INTERVENÇÃO PRINCIPAL PROVOCADA
SOCIEDADES COLIGADAS
SOCIEDADE DOMINANTE
SOCIEDADE ESTRANGEIRA
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
NÃO DISCRIMINAÇÃO
CONCORRÊNCIA
LIBERDADE DE ESTABELECIMENTO (PESSOA COLECTIVA)
Sumário

Sumário:
I – O sentido da regra constante do nº 2 do art. 481º do CSC é o de exigir que ambas as sociedades tenham a sua sede em território nacional, sem prejuízo das exceções que ali são determinadas, o que resulta do texto da lei, considerando aquelas exceções, bem como da previsão do art. 489º, nº 4, al. a), do mesmo Código, não havendo que proceder a uma interpretação restritiva ou corretiva daquela regra.

II – O nº 2 do art. 481º do CSC na sua conjugação com o disposto no nº 1 do art. 501º do mesmo Código, limitando a aplicação espacial deste último, é compatível com os princípios constitucionais de igualdade de tratamento e da livre concorrência, bem como com os princípios comunitários da não discriminação em razão da nacionalidade e da liberdade de estabelecimento.

III – Tendo em conta o referido em I e II, não é admissível a intervenção principal provocada da “sociedade-mãe” com sede no estrangeiro.

Texto Integral

Proc. nº 1524/24.0T8FAR-B.E1

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação da Évora


I - RELATÓRIO


Na presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, que AA, Unipessoal, Lda. move a Woodlands International, Sociedade Unipessoal, Lda. (doravante 1ª ré) e Woodlands Europe Limited (doravante 2ª ré), veio a autora requerer a intervenção provocada de Woodlands Group Holdings Limited (doravante designada chamada).


As rés apresentaram a sua resposta, opondo-se à requerida intervenção.


Em 23.05.2025, foi proferido despacho no qual, além do mais, se pode ler:


«Considerando que a autora alegou a celebração de contrato que terá sido incumprido, sendo que quem figura como contraente, além da autora, é a ré “Woodlands International” – pessoa jurídica distinta de outras, como a que autora pretende que intervenha - e não todo o universo empresarial ligado às “Woodlands”.


Por isso, inexiste fundamento para admitir a intervenção no contexto apresentado.


Assim, indefiro.»


Inconformada, a autora apelou do assim decidido, finalizando a respetiva alegação com a formulação das conclusões que se transcrevem:


«A) É objecto do presente recurso a decisão constante do Despacho de 23/05/2025 (ref.ª136309027) de indeferimento do incidente de intervenção principal provocada deduzido pela Autora em 5/11/2024 (ref.ª Citius 13031854).


B) As considerações expostas no Despacho recorrido para fundamentar a decisão de indeferimento do incidente não deveriam ter conduzido o douto Tribunal a quo à conclusão, que constituí um erro de julgamento, de que “inexiste fundamento para admitir a intervenção no contexto apresentado”, porquanto não afastam e não poderiam deixar de ser conjugadas com as razões de facto e de direito alegadas nos artigos 1º a 16º do Requerimento Inicial, dos quais resulta que a relação material controvertida diz respeito também à Interveniente W. Holdings, e não apenas à 1.ª Ré W. International que figura no Contrato como contraente.


C) A 2.ª Ré W. Europe é, desde sempre, a única sócia da 1.ª Ré W. International, sendo titular de todas as quotas que compõem o capital social da mesma, sendo a Interveniente W. Holdings a “sociedade-mãe” da 2.ª Ré W. Europe e, consequentemente, por força dessa participação, é também a “sociedade-mãe” da 1.ª Ré W. International.


D) Ou, dito de outra forma, a Interveniente W. Holdings, por intermédio da detenção integral do capital social da 2.ª Ré W. Europe, tem com a 1.ª Ré W. International uma relação de domínio total, sendo a 1.ª Ré W. International dependente da Interveniente W. Holdings que é, “em última instância”, a sua verdadeira “sociedade-mãe”.


