I - A existência de um processo de extradição noutro país, da nacionalidade do extraditando, pertencente à UE, que não passou da fase administrativa por falta de recebimento de pedido formal do Estado requerente, e foi arquivado antes da detenção do arguido em Portugal, que deu origem aos presentes autos, não configura a excepção de non bis in idem a que se refere o art. 19.º da referida Lei.
II - Uma vez que o país da nacionalidade do extraditando se recusou formalmente a exercer a acção penal, resta apreciar o pedido de extradição feito pela República da Costa do Marfim.
III - O pedido de extradição reporta-se necessariamente à matéria de facto referida no pedido formal, daqui derivando que, em caso de dúvida sobre algum dos elementos relevantes para a respectiva compreensão se impõe a obtenção dos necessários esclarecimentos pelo Estado requerente, o que se aplica à falta de menção da concreta moldura penal a que o extraditando se sujeita, no caso de condenação por cada um dos crimes imputados.
IV - Não existindo convenção relativa à cooperação judiciária penal entre Portugal e a República da Costa do Marfim, há que aplicar a Lei n.º 144/99, de 31-08, supletiva, exigindo do Estado requerente as garantias necessárias ao cumprimento das normas imperativas que, não sendo fundamentos de recusa, são requisitos gerais negativos de cooperação internacional, nos termos do art. 6.º da referida Lei.
V - Tais garantias reportam-se, também, aos compromissos de cumprimento da regra da especialidade, ao impedimento de reextradição.
VI - Quando a autoridade judiciária do Estado‑Membro de execução dispõe de elementos que comprovam um risco real de tratamento desumano ou degradante carecem de ser pedidas, igualmente, garantias formais ao Estado requerente, relativas à pessoa do extraditando, de que não será sujeito a tortura, nem a um sistema carcerário desrespeitador da dignidade humana, que ponha em risco a sua segurança, saúde, na sua vertente de integridade física e psicológica e até a própria vida.
VII - No caso da Costa do Marfim, atentas as “Observações finais sobre o relatório inicial da Costa do Marfim”, elaborado pelo Comité contra a tortura das Nações Unidas, no âmbito do Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos que ou degradantes impõe-se ainda a obtenção de garantias relativas ao julgamento por um tribunal independente e à obtenção de condições de defesa condignas, proporcionados por acompanhamento por um advogado.
Acordam os Juízes, em conferência, na 3ª Secção Criminal, deste Supremo Tribuna de Justiça
Em processo de extradição que correu termos pelo Tribunal da Relação de Lisboa, foi determinada a entrega do arguido AA, de nacionalidade Espanhola, às autoridades da República da Costa do Marfim, para efeitos de prosseguimento de processo judicial perante a imputação da prática dos crimes de tráfico de estupefacientes, branqueamento de capitais e de associação criminosa, iniciados em data desconhecida e que decorreram até 15 de abril de 2022, data em que foram apreendidos pelo menos, 1.818 quilos de cocaína sendo que, resultou de prova produzida, entre ela por depoimentos de outros membros do grupo criminoso a que pertencia, que era este arguido quem se encarregava da gestão da clientela e da prospecção de mercados como o do Mali e da Guiné Bissau, viajando com um passaporte diplomático falso, aparentemente proveniente da Guiné-Bissau.
O arguido foi detido no aeroporto de Lisboa a 29 de Julho de 2025,com base numa notícia vermelha, foi ouvido no Tribunal da Relação de Lisboa a 30 do mesmo mês e ano, e tendo-lhe sido feito um resumo do pedido declarou que se opõe à extradição e não prescinde do benefício da regra da especialidade. Foi estabelecida a medida de detenção.
A 1 de Setembro de 2025 foi apresentado pedido formal de extradição pela Costa do Marfim.
Pedidos esclarecimentos à Costa do Marfim, pelo Ministério Público, quanto à factualidade em causa e legislação aplicável, veio a ser proferido acórdão pelo referido Tribunal, que autorizou a extradição do requerido para efeitos de procedimento criminal pelos crimes que constam do pedido formal.
Desse acórdão recorre agora o arguido para este Supremo Tribunal de Justiça.
1- O arguido foi detido na sequência de notícia vermelha, inserida no sistema da Interpol, a pedido da República da Costa do Marfim, para procedimento criminal pela prática de factos constitutivos dos crimes de tráfico de estupefacientes, de branqueamento de capitais e de associação criminosa,« previstos e punidos pelos artigos 2(1), (4), (5), (6),(7), (13) da Lei n.º 88-686, de 22 de julho de 1988, relativa à repressão do tráfico e do uso ilícito de estupefacientes, substâncias psicotrópicas e venenosas; Artigos 107, 108, 203 e 381 (3) do código penal; Artigos 7, 99, 113, 115, 117, 118, 124 e 128 da Lei n.º 2016-992 de 14/11/2016 relativa à luta contra o branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo, a que é aplicável a pena máxima de dez anos de prisão».
2- Foi ouvido como detido, a 30/7/2025, declarou opor-se à extradição e não prescindir do benefício da regra da especialidade, tendo sido fixada a medida de coacção de detenção.
4- A 4 de setembro de 2025, foi junto o Despacho nº 95/MJ/XXV/2025, proferido por Sua Excelência a Ministra da Justiça, que declarou admissível o pedido de extradição.
3- Apresentado pedido formal, as autoridades da Costa do Marfim subsumiram os factos infra melhor descritos (na factualidade considerada provada pelo acórdão recorrido) aos crimes de tráfico de estupefacientes, branqueamento de capitais e associação criminosa, previstos no artigo 107º/1 do respectivo Código Penal (CP), puníveis com pena de prisão de 10 a 20 anos, se o valor obtido for superior a 100.000.000 e inferior a 500 000 000 de FCA, e com prisão perpétua se o valor for superior e, bem assim ao disposto nos artigos 108º, 203º e 381º/3 do mesmo diploma; ao crime de tráfico e uso ilícito de estupefacientes, substâncias psicotrópicas e venenosas previsto e punido pelos artigos 2º/1, 4, 6, 7 e 13 da Lei 1988-686, com pena de prisão de 10 a 20 anos, e ao crime de branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo previsto e punido pelos artigos 7º, 99º, 113º, 115º, 117º, 118º, 124º e 128º da Lei 2016 com penas que não se mostram adequadamente identificáveis e traduzidas (em francês são referidas como «sont punies dun emprisonnement de trois compétents pour constater les infractions d'origine et à sept ans et d'une amende égale au triple de la valeur des biens ou des fonds sur lesquels» e a tradução feita refere que «são punidas com pena de prisão – para três pessoas competentes para provar as infrações iniciais e com pena de multa igual a três vezes o valor dos bens ou fundos a que se referem as operações de branqueamento.»
4- Do pedido formal consta a indicação, traduzida, das disposições legais acima citadas, sendo que relativamente ao artigo 107º do CP se traduziu o mesmo como:
« Artigo 107.º
(Lei n.º 21-893) quando o valor das coisas obtidas por meio de crimes e delitos de direito comum, quer se trate de um único ato ou de uma série de atos incluídos no mesmo processo, for igual ou superior a 1.000.000.000 e inferior a 500.000.000 francos CFA, a pena privativa de liberdade imposta não pode ser inferior:
1º a vinte anos de prisão, se for crime;
2º a dez anos de prisão, no caso de uma infração.
Quando o valor das mercadorias obtidas for igual ou superior ao máximo previsto no primeiro parágrafo, a sanção não pode ser inferior:
1º prisão perpétua, se for crime;
2º Até vinte anos de prisão, no caso de uma infração».
5- Em resposta a pedido de informação complementar formulado pelo Ministério Público (com sublinhado nosso) a Costa do Marfim respondeu que aquilo que foi traduzido como « o artigo 107.º referido no pedido de extradição do nomeado AA nascido em D/M/1995, tenho a honra de informar que o artigo em causa não é o da Lei n.º 2016-992 de 14 de novembro de 2016 (lei relativa à luta contra o branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo), mas sim o do Código Penal da Costa do Marfim (Lei n.º . CFA (152.449 euros) e inferior a 500.000.000 de francos (762245 euros), a pena de prisão aplicada não pode ser inferior a:
1- a vinte anos de prisão, se for crime;
2- a dez anos de prisão, se for crime;
Quando o valor das coisas obtidas for igual ou superior ao máximo previsto no primeiro parágrafo, a pena não poderá ser inferior a:
1- a prisão perpétua, se for crime;
2 a vinte anos de prisão, se for crime.
Quanto a AA, o caso pelo qual está a ser processado é o de tráfico internacional de cocaína e branqueamento de capitais (apreensão de 2.057 toneladas de cocaína).
Este artigo aplica-se ao acima referido no sentido em que o valor de mercado foi estimado em quarenta e um mil milhões de francos CFA (41 mil milhões de FCFA) ou 62.504.090 euros.
O artigo 107.º estabelece, assim, um montante de pena que o juiz pode pronunciar durante o julgamento de acordo com o montante do dano».
6- Na oportunidade foram ainda traduzidos os artigos 113º, 115º e 117º da Lei 2016, nos seguintes termos:
«As pessoas singulares culpadas de um crime de branqueamento de capitais são punidas com pena de prisão de três a sete anos e multa igual a três vezes o valor dos bens ou fundos utilizados nas operações de branqueamento de capitais.
