º 2, a contrario, e 79.º da Lei n.º 62/2013 de 26/08), é também o competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem e das questões que o réu suscite como meio de defesa.
Em suma, e sem necessidade de mais considerandos, a requerida intervenção seja principal, seja acessória, é inadmissível.
*
B) Das invocadas nulidades da sentença
O art. 615.º do CPC, sob a epígrafe “Causas de nulidade da sentença”, dispõe no seu n.º 1 que é nula a sentença quando:
a) não contenha a assinatura do juiz;
b) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, e
e) o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora ensinam que, além da exclusão dos chamados casos de inexistência da sentença, “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável” (in “Manual de Processo Civil”, 2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, Limitada, pág. 686).
Por sua vez, Lebre de Freitas, esclarece que “…a sentença pode apresentar vícios que geram nulidade, tornando-a totalmente inaproveitável para a realização da função que lhe compete, e vícios de conteúdo, que podem afetá-la total ou apenas parcialmente. Os segundos podem respeitar à estrutura, aos limites ou à inteligibilidade da decisão, gerando anulabilidade, ou em erro material, a retificar, todos caracterizando o que a doutrina tradicional usava designar por error in procedendo, ou consubstanciar erro de julgamento (error in judicando), gerando a injustiça da decisão” (in “A Ação Declarativa Comum, à luz do Código de Processo Civil de 2013”, 4.ª Edição, Gestlegal, págs. 375/6).
A este respeito, Alberto dos Reis advertia que “Importa, na verdade, distinguir cuidadosamente as duas espécies: erros de actividade e erros de juízo.
O magistrado comete erro de juízo ou de julgamento quando decide mal a questão que lhe é submetida, ou porque interpreta e aplica erradamente a lei, ou porque aprecia erradamente os factos; comete erro de actividade quando na elaboração da sentença infringe as regras que disciplinam o exercício do seu poder jurisdicional. Os erros da primeira categoria são de carácter substancial: afectam o fundo ou mérito da decisão; os da segunda categoria são de carácter formal: respeitam à forma ou ao modo como o juiz exerceu a sua actividade de julgador” (in “Código de Processo Civil anotado”, Vol. V, Reimpressão, Coimbra Editora, Lim., Coimbra 1984, pág. 124/5).
Sobre o tema também se têm debruçado os nossos tribunais superiores, de que é exemplo o acórdão da RP de 23/05/2024 (proc. 3278/21.2T8PRT.P2; rel. Isoleta de Almeida Costa), em que se pode ler que: “É, desde há muito, entendimento pacífico, que as nulidades da decisão não incluem o erro de julgamento, seja de facto ou de direito (1): as nulidades típicas da sentença reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal (2); trata-se de vícios de formação ou atividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afetam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, (3) enquanto o erro de julgamento (error in judicando) resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei e/ou consiste num desvio à realidade factual… As nulidades ditam a anulação da decisão por ser formalmente irregular, as ilegalidades ditam a revogação da decisão por estar desconforme ao caso (decisão injusta ou destituída de mérito jurídico) (cf. neste sentido acórdão STJ citado de 17.10.2017, Procº nº 1204/12.9TVLSB.L1.S1). Como se afirmou no acórdão do Supremo Tribunal de 19.11.2015, Procº nº 568/10.3TTVNG.P1.S1, na nulidade, ao contrário do erro de julgamento, em que se discorda do teor do conteúdo da própria decisão, invocam-se circunstâncias, legalmente previstas no artigo 615º do CPC, que ferem a própria decisão” (in www.dgsi.pt).

a) Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia
A nulidade a que o art. 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte do CPC se refere é a que se verifica quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Com efeito, o art. 608.º, n.º 2 do CPC impõe ao juiz o dever de resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e impede-o de ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
A este respeito, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre salientam que “Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (art. 608-2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da sentença, que as partes hajam invocado (ver n.º 2 da anotação ao art. 608)” – in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2.º, 4.ª Edição, Almedina, pág. 737.
Sendo assim, dos pedidos deduzidos pelos recorridos e respectiva causa de pedir, por um lado, e a defesa, por outro, não se colhe que tivesse sido suscitada expressamente a questão do domínio público sobre a parcela em causa.
Verdade que nos arts. 20.º e 24.º da contestação a recorrente alegou, respectivamente, que:
- “foi a Ré quem viu aprovado pela Câmara Municipal ... o licenciamento de uma entrada e saída de veículos por sobre esse trato de terreno”, e
- “o espaço permanecia livre para a toda e qualquer pessoa que o pretendesse utilizar, não vedado”.
Porém, também, alegou a recorrente que:
- “os AA, recentemente, há cerca de 7 anos, alteraram o saneamento e transferiram as tampas de saneamento para o local frente ao seu portão, e onde anteriormente era de paralelos colocaram cimento” (art. 22.º da Contestação);
- “E fizeram tal alteração só depois de terem pedido autorização à irmã do A. marido Sr.a dona FF e marido, após estes acederem ao pedido e os terem autorizado, bem sabendo os AA não actuarem como donos e legítimos possuidores exclusivos da respectiva propriedade sobre esse trato de terreno” (art. 23.º da Contestação), e
- “As tampas de saneamento colocadas [pelos AA.] nesse trato de terreno foram colocadas por mero favor da ora Ré e seus antepossuidores” (art. 27.º da Contestação).
Não resulta, portanto, que a recorrente apenas tenha alegado factos passíveis de reconduzir a parcela em discussão ao domínio público, questão que, em todo o caso, não foi por si suscitada nos articulados. É já em sede de recurso, que a recorrente vem arguir o carácter público da parcela em causa, fazendo-o no sentido de que este carácter público da parcela era do conhecimento oficioso e, consequentemente, o tribunal a quo dela deveria conhecer.