E) Face à existência da relação de coligação societária a relação material controvertida, correspondente à causa de pedir vertida na Petição Inicial, diz respeito à 1.ª Ré W. International, à 2.ª Ré W. Europe, e à Interveniente W. Holdings que não foi inicialmente demandada, configurando uma situação de litisconsórcio voluntário.


F) O pressuposto de aplicação espacial contido no nº 2 do artigo 481º do CSC, a ser entendido literalmente, discriminaria as relações de coligação internas, favorecendo as sociedades estrangeiras que actuam em Portugal, e desprotegendo, em contrapartida, as filiais portuguesas, sendo ofensivo dos princípios constitucionais da igualdade de tratamento, da livre concorrência, da não discriminação em função da nacionalidade, e da liberdade de estabelecimento.


G) Impõe-se proceder à interpretação restritiva do nº 2 do artigo 481º do CSC, de modo a concluir-se que basta que uma das sociedades em causa tenha conexão espacial com o território nacional, não sendo exigido que a sociedade dominante tenha sede em Portugal.


H) No caso dos presentes autos, por força do disposto no artigo 501º nº1 do CSC, aplicável ex vi dos artigos 488º e 491º do referido diploma legal, a Interveniente W. Holdings, “sociedade-mãe”, é responsável pelas obrigações da 1.ª Ré W. International, sociedade dominada, porquanto à responsabilidade da Interveniente W. Holdings não obsta o facto de ter sede no Reino Unido, não ficando afastada a aplicação do artigo 501º nº1 do CSC pela circunstância do artigo 481º nº 2 prever a aplicação do Titulo VI do CSC apenas a sociedades com sede em Portugal, na medida em que o regime legal em apreço só não se aplica se ambas as sociedades, “sociedade-filha” e “sociedade-mãe”, tiverem sede fora de Portugal.


I) Também pela via da interpretação correctiva do artigo 481º nº2 do CSC é possível alcançar a conclusão de que, para aplicação do artigo 501º nº1 do CSC ex vi dos artigos 488º e 491º do referido diploma legal, basta que a sociedade subordinada tenha sede em Portugal, como é o caso da 1.ª Ré W. International, não obstando à aplicação do referido regime o facto da sociedade dominante ter sede no estrangeiro, como é o caso da 2.ª Ré W. Europe e da Interveniente W. Holdings.


J) No caso dos presentes autos seria violadora do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, qualquer aplicação do disposto no artigo 481º nº2 do CSC que não passasse pela interpretação restritiva do referido preceito, ou mesmo pela interpretação correctiva, ou seja, seria inconstitucional qualquer interpretação diversa que conduzisse ao afastamento da aplicação do artigo 501º nº1 do CSC ex vi dos artigos 488º e 491º do referido diploma legal pelo facto da “sociedade-mãe” da 1.ª Ré W. International ter sede no estrangeiro.


K) Contrariamente ao decidido no Despacho recorrido, que no entendimento da Autora padece de erro de julgamento, não é o facto de figurar como contraente no Contrato, para além da Autora, apenas a 1.ª Ré W. International, que obsta ao deferimento do incidente para intervenção principal provocada da Interveniente W. Holdings, porquanto a Interveniente W. Holdings, “sociedade-mãe”, por força do disposto no artigo 501º nº1 do CSC, aplicável ex vi dos artigos 488º e 491º do referido diploma legal, é também responsável pelas obrigações da 1.ª Ré W. International, sociedade subordinada, cuja condenação no cumprimento se peticiona na presente acção, existindo assim igual interesse em que intervenha na demanda/sendo parte na relação material controvertida decorrente do Contrato mesmo não sendo signatária do mesmo.


L) Contrariamente ao que resulta do Despacho recorrido, atendendo à configuração da acção pela Autora na Petição Inicial e aos factos trazidos posteriormente aos autos no Requerimento inicial do incidente, verifica-se uma situação de litisconsórcio voluntário que, nos termos dos artigos 32º nº 1, 316º nº2, e 318º nº1 alínea b) todos do CPC, impõe que deva ser proferida pelo Venerando Tribunal ad quem decisão de deferimento do incidente de intervenção principal provocada da Interveniente W. Holdings.