A tentativa de branqueamento de capitais é punível com as mesmas penas.
Artigo 115.º
As penas previstas no artigo 113.º da presente lei são aplicadas em dobro;
1. quando o crime de branqueamento de capitais for praticado habitualmente ou mediante utilização de facilidades proporcionadas pelo exercício de uma actividade profissional;
2. quando o infractor for reincidente, nesse caso as condenações proferidas no estrangeiro serão tidas em conta para estabelecer a reincidência;
3. quando o crime de branqueamento de capitais for cometido por um bando organizado. Quando o crime ou a infracção que origina os bens ou as quantias em dinheiro a que respeita o crime de branqueamento de capitais seja punível com pena de prisão superior à pena de prisão prevista no artigo 113.º da presente lei, o crime de branqueamento de capitais será punível com as penas aplicáveis à infracção originária de que o autor tinha conhecimento e, se esta for acompanhada de circunstâncias agravantes, com as penas aplicáveis exclusivamente às circunstâncias de que tinha conhecimento».
7- A 3/10/2025 foi também complementarmente emitida uma declaração da República da Costa do Marfim da qual consta que «Gostaria de lhe garantir que, em conformidade com a lei marfinense no pleno respeito pelos compromissos internacionais assumidos pelo país, caso o referido cidadão venha a ser extraditado para a Costa do Marfim, beneficiar-se-á de um julgamento justo e equitativo e será detido num estabelecimento prisional onde os seus direitos humanos serão plenamente respeitados.»
8- Uma vez que o arguido teve pendente no Reino de Espanha um pedido de extradição emitido pela República da Costa do Marfim e relativo aos mesmos factos, as autoridades judiciárias de Espanha foram contactadas, tendo a 17 de Setembro de 2025 sido proferida decisão pela qual Espanha declarou não exercer procedimento criminal contra o requerido pelos crimes descritos no pedido formal de extradição das autoridades da República da Costa do Marfim considerando que a Jurisdição de Costa do Marfim está em melhores condições para a finalização da investigação e ajuizamento dos factos.
9- Os crimes imputados ao arguido são puníveis na legislação Portuguesa, nos termos disposto no artigo 21º do DL 15/93 de 22 de Janeiro (quanto ao tráfico) com pena de prisão prevista entre 4 a 12 anos, e nos artigos 368º-A/-1-f) (quanto ao branqueamento) com pena de prisão até 12 anos e no 299º/1 sob a epígrafe (associação criminosa), com pena de prisão de 1 a 5 anos.
10- No acórdão recorrido foram considerados provados os seguintes os factos:
«O pedido formal de extradição formulado tem subjacente os seguintes fundamentos:
1) AA integrou a Sociedade " K...", que se dedicava à venda e distribuição de produtos estupefacientes, na qual desempenhava funções de "representante comercial", estando encarregue da gestão da clientela e da prospecção de mercados, viajando com um passaporte diplomático falso com o intuito de explorar novos mercados para a distribuição de produtos estupefacientes, ficando evidenciada a sua ligação a países como o Mali e a Guiné Bissau.
2) No decurso dos interrogatórios realizados a BB, quer no Departamento Regional da Polícia Criminal de San Pedro, quer na Direção da Polícia de Estupefacientes e Drogas (DPSD - Direction de la Police des Stupéfiants et des Drogues), em ..., este arguido, condenado no mesmo processo, reconheceu formalmente AA como sendo um colaborador e sócio de CC. Era ele, efetivamente, que estava com o mencionado CC no dia em que se conheceram, em San Pedro. O interrogado descreve-o bem e refere-o como sócio de CC, e também de DD, de alcunha «EE», e de FF, na criação da sociedade de fachada «K...», por trás da qual se encontram dissimuladas atividades ilícitas.
3) Efetivamente, no decorrer da investigação, apurou-se que, se FF e CC eram ambos acionistas da sociedade, detendo respetivamente os cargos de diretor geral e de diretor financeiro, AA desempenhava, quanto a ele, o papel de agente de ligação, uma espécie de diretor comercial responsável pela clientela e pela angariação de mercados para a venda de droga.
4) Tal explica as viagens por ele efetuadas em determinados países da sub-região, as quais constam do registo dos seus movimentos de entrada e saída nas fronteiras, fornecido pela Direção de Vigilância do Território, cuja cópia se junta.
5) A não-interceção deste suspeito durante a investigação deveu-se ao facto de as suas viagens, terem, na sua maioria, ocorrido entre 2021 e 2022. Foi assim que, no dia 23 de março de 2022, isto é, três (03) semanas antes da instauração do inquérito, o suspeito saiu da Costa do Marfim para se deslocar ao Senegal.
6) As autoridades judiciárias da Costa do Marfim comunicaram ainda que, numa operação de busca, descobriu-se, entre os pertences de CC, um passaporte diplomático bissau-guineense em nome de AA. Embora as autoridades da Guiné-Bissau tenham, mais tarde, confirmado que se tratava de um passaporte falso, não restam dúvidas que tal passaporte se destinava unicamente a facilitar as deslocações do suspeito enquanto agente de ligação.
7) Ademais, é possível estabelecer uma relação entre as suas viagens na sub-região e outros indícios, como sejam as provas da presença de uma clientela nos países com os quais aquele contactou.
8) É o caso de um número de telefone do Mali - + ... .. .. .. 21 - utilizado pelo suspeito AA, que comprova a ligação deste com o Mali onde foi identificado um cliente de nome GG (+ ... .. .. .. 59 / .. .. .. 97). Com efeito, num vídeo encontrado no telemóvel de CC, vê-se este último a mostrar várias placas de cocaína, assegurando ao cliente GG que esta droga lhe é destinada e que a receberia logo que abertas as fronteiras.
9) Outro indício é o de uma fatura proforma de fornecimento de materiais de revestimento e pintura, passada por uma das empresas de fachada da rede, a empresa «E...», sita na Guiné-Bissau, através do porto da Gâmbia. Foi levantada a hipótese de que o tráfico de droga para esses países seria feito a coberto de tais estruturas, a qual podemos considerar credível face ao passaporte diplomático da Guiné-Bissau emitido em nome do suspeito.
10) Por fim, o endereço fornecido por AA, aquando da abertura da conta poupança n.° ...........72 junto do ORABANK, situa-se no bairro ... em .... Este bairro é precisamente onde se encontra a vivenda onde se apreendeu a droga, em ..., o que atesta que o suspeito residia efetivamente neste local.
11- O procedimento criminal não se encontra prescrito, quer nos termos dos artigos 10º/1, e 133º/1, do CP da Costa do Marfim, quer nos termos do artigo 118º/1, alíneas a) e i), do CP Português
***
O arguido recorreu, concluindo as alegações nos termos que se transcrevem:
«A. Ao abrigo do disposto no artigo 46.º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, o processo de extradição compreende a fase administrativa e a fase judicial.
B. Entendendo o Recorrente que em ambas as fases do processo ora em causa foram acometidas por diversos atos que se arguem ser manifestamente contrários à lei e que, ademais, se crê terem contaminado todo o processo de conformação e decisão ora em causa como adiante se verá.
C. Sendo certo que o Recorrente considera que tais atos terão culminado ou contribuído para, a final, ter sido proferida, erradamente, decisão de autorização da extradição.
D. E que por com a mesma não se poder conformar, vem pelo presente, perante este douto Supremo Tribunal de Justiça, interpor o competente recurso.
Tudo porquanto,
E. O processo de extradição ora em causa teve início por força de uma notícia vermelha difundida pela Interpol em que o Recorrente era visado.
F. Considerando que a referida notícia difundia que o Recorrente era pessoa procurada pelo Estado da Costa do Marfim para efeitos de ser submetida a julgamento, porquanto contra o mesmo, alegadamente, existiriam naquele país indícios de ter praticado os crimes de tráfico internacional de estupefacientes, branqueamento de capitais e associação criminosa.
G. E nessa senda, enquanto este se encontrava no aeroporto de Lisboa em virtude de uma escala aérea - a fim de embarcar num voo de regresso a casa e ao seu país de origem (Espanha) -, foi abordado pelas entidades policiais portuguesas que, na sequência do sobredito, o detiveram.
H. A sua detenção ocorrera assim no passado dia 29 de julho de 2025.
I. E aos 30 dias de julho de 2025, AA, foi submetido a audição judicial, donde resultou que ficasse detido ao abrigo do disposto no artigo 62.º e seguintes da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto.
J. Aqui chegados, em face da notícia vermelha e, consequentemente, da informação prestada de que o Recorrente teria sido encontrado e estaria detido em território português, em 14 de agosto de 2024 é recebida por Portugal a competente documentação de extradição, demonstrando a Costa do Marfim a intenção do prosseguimento do referido processo de extradição do Recorrente.
K. Sendo a chegada do referido processo informada ao douto Tribunal da Relação já em 26 de agosto de 2025 – cfr. referência Citius ....26.
L. Naquela data, mais informa a Procuradoria-Geral da República que, ao abrigo do disposto no artigo 45.º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, solicitou elementos complementares às autoridades da Costa do Marfim.