Ora, os factos alegados pela recorrente com essa possível ressonância foram dados como não provados (als. d) e g) dos factos não provados). Neste conspecto, o tribunal não omitiu o conhecimento da questão do domínio público sobre a parcela em causa, pela simples razão de que não dispunha de factos provados passíveis de a integrar em tal categoria.
Com efeito, por força do art. 5.º, n.º 1 do CPC, às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas, podendo o juiz atender ainda a factos essenciais não alegados, desde que complementares ou concretizadores dos que hajam sido alegados e desde que resultem da instrução da causa e sobre eles as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar (art. 5.º, n.º 2, al. b)).
Nesta medida, era à recorrente que cabia alegar, assim como ao abrigo do art. 342.º, n.º 2 do CC provar, os factos passíveis de permitir a qualificação legal da parcela de terreno como bem público, tendo de o fazer perante o tribunal competente para conhecer da causa, como decorre dos arts. 91.º, 573.º e 576.º, n.º 3 do CPC.
Verdade que, enquanto excepção peremptória – impeditiva do efeito jurídico dos factos articulados pelos recorridos (art. 576.º, n.º 3 do CC) -, cuja invocação a lei não faz depender da vontade do interessado, a sujeição da parcela em causa ao domínio público é do conhecimento oficioso, nos termos do art. 579.º do CPC, não estando o juiz, ao abrigo do supra citado art. 5.º, n.º 3, sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.
Se assim é em relação à verificação ou não da excepção em causa, pode ler-se no acórdão do RE de 24/02/2010 (proc. 3992/08.8TBSTB.E1; rel. Ribeiro Cardoso) que “[o] conhecimento oficioso apenas se impõe quando os factos provados integram a excepção em causa já que se tratará de mera aplicação das regras de direito aos factos. Quando esses factos não integram a matéria de excepção ou são insuficientes para a sua procedência, não está o tribunal obrigado a tomar posição expressa sobre tal questão, concluindo pela negativa, ou seja, pela sua não verificação. E só assim não será quando a parte tiver expressamente suscitado a questão porque o art. 6640/2, 1ª parte impõe tal pronunciamento” (in www.dgsi.pt).
Sendo assim, veja-se o que, a propósito do art. 84.º da CRP dedicado ao domínio público, se escreveu no acórdão da RC de 21/02/2006 (proc. 4281/05; rel. Ferreira de Barros): “Na Constituição da República Portuguesa, o art. 84º aludindo ao domínio público, prevê no nº1 bens que pertencem a esse domínio, permitindo o n.º2 que a lei defina quais os bens que integram o domínio público do Estado, o domínio público das regiões autónomas e o domínio público das autarquias locais, bem como o seu regime, condições de utilização e limites. Ou seja, a dominialidade de certos bens pode resultar, desde logo, de disposição legal. A lei não contém qualquer definição de domínio ou coisa pública, ao contrário do que acontecia no art. 380º do Código Civil de 1867. O art. 202º, n.º2 do Código civil limita-se a prescrever que as coisas do domínio público estão fora do comércio jurídico, não podendo ser objecto de direitos privados.
Segundo Marcelo Caetano [In “ Manual de Direito Administrativo”, vol. 2ª, 9ª edição, p. 881], “as coisas públicas são as coisas submetidas por lei ao domínio de uma pessoa colectiva de direito público e subtraídas ao comércio jurídico privado em razão da sua primacial utilidade colectiva”.
Portanto, a lei ordinária, por deferência da Constituição, pode, desde logo, definir os bens que integram o domínio público. Não sendo o bem classificado por lei como pertencente ao domínio público, importa averiguar se o bem está afectado à utilidade pública que consiste na aptidão para satisfazer necessidades colectivas, ou, como refere aquele ilustre jurista, se existe uma utilidade pública inerente ou natural. E acrescentando [Ibidem, p. 921] que a atribuição do carácter dominial depende de um, ou vários, dos seguintes requisitos:
a) existência de preceito legal que inclua toda uma classe de coisas na categoria de domínio público;
b)declaração de que certa e determinada coisa pertence a essa classe;
c) afectação dessa coisa à utilidade pública.
Não é necessário que concorram os três requisitos, bastando um só.
E continuando, a “afectação é o acto ou a prática que consagra a coisa à produção efectiva de utilidade pública”. “ A “enumeração legal compreende bens cuja utilidade pública se conhece através de vários índices; o indicie evidente cuja existência logo denota publicidade é o uso directo e imediato do público. Só quando exista este índice evidente é que a lei permite que o intérprete considere públicas coisas não enumeradas categoricamente como tais por disposição legal”. “Há uso directo quando cada indivíduo pode tirar proveito pessoal de tal coisa pública e o uso imediato faz-se quando os indivíduos se aproveitam dos bens sem ser por intermédio dos agentes de um serviço público”. Já no art. 1º do Decreto n.º 23265, de 15.02.1934, se definia a dominialidade pelo uso público, directo e imediato, uso esse que dá o sinal de afectação a um fim de utilidade pública.
A nossa jurisprudência, na ausência de classificação legal da coisa como dominial, tem sido chamada, com frequência, a pronunciar-se sobre o carácter dominial de certos bens, sobretudo de caminhos [Cfr, entre muitos outros, os acórdãos do STJ publicados na CJ 2004, 1º, p. 19, CJ 2000, 2º, p. 117, CJ 1997, 3º, p. 11, CJ 1998, 1º, p. 96, BMJ 345º, p. 366, BMJ 362º, p. 609, BMJ 361º, p. 561, CJ 2002, 3º, p. 139; BMJ 431º, p. 300, BMJ 498º, p. 226; BMJ 422º, p. 355 e 364 ; no BMJ n.º 442º, p. 257; CJ 1993, 1º, p. 115.] . Pelo Assento de 19.04.1989 [Publicado no DR I, de 02.06.1989, e no BMJ 389º, p. 121, agora com valor de acórdão uniformizador de jurisprudência] foi decidido que “são públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público”, não se exigindo que o bem tenha sido apropriado ou produzido por uma pessoa colectiva de direito público e que este haja praticado actos de administração, jurisdição ou conservação.