Nestes termos, e nos mais de Direito, deverá o presente recurso ser julgado totalmente procedente, sendo proferida douta decisão pelo Venerando Tribunal ad quem que revogue o Despacho proferido em 23/05/2025 (ref.ª136309027) e, em substituição do mesmo, julgue procedente o incidente de intervenção principal provocada deduzido pela Autora em 5/11/2024 (ref.ª Citius 13031854), admitindo o chamamento da sociedade comercial WOODLANDS GROUP HOLDINGS LIMITED, aí devidamente identificada, para intervir nos presentes autos na qualidade de Ré, assim se fazendo a devida e costumada Justiça!»


Não se mostra que tenham sido apresentadas contra-alegações.


Corridos os vistos cumpre apreciar e decidir.


II – ÂMBITO DO RECURSO


Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a questão a decidir é a de saber se, ao invés do decidido, deve ser admitida a intervenção principal provocada da sociedade Woodlands Group Holdings Limited.


III – FUNDAMENTAÇÃO


OS FACTOS


Os factos a considerar são os acima descritos no relatório, havendo ainda a considerar o seguinte:


- A 2ª ré é uma sociedade comercial de direito inglês, registada em Inglaterra e no País de Gales com o nº 13247548, com sede em Unit 20 Optima Park, Thomas Road, Dartford, Kent, United Kingdom, DA1 4QX, sendo detida a 100% pela chamada Woodlands Holdings [cf. certificado de registo comercial emitido no Reino Unido, junto como documento nº 1 com o requerimento de intervenção provocada].


- A 2ª ré é a única sócia da 1ª ré, sendo titular de todas as quotas que compõem o capital social da mesma (cf. doc 2 junto com a petição inicial].


- A chamada Woodlands Holdings é uma sociedade comercial de direito inglês, registada em Inglaterra e no País de Gales com o nº 10853713, e com sede na mesma morada da sede da 2ª ré [cf. certificado de registo comercial emitido no Reino Unido, junto como documento nº 2 com o requerimento de intervenção provocada].


O DIREITO


No requerimento de intervenção principal, afirmou a autora que tinha alegado nos artigos 4º e 259º a 283º da petição inicial, as razões de facto e de direito pelas quais demanda nos presentes autos a 2ª ré, a qual tem com a 1ª ré uma relação de domínio total desde a sua constituição e, consequentemente, por força do disposto no art. 501º, nº1, do Código das Sociedades Comerciais (doravante CSC), aplicável ex vi dos arts. 488º e 491º do mesmo Código, enquanto “sociedade-mãe” é a 2ª ré solidariamente responsável para com a autora pelas obrigações da 1ª ré (sociedade subordinada) cuja condenação no cumprimento é peticionada na presente ação.


Mais alegou a autora, que muito recentemente, em momento posterior à apresentação da petição inicial, tomou conhecimento de que, afinal, a relação de coligação societária relevante nos presentes autos não se se cinge àquela que revelou na petição inicia, uma vez que a relação material controvertida diz respeito também à ora chamada Woodlands Holdings, justificando assim a dedução do incidente de intervenção provocada desta sociedade, a qual, por insuficiência de informação da autora, não foi demandada inicialmente.


Considerando a factualidade acima referida, verifica-se que a chamada, em virtude da detenção integral do capital social da 2ª ré, tem com a 1ª ré uma relação de domínio total, sendo esta ré dependente da chamada que é, em última análise, a sua verdadeira “sociedade-mãe”.


Atenta a existência da relação de coligação societária nos termos supra expostos, parece não oferecer dúvidas que a relação material controvertida, tendo em consideração a causa de pedir, diz também respeito à chamada, o que configura um caso de litisconsórcio voluntário, nos termos do art. 32º, nº 1, do CPC.


Ora, dispõe o nº 2 do art. 316º do CPC que «[n]os casos de litisconsórcio voluntário, pode o autor provocar a intervenção de algum litisconsorte do réu que não haja demandado inicialmente», pelo que, prima facie, nada obstaria a que fosse admitido o chamamento da sociedade Woodlands Group Holdings Limited.