M. Tendo em 1 de setembro de 2025, nos autos que correram termo junto do Tribunal da Relação, sido junto pelo Ministério Público o processo de extradição em causa e uma cópia do parecer do Excelentíssimo Senhor Procurador da República.
N. Naquela data mais informou que o referido pedido de extradição fora remetido, conforme imposição legal, ao gabinete da Excelentíssima Senhora Ministra da Justiça – tudo cfr. referência Citius ....18.
O. Concluindo-se que o processo de extradição a que o douto Tribunal da Relação teve acesso continha em si uma tradução do pedido efetuada pela própria Costa do Marfim que, por si só, demonstrava defeitos e vícios gravíssimos e insupríveis.
P. A referida tradução não fora certificada e aparentava ter sido efetuada com recurso a ferramentas automáticas, que alteravam em tudo o sentido das frases e a compreensão dos próprios factos ou preceitos legais imputados e imputáveis ao Recorrente, o que impunha a necessária recusa liminar daqueles documentos.
Q. Acrescendo que, daqueles autos, como forma de comunicação, a autoridade judiciária da Costa do Marfim faz constar a referência ao uso, por parte da autoridade judicial emissora, do e-mail ..., desconhecendo-se como foram afinal transitadas/mantidas as comunicações e envios em apreço, sendo certo que se impõe, nos termos da lei, que o referido processo utilize os canais e meios oficiais no tratamento das informações e das peças dos autos.
R. Na mesma senda, em sede do ofício junto a 1 de setembro de 2025, cfr. referência Citius ....18, também constam, além do processo de extradição a que se fez referência, as trocas de esclarecimentos complementares e a tradução oficial, por parte de Portugal, de alguns preceitos normativos.
S. Uma vez mais com recurso a traduções que padecem de erros gravíssimos que alteram o enquadramento normativo e os quadros de imputação e possível moldura penal do Recorrente, que haviam de ter tornado absolutamente evidente que a Costa do Marfim se prepara para condenar o Recorrente a prisão perpétua!
T. Assim, do processo de extradição dado a conhecer junto do Tribunal da Relação, consta um esclarecimento sobre o artigo 107.º do Código Penal da Costa do Marfim.
U. Sucedendo que o texto original enviado pela Costa do Marfim detém o presente conteúdo:
V. E a tradução para português é apresentada da seguinte forma:
W. Sendo que, nesta mesma comunicação, fora ainda respondido – na senda dos esclarecimentos peticionados pelo Ministério Público - por que motivo aquele normativo se aplicaria ao ora Recorrente.
X. Declarando a versão em francês:
Y. E cuja tradução em português apresentada fora:
Z. Assim, través dos presentes e fieis excertos, conclui-se ser facilmente apreensível que a tradução da integralidade daqueles documentos padece de deficiências gravíssimas, aptas a colocar em causa a possibilidade de sequer se compreender o significado e a extensão dos crimes e das penas em apreço – não só quanto ao normativo em causa mas ainda, por maioria de razão, a tudo o que fora invocado em sede de processo de extradição.
AA. Sendo certo que, mesmo tendo em linha de conta os vícios invocados, face à documentação junta, é de mediana evidência concluir que daqueles preceitos legais se retira que, de acordo com o disposto no artigo 107.º do Código Penal da Costa do Marfim, quando o valor das apreensões for igual ou superior a quinhentos milhões de CFA, existe na Costa do Marfim a aplicabilidade de prisão perpétua.
BB. E tudo quando se pode ler no documento junto e nos excertos supra elencados, que a Costa do Marfim imputa ao Recorrente, e computa aos factos em que estará alegadamente envolvido, o valor de quarenta e um mil milhões de CFA.
CC. Sendo que, quarenta e um MIL MILHÕES de CFA é quantia superior a quinhentos MILHÕES de CFA.
DD. O que força a concluir que, à luz do quadro legal da Costa do Marfim e da própria subsunção do quadro factual aos normativos, o Recorrente poderá vir a ser condenado a pena de prisão perpétua!
EE. Circunstancialismo que, contrariamente ao vertido em sede de Acórdão, estaria apto a impedir incontestavelmente a presente extradição, à qual devia ter sido negado provimento pelo tribunal a quo.
FF. Ainda mais quando nenhuma garantia de não aplicabilidade de prisão perpétua foi prestada!
GG. Sendo que, em 4 de setembro de 2025, foi junto (ref. Citius ....85) parecer da Excelentíssima Senhora Ministra da Justiça, onde a mesma se pronunciou favoravelmente à presente extradição.
HH. Sucedendo, porém, que aquele parecer também sempre se encontrava contaminado pelo viés que se identificou, pois que quando a Excelentíssima Senhora Ministra profere decisão favorável, crê que a possibilidade de aplicação de prisão perpétua não se coloca.
II. Sendo forçoso concluir que o Recorrente AA está prestes a ser alvo de um erro judicial e de uma extradição contrária a lei a que apenas Vossas Excelências poderão por termo.
JJ. Sendo certo que, por tudo o que se demonstrou, variadíssimos intervenientes processuais, em diversas posições processuais tomadas nos autos, fizeram-no com base em pressupostos errados e/ou contaminados por um quadro factual que não corresponde à verdade. KK. O que não poderá resultar noutra consequência que não a nulidade de todo o presente processo – pois que enfermado está desde a sua fase pré administrativa.
LL. Porém, se ainda assim não se entender, sempre será de arguir que o pedido de cooperação, em face da possibilidade de aplicação de pena perpétua, sempre estaria vedado – conforme artigo 6.º, alínea f), da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto.
MM. Ou, muito no limite, o que não se concebe, sempre imporia, de acordo com o artigo 6.º, número 2., garantias nunca prestadas nestes autos pelo Estado da Costa do Marfim.
NN. Pelo que sempre se dirá que é manifesto e evidente o erro na apreciação da prova documental junta, bem como é evidente a inobservância de requisitos e pressupostos que não podem ser sanados e que sempre obstariam ao resultado daquele Acórdão – i.e., da procedência da extradição.
OO. Ademais, consta ainda do Acórdão recorrido (folhas 5 e 6), que o Recorrente “não põe em causa os pressupostos legais (nacionais) da extradição (...)”.
PP. Sucede que tal não podia de forma mais evidente não corresponder à verdade, pois fora tudo o que o Recorrente/Requerido faz ao longo de toda a sua Oposição.
QQ. O Recorrente, naquela sede, colocou precisamente em causa os pressupostos legais, e tanto assim é que um dos pontos que faz parte do teor daquele Acórdão é “da impossibilidade constitucional da extradição por verificação de risco certo de aplicação de pena de prisão perpétua”, justamente por ter sido posto em causa pelo Requerido.
RR. Chegando-se ao cúmulo de declarar que o Recorrente não arguiu algo a que os próprios Venerandos Desembargadores responderam em sede de Acórdão (ainda que no sentido de ser improcedente o que se alegou).
SS. Pelo que, desde logo, sem sequer se adentrar na decisão concreta, parece-nos óbvia a contradição insanável entre o arguido em sede de oposição, a fundamentação do Acórdão e, a final, a própria decisão ali proferida de que ora se recorre.
TT. Do mesmo modo o Acórdão em apreço sustenta que, no tocante ao fundamento da oposição que se consubstancia no facto de o pedido de extradição ser inadmissível por violação do princípio ne bis in idem, este é improcedente uma vez que “não existiu qualquer julgamento do requerido, nem o seu pedido formal foi apreciado em Espanha, pois nem sequer chegou a ser apresentado, sendo essa a razão da extinção do procedimento naquele país.”.
UU. Sucede que não se poderia discordar mais do Acórdão ora em causa, pois neste contexto foi explicitado que o presente pedido de extradição assenta nos mesmos exatos factos que já foram objeto de um outro processo de extradição anterior em Espanha (iniciado e requerido muitíssimo antes, e que é objeto dos mesmos fatos vertidos em sede do processo de extradição agora tramitado em Portugal).
VV. O anterior processo, intentado em Espanha, correu os seus termos na Audiência Nacional de Madrid, encontrando-se presentemente arquivado – que é o mesmo que dizer que não ocorrera extinção, encontrando-se, portanto, pendente de julgamento de mérito na eventualidade de a Justiça da Costa do Marfim proceder ao envio do competente requerimento formal de extradição.
WW. Pelo que, até em conformidade pelo decidido em jurisprudência deste douto Supremo Tribunal de Justiça, entendeu-se e arguiu-se em sede de oposição que existe processo pendente – e não julgamento efetuado.
XX. E que por força disso se conclui que não poderá correr processo, desta feita em Portugal, nos mesmos termos.
YY. Sendo que, em termos latos, para que tal princípio (ne bis in idem) esteja em crise, não é necessário que estejam em causa decisões ou condenações transitadas em julgado, pelo que não se compreende a referência do douto Acórdão a “inexistir condenação do Recorrente”.
ZZ. Pois que, para que opere violação daquele princípio invocado, não se impõe necessariamente a existência de qualquer julgamento, porquanto a génese do arguido dizia respeito à mera existência de (outro) processo identifico a correr noutro país (Espanha), que ademais é país de origem do Recorrente.