Mas se as coisas dominiais, na sua essência, se destinam a prestar uma utilidade pública ou colectiva, então a doutrina consagrada naquela Assento, tal como refere a sentença sob exame, deverá ser interpretada restritivamente, no sentido de a publicidade do bem exigir ainda a sua afectação à utilidade pública ou à satisfação de relevantes interesses colectivos de um certo grau ou relevância. [Cfr. acórdãos do STJ publicados na CJ 1993, 3º, p. 135 e na CJ 2000, 2º, p. 117]”.
No caso concreto, a factualidade passível de ser reconduzida ao uso directo e imediato do público, como vimos, obteve resposta de não provado (als. d) e g) dos factos não provados), pelo que, não tendo a questão da dominialidade pública da parcela de terreno em apreço sido expressamente suscitada pela recorrente no seu articulado de contestação, o tribunal a quo também não estava obrigado a pronunciar-se de forma expressa sobre tal questão.
A recorrente insiste, nas conclusões 3 e 4, que:
“3. Dos articulados das partes, das fotografias juntas aos autos, da certidão matricial e até da visualização de imagens via Google Maps, realizada na audiência de julgamento resulta evidente que o terreno em questão é parte integrante da Travessa ..., configurando-se como bem de uso público.
4. O terreno serve como prolongamento da via pública, com utilização reconhecida por testemunhas para circulação e estacionamento de viaturas, e com entrada licenciada por entidades públicas, reunindo os elementos típicos de afetação ao domínio público municipal.
Sucede que a eventual falta de decisão sobre factos essenciais, sejam eles nucleares, neste caso necessariamente alegados pelas partes, sejam eles complementares ou concretizadores, neste caso alegados pelas partes ou resultantes da instrução da causa (cfr. art. 5.º, n.ºs 1 e 2 b) do CPC), não constitui uma nulidade por omissão de pronúncia, porquanto, no respectivo processo, constitui uma fase que antecede a decisão final e que está sujeita às regras que resultam das disposições conjugadas dos arts. 640.º e 662.º do CPC relativas à modificabilidade da decisão de facto, designadamente por via da ampliação da matéria de facto.
Como se escreveu no acórdão da RP de 19/04/2010 (proc. 662/07.8TTMAI.P1; rel. Paula Leal de Carvalho, “[a]s situações passíveis de constituírem nulidade de sentença também não se confundem com o erro de julgamento, que se prende com a própria decisão de mérito (seja em sede do julgamento da matéria de facto, seja do julgamento em matéria de direito). Acresce que a omissão, na decisão da matéria de facto, de factualidade que haja sido alegada pelas partes não consubstancia nulidade da sentença, sendo certo que tal omissão se reporta a decisão – da matéria de facto – que antecede a sentença” (in www.dgsi.pt).
Em face do exposto, verifica-se que o complexo factual provado de que o tribunal a quo dispunha, não tendo a questão da dominialidade pública da parcela em causa sido suscitada expressamente pela recorrente, não o obrigava a conhecer desta questão oficiosamente.
Acresce que a omissão de pronúncia geradora da nulidade prevista na al d), do n.º 1 do art. 615.º do CPC também não diz respeito “à omissão de pronúncia relativamente à prova documental (fotografias) e testemunhal relevante”, a que a recorrente se refere (conclusões 20 e 27). Como se sumariou no acórdão do STJ de 11/10/2022 (proc. 602/15.0T8AGH.L1-A.S1; rel. Isaías Pádua), “[o]conceito de “questão”, deve ser aferido em função direta do pedido e da causa de pedir aduzidos pelas partes ou da matéria de exceção capaz de conduzir à inconcludência/improcedência da pretensão para a qual se visa obter tutela judicial, dele sendo excluídos os argumentos ou motivos de fundamentação jurídica esgrimidos/aduzidos pelas partes». Com interesse pode ainda ler-se neste acórdão que “o facto de o julgador não tomar em consideração o teor de determinado documento, e extrair deles as suas virtualidades probatórias, tal não configura qualquer omissão de pronúncia, pois que esse documento não se integra no conceito de questão tal como acima o deixámos enunciado, mas quando muito terá a ver com um erro de julgamento (de facto/e ou de direito)” -in www.dgsi.pt.
Deste modo, improcede a arguida nulidade da sentença por omissão de pronúncia prevista no art. 615.º, n.º 1, al. d) do CPC.

b) Da nulidade da sentença por contradição entre os factos provados, designadamente sob os n.ºs 4, 6, 7 e 8
A nulidade prevista no art. 615.º, n.º 1, al. c) do CPC sucede quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Nestes casos, esclarece Antunes Varela que “há um vício real no raciocínio do julgador (e não um simples lapsus calami do autor da sentença): a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente” (in loc. cit., pág. 690).