Porém, um obstáculo a tal admissão se depara, o qual tem a ver com o disposto no art. 481º, nº 2, do CSC, que determina que o disposto no título VI daquele Código, sob a epígrafe “Sociedades Coligadas” se aplica, apenas “a sociedades com sede em Portugal”, pelo que, tendo a chamada sede no Reino Unido, não será aplicável o preceituado no art. 501º, nº 1, do CSC, ex vi dos arts. 488º e 491º do mesmo Código, ao invés do sustentado pela autora/recorrente


Entende, porém, a recorrente que assim não é, argumentando, por um lado, que não obsta à responsabilidade da chamada o facto desta ter sede no Reino Unido, não ficando por isso afastada a aplicação do artigo 501º, nº1, do CSC, «na medida em que o regime legal em apreço só não se aplica se ambas as sociedades, “sociedade-filha” e “sociedade-mãe”, tiverem sede fora de Portugal», e, por outro lado, fazendo uma interpretação corretiva do artigo 481º nº2 do CSC é possível alcançar a conclusão de que, para aplicação do artigo 501º nº1 do CSC ex vi dos artigos 488º e 491º do referido diploma legal, basta que a sociedade subordinada tenha sede em Portugal, como é o caso da 1.ª Ré» [conclusões H) e I)].


Vejamos.


O art. 501º do CSC insere-se, como já acima foi referido, no «Título VI - Sociedades Coligadas», sendo que o nº 2 do art. 481º do mesmo diploma, no «Capítulo I – Disposições Gerais» daquele título, dispõe:


«1 - A sociedade diretora é responsável pelas obrigações da sociedade subordinada, constituídas antes ou depois da celebração do contrato de subordinação, até ao termo deste.


2 - A responsabilidade da sociedade diretora não pode ser exigida antes de decorridos 30 dias sobre a constituição em mora da sociedade subordinada.


3 - Não pode mover-se execução contra a sociedade diretora com base em título exequível contra a sociedade subordinada.»


Temos, assim, que, segundo a lei e em termos gerais, o disposto em matéria de sociedades coligadas somente será aplicável a sociedades com sede em Portugal colocando-se, então, a questão de saber se o regime daquele art. 501º, invocado pela autora na presente ação, em que pretende responsabilizar solidariamente a chamada pelo pagamento da dívida peticionada nos autos, se aplica quando ambas as sociedades (a sociedade dominante e a sociedade dominada) tenham sede em Portugal ou, igualmente, quando uma delas aqui tenha sede (neste último caso, na interpretação restritiva a que alude a recorrente).


A questão do âmbito espacial decorrente do nº 2 do art. 481º do CSC, quando circunscreve a aplicação das disposições contidas no Título VI «apenas a sociedades com sede em Portugal», tem sido largamente discutida na doutrina, embora pouco tratada na jurisprudência publicada, merecendo neste último caso, especial referência o acórdão do STJ de 28.06.20231.


A questão tem sido suscitada no âmbito de aplicação do art. 490º do CSC, que atribui à sociedade dominante um direito de aquisição (nº 2 daquele art.) e, por outro lado, aos sócios minoritários da sociedade dependente um direito de alienação das suas participações sociais (nº 5 do mesmo art.), mas as razões invocadas a esse respeito valem aqui mutatis mutandis.


Ana Perestrelo de Oliveira2 explica que exigindo o nº 2 do art. 481º do CSC que as sociedades coligadas tenham a sua sede em Portugal, quando confrontado com o art. 3º do mesmo Código «o sentido da regra só pode ser o de exigir que todas as sociedades intervenientes tenham a sua sede em território nacional, ressalvadas determinadas situações aí contempladas» e que apesar de criticável, não restam dúvidas quanto ao âmbito diferenciado legalmente fixado para o título VI do CSC. Acrescentando que já se sustentou na doutrina que apenas a sociedade-filha teria de ter a sua sede em Portugal, mas que, «é claro que a lei – bem ou mal – pretendeu fixar um diferente âmbito de aplicação», só assim se explicando «a própria existência do art. 481º/2, tal como o conjunto de excepções que prevê».


