PROCESSO ESPECIAL PARA ACORDO DE PAGAMENTO
INDEFERIMENTO LIMINAR
SITUAÇÃO DE INSOLVÊNCIA ATUAL
CASO JULGADO FORMAL
NOVA AÇÃO
Sumário

I – O despacho que, no âmbito de processo especial para acordo de pagamento, indefere liminarmente a pretensão por falta de verificação dos pressupostos exigidos no art.º 222.º-A, n.º 1, do CIRE – em virtude de o requerente estar em situação de insolvência actual – apenas produz caso julgado formal cujos efeitos se limitam ao processo onde foi proferido.
II – Esse caso julgado (formal) não impõe a sua autoridade fora do processo onde se formou – seja por via positiva, seja por via da excepção de caso julgado – e, nessa medida, não obsta à propositura de nova acção idêntica à anterior e não pode ser invocado nesta segunda acção, seja para o efeito de obstar ao seu prosseguimento por efeito da excepção de caso julgado, seja para o efeito de impor, por via da sua autoridade, uma decisão idêntica à que havia sido proferida no processo anterior, nada obstando a que na segunda acção possa ser proferida decisão de conteúdo divergente da primeira.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

AA veio instaurar – em 07/08/2025 e ao abrigo do disposto no art.º 222.º-A e seguintes do CIRE – processo especial para acordo de pagamento, pretendendo estabelecer negociações com os seus credores de modo a concluir com eles acordo de pagamento e juntando declaração – no mesmo sentido – de um dos seus credores (A..., S.A.)

Tendo sido determinada a sua notificação para se pronunciar sobre o eventual indeferimento do pedido com fundamento no efeito positivo de autoridade do caso julgado emergente do despacho que indeferiu o pedido no processo nº 1485/25...., a Requerente veio pronunciar-se, afastando a existência de qualquer “efeito positivo da autoridade do caso julgado” e dizendo que a decisão anterior de indeferimento do pedido foi “uma decisão meramente presuntiva” sem que tivessem sido sequer ouvidos os credores  e da qual não interpôs recurso apenas por pretender dar início a novo processo e obter, dessa forma, uma decisão mais célere e rápida tendo em vista a sua recuperação.

Na sequência desse facto, foi proferido despacho – em 07/09/2025 – que indeferiu liminarmente o pedido nos termos do art.º 27.º, n.º 1, alínea a), do CIRE por se considerar verificado “...o efeito positivo de autoridade do caso julgado do despacho que indeferiu o pedido da requerente se apresentar a PEAP no processo nº 1485/25...., por esta se encontrar em situação de insolvência actual”.

Inconformada com tal decisão, a Requerente veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…).


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II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se há (ou não) fundamento para indeferir liminarmente a pretensão da Requerente/Apelante, designadamente por efeito do caso julgado formado pelo despacho que indeferiu liminarmente o pedido formulado no âmbito do processo especial para acordo de pagamento nº 1485/25.....


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III.

Na 1.ª instância, foram enunciados e considerados os seguintes factos (resultantes de documentos constantes dos autos):

A)- A requerente apresentou-se a processo especial para acordo de pagamento no processo que correu termos neste Juízo de Comércio com o nº 1485/25.....

B)- Por decisão proferida, em 18.07.2025, transitada em julgado, no processo referido em 1) foi decidido indeferir liminarmente o processo por não se verificar o pressuposto substantivo para o recurso ao processo especial para acordo de pagamento (art. 222º-A, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), por a requerente se encontrar em situação de insolvência actual, a qual se dá aqui por integralmente reproduzida.

C) – No processo referido em 1), para a decisão foram considerados os seguintes factos:

 “1) -A requerente nasceu a ../../1946.

2) – É viúva.

3)- Recebe de pensão o valor mensal de €881,00.

4) – O rendimento global da requerente, no ano de 2023, foi de €17.317,54;

5)- Contra a requerente, e outros, encontram-se pendentes os seguintes processos executivos:

- com o nº 1290/14.... a correr termos no Juízo de Execução de Ansião, em que são exequentes B..., SA e C..., SA instaurado em 21.03.2014, em que a quantia exequenda ascendia, à data da instauração da execução, a 1.276.436,86 €.

- com o nº 386/16.... a correr termos no Juízo de Execução de Ansião, em que é exequente D..., SA instaurado em 18.01.2026, em que a quantia exequenda ascendia, à data da instauração da execução, a  4.538,74 €.