Por outro lado, como esclarece o STJ no acórdão de 17/12/2024 (Proc. 8567/20.0T8LSB.L1.S1; rel. Rosário Gonçalves): “nos termos de tal alínea [c)], é nula a sentença, quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível. Conforme refere, Cardona Ferreira, in Guia de Recursos em Processo Civil, 3ª. ed., pág. 36 «A hipótese da alínea c) reporta-se ao processo lógico de raciocínio e não a opção voluntária decisória, ou seja, nulidade não é o mesmo que erro de julgamento». A decisão judicial é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes – Abrantes Geraldes – Paulo Pimenta – Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, volume 1º., pág. 738. No dizer de Alberto dos Reis, in CPC. Anotado, ano de 1981, Reimpressão, vol. V «Tal nulidade só ocorre quando existe no raciocínio do julgador um vício lógico, isto é, quando os fundamentos por ele invocados conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto»…O vício da alínea c) do nº1 do art. 615º só ocorre quando os fundamentos de facto e de direito invocados no acórdão recorrido conduzirem de acordo com um raciocínio lógico a resultado oposto ao que foi decidido, ou seja, quando a fundamentação apresentada justifica uma decisão precisamente oposta à tomada, como refere o Ac. do STJ. de 2/3/2011, in http://www.dgsi.pt. Para efeitos da nulidade por ininteligibilidade da decisão, prevista no art. 615º/1/c/2ª parte, do CPCivil, ambígua será a decisão à qual seja razoavelmente possível atribuírem-se, pelo menos, dois sentidos díspares sem que seja possível identificar o prevalente; obscura será a decisão cujo sentido seja impossível de ser apreendido por um destinatário medianamente esclarecido, como se alude no Ac. STJ. de 8/2/2018” (in www.dgsi.pt).
A contradição assacada à sentença recorrida pela recorrente consiste, nas palavras desta, na “contradição insanável entre os factos dados como provados (nomeadamente os factos 4, 6, 7 e 8), porquanto é logicamente impossível que um mesmo terreno seja, em simultâneo, cultivado com árvores de fruto e cimentado para estacionamento e instalação de fossas sépticas, configurando nulidade nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC”.
Ora, assim configurado, o reparo da recorrente situa-se ao nível da decisão da matéria de facto, não se referindo ao confronto inconciliável entre a fundamentação de facto e a decisão final.
Em todo o caso, sempre se dirá que os actos materiais descritos nos pontos 4, 5, 6, 7 e 8 se referem ao prédio de que os recorridos são proprietários, e à parcela adjacente ora em causa, não se depreendendo necessariamente que cada um desses actos seja praticado na totalidade da área do terreno, parcela incluída. Pelo contrário, bem se compreende que esse actos sejam praticados e coexistam em partes distintas da totalidade do prédio, parcela incluída.
A sentença recorrida não padece, portanto, da nulidade prevista no art. 615.º, n.º 1, al. c) do CPC.
*
C) Da impugnação da decisão da matéria de facto
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto é expressamente admitida pelo art. 662.º, n.º 1, do CPC, segundo o qual a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Para o efeito, o art. 640.º, n.º 1 do CPC impõe que o recorrente especifique obrigatoriamente, sob pena de rejeição, nas conclusões, os pontos de facto que considera incorretamente julgados e, na motivação, os concretos meios de prova constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada que impunham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto.
A este respeito, Abrantes Geraldes escreve que “podemos sintetizar da seguinte forma o sistema que vigora sempre que o recurso de apelação envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.
b) O recorrente deve especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos.
d) O recorrente pode requerer à Relação a renovação da produção de certos meios de prova, nos termos do art. 662.º, n.º 2, al. a), ou mesmo a produção de novos meios de prova nas situações referidas na al. b). Porém, como se anota à margem desses preceitos, não se trata de um direito potestativo do recorrente, antes de um poder-dever da Relação que esta deve usar de acordo com a perceção que recolher dos autos.
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente…” (in “Recursos em Processo Civil”, 7ª Edição Atualizada, Almedina, pág. 197 e ss.).
Inclusive, o acórdão uniformizador de jurisprudência do STJ n.º 12/2023, de 14/11, que veio dispensar o recorrente que impugne a decisão sobre a matéria de facto de indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, do mesmo passo, reforçou a necessidade da sua inclusão na motivação, porquanto exigiu que a mesma resulte inequívoca das alegações.
Para mais, tem sido entendimento generalizado da jurisprudência superior que o conhecimento pela Relação da impugnação da decisão da matéria de facto só se justifica se tiver por objecto factos com interesse para a decisão final do litígio segundo as diferentes soluções plausíveis de direito que a mesma comporte. A este respeito, no acórdão da RP de 28/04/2025 (proc. 596/21.3T8FLG.P1, rel. Miguel Baldaia de Morais), pode ler-se que “a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, visa, em primeira linha, alterar o sentido decisório sobre determinada materialidade que se considera incorretamente julgada. Mas este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal recorrido considerou provada ou não provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que, afinal, existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu. O seu efetivo objetivo é, portanto, conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante. Se, por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a atividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente. Quer isto dizer - conforme vem sendo entendido -, que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente” (in www.dgsi.pt).
Transpondo para o caso dos autos, na conclusão 32 diz a recorrente que “O Tribunal deu como provado o pagamento de IMI pelos recorridos, o que não é juridicamente possível na ausência de inscrição matricial válida, nos termos do artigo 112.º do Código do IMI — pelo que tal facto provado se mostra materialmente incorreto e deve ser revogado”.
O ponto em que o tribunal recorrido verteu o pagamento de IMI pelo recorridos é o ponto 4 dos factos provados que tem a seguinte redacção: “Desde a data da sua aquisição e construção, pelo mesmo, desde 1981 que os AA. têm usufruído do prédio, incluindo a área de cerca de 19,32 m2, com a delimitação constante da planta topográfica junta como doc. 6 com a p.i., vivendo e usufruindo do mesmo, procedendo às suas reparações, pagando o respectivo IMI, plantando árvores e colhendo os seus frutos”.
Ora, pagamento do IMI pelos recorridos que o identificado ponto 4 dos factos provados menciona refere-se ao prédio, em que, segundo o mesmo ponto, a área de cerca de 19.32 m2 está incluída, ou seja ao prédio identificado no ponto 2 dos factos provados. Não é à parcela de cerca de 19,32 m2, em particular, a que o referido pagamento de IMI se refere. Nesta medida, por si, este facto, o pagamento do IMI relativamente ao prédio identificado em 2 dos factos provados, é irrelevante para a decisão final acerca da parcela em discussão nos autos ou dos factos que só a ela dizem respeito. Deste ponto de vista, reapreciar aquele facto em concreto, pagamento do IMI pelos recorridos, é um exercício absolutamente inútil, que, nos termos do art. 130.º do CPC, não é lícito realizar.