AAA. No tocante ao fundamento arguido e erradamente decidido denominado “da impossibilidade constitucional da extradição, por verificação de risco certo de aplicação de pena de prisão perpétua”, já supra se alegou e reitera o que motivou a presente arguição em sede de oposição.
BBB. Sendo incompreensivelmente que não se tenha depositado olhar atento ao processo e, sequer, à oposição deduzida, pois que é absolutamente gritante a desconformidade entre a prova documental produzida naqueles autos e, face a isso, a desarmonia entre aquela e a decisão proferida.
CCC. Sendo imperioso concluir que a Costa do Marfim imputa ao Recorrente, e aos factos em que estará alegadamente envolvido, o valor de quarenta e um mil milhões de CFA, o que resultaria, em face do previsto no artigo 107.º do Código Penal daquele país, em pena de prisão perpétua a ser-lhe aplicada - pelo que a extradição sempre estaria vedada, por violação do disposto no artigo 6.º, alínea f).
DDD. No mais, no tocante aos restantes fundamentos arguidos em sede de oposição, e que constam, indeferidos, do Acórdão recorrido, a sua maioria decorre precisamente da verificação da existência de aplicabilidade de prisão perpétua que não se entendeu verificada – e por maioria de razão se indeferiu tudo o que daí fora decorrente.
EEE. Pugnando-se assim pela impossibilidade jurídica de extraditar um cidadão da união Europeia nestas circunstâncias, por violação dos Tratados e da Carta.
FFF. O que se mantém e argui.
GGG. Pois que se exige que o Estado-Membro requerido esgote as alternativas menos gravosas.
HHH. Sendo que, ainda assim, também sempre se dirá que o Estado Português omitiu os seus deveres processuais positivos e ativos:
Não encetou a cooperação com o Estado-Membro de nacionalidade (Espanha), facultando-lhe a oportunidade de exercer a sua própria jurisdição (aut dedere aut judicare), em violação do princípio da cooperação leal (Art. 4.º, n.º 3 TUE).
Bem como não procurou o consentimento da Costa do Marfim para que a pena fosse executada no espaço da União, alternativa que conciliaria todos os interesses em jogo e que está prevista no artigo 35.º da LCJIMP.
III. Pois que a extradição de um cidadão da União para um Estado terceiro é excecionalíssima, exigindo o esgotamento prévio de todas as alternativas.
JJJ. Sempre obrigando a concluir, contrariamente ao vertido em sede daquele Acórdão, que a extradição constituirá, pois, uma violação flagrante dos Artigos 18.º e 21.º do TFUE.
KKK. Do mesmo modo, foi ainda arguido pelo Recorrente a necessária e imperativa recusa da extradição por verificação de múltiplas causas absolutas que se prendem com a violação certa e documentada de direitos fundamentais – nomeadamente no tocante às condições processuais e carcerárias.
LLL. Sendo que, no tocante a este concreto segmento da decisão, as próprias palavras do tribunal a quo são contrárias à decisão proferida, com aptidão para ser entendidas como uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.
MMM. Pois que, declara, “tudo indica” que a Costa do Marfim está a “sedimentar-se” como um Estado de Direito.
NNN. O que obriga forçosamente a concluir que nem o Tribunal da Relação está certo da creditação deste Estado como Estado de Direito.
OOO. Bem como sempre se dirá que uma realidade que, palavras suas, “se está a sedimentar”, não é uma realidade instituída, constante, continuada nem firme, o deveria ter sido suficiente para que decisão de improcedência da extradição fosse proferida.
PPP. Não julgando suficiente, várias outras conclusões se podem retirar do competente trecho daquela decisão, tais como:
- A documentação junta são artigos de jornal mas o Tribunal da Relação aparenta por em causa a sua veracidade – como se de resto a Costa do Marfim, na senda até do declarado por aquele tribunal, e contrariamente ao espelhado naqueles artigos, fosse país identificado e referenciado como exemplo mundial do cumprimento dos Direitos Humanos e, de resto, como se apenas uma breve pesquisa não permitisse ao douto Tribunal da Relação chegar aos mesmos resultados, estando identificados os órgãos que emitiram aquelas notícias;
- Que em qualquer caso, os exemplos ali espelhados são pontuais (o que não se concebe) e de há vários (dois!) anos – sendo certo que, ao assumir que os mesmos são, no limite, esporádicos, se dá como confirmada agora, pelo menos, a sua existência.
- Que o relatório junto é referente ao ano de 2023 – estando presentemente em 2025, e portanto, não perfazendo aquele relatório sequer dois anos desde que foi proferido, como se de resto um país que “está a sedimentar” e nortear o seu sentido Democrático, o pudesse fazer em período temporal tão escasso.
QQQ. Arguindo no mais que a Costa do Marfim terá fornecido declaração em que se compromete a “garantir um processo justo e equitatito, bem como condições prisionais adequadas”.
RRR. Porém, em qualquer caso, a remessa daquela declaração, que é meramente um (dos) critério formal, não deve obstar a que, se se verificar por factos do conhecimento geral, que o seu conteúdo pode não corresponder à verdade factual (através por exemplo de estudos, pesquisar e/ou relatórios isentos), a extradição não seja negada.
SSS. Sendo manifestamente o que, face à prova produzida e à documentação junta, deveria ter operado, porquanto são do conhecimento público factos e circunstâncias que espelham que o Estado em causa é, por diversos motivos, violador dos preceitos legais que afirma vir a cumprir.
TTT. Em qualquer caso, o Recorrente também é obrigado a concluir que em sede daquele Acórdão existira omissão de pronúncia, porquanto o mesmo arguiu, em sede da sua oposição, um risco de violação do princípio da especialidade sob o qual o Acórdão não se pronunciou.
UUU. Sendo que, o princípio da especialidade, consagrado no artigo 13.º da Lei 144/99, é uma garantia fundamental do Extraditando que veda que este seja julgado por factos diversos daqueles que motivaram a sua entrega.
VVV. E tal como já arguido em sede de Oposição, a tipificação vaga e a natureza nebulosa dos crimes imputados pela Costa do Marfim – "association de malfaiteurs" – inseridos num alegado contexto de combate ao narcotráfico, que as próprias autoridades ivorienses frequentemente associam ao terrorismo, gera um risco real e sério de que, uma vez entregue, o Extraditando veja os mesmos factos serem requalificados para crimes mais graves.
WWW. Pelo que a ausência de garantias firmes e inequívocas por parte do Estado requerente de que tal requalificação não ocorrerá, constitui um risco inaceitável para a ordem jurídica portuguesa.
XXX. Aqui chegados, e em face da multiplicidade de motivos invocados, não restam dúvidas de a decisão recorrida deve ser alterada, substituindo-a por outra que, dentro do cumprimento a legalidade, não autoriza a extradição de AA para o Estado da Costa do Marfim.
Nestes termos e nos melhores de Direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, requer-se que seja dado integral provimento ao presente Recurso, e bem assim, procedendo-se à substituição da decisão recorrida, seja proferido por Vossas Excelências Acórdão que a substituta e não autorize a extradição de AA para o Estado da Costa do Marfim.»
« 1. O Requerido/Recorrente AA foi detido a 29 de julho de 2025, no aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, em execução de um pedido de detenção internacional inserido no sistema da Interpol, com a referência nº ..22/...68, pelas autoridades judiciárias da República da Costa do Marfim.
2. A detenção foi efetuada nos termos do art. 39.º, da Lei nº 144/99, de 31 de agosto (detenção não diretamente solicitada), no âmbito de uma notícia vermelha, segundo a qual era procurado com vista à sua extradição para efeitos de procedimento criminal, pela prática de factos constitutivos dos crimes de tráfico de estupefacientes, de branqueamento de capitais e de associação criminosa, previstos e punidos pelos arts. 2 (1), (4), (5), (6), (7) e (13), da Lei nº88/686, de 22 de julho de 1988, relativa à repressão do tráfico e uso ilícito de estupefacientes, substâncias psicotrópicas e venenosas; arts.107, 108, 203 e 381 (3) do Código Penal; arts. 7, 99, 113, 115, 117, 118, 124 e 128 da Lei nº 2016-992, de 14 de novembro de 2016, relativa à luta contra o branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo.
3. A 30 de julho de 2025 procedeu-se à audição do Detido, com nomeação de tradutor/intérprete, tendo sido validada e mantida a sua detenção.
4. A 26 de agosto de 2025 foi junto aos autos um ofício da Autoridade Central/PGR, dando conhecimento que as autoridades da Costa do Marfim tinham apresentado pedido formal de extradição de AA, e que tinham sido solicitados elementos complementares, nos termos do art. 45.º, da Lei nº 144/99, de 31 de agosto.
5. A 1 de setembro de 2025 foi junto aos autos o pedido de extradição apresentado pelas autoridades da Costa do Marfim, respeitante a AA, e cópia do Parecer de admissibilidade de Sua Excelência o Vice-Procurador da República.
6. Em aditamento, a 4 de setembro de 2025, foi junto o Despacho nº 95/MJ/XXV/2025, proferido por Sua Excelência a Ministra da Justiça, nos termos do qual foi declarado admissível o pedido de extradição.