Já Ana Filipa Morais Antunes3, com referência ao art. 490º do CSC, considera que «para efeitos de aplicação do regime da aquisição tendente ao domínio total, não é necessário que ambas as sociedades envolvidas no processo tenham a sua sede em Portugal, mas que apenas uma delas - sociedade dominante ou sociedade dependente - tenha a sua sede em território nacional. O requisito exigido pelo n.º 2 do art. 481.º deve, pois, ser objecto de uma interpretação correctiva, em ordem a exigir um resultado interpretativo mais adequado à razão de ser do regime e das diversas normas que integram a regulamentação das sociedades coligadas».


De modo diferente, Maria Mariana de Melo Egídio Pereira4 refere que, quanto ao âmbito espacial de aplicação, ficam excluídas as relações de coligação quando uma, ou ambas as sociedades tenham sede efetiva no estrangeiro. Segundo a autora, bastaria, de iure condendo, que a sociedade dominada tivesse sede em Portugal, solução que é seguida, por exemplo, no ordenamento jurídico alemão, evolução também recebida pelo artigo 21º, nºs 1 e 2 do CVM, evitando-se, assim, a discriminação entre sociedades com sede no estrangeiro, às quais não se aplicará este regime face a sociedades com sede em Portugal e, mesmo, entre sociedades portuguesas quando a sede da sociedade dominante não for em Portugal, isto quando o principal objetivo do regime é não apenas fomentar a criação de relações de grupo mas, também, proteger os sócios minoritários.


Porém, não concorda com a solução apresentada por Ana Filipa Antunes, no sentido de que o legislador pretende que somente uma das sociedades tenha conexão espacial com o território português, sustentando que «o actual artigo 481º ao dispor que “o presente título aplica-se apenas a sociedades com sede em Portugal” excepcionando meramente as quatro alíneas constantes do nº 2, conjugado com o artigo 489º, nº 4, alínea a) não permite sustentar a abrangente interpretação exposta pela autora, a qual a mesma designa de correctiva».


Também Ana Rita Nascimento5 defende que, de acordo com o Direito constituído, parece que a letra da lei não permite ir mais longe, «[d]esde logo porque a alínea a) do n.º 4 do artigo 489.º do CSC estipula que a relação de grupo termina se a sociedade dominante ou a sociedade dependente deixar de ter a sua sede em Portugal».


No mesmo sentido se pronuncia Liliana da Silva Sá6: «A doutrina divide-se, defendendo uns, com base em uma interpretação correctiva do disposto no art. 481.º, n.º 2, do C.S.C., que é suficiente que apenas uma delas tenha a sua sede em Portugal. Propendemos para considerar que a letra da lei não consente tal interpretação. Na verdade, o legislador pretendeu que o instituto se aplicasse apenas quando ambas as sociedades tenham sede em território nacional, configurando-se as excepções previstas no n.º 2 do referido art. 481.º do C.S.C. como um reforço de tal entendimento… ».


Foi também este o entendimento acolhido no citado acórdão do STJ de 28.06.2023, que aqui seguimos de perto, e no qual se pode ler:


“Muito embora o nº 1 do art. 9 do CC determine que a «interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada», o nº 2 exclui que seja «considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso», impondo o nº 3 que na fixação do «sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados».


O elemento gramatical – o texto ou a letra da lei – constitui ponto de partida e, em simultâneo, limite de interpretação. A interpretação «procura como que uma mera explicitação do sentido normativo do preceito, a sua enunciação ou declaração, fruto da correspondência entre a letra e o espírito da norma». O legislador poderá ter expresso mais ou menos do que pretenderia, o que poderá originar a interpretação restritiva ou a interpretação extensiva; diferentemente, na interpretação corretiva, nem sempre considerada admissível, «o intérprete, assumindo o lapso de formulação ou de sentido da letra no confronto com o seu espírito, adequa excecionalmente a leitura interpretativa por forma a extrair um sentido útil à disposição interpretada»7.