Na conclusão 15 diz a recorrente o seguinte: “A prova produzida nos autos — documental, testemunhal e fotográfica — revela que o terreno em causa:
o Sempre foi utilizado pela comunidade como extensão da via pública;
o Serviu de acesso habitual a moradores e veículos;
o É alvo de licenciamento municipal para instalação de portão de acesso viário”.
Este último facto a que a recorrente se refere – “o terreno em causa é alvo de licenciamento municipal para a instalação de portão de acesso viário” – pese embora as diferenças de redacção, corresponde, se bem se percebe, à factualidade vertida sob a al. d) dos factos não provados –“ A R. viu aprovado pela Câmara o licenciamento de uma entrada e saída de veículos pelo trato de terreno”. De onde, se depreende que a recorrente pretende aquele facto como provado e a correspondente eliminação deste último dos factos não provados.
Não especifica, porém, a recorrente, nem nas conclusões nem na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a esse facto. Na verdade, na motivação a recorrente menciona as fotografias ou a fotografia junta com a petição inicial que demonstra a existência de um portão instalado com licença da Câmara Municipal ... para a entrada e saída de viaturas, bem como os depoimentos das testemunhas que confirmaram tal licenciamento. Ora, as fotografias juntas com a PI são todas elas manifestamente inidóneas para demonstrar o licenciamento da entrada e saída de veículos pelo trato do terreno, pelo que, não estando especificadas, assim como não estando identificadas as testemunhas nem indicadas com exatidão as passagens da gravação relevantes e/ou transcritos os excertos correspondentes, a impugnação da decisão da matéria de facto, nesta parte, não cumpre com o ónus impostos pelo art. 640.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, al. a) do CPC, e, como tal, é rejeitada.
*
D) Da ampliação da matéria de facto
A restante matéria a que a conclusão 15 faz referência é a seguinte:
- O terreno em causa sempre foi utilizado pela comunidade como extensão da via pública;
- O terreno em causa serviu de acesso habitual a moradores e veículos.
Já na conclusão 4, a recorrente havia escrito que “[o] terreno serve como prolongamento da via pública, com utilização reconhecida por testemunhas para circulação e estacionamento de viaturas”
Ora, as formulações contidas na conclusão 15, assim como na primeira parte da conclusão 4, são afirmações conclusivas e não factos concretos e materiais.
A este propósito, escreveu-se no acórdão da RP de 10/07/2024 (proc. 895/22.7T8PRD.P1, rel. Manuel Domingos Fernandes), que “Conforme é entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais superiores, mormente do Supremo Tribunal de Justiça, as conclusões apenas podem extrair-se de factos materiais, concretos e precisos que tenham sido alegados, sobre os quais tenha recaído prova que suporte o sentido dessas alegações, sendo esse juízo conclusivo formulado a jusante, na sentença, onde cabe fazer a apreciação crítica da matéria de facto provada.
Dito de outro modo, só os factos materiais são suscetíveis de prova e, como tal, podem considerar-se provados. As conclusões, envolvam elas juízos valorativos ou um juízo jurídico, devem decorrer dos factos provados, não podendo elas mesmas serem objeto de prova.[8] Segundo elucida Anselmo de Castro[9] “são factos não só os acontecimentos externos, como os internos ou psíquicos, e tanto os factos reais, como os simplesmente hipotéticos”, depois acrescentando que “só, (…), acontecimentos ou factos concretos no sentido indicado podem constituir objeto da especificação e questionário (isto é, matéria de facto assente e factos controvertidos), o que importa não poderem aí figurar nos termos gerais e abstratos com que os descreve a norma legal, porque tanto envolveria já conterem a valoração jurídica própria do juízo de direito ou da aplicação deste” (in www.dgsi.pt).
Sucede que, como se sintetizou no acórdão da RL de 18/11/2021 (proc. 1102/09.3TVLSB.L1-2; rel. Arlindo Crua, in jurisprudência.pt), “os denominados juízos ou conclusões de facto situam-se numa zona intermédia ou campo intermédio entre os puros factos e as questões ou matéria de direito, encontrando-se incluídos na legislação como parte integrante ou constituinte da hipótese legal de várias normas jurídicas ; V - tais juízos ou conclusões de facto numas situações aproximam-se mais de uma verdadeira questão de facto, enquanto que noutros a proximidade é com uma questão de direito ; VI – pelo que, aquilo que é matéria de facto ou matéria de direito não é estanque ou fixo, mas antes volátil, dependendo dos termos em que a lide controvertida se apresenta ou modela, donde o mesmo juízo ou conclusão de facto pode ser, numa situação facto ou juízo de facto e, noutra, juízo de direito ; VII - devendo apenas terem-se como proibidos os juízos de facto conclusivos que impliquem e apreciem determinados acontecimentos à luz de uma norma jurídica, caso em que tal juízo de facto conclusivo contém em si a resposta a uma questão de direito, ou seja, possui um sentido normativo”.
À luz do que vimos de dizer, as afirmações –“O terreno serve como prolongamento da via pública” (conclusão 4) e o “O terreno em causa sempre foi utilizado pela comunidade como extensão da via pública” (conclusão 15) – claramente encerram um juízo de valor que se apresenta como determinante do sentido a dar à pretensão recursória da recorrente.
E, embora de forma menos directa, também a segunda das referidas afirmações – “O terreno em causa serviu de acesso habitual a moradores e veículos” – encerra um juízo de valor que conduz ao preenchimento do conceito inerente à pretensão da recorrente, ou seja o uso directo pelo público em geral do parcela em causa.
