I - O procedimento para cassação da carta de condução é um procedimento administrativo autónomo, aberto só após o trânsito das decisões das quais resulta a perda de pontos na carta de condução.
II - A perda de 6 pontos estipulada para quem pratica crimes rodoviários sob o efeito do álcool ou de substâncias psicotrópicas constituiu uma opção legislativa clara, tendo em conta a gravidade das consequências da prática de tais ilícitos.
III - A compressão do direito de um cidadão de ser titular de carta de condução, derivada da cassação, tem na sua base o confronto deste direito com o direito dos outros cidadãos em circularem na vida pública com segurança, assumindo aqui particular relevo as medidas legislativas adoptadas para prevenção e combate à sinistralidade rodoviária, nomeadamente o combate às actividades susceptíveis de elevar o perigo na condução e, em consequência, a sinistralidade, como sucede com a condução sob o efeito do álcool ou de substâncias psicotrópicas.
IV - Ao titular da carta de condução cassada é concedido o direito de impugnar judicialmente a decisão administrativa, mas não é recorrível a decisão proferida em sede de impugnação judicial, confirmatória da regularidade formal da cassação da carta de condução.
Exame preliminar
As decisões dos tribunais de 1.ª instância sobre a admissão dos recursos não vinculam os tribunais superiores, conforme expressamente refere o artigo 414.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Posto isto,
… interpôs recurso da sentença proferida …, que manteve a decisão proferida pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária que determinou a cassação da sua carta de condução …
Recorre, pois, da decisão proferida pelo tribunal de 1ª instância incidente sobre a impugnação judicial da decisão administrativa que decidiu a cassação da carta de condução, nos termos do § 10º do art. 148º do Código da Estrada, invocando o seguinte:
1 - Violação do princípio do contraditório;
2 - Ilegalidade do processo administrativo de cassação.
3- Prescrição do procedimento.
O art. 186º do Código da Estrada prevê que «as decisões judiciais proferidas em sede de impugnação de decisões administrativas admitem recurso nos termos da lei geral aplicável às contraordenações.»
Por sua vez, o artigo 73º do Regime Geral das Contraordenações estabelece que:
«1 - Pode recorrer-se para a Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64.º quando:
a) For aplicada ao arguido uma coima superior a (euro) 249,40;
b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias;
c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a (euro) 249,40 ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público;
d) A impugnação judicial for rejeitada;
e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto a tal.
2 - Para além dos casos enunciados no número anterior, poderá a relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
3 - Se a sentença ou o despacho recorrido são relativos a várias infrações ou a vários arguidos e se apenas quanto a alguma das infrações ou a algum dos arguidos se verificam os pressupostos necessários, o recurso subirá com esses limites.»
Ora, a decisão administrativa impugnada não foi tomada no âmbito de qualquer procedimento contraordenacional, porquanto o procedimento para cassação da carta de condução, conforme expressamente o refere a lei, é um procedimento administrativo autónomo (cf. artigo 148.º, § 10.º CE), aberto só após o trânsito das decisões das quais resulta a perda de pontos na carta de condução.
Clarificando:
Em 28.5.2015 deu entrada na Assembleia da República a Proposta de Lei do Governo nº 336/XII/4, que viria a ser aprovada por unanimidade. Na sua apresentação ao Plenário da Assembleia da República, a Exma. Ministra da Administração Interna, …, justificou a alteração legislativa efetuada da seguinte forma ([1]):
“Propõe-se a atribuição inicial de 12 pontos aos condutores, sendo que os condutores perdem dois ou quatro pontos pela prática, respetivamente, de contraordenações graves ou muito graves.
A condução sob o efeito de álcool, acima dos limites legais, ou de substância psicotrópica tem um regime diferenciado pela particular e muito negativa contribuição para a sinistralidade rodoviária. …
A possibilidade de extinguir contraordenações rodoviárias permite, e permitirá no futuro, orientar o sistema da carta por pontos para penalizar, em especial, aqueles comportamentos que mais contribuem para a sinistralidade rodoviária, permitindo também, desta forma, a maior consciencialização dos condutores para os perigos na estrada.
…
A subtração de pontos ao condutor tem consequências, mas, ao contrário do regime vigente, não se trata apenas da cassação da carta. Existe uma aposta clara na reabilitação do condutor através da frequência de ações de formação rodoviária e na realização do novo exame teórico de condução.