- com o nº 2127/14...., a correr termos no Juízo de Execução de Ansião, em que é exequente o Banco 1..., S.A., instaurado em 19.05.2014, em que a quantia exequenda ascendia, à data da instauração da execução, a 483.277,45 €.

- com o nº 2068/14...., correr termos no Juízo de Execução de Ansião, em que é exequente o E..., S.À.R.L., instaurado em 15.05.2014, em que a quantia exequenda ascendia, à data da instauração da execução, a 1.120.935,14 €.

6)- A requerente é proprietária de um prédio urbano, sito na Rua ..., ..., composto por edifício de rés-do-chão, 1º, 2º, 3º e 4º andares com direito, centro e esquerdo, descrito na CRP da freguesia ... com o nº ...07 e inscrito na matriz com o artigo nº 2689, artigo este que proveio do art. 1501.

Sobre o imóvel incidem os seguintes ónus:

- hipoteca voluntária a favor do Banco 1..., SA (actualmente por força da cessão do crédito a favor de F..., Lda) registada pela Ap. 6 de 10.11.2006 até ao montante máximo assegurado de €2.055.000,00;

- hipoteca voluntária a favor do Banco 1..., SA (actualmente por força da cessão do crédito a favor de F..., Lda), B..., SA e C..., SA registada pela Ap. ...27 de 14.05.2010 até ao montante máximo assegurado de €2.554.191,51;

- penhora registada pela Ap. ...72 de 4.06.2014 a favor do C..., SA e B..., SA para pagamento da quantia exequenda no montante de €1.276.436,86;

- penhora registada pela Ap. ...69 de 9.07.2014 a favor do Banco 1..., SA para pagamento da quantia exequenda no montante de €483.277,45;

- penhora registada pela Ap. ...68 de 14.07.2014 a favor do Banco 1..., SA para pagamento da quantia exequenda no montante de €1.120.935,14;

- penhora registada pela Ap. ...5 de 9.11.2016 a favor da Autoridade Tributária para pagamento da quantia exequenda no montante de €139.735,60;

- penhora registada pela Ap. ...01 de 16.02.2018 a favor da G..., LDA para pagamento da quantia exequenda no montante de €309.958,65;

7)- O valor patrimonial global do prédio referido em 6) é de €738.421,68, sendo o valor apurado relativamente a algumas fracções do ano de 2024 e de outras do ano de 2022.

8)- O prédio referido em 6) encontra-se inscrito na matriz desde 1988.

9)- A requerente indica os seguintes credores:

- Banco 1... SA com um crédito de natureza comum, sem garantia, crédito no montante de € 483.277,45;

- D... SA com um crédito de natureza comum, sem garantia, crédito no montante de € 4.538,74;

- B... SA e C... SA com um crédito de natureza comum, sem garantia no montante de € 1.276.436,86;

- E..., S.A.R.L com um crédito de natureza comum, sem garantia, no montante de € 1.120.935,14;

- A... SA com um crédito de natureza comum, sem garantia, no montante de € 277.961,78 acrescido do montante de € 245.246,07 de juros;

- H... LTD com um crédito de natureza comum, sem garantia, no montante de € 457.000,00;”

D)- Dos elementos juntos a estes autos resultam, com interesse para a presente decisão, os factos referidos em C).


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IV.

Conforme se referiu, a decisão recorrida indeferiu liminarmente o pedido da Requerente com fundamento no caso julgado que se havia formado com a decisão proferida no processo n.º 1485/25.... onde se havia indeferido liminarmente pedido idêntico ao formulado nos presentes autos com fundamento no facto de a Requerente se encontrar em situação de insolvência actual e de se não se verificarem, por essa razão, os pressupostos necessários para recurso ao processo especial para acordo de pagamento.

Ou seja:

- A Requerente instaurou processo especial para acordo de pagamento – que deu origem ao processo n.º 1485/25.... – pretendendo dar início a negociações com os seus credores de modo a concluir acordo de pagamento;

- Essa pretensão foi liminarmente indeferida – por decisão proferida em 18/07/2025 – por se ter entendido que a Requerente estava já em situação de insolvência actual e que, por essa razão, não se verificavam os pressupostos substantivos para o recurso ao processo especial para acordo de pagamento, tendo em conta que, conforme previsto no art.º 222º-A, nº 1 do CIRE, apenas podem recorrer a esse processo os devedores que se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente (excluindo, portanto, os devedores que já se encontrem em situação de insolvência);