É quanto basta para não admitir as afirmações em discussão no elenco dos factos provados.

No que toca à afirmação contida na conclusão 4 – “O terreno serve para circulação e estacionamento de viaturas”, pese embora, do conjunto das conclusões, se possa depreender, que a recorrente pretendeu ampliar a matéria de facto com aquela factualidade, a verdade é que, nem das conclusões nem da motivação das alegações estão devidamente identificados os meios de prova dos autos em que a recorrente se apoia para a considerar provada. Certo que na sua motivação, a recorrente faz menções dispersas e difusas a fotografias juntas com a PI e aos depoimentos das testemunhas em geral. Porém, não individualiza esses meios de prova, muito menos o faz por referência àquela concreta factualidade.
Ora, a jurisprudência dos tribunais superiores tem vindo a entender que também a ampliação da matéria de facto está sujeita aos ónus previstos no art. 640.º do CPC. Neste sentido, veja-se, a título meramente exemplificativo, o sumário do acórdão da RP de 15/09/2025 (proc. 687/23.6T8PFR.P1, rel. Carlos Gil) “I - A pretensão de ampliação da decisão da matéria de facto constitui uma impugnação da decisão da matéria de facto com fundamento em omissão na mesma de factualidade relevante à luz das diversas soluções plausíveis das questões de direito. II - O recorrente que pretenda a ampliação da decisão da matéria de facto, deve relativamente à matéria objeto de ampliação observar os ónus previstos no artigo 640º do Código de Processo Civil”.
Nesta perspectiva, não tendo a recorrente especificado os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham a inclusão da factualidade em apreço entre o elenco dos factos provados, é forçoso concluir pela rejeição da impugnação, também nesta parte.
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E) Da alteração da decisão de mérito
Não se modificando o quadro factual julgado provado e não provado pelo tribunal a quo, em face do objecto do processo delimitado pelas conclusões do recurso, importa, ainda assim, apreciar se a decisão recorrida deve ser mantida ou se, pelo contrário, deve ser revogada.
Defende a recorrente que a sentença viola norma de ordem pública ao declarar usucapível um bem do domínio público.
O art. 202.º do CC, ao definir, no seu n.º 1, coisa como tudo aquilo que pode ser objecto de relações jurídicas, no seu n.º 2, exclui do comércio todas as coisas que não podem ser objecto de direitos privados, tais como as que se encontram do domínio público e as que são, por sua natureza, insusceptíveis de apropriação individual. E porque assim é, o art. 19.º do DL n.º 280/2007 de 7/08 veda os imóveis do domínio público à aquisição por usucapião.
Por sua vez, o art. 84.º, n.º 1 da CRP dispõe que pertencem ao domínio público os seguintes bens:
a) As águas territoriais com os seus leitos e os fundos marinhos contíguos, bem como os lagos, lagoas e cursos de água navegáveis ou futuáveis, com os respectivos leitos;
b) As camadas aéreas superiores ao território acima do limite reconhecido ao proprietário ou superficiário;
c) Os jazigos minerais, as nascentes de águas mineromedicinais, as cavidades naturais subterrâneas existentes no subsolo, com excepção das rochas, terras comuns e outros materiais habitualmente usados na construção;
d) As estradas;
e) As linhas férreas nacionais;
f) Outros bens como tal classificados por lei.
Na situação dos autos, resulta claro que os factos provados não permitem integrar a parcela de terreno em nenhuma das referidas alíneas. Outrossim, dos factos provados – e o facto vertido no ponto 22 é manifestamente insuficiente para o efeito - não se extrai que a mesma parcela esteja “afecta ao trânsito de pessoas sem discriminação” e que, portanto, constitua um caminho que, desde tempos imemoriais, está no uso directo e imediato do público, que, à luz do assento de 19/04/1989, hoje com valor de acórdão uniformizador de jurisprudência, possa ser considerada um caminho público.
E o mesmo sucede com o facto de a recorrente ter apresentado perante a Câmara Municipal um projecto de obras em que previa a construção, naquele local, de uma abertura para passagem de veículos automóveis, passando, não só, pelo trato de terreno em causa, como pelo local do muro que a mesma mandou destruir (ponto 22 dos factos provados e conclusão 34).
Não se vislumbra, pois, que tenha sido violada qualquer norma de ordem pública pela simples razão de que dos factos provados não se retira que a parcela em causa se encontre no domínio público, em prejuízo, portanto, da necessidade da sua desafectação para ingressar no comércio jurídico.
Do tecido factual apurado o que se colhe são os seguintes factos:
- os AA. são proprietários e legítimos possuidores do prédio urbano, destinado à habitação e indústria, sito na Travessa ..., Freguesia ..., concelho de Oliveira de Azeméis, inscrito na matriz predial urbana da Freguesia ... sob o Artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Azeméis sob o n.º ..., com a inscrição Ap. ... a seu favor (ponto 2 dos factos provados);
- o prédio referido em 2., e respectivo logradouro, encontra-se delimitado por muros mandados construir pelos AA., nomeadamente a poente, no trato de terreno com a área de cerca de 19,32 m2 junto ao portão de entrada que confina com o prédio da Ré (ponto 3 dos factos provados):
- desde a data da sua aquisição e construção, pelo mesmo, desde 1981 que os AA. têm usufruído do prédio, incluindo a área de cerca de 19,32 m2, com a delimitação constante da planta topográfica junta como doc. 6 com a p.i., vivendo e usufruindo do mesmo, procedendo às suas reparações, pagando o respectivo IMI, plantando árvores e colhendo os seus frutos (ponto 4 dos factos provados);
- utilizando o trato de terreno, com a área de 19,32 m2, adjacente ao seu portão de entrada a norte para estacionamento das suas viaturas (ponto 5 dos factos provados);
- tendo nesse trato de terreno implantadas as fossas de escoamento da sua habitação (ponto 6 dos factos provados);
-limpando o prédio, incluindo esse trato de terreno (ponto 7 dos factos provados);
- tendo cimentado tal trato de terreno (ponto 8 dos factos provados);
- procedendo à manutenção do prédio, incluindo esse trato de terreno (ponto 9 dos factos provados);
- todos esses actos foram praticados pelos AA. sem oposição de quem quer que seja, incluindo a Ré, à vista de toda a gente, há mais de vinte e mais anos (ponto 14 dos factos provados);
-na convicção do exercício de um direito próprio sobre o prédio, incluindo o trato de terreno, correspondente ao direito de propriedade (ponto 15 dos factos provados).