Por último, gostaria ainda de sinalizar que os condutores têm a possibilidade de recuperar os pontos perdidos: …. O regime proposto não só penaliza o mau comportamento na estrada, como beneficia e, portanto, incentiva o bom comportamento…”
Ou seja, recorreu o legislador à distinta gravidade das condutas e sua repetição como fundamento para a diferenciação quer dos pontos a retirar, quer dos pontos a recuperar, quer à sua recuperação, através da frequência pelo condutor de ações de formação rodoviária ou da realização de novo exame teórico de condução.
Por outro lado, a perda de 6 pontos estipulada para quem pratica crimes rodoviários sob o efeito do álcool ou de substâncias psicotrópicas constituiu uma opção legislativa clara, tendo em conta a gravidade das consequências da prática de tais ilícitos, o que foi logo anunciado na exposição de motivos da citada Proposta de Lei nº 336/XII/4:
“A carta por pontos constitui uma das ações chave da Estratégia Nacional de Segurança Rodoviária, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 54/2009, de 14 de maio. Pretende-se, com a sua implementação, aumentar o grau de perceção e de responsabilização dos condutores, face aos seus comportamentos, adotando-se um sistema sancionatório mais transparente e de fácil compreensão. A análise comparada com outros países europeus demonstra que é expetável que a introdução do regime da carta por pontos venha a ter um impacto positivo significativo no comportamento dos condutores, contribuindo, assim, para a redução da sinistralidade rodoviária e melhoria da saúde pública.”
Resulta assim manifesta a aplicação do princípio da proporcionalidade às restrições dos direitos individuais, quer na retirada de pontos da carta de condução, consoante a gravidade e efetuada uma graduação dos riscos para outros bens constitucionalmente protegidos, quer do direito de exercer a condução automóvel, que é subtraído ao cidadão através da cassação da carta de condução.
A compressão do direito de um cidadão ser titular de carta de condução, prevista no art. 148º, n.º 4, al. c), do Código da Estrada, tem na sua base o confronto deste direito com o direito dos outros cidadãos em circularem na vida pública com segurança, assumindo aqui particular relevo as medidas legislativas adotadas para prevenção e combate à sinistralidade rodoviária, nomeadamente o combate às atividades suscetíveis de elevar o perigo na condução e, em consequência, a sinistralidade – como sucede com a condução sob o efeito do álcool ou de substâncias psicotrópicas (conforme prevê o art. 148º, n.º 1, do Código da Estrada).
Na verdade, ao titular da carta de condução cassada é concedido o direito de impugnar judicialmente a decisão administrativa, determinando o § 13º daquela norma: “A decisão de cassação do título de condução é impugnável para os tribunais judiciais nos termos do regime geral das contraordenações”.
Não está em causa a tutela jurisdicional efetiva, porquanto a lei declara que a decisão administrativa é impugnável junto dos tribunais de 1ª instância. Como refere o Ac. do TRE de 7.11.2023 (rel. Moreira das Neves), “o artigo 73.º do RGC serve justamente para separar o que deve ser separado, isto é, as decisões dos Juízos de 1.ª instância que são recorríveis para os Tribunais de Relação, das que o não são. E, como visto, nele se não prevê o recurso das decisões judiciais confirmatórias da regularidade formal da cassação da carta de condução.” ([2])
No mesmo sentido da irrecorribilidade da decisão judicial em causa nos autos, cf. as decisões do TRP de 29.6.2023, rel. Pedro Afonso Lucas (decisão sumária), os Acs. de 21.6.2024, rel. Maria Joana Grácio, de 8.5.2024, rel. João Pedro Cardoso, de 28.4.2021, rel Eduarda Lobo, de 17.5.2023, rel. Francisco Mota Ribeiro, de 29.6.2023, rel. Paulo Costa, e a decisão sumária de 4.5.2023, rel. William Themudo Gilman; do TRL de 10.10.2024, rel. Ana Marisa Arnêdo; do TRG de 18.6.2024, rel. Fernando Chaves, de 9.4.2024, rel. Júlio Pinto, de 10.9.2024, rel. Isilda Pinho, entre outros, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Custas a cargo do recorrente, fixando em 4 UC’s a taxa de justiça (art. 420º, n.º 3, do CPP).
Coimbra, 11 de novembro de 2025
Ana Carolina Veloso Gomes Cardoso (relatora – processei e revi)
[1] Em DAR, I série, n.º 102, 2015.06.25, da 4.ª SL da XII Leg (pág. 15-20).
[2] Em www.dgsi.pt