- Poucos dias após essa decisão – mais concretamente em 07/08/2025 – a Requerente veio instaurar novo processo especial para acordo de pagamento (os presentes autos), formulando pretensão idêntica à que havia formulado no processo anterior e baseando-se, fundamentalmente, nos mesmos factos (que, dado o curto lapso temporal decorrido, dificilmente se teriam alterado);

- Essa pretensão veio novamente a ser indeferida liminarmente – pela decisão visada no presente recurso – com fundamento no caso julgado, ou seja, já se havia decidido no anterior processo que a situação de facto em questão configurava uma situação de insolvência actual que impedia o recurso ao processo especial para acordo de pagamento e tal decisão tinha que ser aqui acatada – por efeito do caso julgado por ela formado – obstando ao prosseguimento do processo.

Sustenta a Recorrente que o caso julgado não é aqui invocável, uma vez que:

- Não recorreu da decisão anterior por razões de economia processual e celeridade, e não como aceitação definitiva do mérito.

- Não existe a tríplice identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir exigida pelo artigo 581.º do CPC para a verificação de caso julgado.

- O novo requerimento assenta em pressupostos atualizados, designadamente a disponibilidade dos credores e a valorização do imóvel, que alteram substancialmente o quadro factual.

A primeira objecção colocada pela Apelante é totalmente irrelevante. Pouco interessa saber quais as razões pelas quais não recorreu da anterior decisão; o que releva é que dela não recorreu e, não o tendo feito, permitiu que ela transitasse e que, nessa medida, formasse o caso julgado que lhe é inerente.

A segunda objecção também não merece procedência, uma vez que a sua pretensão nos presentes autos é idêntica à que formulou no anterior processo, sendo igualmente idêntica a situação de facto que está em causa em cada um dos processos e com base na qual se considerou (no primeiro processo) que a Requerente estava em situação de insolvência actual e, por isso, não estava em condições de recorrer ao processo especial para acordo de pagamento. Veja-se que a matéria de facto enunciada e considerada no primeiro processo (cfr. alínea C) da matéria de facto) é idêntica àquela que resulta dos documentos que foram juntos aos presentes autos.

E também não vislumbramos em que medida o requerimento que deu origem aos presentes autos possa assentar em pressupostos actualizados, em termos de alterar substancialmente o quadro factual, tendo em conta que nada de relevante foi acrescentado ao que constava do processo anterior e tendo em conta que a pretensa valorização do imóvel não é sequer compreensível tendo em conta o curto espaço temporal que decorreu entre ambos os processos e nem sequer foi alegada no requerimento inicial.

Mas, sendo certo que a decisão em causa – proferida na primeira acção – formou caso julgado, resta saber qual a natureza e os efeitos desse caso julgado em termos de saber se ele impõe (ou não) o indeferimento liminar que veio a ser decretado.

Conforme resulta do disposto nos artigos 619.º a 621.º do CPC, o caso julgado pode ser formal ou material; o primeiro incide sobre as sentenças e despachos que recaem unicamente sobre a relação processual e apenas tem força obrigatória dentro do processo; o segundo incide sobre as sentenças ou despachos saneadores que decidam do mérito da causa e tem força obrigatória dentro do processo e fora dele dentro dos limites definidos nos artigos 619.º e 621.º.

Precisamente porque os seus efeitos apenas se produzem dentro do processo, o caso julgado formal não obsta, em princípio, à propositura de nova acção com os mesmos sujeitos e o mesmo objecto – conforme resulta, aliás, de modo expresso, do disposto no n.º 1 do art.º 279.º do CPC em relação às decisões de absolvição da instância – e não obsta a que no novo processo venha a ser proferida decisão diferente daquela que foi proferida no primeiro. O caso julgado cuja autoridade se impõe fora do processo onde se formou – seja por via positiva, seja por via da excepção de caso julgado – é apenas o caso julgado material que pressupõe, conforme resulta do disposto no citado art.º 619.º, a existência de uma decisão que decida o mérito da causa e que, como tal, defina e regule a relação material controvertida.

Na situação dos autos, está em causa o caso julgado formado sobre uma decisão de indeferimento liminar.