Desta factualidade retira-se que, desde há mais de 20 anos, os recorridos exercem sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Azeméis sob o n.º ..., incluindo a parcela de terreno com a área de cerca de 19,32 m2 que lhe está adjacente, actos materiais, como seja, reparações, plantação de árvores, recolha de frutos, limpeza, manutenção, e, em particular na dita parcela, que cimentaram, estacionamento das suas viaturas e implantação das fossas de escoamento da sua habitação. Todos estes actos traduzem poderes efectivos de domínio sobre a área do prédio que abrange a parcela de terreno adjacente e que são equivalentes aos poderes que emanam do direito de propriedade, ou seja aos poderes indeterminados que provêm dos inerentes direitos de usar, fruir e dispor dos bens de forma plena e exclusiva, nos termos do art. 1305.º do CC.
De facto, da matéria assente não se colhe que qualquer outra pessoa exerça sobre aquele prédio, incluindo a parcela adjacente, quaisquer actos materiais reveladores de poderes de facto idênticos aos que são exercidos por um proprietário.
Do mesmo passo, extrai-se da apurada factualidade que a descrita actuação dos recorridos sobre a totalidade do mencionado prédio, incluindo a parcela de cerca de 19,32 m2, tem sido acompanhada pela convicção dos mesmos de estarem a exercer um direito real próprio, mais concretamente o direito de propriedade.
Note-se que o facto de no portão de entrada para o prédio dos recorridos ter sido colocada a caixa de correio, a campainha, uma placa decorativa com o nome de família personalizado “Família ...” e o número identificativo de toponímia, deixando o trato de terreno por vedar no lado oposto a esse portão (pontos 28 e 29 dos factos provados), por si, não significa, ao contrário do que defende a recorrente, o reconhecimento implícito do carácter público deste terreno (conclusão 33). Nem tão pouco significa que, por isso, os recorridos não exerceram os descritos poderes de facto sobre a parcela em discussão com a convicção de que exerciam um direito próprio. Na verdade, sendo aquela realidade compatível com o exercício dos poderes indeterminados correspondentes ao direito de propriedade, não pode à mesma, sem mais, ser atribuído outro significado, designadamente o pretendido pela recorrente.
Ora, o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real corresponde à noção que o art. 1251.º do CC nos dá de posse, constituída por dois elementos: o elemento material ou corpus que são os actos materiais praticados sobre a coisa e o elemento psicológico, ou animus que é a intenção de se comportar como titular do direito correspondente aos actos praticados.
Para mais, dos factos provados também consta que todos estes actos foram praticados pelos recorridos sem oposição de quem quer que seja, incluindo a recorrente, à vista de toda a gente, há mais de vinte e mais anos (ponto 14 dos factos provados), pelo que estão reunidos os requisitos, posse pacífica e pública, por tempo suficiente, mais de 20 anos, para a aquisição pelos recorridos do prédio em causa melhor identificado no ponto 2 dos factos provados, incluindo a área de 19,32 m2 adjacente ao respectivo portão de entrada, por força do instituto da usucapião, nos termos dos arts. 1261.º, 1262.º, 1296.º, 1297.º, 1316.º e 1287.º e ss. do CC.
Como se sintetizou no acórdão do STJ de 7/02/2013 (proc. 1952/06.2TBVCD.P1.S1; rel. Serra Baptista) “[p]ara conduzir à aquisição da propriedade, por via da usucapião, a posse tem de revestir duas características: ser pública e pacífica. O art. 1261.º fala de posse pacífica, ou seja, aquela que foi adquirida sem violência, a que se contrapõe a posse violenta, enquanto o art. 1262.º fala de uma posse pública, ou seja, aquela que se exerce de modo a ser conhecida pelos interessados, contrapondo-se a esta posse pública uma posse clandestina ou oculta. As restantes características – ser de boa ou de má fé, ser titulada, ou não – influem apenas no prazo (arts. 1258.º a 1262.º, 1287.º e 1294.º a 1207.º)” – com interesse, vide Menezes Cordeiro, in “Direitos Reais”, Lex, pág. 470.
De onde, a situação dos autos reúne os requisitos necessários ao reconhecimento do direito de propriedade dos recorridos sobre o prédio melhor identificado no ponto 2) dos factos provados com a área que abrange o trato de terreno de 19,32 m2, adjacente ao portão de entrada a Norte desse prédio.
Conclui-se desta forma pela improcedência do recurso interposto pela recorrente, mantendo-se a sentença recorrida.
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F) Da litigância de má-fé e do abuso do direito da recorrente
Na sua resposta à alegação de recurso, os recorridos invocam a litigância de má-fé e o abuso do direito da recorrente (conclusão 6) por entenderem que:
“3) Quer em sede de Contestação, quer em sede de julgamento, a Ré, ora Recorrente nunca veio invocar a agora alegada natureza pública do trato de terreno em questão.
4) A aceitação de que tal trato de terreno é de foro particular decorre até do teor da Contestação da Ré/Recorrente que, nos artigos 25.º a 28.º do referido articulado, vem alegar a existência de mera tolerância daquela e dos seus antepossuidores.