7. A 10 de setembro de 2025 procedeu-se à audição do Requerido, em sede de fase judicial, tendo aquele declarado expressamente que se opunha à sua extradição e que não renunciava ao benefício da regra da especialidade.
8. Atendendo à circunstância do Requerido ter nacionalidade espanhola e ao critério estabelecido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia no acórdão nº182-C/15, de 16 de setembro de 2016, as autoridades judiciárias de Espanha foram contactadas, tendo a 17 de setembro de 2025 decidido não pretender exercer o procedimento criminal contra o Requerido pelos crimes descritos no pedido formal de extradição das autoridades da República da Costa do Marfim.
9. Na sequência do pedido de garantias dirigidas às autoridades judiciárias Requerentes, através da Autoridade Central/PGR e por via Diplomática, a 3 de outubro de 2025 o Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos da Costa do Marfim apresentou declaração, nos termos da qual se compromete a garantir que o Requerido terá direito a um processo justo e equitativo, bem como a condições prisionais adequadas.
10. Os factos descritos no pedido de extradição são igualmente previstos e punidos no ordenamento jurídico nacional, sendo suscetíveis de integrar os crimes de tráfico de estupefacientes, branqueamento e de associação criminosa, conforme disposto no art. 21.º, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, e arts. 368.º-A e 299.º, do Código Penal português.
11. O procedimento criminal não se encontra prescrito, nos termos dos arts. 10.º, nº1, e 133.º, nº1, do Código Penal da Costa do Marfim, e nos termos do art. 118.º, nº1, alíneas a) e i), do Código Penal português.
12. O mandado de detenção internacional foi emitido para efeitos de procedimento criminal, os factos em causa também se encontram tipificados como crime na lei portuguesa, não se verificando qualquer causa de inadmissibilidade ou de recusa da sua execução.
13. Não se verifica qualquer vício, quer de natureza substantiva, quer de natureza formal ou adjetiva, nos necessários pressupostos e fundamentos que conduziram à decisão em recurso.
14. Nesta conformidade, entendemos que nenhuma censura merece o acórdão proferido a 3 de outubro de 2025, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que decidiu autorizar a extradição de AA para a República da Costa do Marfim.».
Do artigo 412º/1, do CPP resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso, exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso.
As questões colocadas pelo recorrente, extraditando, são:
- Omissão de pronúncia sobre a questão colocada relativamente ao risco de violação do princípio da especialidade;
- A violação do princípio ne bis in idem, uma vez que está pendente em Espanha, um pedido idêntico, formulado pela Costa do Marfim;
- Saber se o Estado Português não facultou a Espanha a possibilidade de exercer a própria jurisdição, por ser o Estado da Nacionalidade, nem procurou o consentimento da Costa do Marfim para que a pena seja executada no espaço da União;
- Haver a possibilidade de o arguido vir a ser condenado a prisão perpétua;
- Falta de credibilidade do compromisso da Costa do Marfim a garantir um processo justo e equitativo, por ser do conhecimento público que tem violado preceitos que afirma vir a cumprir.
1- Da omissão de pronúncia sobre a questão colocada relativamente ao risco de violação do princípio da especialidade:
O recorrente invoca a omissão de pronúncia em causa sem contudo reproduzir, neste recurso, que objecções subsistem relativamente ao risco invocado.
Não obstante, vista a oposição formulada no Tribunal recorrido verifica-se que a sua alegação, quanto ao ponto em apreço, se resume a que do pedido formal consta uma «tipificação vaga e a natureza dos crimes imputados na Costa do Marfim, num contexto de combate ao terrorismo, criam um risco real e sério de que, uma vez entregue, o Extraditando veja os mesmos factos serem requalificados para crimes mais graves, como terrorismo ou participação em grupo armado, burlando as garantias em que assentou a decisão de extradição. Esta ausência de garantias firmes contra tal requalificação constitui um risco inaceitável».
O acórdão recorrido não se pronunciou especificamente sobre a invocação, mas convenhamos que a mesma, da forma como foi colocada, não passa de simples argumentação de probabilidades, não constituindo uma verdadeira questão.
Questões não se confundem com argumentos e, manifestamente, o arguido não apresenta qualquer fundamento concreto que permita criar uma dúvida consistente sobre a eventualidade de o procedimento criminal vir a desenrolar-se sem correspondência com os factos e crimes imputados, não havendo sequer notícia de que alguma vez o princípio da especialidade tenha sido desrespeitado pelo Estado requerente.
Contudo, não existindo convenção relativa à cooperação judiciária entre Portugal e a República da Costa do Marfim, temos presente que o artigo 16º/2 da Lei 144/99 dispões sobre o princípio da especialidade que «antes de autorizada a transferência a que se refere o número anterior, o Estado que formula o pedido deve prestar as garantias necessárias ao cumprimento da regra da especialidade», o que torna imperiosa a solicitação das mesmas.
O mesmo se diga quanto ao impedimento de reextradição, declarado no artigo 34º/1 da Lei 144/99 vigente no caso por falta de solicitação dessa faculdade pelo Estado requerente.
Consta do processo, aliás como declarado na resposta do Ministério Público, que atendendo à circunstância do arguido ter nacionalidade espanhola e ao critério estabelecido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia no acórdão nº182-C/15, de 16 de setembro de 2016 (1), as autoridades Espanholas foram contactadas no sentido de declararem se pretendiam, ou não, exercer procedimento criminal contra o requerido pelos crimes descritos no pedido formal de extradição das autoridades da República da Costa do Marfim, tendo juntado decisão pela qual as mesmas declararam acordar em não exercer acção penal em Espanha contra o arguido e pelos factos em apreço. Só por manifesto lapso se pode entender a alegação contrária.
No que se refere à omissão, por parte de Portugal, em obter o consentimento da Costa do Marfim para que a pena fosse executada no espaço da União, pressupostamente prevista no artigo 35.º da LCJIMP, há que referir que o dispositivo mencionado não se reporta a tal questão e que não existindo sequer condenação está prejudicada a diligência invocada.
Independentemente dessa circunstância, como se refere no acórdão do Tribunal Constitucional nº 360/2012, tirado no processo 90/12, a 5/7/2012 (2) «7. Fundando-se na “solidariedade entre Estados na luta contra o crime (punire aut dedere)” – Albino Azevedo Soares, Lições de Direito Internacional Público, Coimbra Editora, 1981, p. 243 –, a “extradição é o facto pelo qual um Governo remete um indivíduo que se refugiou no seu território ao Governo de um outro Estado para que ele aí seja julgado pelos respetivos tribunais, ou, quando aí já tenha sido julgado, para cumprir a pena que lhe foi aplicada” (Eduardo Correia, Direito Criminal, I, Reimpressão, Almedina, p. 183). É uma forma de cooperação judiciária internacional em matéria penal entre Estados, particularmente relevante face ao princípio geral da territorialidade em matéria de aplicação da lei penal no espaço, que serve dois soberanos: “o Estado que requer a extradição do agente – e que, necessariamente, terá de ter competência para o punir de acordo com a sua lei nacional – consegue exercer o seu ius puniendi e, por outro lado, o Estado que extradita não alberga, no seu território, um agente criminoso” (Faria Costa, Noções Fundamentais de Direito Penal (Fragmenta iuris poenalis)2, Coimbra Editora, p. 105).
Enquanto forma de cooperação judiciária entre Estados soberanos, que tem no princípio da reciprocidade um dos seus pilares fundamentais, a extradição exclui, naturalmente, um qualquer procedimento conducente à entrega do extraditando em que o Estado requerente surja perante o Estado requerido numa situação de confronto processual. A extradição supõe aqui dois planos distintos: o das relações entre Estados soberanos, o requerente e o requerido, de base eminentemente política, que tem como palco principal a ordem jurídica internacional; e o das relações entre o Estado que defere administrativamente o pedido de extradição e o extraditando, de natureza necessariamente judicial (artigo 33.º, n.º 7, da CRP), que tem como palco a ordem jurídica interna do Estado requerido (em geral, supõe ainda o plano onde se jogam as relações entre o Estado requerente e o extraditado, infra ponto 8.).
No processo judicial de extradição, o Estado requerido não exerce propriamente o seu ius puniendi. Este processo releva antes do poder-dever estadual de prestar auxílio judiciário em matéria penal, no âmbito do que se pode denominar jurisdição judicativa adjuvante (assim, Pedro Caeiro Fundamento, conteúdo e limites da jurisdição penal do Estado. O caso português, Wolters Kluwer/Coimbra Editora, 2010, p. 41 e ss.). Está em causa o exercício do ius puniendi por parte de outrem a quem se presta auxílio, o que aponta para uma conformação processual em que o Estado requerido confronta o extraditando com o objetivo de cumprir o pedido do Estado requerente. Ao incluir na reserva de juiz a decisão positiva de extraditar – a decisão negativa pode ser tomada previamente no processo administrativo (artigo 48.º da Lei n.º 144/99) – e ao fazê-lo no capítulo dos direitos liberdades e garantias, é a proteção do extraditando perante o Estado, no exercício por parte deste do poder-dever de prestar auxílio judiciário em matéria penal, que a CRP garante (artigo 33.º, n.º 7). No plano da ordem jurídica interna, na fase judicial do processo de extradição, o Estado requerente não se confronta com o Estado requerido, antes se identificam, uma vez que está em causa o exercício estadual de poderes de jurisdição contra o agente da prática do crime, no âmbito de um mecanismo que é de cooperação judiciária. O que arreda uma qualquer conformação processual em que o Estado requerente desempenhe o papel de parte (participante) processual.»