Também a nós nos parece que, face ao preciso teor do nº 2 do art. 481, tendo em conta as excepções ali concretamente delimitadas, bem como, ainda, o que consta do art. 489, nº 4, a) (“4. A relação de grupo termina: a) Se a sociedade dominante ou a sociedade dependente deixar de ter a sua sede em Portugal”) o sentido da norma em questão é o de que as sociedades dominante e dependente tenham sede em Portugal e não o de que apenas uma delas aqui tenha sede.


O elemento literal do texto, no conjunto daquelas normas, é determinante nesse sentido - é sustentado o que expressamente exprime o nº 2 do art. 481 ao referir “apenas a sociedades com sede em Portugal”, com o texto das alíneas que se seguem (indicando as excepções) e com o nº 4-a) do art. 489 que determina que a relação de grupo termina se a sociedade dominante ou a sociedade dependente deixar de ter a sua sede em Portugal.


Quanto ao elementos teleológico não nos parece que, em absoluto, aponte no sentido conducente à dita “interpretação correctiva”: a ratio legis de assim ser, até poderá compreender a restrição do âmbito de aplicação – teremos a preocupação de tutela das sociedades dependentes, dos sócios minoritários, dos credores sociais e trabalhadores, mas não esqueçamos que existirão, também, outros interesses, como o de beneficiar o investimento estrangeiro. De igual modo, não se perspectiva que o elemento sistemático aponte determinantemente no sentido reclamado de o legislador pretender que pelo menos uma das sociedades tenha conexão espacial com o território nacional, não exigindo essa conexão quanto a ambas as sociedades. Refira-se que a previsão do art. 21 do CVM (aludindo, no âmbito das “Relações de domínio e de grupo” a o “domicílio ou a sede se situar em Portugal ou no estrangeiro”), ocorre em ramo do direito, nas palavras de Rui Pereira Dias8 «de forte componente regulatória, cuja efectivação pelas entidades nacionais competentes no mercado português aconselha a aplicação de um mesmo direito, independentemente do estatuto pessoal dos agentes – necessidade que não se faz sentir do mesmo modo no direito das sociedades constante do CSC.”9


Assim, pese embora a valia dos argumentos aduzidos pelos defensores de uma interpretação corretiva do art. 481.º, nº 2, do CSC, não se nos afigura que, no quadro legislativo em referência, seja de proceder a uma tal interpretação do preceito, pois o sentido da norma será o que resulta claramente do elemento literal/gramatical do texto.


Parece-nos, em qualquer caso, que esta questão deverá merecer a atenção do legislador numa próxima revisão do CSC.


Também não é caso, por tudo o que acima se disse, de fazer uma interpretação restritiva do art. 481º, nº 2, do CSC.


Na interpretação restritiva, «o intérprete chega à conclusão de que o legislador adotou um texto que atraiçoa o seu pensamento, na medida em que diz mais do que aquilo que se pretendia dizer. Também aqui a ratio legis terá uma palavra decisiva»10.


Já se viu, porém, que a ratio legis da norma, é garantir que o regime das sociedades coligadas seja aplicado às sociedades com sede em Portugal, mas também excecionar situações específicas onde essa limitação não é desejável ou necessária. As alíneas do n.º 2 do preceito definem as regras que se aplicam a outras situações (como a constituição de sociedades, por exemplo), mesmo que envolvam a participação de sociedades estrangeiras.


Sustenta ainda a recorrente que no caso dos autos seria violadora do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, qualquer aplicação do disposto no artigo 481º, nº 2, do CSC que não passasse pela interpretação restritiva deste preceito, ou mesmo pela interpretação corretiva.


Segundo Engrácia Antunes, o preceito em causa «introduz uma discriminação entre grupos nacionais e estrangeiros de compatibilidade duvidosa, quer com os princípios constitucionais da igualdade de tratamento e da livre concorrência, quer com os princípios comunitários da não discriminação em razão da nacionalidade e da liberdade de estabelecimento; favorece a fuga de investimento nacional e incentiva a deslocalização da sede das sociedades portuguesas para o estrangeiro, como forma de contornar ou iludir a aplicação do regime legal» e «consagra uma solução oposta àquela que foi prevista, quer em ordenamentos jurídicos congéneres para questão idêntica (…), quer no próprio ordenamento jurídico português para questão paralela»11.