É indiscutível que uma decisão de indeferimento liminar com fundamento na verificação de excepções dilatórias insupríveis – incidindo apenas sobre a relação processual sem qualquer pronúncia sobre o mérito da causa – apenas forma caso julgado formal e não obstará à propositura de nova acção com o mesmo objecto. Se a decisão de absolvição da instância com fundamento nessas excepções, não obsta à propositura de nova acção idêntica à anterior (conforme diz expressamente o n.º 1 do art.º 279.º do CPC), é certo que o mesmo acontecerá com o despacho de indeferimento liminar (que apenas não corresponde exactamente a uma decisão de absolvição da instância por ter sido proferido em sede liminar e antes da citação e intervenção do réu).

Na situação dos autos, o indeferimento liminar – que ocorreu no processo anterior e que está subjacente ao caso julgado invocado na decisão recorrida – não foi propriamente determinado por questões/vícios formais ou processuais (a existência de uma excepção dilatória insuprível), mas sim pela falta de um pressuposto legal de natureza substantiva (o facto de o devedor não se encontrar na situação que é pressuposto do recurso a este processo, mas sim em situação de insolvência actual), ou seja, numa situação que corresponde ou é equiparável ao indeferimento liminar por manifesta improcedência da pretensão.

Mas será que nesse caso o indeferimento liminar também forma apenas um caso julgado formal que não obsta à propositura de nova acção com o mesmo objecto, à semelhança do que acontece quando ele se baseia na existência de excepções dilatórias insupríveis?

Alberto dos Reis[1] entendia que não, sustentando que, nesse caso, estava em causa um caso julgado material.

Pensamos, porém, que essa posição não tem acolhimento na actual redacção da lei.

Com efeito, ao contrário do que acontecia anteriormente – em que a lei definia e delimitava o caso julgado material por referência às decisões (sentenças ou despachos) que recaíssem sobre o mérito da causa (onde ainda seria possível incluir o despacho de indeferimento liminar por manifesta improcedência da pretensão), a lei actualmente vigente (cfr. art.º 619.º, n.º 1, do CPC) delimita e reporta o caso julgado material apenas à sentença ou ao despacho saneador que decida do mérito da causa e que, nessa medida, defina e regule a relação material controvertida, excluindo, portanto, qualquer outro despacho que, de algum modo, se pronuncie sobre o mérito da pretensão.

Tal despacho – de indeferimento liminar – não produz, portanto, qualquer caso julgado material, como, aliás, também é sustentado por José Lebre de Freitas[2]; esse despacho apenas tem força de caso julgado formal, assumindo força obrigatória dentro do processo onde foi proferido, nos termos previstos no art.º 620.º, n.º 1, do CPC e não adquirindo, portanto, o valor de caso julgado material que possa exercer a sua autoridade fora do processo onde se formou e que constitua base ou fundamento legal para o funcionamento da excepção de caso julgado em termos de obstar à apreciação do mérito de nova acção que venha a ser instaurada com o mesmo objecto.

Nessa medida, esse caso julgado não obstaria à propositura de nova acção com o mesmo objecto, tal como não obstaria a que nesta segunda acção fosse proferida decisão com sentido diferente da primeira.

Essa conclusão não é, no entanto, inteiramente líquida, sendo certo que, apesar de essa posição ser discutível e controvertida[3], há quem admita que o caso julgado formal possa, em determinados casos, ter efeitos extraprocessuais, obstando à instauração de nova acção com os mesmos vícios. Assim se  considerou, por exemplo, no Acórdão do STJ de 30/11/2017[4], onde se entendeu que uma decisão desse tipo (no caso uma decisão de absolvição da instância) pode e deve fundamentar num segundo processo a excepção dilatória de caso julgado. E, apesar de afastar a existência de caso julgado – que, na verdade, está reservada para o caso julgado material – também M.Teixeira de Sousa admite alguns efeitos extraprocessuais do caso julgado formal, dizendo em anotação ao Acórdão do STJ de 14/10/2021 (referido na nota 3)[5], não acompanhar a orientação segundo a qual o caso julgado formal é insusceptível de produzir esses efeitos e sustentando[6], que, apesar de o caso julgado formal nunca poder basear a excepção de caso julgado, ele não deixa de implicar que, em nova acção que venha a ser instaurada, o vício que conduziu à absolvição da instância tenha que se encontrar sanado.