Improcedem, na conformidade, as questões supra apreciadas.
O arguido invoca a excepção do ne bis in idem com fundamento em que corre em Espanha processo de extradição contra si pelos mesmos factos.
Numa definição rápida digamos que princípio ne bis in idem proíbe que na actividade sancionatória, penal, se proceda a uma dupla valoração do mesmo substrato material, pois só assim se garante a paz jurídica.
O referido princípio tem assento constitucional no artigo 29º/ 5 da CRP, integrado no capítulo dos «direitos, liberdades e garantias pessoais», segundo o qual «ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime» o que significa a garantia de nenhum cidadão pode ser penalmente perseguido pela prática dos mesmos factos.
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira o princípio ne bis in idem, «comporta duas dimensões: (a) como direito subjectivo fundamental, garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra actos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo); (b) como princípio constitucional objectivo (dimensão objectiva do direito fundamental), obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto. “ (…) A Constituição proíbe rigorosamente o duplo julgamento e não a dupla penalização, mas é óbvio que a proibição do duplo julgamento pretende evitar tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infracção, como a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do «mesmo crime» (3).
O princípio está, no entanto, previsto no artigo 19º da Lei 144/99, na vertente de que «Quando for aceite um pedido de cooperação que implique a delegação do procedimento em favor de uma autoridade judiciária estrangeira, não pode instaurar-se nem continuar em Portugal procedimento pelo mesmo facto que determinou o pedido nem executar-se sentença cuja execução é delegada numa autoridade estrangeira», formulação que é a aqui aplicável.
Conforme acima se referiu, em Espanha não se iniciou sequer a fase judicial do processo de extradição e, tendo sido junta declaração das entidades espanholas de que Espanha decidiu não exercer acção penal contra o arguido pelos factos em apreço, só por manifesto lapso se pode entender a alegação contrária.
O único processo de extradição pendente é o actual e é dele que se espera a concretização da cooperação internacional penal.
O texto constitucional português e o da Lei 144/99 são muito claros na exigência de garantias concretas, individualizadas e relativas às penas concretas que, sendo aplicáveis, possam ofender princípios de ordem pública nacional, entre as quais a prisão perpétua ou a pena de morte.
Por força da Constituição da República Portuguesa (CRC), Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana (artigo 1º), onde não são admissíveis penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida (artigo 30.º), sendo o máximo da pena de prisão admissível o de 25 anos; e só é admitida a extradição por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida, se, nesse domínio, o Estado requisitante for parte de convenção internacional a que Portugal esteja vinculado e oferecer garantias de que tal pena ou medida de segurança não será aplicada ou executada ( artigo 33.º).
Da conjugação da norma contida no artigo 30º/CRP com os princípios da universalidade, da igualdade e da equiparação dos estrangeiros e apátridas que se encontrem ou residam em Portugal, em matéria de direitos, tem-se retirado a conclusão de que também se encontra constitucionalmente vedada a extradição quando ao crime ou ao conjunto de crimes possa corresponder pena de prisão indeterminada ou superior ao máximo legal de prisão aplicável pela ordem jurídica Portuguesa, de vinte e cinco anos.
Nos termos do artigo 6º/1 da Lei 144/99 são, entre outros, requisitos negativos da extradição:
«a) O processo não satisfizer ou não respeitar as exigências da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de 4 de Novembro de 1950, ou de outros instrumentos internacionais relevantes na matéria, ratificados por Portugal; (…)
f) Respeitar a infracção a que corresponda pena de prisão ou medida de segurança com carácter perpétuo ou de duração indefinida».
Admite, o número 2 do mesmo normativo, no entanto, que o disposto nas alíneas e) e f) do número anterior não obste à cooperação:
« b) Se, com respeito a extradição por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requerente, pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida, o Estado requerente oferecer garantias de que tal pena ou medida de segurança não será aplicada ou executada;
c) Se o Estado que formula o pedido aceitar a conversão das mesmas penas ou medidas por um tribunal português segundo as disposições da lei portuguesa aplicável ao crime que motivou a condenação».
Mais determina o nº 3 do artigo que para «efeitos de apreciação da suficiência das garantias a que se refere a alínea b) do número anterior, ter-se-á em conta, nomeadamente, nos termos da legislação e da prática do Estado requerente, a possibilidade de não aplicação da pena, de reapreciação da situação da pessoa reclamada e de concessão da liberdade condicional, bem como a possibilidade de indulto, perdão, comutação de pena ou medida análoga, previstos na legislação do Estado requerente».
Admite, o número 2 do mesmo normativo, no entanto, que o disposto nas alíneas e) e f) do número anterior não obste à cooperação:
« b) Se, com respeito a extradição por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requerente, pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida, o Estado requerente oferecer garantias de que tal pena ou medida de segurança não será aplicada ou executada;
c) Se o Estado que formula o pedido aceitar a conversão das mesmas penas ou medidas por um tribunal português segundo as disposições da lei portuguesa aplicável ao crime que motivou a condenação».
Mais determina o nº 3 do artigo que para «efeitos de apreciação da suficiência das garantias a que se refere a alínea b) do número anterior, ter-se-á em conta, nomeadamente, nos termos da legislação e da prática do Estado requerente, a possibilidade de não aplicação da pena, de reapreciação da situação da pessoa reclamada e de concessão da liberdade condicional, bem como a possibilidade de indulto, perdão, comutação de pena ou medida análoga, previstos na legislação do Estado requerente».
A questão colocada pelo recorrente prende-se unicamente com saber se o arguido se sujeita a uma pena até 20 anos de prisão ou de prisão perpétua, com fundamento na interpretação contabilística dos danos indicados no pedido formal.
Refere o recorrente que em causa pode estar a aplicação de prisão perpétua, face ao valor do dano contabilizado pela Costa do Marfim na moeda local, que é subsumível ao nº 2 do artigo 107º do CP, e não ao número 1, porquanto a quantia indicada de quarenta e um mil milhões de CFA é superior a quinhentos milhões de CFA, limite a partir do qual o CP local determina a aplicação de pena de prisão perpétua.
Na verdade assim é.
Nalgum local desta informação há um lapso.
Ou estão em causa os quarenta e um mil milhões de francos que correspondem a 62.504.097.069,33 €, ou os quarenta e um milhões de francos, que correspondem aos referidos 62.504.090 euros.
Quer a resposta à oposição, quer o próprio acórdão recorrido partiram do princípio de que haveria um lapso no valor indicado pela Costa do Marfim, sendo correcto assumir que a informação se reportava a quarenta e um milhões de francos CFA, num raciocínio que se baseia no valor convertido em euros indicado no próprio pedido formal, agora reconvertido em CFA.
Não podemos concordar com tal solução.
Ao Estado requerido não é legítimo suprir dúvidas sobre a factualidade invocada com fundamento em presunções infundadas, desconhecendo-se por que motivo se pode considerar que o lapso foi na indicação no valor segundo a moeda local e não sobre o valor da conversão em euros.
O pedido de extradição reporta-se necessariamente à matéria de facto referida no pedido formal, daqui derivando que, em caso de dúvida apenas o Estado requerente pode esclarecê-la.
Esta questão carece de cabal esclarecimento, porque dele depende a possibilidade de o arguido vir a ser processado pelo nº 2 do artigo 107º do CP da Costa do Marfim ou pelo nº 1, sendo que se o for pelo número 2 sujeita-se a prisão perpétua.
O arguido reclama, ainda, da incorrecção da tradução efectuada nos autos dos documentos oriundo do Estado requerente, e com inteira razão. Mais do que uma questão de pura tradução (como sucede na tradução referida em 4 do provado que acrescenta um zero ao valor mínimo contido no tipo) temos uma questão de inviabilidade de percepção sobre qual a pena aplicável ao crime de branqueamento, face à a falta de concreta indicação sobre a qual das diversas penas aí referidas se subsume a conduta do arguido no que concerne ao crime de branqueamento. Pior do que essa omissão é, contudo, a inviável tradução feita dos normativos relativos à Lei 2016, conforme resulta do provado.
Mas mais do que isso: sujeitando-se o arguido a penas distintas por terem sido imputados três crimes autónomos, torna-se imperioso ver esclarecida qual a pena única máxima a que o arguido se sujeita, em termos de cúmulo de penas, porque, face às diversas molduras penais referidas, podemos estar face a uma pena cuja duração equivale a prisão perpétua ou superior ao limite nacional de vinte e cinco anos.
Temos, portanto, pendente a necessidade de requerer ao Estado requerente esclarecimentos complementares relativamente a qual é a pena aplicável relativamente ao montante a considerar para efeitos de aplicação do referido artigo 107º do respectivo CP, reforçando o pedido com a indicação da concreta pena a que o arguido se sujeita, face a esse dispositivo e, caso se entenda que se sujeita a prisão perpétua, que se vincule, por garantia formal, à aplicação de pena de prisão não superior a vinte e cinco anos de prisão, limite máximo definida pelo Estado Português.