Também Menezes Cordeiro12 manifestou a opinião de que o direito dos grupos de sociedades carecia de reforma, sendo particularmente chocante o facto de segundo o art. 481º o direito dos grupos só se aplicar, em princípio, a sociedades com sede em Portugal, tendo as sociedades estrangeiras, mesmo atuando em Portugal, um sistema mais favorável, dando razão ao expendido por Engrácia Antunes (em «O âmbito de Aplicação do Sistema das Sociedades Coligadas»).


Coloca-se, deste modo, a dúvida sobre a compatibilidade das disposições do nº 2 do art. 481º, do CSC, limitando, designadamente, a aplicação do disposto no art. 501º do mesmo Código - com os princípios constitucionais de igualdade de tratamento e da livre concorrência, bem como com os princípios comunitários da não discriminação em razão da nacionalidade e da liberdade de estabelecimento.


Rui Pereira Dias13 considera que a regulamentação jurídica em apreço estará imbuída de um espírito de favorecimento do investimento estrangeiro em Portugal (na perspetiva de investimento estrangeiro como sendo normalmente realizado por sociedades com sede no estrangeiro e de investimento nacional como sendo normalmente realizado por sociedades com sede em Portugal) e que a orientação subjacente ao proémio do art. 481º, nº 2, do CSC na medida em que seja conferido um “tratamento de favor” às sociedades com sede no estrangeiro, tem fundamento material bastante na ideia do favorecimento do investimento estrangeiro, sendo confirmada pelos dados legislativos e convencionais ulteriores e não é, por isso, suscetível de um juízo de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade.


Sintetizando a questão, o mesmo autor14 refere que a «opção legislativa pela autolimitação espacial não é irrazoável, ao ponto de fundar um juízo de inconstitucionalidade. Tenha-se maior ou menor simpatia politico-legislativa pela escolha, ela sempre pode estribar-se numa vontade de favorecer o investimento estrangeiro (esses investidores não veem assim os seus recursos expostos à pesadíssima responsabilidade que recai sobre uma sociedade totalmente dominante, nomeadamente pelas dívidas e pelas perdas da dominada – v. os arts. 501º e 502º); na ausência de consagração legislativa de semelhantes regras (de direito dos grupos) em grande parte dos sistemas jurídicos mais próximos do nosso e connosco “concorrentes” na captação desse investimento; ou ainda nas eventuais dificuldades resultantes da determinação do âmbito pessoal de aplicação do regime (que tipos societários estrangeiros, sobretudo de leis extraeuropeias, seriam subsumíveis ao regime português?). Sem que, porém, se omita uma “válvula de escape” que garante um determinado nível de responsabilização da dominante … cfr. o art. 481º, 2, c)».


Tendo em conta o teor destas apreciações - ainda que não no desenvolvimento e conclusão a final retirada pelo seu autor -, assumiu-se no acórdão do STJ de 28.062023, que vimos seguindo de perto, «o entendimento de que as disposições do CSC em análise – concretamente o disposto nos nºs 5 e 6 do art. 490, na delimitação decorrente do nº 2 do art. 481 - não interferem na esfera do princípio constitucional da igualdade enunciado no art. 13 da Constituição».


Conclusão que vale para o caso dos autos, entendendo-se, pois, que o disposto no art. 501º, nº 1, do CSC na delimitação decorrente do nº 2 do art. 481º do mesmo Código, não interfere na esfera do princípio constitucional da igualdade enunciado no art. 13º da Constituição15.


Por conseguinte, o recurso improcede, sendo de manter a decisão recorrida de não admissão da intervenção principal da sociedade Woodlands Group Holdings Limited, ainda que com fundamentação diferente.


Vencida no recurso, suportará a autora/recorrente as respetivas custas – art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC.


IV – DECISÃO


Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida, ainda que com fundamentação não coincidente.


Custas pela recorrente.