Mas, ainda que seja estranho que alguém possa instaurar múltiplas e sucessivas acções com o mesmo objecto e os mesmos sujeitos, totalmente idênticas e com os mesmos vícios que haviam conduzido ao indeferimento das anteriores, tentando obter, em algum momento, uma decisão em sentido contrário que lhe seja favorável – como acontece na situação dos autos em que a Requerente, ao invés de interpor recurso da decisão proferida no primeiro processo (com a qual não concordava), instaurou nova acção idêntica (na esperança de conseguir decisão que lhe fosse favorável) –, a verdade é que aquilo que se retira da lei é que apenas o caso julgado material extravasa os seus efeitos para além ou para fora do processo onde se formou, não existindo qualquer disposição legal com base na qual seja possível sustentar que o caso julgado formal também pode impor a sua autoridade fora do processo – seja por via positiva, seja por via da excepção de caso julgado – obstando à propositura de nova acção idêntica à anterior e/ou obstando a que na segunda acção possa ser proferida decisão de conteúdo divergente da primeira.

Assim, concluindo-se – como se concluiu – que o despacho de indeferimento liminar proferido no primeiro processo apenas adquiriu força de caso julgado formal e sendo certo, como se referiu, que os efeitos desse caso julgado apenas se produzem dentro do processo onde ele se formou, ele não poderia ser invocado neste processo, fosse para o efeito de obstar ao seu prosseguimento por efeito da excepção de caso julgado, fosse para o efeito de impor, por via da sua autoridade, uma decisão idêntica à que havia sido proferida no processo anterior.

De qualquer forma, ainda que não seja por via desse caso julgado, sempre se impunha o indeferimento liminar da pretensão da Requerente/Apelante por força da mesma situação ou vício que havia determinado o anterior indeferimento liminar, tendo em conta que a situação que se configurava no primeiro processo é absolutamente idêntica à que se verifica neste segundo processo e tendo em conta que, em face dessa situação, o juízo que se impõe fazer nos presentes autos é idêntico ao juízo que conduziu ao indeferimento liminar no primeiro processo. Com efeito, a realidade factual que foi trazida aos autos pela petição do primeiro processo é a mesma realidade que foi carreada para os presente autos pela petição agora apresentada e o que ela evidencia é que a Requerente está – agora, como estava à data do primeiro processo – em situação de insolvência actual e, portanto, não está em condições de recorrer ao processo especial para acordo de pagamento, uma vez que, nos termos previstos no art.º 222.º-A do CIRE, apenas pode ser utilizado pelo devedor que comprovadamente se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente.

Refira-se que, ao contrário do que pretende a Apelante, é irrelevante que existissem credores disponíveis para negociar e aceitar um plano ou acordo de pagamento. O que está em causa não é saber se essa disponibilidade existe ou não (até porque, existindo essa disponibilidade, nada obsta a que o plano de pagamento seja apresentado e aprovado no âmbito do processo de insolvência, como resulta do disposto no art.º 251.º e segs. do CIRE); o que está em causa é que, nos termos da lei, o devedor que se já se encontre em situação de insolvência não pode recorrer ao processo especial para acordo de pagamento. Se o devedor já está em situação de insolvência é ao processo de insolvência que deve recorrer e é no âmbito desse processo que pode apresentar plano de pagamento aos credores.

Ora, quer a situação económica difícil, quer a situação de insolvência meramente iminente, são situações prévias à insolvência, na medida em que não traduzem ainda a efectiva impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas que caracteriza o estado de insolvência (cfr. art.º 3.º, n.º 1, do CIRE). O que está em causa na situação económica difícil – conforme se diz no art.º 222.º-B do CIRE – é a dificuldade séria (mas não a efectiva impossibilidade) para cumprir pontualmente as suas obrigações, configurando-se a situação de insolvência iminente quando existe forte probabilidade de aquela dificuldade séria vir a determinar a curto prazo a insolvência, ou seja, quando é possível antever que o devedor estará impossibilitado de cumprir as suas obrigações num futuro próximo, designadamente quando se vencerem determinadas obrigações[7].

No caso, a Requerente/Apelante relacionou e reconheceu um passivo no valor de 3.865.396,04€, reconheceu ter execuções pendentes cujas quantias exequendas perfazem um valor de 2.885.188,05€, resultando ainda dos documentos que anexou aos autos que aufere uma pensão mensal de 881,00€, sem indicação de qualquer rendimento além de duas rendas mensais no valor de 100,00€ cada e tendo como único património um imóvel constituído por rés do chão mais quatro andares.