Mais se considera indispensável a indicação concreta da pena aplicável ao crime de branqueamento, e à apresentação de garantia formal relativamente à não aplicação de pena superior a vinte e cinco anos de prisão, em cúmulo (jurídico ou material, conforme a lei do Estado requerente) aos diversos crimes pelos quais o arguido venha a ser condenado.
O arguido defende que face aos relatos contidos nos documentos que juntou relativos à violação de direitos fundamentais, no tocante às condições processuais e carcerárias da Costa do Marfim e à própria argumentação contida no acórdão recorrido de que a «Costa do Marfim está a “sedimentar-se” como um Estado de Direito» (que pressupõe que não o seja), e aos diversos relatos disponíveis pelos órgãos que emitiram aquelas notícias, impunha-se a recusa da extradição.
A questão colocada pelo arguido, não configurando um fundamento de oposição à extradição, tipificado pelo artigo 55.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99, exige averiguação e ponderação sobre a existência, ou não, de garantias de que o Estado requerente dispõe de um sistema carcerário respeitador da dignidade humana dos prisioneiros, não pondo em risco a sua segurança, saúde, na sua vertente de integridade física e psicológica e até a própria vida.
«A questão da relevância, no âmbito da extradição, das más condições das prisões no Estado requerente, atentatórias da dignidade humana, nomeadamente por sobrelotação e graves deficiências de organização e funcionamento pondo em risco a saúde, a segurança, a integridade física ou psicológica ou a vida dos reclusos, situa-se a um nível diverso, nas relações entre Estados, reguladas por normas de direito internacional público que vinculam os Estados ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos, na medida em que constituam ou apresentem sério risco de constituírem tortura ou tratamento desumano ou degradante.
A proteção da pessoa contra estas formas de tratamento, quer internamente, quer nas relações com outros Estados, no âmbito da extradição, encontra-se especificamente garantida no artigo 7.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) (ONU, Nova Iorque, 1966), que constitui um tratado de âmbito universal de que a República Portuguesa é parte (…) no artigo 3.º na Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), ratificada por Portugal (…)» (4) e no que concerne à Costa do Marfim, na Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, no Protocolo Facultativo da Convenção contra a Tortura, e no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, por este Estado ratificados.
Nos termos do artigo 7.º do PIDCP: «Ninguém será submetido à tortura nem a pena ou a tratamentos cruéis, inumanos ou degradantes».
Nos termos do artigo 3.º da CEDH: «Ninguém pode ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes».
E nos termos do artigo o artigo 3.º da Convenção contra a Tortura (Nações Unidas, 1984):
“1 - Nenhum Estado parte expulsará, entregará ou extraditará uma pessoa para um outro Estado quando existam motivos sérios para crer que possa ser submetida a tortura.
2 - A fim de determinar da existência de tais motivos, as autoridades competentes terão em conta todas as considerações pertinentes, incluindo, eventualmente, a existência no referido Estado de um conjunto de violações sistemáticas, graves, flagrantes ou massivas dos direitos do homem.”
«Lê-se no Comentário n.º 20 (n.º 9), do Comité dos Direitos Humanos, ao artigo 7.º do PIDCP, que “os Estados têm a obrigação de não extraditar a pessoa no caso de, por virtude da extradição, esta ser exposta ao risco de tratamentos desumanos ou degradantes”.
Os Estados-Partes da CEDH são responsáveis pela violação dos direitos consagrados na Convenção se a extradição representar um risco real e grave de sujeição da pessoa a tratamentos desumanos ou degradantes inerentes às condições das prisões.
13. De acordo com a jurisprudência bem estabelecida do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), a partir do caso Soering c. Reino Unido (n.º 14038/88, de 7.7.1989), a proteção contra o tratamento proibido pelo artigo 3.º da CEDH é absoluta. Como resultado, a extradição de uma pessoa por um Estado Contratante pode, sob esta disposição, envolver a responsabilidade do Estado em questão nos termos da Convenção, quando houver motivos sérios para acreditar que, se a pessoa for extraditada para o país requerente, corre o risco real (não bastando a simples possibilidade – assim, acórdão Vilvarajah c. Reino Unido) de ser submetida a tratamento contrário ao artigo 3.º; esta disposição impõe uma obrigação de não extraditar ou expulsar a pessoa para esse país, não fazendo o TEDH distinção entre estes dois procedimentos. Para além disso, o TEDH não estabelece qualquer distinção entre as várias formas de tratamento previstas no artigo 3.º para efeitos de avaliação do risco (Harkins and Edwards c.Reino Unido, 2012, § 120; Trabelsi c. Bélgica, 2014, § 116)[9].
No caso Romeo Castaño c. Bélgica (n.º 8351/17, de 9.10.2019), seguindo jurisprudência de há muito estabelecida, o TEDH voltou a sublinhar, agora no contexto da execução de um mandado de detenção europeu (MDE) (Decisão-Quadro 2002/584/JAI, que substituiu as convenções de extradição anteriormente aplicáveis), que, do ponto de vista da Convenção, um risco de tratamento desumano e degradante da pessoa cuja entrega é pedida pode constituir um motivo legítimo de recusa de entrega, por causa das condições de detenção no Estado de emissão do MDE[10].
14. O risco de tratamento da pessoa em violação do artigo 3.º da CEDH obriga o Estado requerido a fazer uma “avaliação adequada” desse risco e a adotar as medidas ao seu alcance necessárias à sua prevenção – nomeadamente solicitando ao Estado requerente a prestação de garantias de que a pessoa requerida não será sujeita a este tipo de tratamentos, não sendo suficiente uma declaração genérica de que o sistema legal, a ratificação dos instrumentos internacionais relevantes e a legislação em vigor asseguram a proteção da pessoa – e a não extraditar em caso de não prestação de garantias ou insuficiência das garantais prestadas e de subsistência daquele risco [cfr., entre outros, os acórdãos Chahal c. Reino Unido (1996), Saadi c. Itália (2008), Ismoilov c. Russia (2008) e Ilias e Ahmed c. Hungria, n.º 47287/15, de 21.11.2019[11], do TEDH]. (…)
15. A interdição da tortura e das penas e tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, enunciada em termos lapidares e semelhantes pelos grandes instrumentos internacionais de proteção de direitos humanos, contém uma proibição absoluta, insuscetível de restrições e derrogações, que, segundo o TEDH, “consagra um dos valores fundamentais das sociedades democráticas” (caso Soering, § 88). No contexto da detenção, o TEDH reconhece o “direito de todo o prisioneiro a ser detido em condições compatíveis com a dignidade humana” (Kudla c. Polónia, 26.10.2000, § 94).
Esta proibição absoluta confere às normas de proteção contra a tortura e tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes a natureza de normas imperativas de direito internacional geral, normas de jus cogens, cuja derrogação não é permitida, com a força que lhe confere o artigo 53.º da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (1969)[14]. Trata-se de normas a que são reconhecidos efeitos supralegais, que produzem um efeito dissuasor, no sentido de assinalarem aos estados e às pessoas que a proibição nelas contida consagra valores absolutos que não admitem desvio [Tribunal Internacional para a ex-Jugoslávia (ICTY), caso Furundzija, §§ 154-157][15].
O artigo 3.º é da CEDH é, pois, reconhecidamente, uma norma de jus cogens ou de ordem pública internacional, cuja violação justifica a recusa de extradição a que um Estado está obrigado por força de um tratado[16].
16. A jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, referente à interpretação e aplicação do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que corresponde ao artigo 3.º da CEDH[17] (artigo 52.º, n.º 3, da Carta[18]), tendo em conta a jurisprudência do TEDH, sintetiza as obrigações de verificação do cumprimento das obrigações decorrentes destes preceitos, no âmbito do MDE (correspondente à extradição) nos seguintes termos (transcrição parcial da fundamentação do processo C‑220/18 PPU, ML, de 25 de julho de 2018):
“59. (…) quando a autoridade judiciária do Estado‑Membro de execução dispõe de elementos que comprovam um risco real de tratamento desumano ou degradante das pessoas detidas no Estado‑Membro de emissão, à luz do padrão de proteção dos direitos fundamentais garantido pelo direito da União e, em especial, do artigo 4.º da Carta [3.º da CEDH], deve apreciar a existência desse risco no momento de decidir sobre a entrega às autoridades do Estado‑Membro de emissão da pessoa a que o mandado de detenção europeu diz respeito. Com efeito, a execução desse mandado não pode conduzir a um tratamento desumano ou degradante dessa pessoa (Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru, C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.º 88).
60. Para este efeito, a autoridade judiciária de execução deve, antes de mais, basear‑se em elementos objetivos, fiáveis, precisos e devidamente atualizados quanto às condições de detenção nos estabelecimentos prisionais do Estado‑Membro de emissão que demonstrem a realidade das deficiências, quer sejam sistémicas ou generalizadas, quer afetem determinados grupos de pessoas ou ainda determinados centros de detenção. Estes elementos podem resultar, designadamente, de decisões judiciais internacionais, como acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, de decisões judiciais do Estado‑Membro de emissão e de decisões, de relatórios e de outros documentos elaborados pelos órgãos do Conselho da Europa ou pertencentes ao sistema das Nações Unidas (Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru, C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.o 89).