5) A natureza privada (e não pública) do trato de terreno nunca foi objeto de contestação
pela Ré/Recorrente nos presentes autos…quer durante a fase dos articulados, quer posteriormente em sede de julgamento”.
Vejamos.
O art. 542.º do CPC, sob a epígrafe “Responsabilidade no caso de má-fé – Noção de má-fé”, dispõe que:
1 - Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2 - Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
3 - Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admitido recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má-fé.
Em anotação a este preceito legal, Abrantes Geraldes sublinha que “A lei não coloca entraves irrazoáveis à introdução em juízo de pretensões ou meios de defesa, nem consente que se faça do direito de ação uma interpretação correspondente a uma verdadeira petição de princípio, segundo a qual o acesso aos tribunais estaria reservado aos que tivessem razão. Se um dos objectivos do exercício do direito de ação é o reconhecimento de uma situação jurídica tutelável, o recurso legítimo aos tribunais não pode restringir-se àqueles que inequivocamente tenham a razão do seu lado. Ao invés, a lei confere uma vasta amplitude ao direito de acção ou de defesa, de maneira que, para além da repercussão no campo das custas judiciais, não retira do decaimento qualquer outra consequência a não ser que alguma das partes aja violando as regras e princípios básicos por que devem pautar a sua atuação processual. Assim, não deve confundir-se a litigância de má-fé com:
a) A mera dedução de pretensão ou oposição cujo decaimento sobreveio por mera fragilidade da sua prova, por a parte não ter logrado convencer da realidade por si trazida a juízo;
b) A eventual dificuldade de apurar os factos e de os interpretar;
c) A discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, a diversidade de versões sobre certos factos ou a defesa convicta e séria de uma posição, sem, contudo, a lograr impor” (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, Almedina, págs. 592/3).
Para mais, quanto à culpa, são hoje censuradas como litigância de má-fé, determinadas condutas especialmente tipificadas, desde que cometidas com dolo ou com negligência grave.
A este respeito, explica Menezes Cordeiro que «[n]o Direito processual – 1995/96 e, agora 2013 – valem o dolo e a negligência grave: não a comum. A jurisprudência, ainda que sublinhando o alargamento que a relevância agora dada à negligência (grave) significa, restringe esse alargamento às prevaricações substanciais; nas processuais - 456.º/2, d), hoje 542.º/2, d) – apenas relevaria o dolo…A própria negligência grave é entendida como “imprudência grosseira, sem aquele mínimo de diligência que lhe seria permitido facilmente dar-se conta da desrazão do seu comportamento, que é manifesta aos olhos de qualquer um”» (in “Litigância de Má-Fé Abuso de Direito de Acção e Culpa In Agendo”, 3.ª Edição, Almedina, pág. 66).
Transpondo para o caso dos autos, já se teve oportunidade de dizer que, apesar de não ter na sua Contestação suscitado a questão da dominialidade pública da parcela em questão, a recorrente alegou não só factos passíveis de a revelar - os factos alegados nos arts. 20.º e 24.º da contestação que mereceram a resposta de não provados (als. d) e g) dos factos não provados) – como também factos compatíveis com essa leitura da realidade - os factos alegados nos arts. 9.º a 14.º da Contestação – al. b) dos factos não provados e ponto 28 dos factos provados.
Neste contexto, o facto de em 1.ª Instância a recorrente não ter nomeado para o objecto dos autos um enquadramento jurídico que efectivamente não veio a ser procedente, não significa que a mesma soubesse ou não pudesse ignorar a falta de fundamento para tal enquadramento, tanto que, não obstante, forneceu factualidade bastante para a respectiva identificação, sujeitando-a à apreciação do tribunal.
Não se conclui, portanto, pela litigância de má-fé da recorrente.

Quanto ao abuso do direito, socorremo-nos, uma vez mais, dos ensinamentos de Menezes Cordeiro que, sobre o assunto, escreveu o seguinte: “A aplicação geral do instituto do abuso do direito no campo do Direito processual civil surge, hoje, indiscutível. Nenhuma posição jurídico-subjectiva está imune a uma sindicância, no momento do seu exercício, feita à luz dos valores fundamentais do ordenamento em causa. Não há alternativa: o direito subjectivo imune ao sistema – e, como tal, susceptível de um exercício ilimitado – acabaria por se colocar fora do próprio ordenamento, tornando-se irreconhecível.
Estas considerações não podem deixar de se aplicar ao direito de ação judicial. Como quaisquer outras posições ativas, também o direito de ação é susceptível de abuso, com todas e as devidas consequências.
(…)
Se o abuso do direito é claramente aplicável ao direito de ação judicial – ou, mais latamente: ao exercício de quaisquer posições no processo – pergunta-se, naturalmente, se não deveria proceder-se a significativas adaptações…
Na verdade, a doutrina processual germânica adotou, em termos translativos, uma ordenação em quatro tipos dos casos de aplicação da boa-fé no processo: a proibição de consubstanciar dolosamente posições processuais, a proibição de venire contra factum proprium, a proibição de abuso de poderes processuais e a supressio” (in loc. cit., págs. 141 e ss.).
Pois bem, na situação dos autos, a invocação do carácter público da parcela em sede de recurso, como vimos, não só não contraria o posicionamento anterior da R. relativamente a essa questão, como encontra apoio na sua, embora gorada, defesa originária.
Nesta perspectiva, conclui-se, igualmente, pela inexistência de abuso do direito processual por parte da recorrente.

As custas do recurso são pela recorrente, por ter ficado vencida (art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
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Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663.º, n.º 7 do CPC):
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IV. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas do recurso pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
Notifique.

Porto, 24/11/2025
Carla Fraga Torres
José Nuno Duarte
Manuel Domingos Fernandes