*


Évora, 13 de novembro de 2025


Manuel Bargado (Relator)


Filipe Aveiro Marques


Sónia Kietzmann Lopes


(documento com assinaturas eletrónicas)

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1. Proc. 28842/21.6T8LSB.S1, disponível in www.dgsi.pt.↩︎

2. In Manual de Grupos de Sociedades, Almedina, 2016, pp. 58-59, citada no acórdão do STJ de 28.06.2023, a que aludimos supra.↩︎

3. “O instituto da aquisição tendente ao domínio total (artigo 490º do CSC): um exemplo de uma “expropriação legal” dos direitos dos minoritários?”, in Nos 20 anos do Código das Sociedades Comerciais – Homenagem aos Profs. Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier, Vol. II, Coimbra Editora, 2007, p. 218.↩︎

4. In “A aquisição tendente ao domínio total. Breves reflexões sobre o artigo 490º do Código das Sociedades Comerciais”, O Direito, ano 140º (2008), IV, págs. 933-934, citada no mencionado acórdão do STJ de 28.06.2023.↩︎

5. In “Direitos dos sócios na aquisição tendente ao domínio total: pressupostos e concretização”, Revista de Direito das Sociedades, ano 2011, nº 4, p. 1002, citada no acórdão do STJ de 28.06.2023 a que vimos aludindo.↩︎

6. In “A Contrapartida Patrimonial na Aquisição Tendente ao Domínio Total”, Julgar, nº 9, p. 161.↩︎

7. Cita-se Tatiana Guerra de Almeida, Comentário ao Código Civil – Parte Geral, coordenação de Carvalho Fernandes e Brandão Proença, Universidade Católica Portuguesa, 2014, pp. 49 e 50.↩︎

8. In Responsabilidade por Exercício de Influência sobre a Administração de Sociedades Anónimas, Almedina, 2007, p. 279.↩︎

9. Em sentido contrário pronunciou-se o acórdão da Relação de Lisboa de 11.05.2017, proc. 254/09.7TBVPV.L1-2, in www.dgsi.pt., em cujo sumário se pode ler: «Quando se tenha em vista a aplicação do disposto no art 490º do CSC, impõe-se proceder à interpretação correctiva do nº 2 do art 481º CSCom, de modo a concluir-se que basta que uma das sociedades em causa tenha conexão espacial com o território nacional, não sendo exigido que a sociedade dominante tenha sede em Portugal».↩︎

10. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 12ª reimpressão, Coimbra, 2000, p. 186.↩︎

11. In “Os grupos por domínio total”, Colóquios STJ - Comércio, Sociedades e Insolvências, pp. 21.22, Abril 2020, in https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2022/09/ebook_cej_coloquioinsolvencias_abr2020.pdf, (consulta em 07.11.2025).↩︎

12. In Direito Europeu das Sociedades, Almedina, 2005, p. 785 e nota 1053, citado no acórdão do STJ de 28.06.2023.↩︎

13. In Responsabilidade por Exercício de Influência sobre a Administração de Sociedades Anónimas, cit., pp. 278-279.↩︎

14. Em anotação ao art. 481º do Código das Sociedades Comerciais em Comentário, vol. VII, Almedina, 2ª edição, citado no acórdão do STJ de 28.06.2023.↩︎

15. É certo que o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 272/2021, de 05.05-2021 (processo n.º 1161/2019) decidiu «declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da interpretação conjugada das normas contidas no artigo 334.º do Código do Trabalho e no artigo 481.º, n.º 2, proémio, do Código das Sociedades Comerciais, na parte em que impede a responsabilidade solidária da sociedade com sede fora de território nacional, em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo com uma sociedade portuguesa, pelos créditos emergentes da relação de trabalho subordinado estabelecida com esta, ou da sua rutura, por violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição».

Porém, é manifesto que nos situamos em diferentes áreas. Enquanto no caso dos autos se discute a responsabilidade da sociedade diretora pelas obrigações da sociedade subordinada, naquele outro, analisado pelo Tribunal Constitucional, estavam em causa créditos laborais a que assiste um outro nível de garantias. Como referido no texto do acórdão não se trata de um terreno constitucionalmente neutro, mas antes de um domínio informado pela “relevância constitucional da retribuição” e pela “preocupação da Constituição em proteger a autonomia dos menos autónomos na relação de trabalho”.↩︎