Por outro lado, ainda que, na relação que apresentou, tivesse declarado que os créditos aí mencionados tinham como data de vencimento 04/04/2025 (curiosamente, a mesma data para todos os créditos), é certo que tal não corresponde à verdade, importando notar que em relação a uma parte muito relevante do passivo (os créditos de maior valor: 1.120.935,14€ e 1.276.436,86€) estão pendentes processos de execução há cerca de dez anos, estando em causa dívidas vencidas em 2014.

Nessas circunstâncias, perante um passivo dessa dimensão há muito vencido e tendo em conta os seus parcos rendimentos, é evidente que, ainda que se admitisse que o único imóvel existente no seu património tem o valor de 1.300.000,00€ que é indicado pela Requerente no requerimento apresentado em 13/08/2025, a Requerente/Apelante não está apenas com dificuldades sérias em cumprir pontualmente as suas obrigações; a Requerente está efectivamente impossibilitada de cumprir – muito menos pontualmente (sendo certo que há muito não o faz) – tais obrigações.

Assim, ainda que a pretensão da Requerente não seja indeferida liminarmente por efeito e em razão do caso julgado formado pela anterior decisão, ela tem que ser indeferida por continuar a verificar-se a situação que determinou a anterior decisão, ou seja, porque, em face da situação apresentada pela Requerente e dos elementos que juntou aos autos, encontra-se em situação de insolvência e, por essa razão, impossibilitada de recorrer ao processo especial para acordo de pagamento.

Acrescente-se, por último, que não tem fundamento e não tem sentido a alegação da Apelante quando diz que o indeferimento liminar viola o art.º 3.º do CPC e o art.º 17.º do CIRE por impedir o exercício do contraditório por parte dos credores que ficam impossibilitados de se pronunciar sobre a viabilidade de um plano de pagamentos.

Tal alegação não tem fundamento porque, como parece evidente, o indeferimento liminar não exige nem pressupõe a observância do contraditório em relação aos credores. Faz parte da natureza do indeferimento liminar – por isso se diz que é liminar – ser decretado antes da citação do réu ou, no caso, antes de ser aberto o processo negocial e de os credores terem a possibilidade de se pronunciarem sobre a viabilidade de qualquer plano de pagamentos. Essa pronuncia dos credores – que corresponde à essência do processo especial para acordo de pagamento – pressupunha, naturalmente, que estivessem reunidos os pressupostos legais para a abertura do processo negocial, o que, no caso, não acontece.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

(…).


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V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida que indeferiu liminarmente a pretensão da Apelante (não por efeito e com fundamento no caso julgado formado pela decisão de indeferimento liminar no processo nº 1485/25...., mas sim por fundamento idêntico àquele que determinou o indeferimento liminar nesse processo – que se mantém nestes autos –, ou seja, por falta de verificação dos pressupostos legais do processo especial para acordo de pagamento, dada a situação de insolvência actual em que se encontra a Requerente).
Custas a cargo da Apelante.
Notifique.

                              Coimbra,

                                             (Maria Catarina Gonçalves)

                                                  (Chandra Gracias)

                                               (José Avelino Gonçalves)


[1] Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 3.ª edição, pág. 393 e Vol. V, pág. 169.
[2] Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1.º, 2.ª edição, pág.427.

[3] Esse entendimento não foi aceite pelos Acórdãos do STJ de 14/10/2021 e de 16/12/2021 (processos n.ºs 1040/19.1T8ANS-A.C1.S1 e 4413/19.6T8VCT.G1.S1), disponíveis em https://www.dgsi.pt. , onde se considerou que o caso julgado formal formado por essas decisões (que se limitam a verificar e declarar a inexistência de um pressuposto processual) tem eficácia meramente intraprocessual, nada obstando a que, numa nova acção com as mesmas partes e o mesmo objecto de acção anterior que tenha terminado com a absolvição da instância do réu possa ser proferida decisão divergente da proferida na primeira acção.
[4] Proferido no processo n.º 3074/16.9T8STR.S1, disponível em https://www.dgsi.pt.   
[5] Blog do IPPC, Jurisprudência 2021 (207) - https://blogippc.blogspot.com/2022/05/jurisprudencia-2021-207.html.
[6] Blog do IPPC, em anotação ao Acórdão do STJ de 16/12/2021, Jurisprudência 2021 (231) - https://blogippc.blogspot.com/2022/07/jurisprudencia-2021-231.html e CPC online, no mesmo Blog, em anotação ao art.º 279.º.

[7] Cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 3.ª edição, pág. 87 e Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2018, pág. 63.