61. Todavia, a constatação da existência de um risco real de tratamento desumano ou degradante em razão das condições gerais de detenção no Estado‑Membro de emissão não pode conduzir, enquanto tal, à recusa da execução de um mandado de detenção europeu. Com efeito, a mera existência de elementos que atestem deficiências, quer sejam sistémicas ou generalizadas, quer afetem determinados grupos de pessoas ou ainda determinados centros de detenção, no que respeita às condições de detenção no Estado‑Membro de emissão, não implica necessariamente que, num caso concreto, a pessoa em causa seja sujeita a um tratamento desumano ou degradante em caso de entrega às autoridades desse Estado‑Membro (Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru, C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.ºs 91 e 93).
62. Assim, para garantir o respeito do artigo 4.º da Carta no caso particular de uma pessoa que é objeto de um mandado de detenção europeu, a autoridade judiciária de execução, que é confrontada com elementos objetivos, fiáveis, precisos e devidamente atualizados que atestem a existência dessas deficiências, deve verificar, em seguida, de maneira concreta e precisa, se, nas circunstâncias do caso, existem motivos sérios e comprovados para considerar que, no seguimento da sua entrega a esse Estado‑Membro, essa pessoa correrá um risco real de ser sujeita, nesse Estado‑Membro, a um tratamento desumano ou degradante, na aceção deste artigo, em razão das condições de detenção que se prevê aplicar‑lhe no Estado‑Membro de emissão (Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru, C‑404/15 e C‑659/15 PPU,EU:C:2016:198, n.os 92 e 94). (…)
65. Se, à luz das informações fornecidas (…) bem como de quaisquer outras informações de que a autoridade judiciária de execução disponha, esta autoridade concluir que existe, relativamente à pessoa sobre a qual recai o mandado de detenção europeu, um risco real de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.º da Carta, a execução desse mandado deve ser adiada mas não pode ser abandonada (Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru, C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.o 98).
78. (…) a análise que essas autoridades são obrigadas a efetuar, atento o seu caráter concreto e preciso, não pode ser sobre as condições gerais de detenção existentes no conjunto dos estabelecimentos prisionais desse Estado‑Membro em que a pessoa em causa poderá ficar detida. (…)
111. A garantia fornecida pelas autoridades competentes do Estado‑Membro de emissão de que a pessoa em causa não sofrerá tratamentos desumanos ou degradantes devido às condições concretas e precisas de detenção seja qual for o estabelecimento prisional onde ficará encarcerada no Estado‑Membro de emissão é um elemento que a autoridade judiciária de execução não pode ignorar. Com efeito, (…) a violação desse compromisso, que vincula o seu autor, poderá ser invocada contra ele perante os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro de emissão.”
17. Como tem sido reconhecido na jurisprudência e nas instâncias internacionais, a avaliação do risco deve levar em conta os relatórios e avaliações de organismos internacionais, nos quais se incluem, em particular, os do Comité e do Subcomité para a Prevenção da Tortura, instituídos pela Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (ONU, 1984) e respetivo Protocolo Facultativo, de organizações não governamentais de reconhecida credibilidade e de organismos nacionais com intervenção neste domínio.» (5).
Ora, no que concerne à Costa do Marfim, impõe-se uma leitura das “Observações finais sobre o relatório inicial da Costa do Marfim”, elaborado pelo Comité contra a Tortura das Nações Unidas, no âmbito do Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos que ou Degradantes (6) que revela que a par de algumas medidas positivas mantêm-se sérias preocupações com situações, entre as quais, por exemplo:
- a existência de alegações de tortura e impunidade e o não acesso atempado a serviços médicos que possam verificar os respectivos sinais e estabelecer se há, ou não, uma prática padrão;
- a definição de tortura por ser demasiado ampla, não correspondendo aos artigos 1º e 2º da Convenção e não garantindo a natureza absoluta e inderrogável da sua proibição;
- por não se estabelecer a não sujeição do crime de tortura a um prazo de prescrição;
- porque o acesso aos serviços de um advogado não é garantido, em particular durante o período de investigação;
- com o facto de os direitos das pessoas sob custódia policial de serem informadas dos motivos da sua detenção, das acusações deduzidas contra elas e dos seus direitos não serem sempre respeitados, colocando-as em maior risco de tortura e maus tratos;
- por não serem respeitados os prazos de primeiro interrogatório, nas 48 horas seguidas à prisão preventiva;
- por não ser garantido o acesso ao apoio jurídico de um advogado, durante a investigação;
- por haver impossibilidade de contestar a licitude da detenção em qualquer fase do processo;
- por não haver registos do local da detenção;
- com as más condições de detenção, com uma taxa muito elevada de sobrelotação prisional (quase três vezes a capacidade total); as condições precárias de detenção em muitos locais de privação da liberdade, em particular com insalubridade e higiene inadequada; a falta de ventilação, água potável e de alimentos de qualidade adequada; o acesso limitado a cuidados de saúde de qualidade, instando o Estado a intensificar os seus esforços para alinhar as condições prisionais com as Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento dos Reclusos (Regras Nelson Mandela);
- com a falta de meios para o funcionamento do Conselho Nacional dos Direitos Humanos, nomeadamente o seu papel na realização de visitas a locais de detenção e investigação de denúncias sobre alegadas violações de direitos humanos e a sua falta de autonomia em relação ao poder executivo;
- com a existência de locais de detenção não oficiais;
- com os relatos sobre a prevalência da violência prisional, que inclui actos violentos cometidos por funcionários prisionais contra reclusos e violência entre reclusos;
- com a inexistência de um mecanismo eficaz, acessível, independente e confidencial, encarregado de receber denúncias de tortura ou maus-tratos em todos os locais de privação de liberdade e de os órgãos de investigação existentes não possuírem a independência necessária, uma vez que reportam às mesmas autoridades a que reportam os alegados autores dos actos em causa;
- com a utilização contínua de confinamento solitário por motivos disciplinares, superiores aos 15 dias consecutivos previstos na legislação nacional;
- com a falta de independência do poder judicial perante o poder executivo, o que contribui para a impunidade, em particular nos casos de tortura;
- com os atrasos significativos na administração da justiça;
- com a falta de disposições legais que proíbam explicitamente a utilização como prova em processos judiciais de confissões obtidas mediante tortura, e com relatos que indicam que as confissões obtidas mediante tortura ou coação são admitidas como prova em tribunal e que tais práticas persistem devido à imunidade dos culpados e à pressão sobre os juízes.
Face a este relatório colocam-se, efectivamente, sérias e pertinentes dúvidas sobre a sujeição do requerido, uma vez cumprido o mandado de extradição, ser sujeito a violação dos direitos humanos, mediante, designadamente, tortura, e de o procedimento criminal não ser justo nem equitativo, estando o seu resultado sujeito a pressões externas ao regime jurídico aplicável.
Neste sentido impõe-se solicitação Estado requerente de garantia formal e concreta de que o requerido será sujeito a um julgamento por Tribunais independentes, segundo a lei local; no âmbito de um processo justo e equitativo; beneficiando de defesa por parte de um profissional do foro em qualquer das suas fases; e que será detido em prisão concretamente identificada; onde não corra risco de ser sujeito a tratamentos desumanos, degradantes ou cruéis, nem a formas de tratamento atentatórias, por qualquer meio, de sua dignidade humana, ou que possam reconduzir-se ao conceito internacional de tortura.
Face às deficiências detectadas relativamente à necessidade de garantias complementares, que não se satisfazem pelos termos do pedido formal e garantias já prestadas, o que determina a existência de nulidades emergentes de omissão de pronúncia sobre questões relativamente às quais o Tribunal requerido tinha obrigação de se pronunciar, nos termos do disposto no artigo 379º/1-c) do CPP, impõe-se a devolução dos autos ao Tribunal recorrido para obtenção e análise das mesmas.
A existência de um processo de extradição noutro país, da nacionalidade do extraditando, pertencente à União Europeia, que não passou da fase administrativa por falta de recebimento de pedido formal do Estado requerente, e foi arquivado antes da detenção do arguido em Portugal, que deu origem aos presentes autos, não configura a excepção de non bis in idem a que se refere o artigo 19º da referida Lei.
Uma vez que o país da nacionalidade do extraditando se recusou formalmente a exercer a acção penal, resta apreciar o pedido de extradição feito pela República da Costa do Marfim.
O pedido de extradição reporta-se necessariamente à matéria de facto referida no pedido formal, daqui derivando que, em caso de dúvida sobre algum dos elementos relevantes para a respectiva compreensão se impõe a obtenção dos necessários esclarecimentos pelo Estado requerente, o que se aplica à falta de menção da concreta moldura penal a que o extraditando se sujeita, no caso de condenação por cada um dos crimes imputados.
Não existindo convenção relativa à cooperação judiciária penal entre Portugal e a República da Costa do Marfim, há que aplicar a Lei 144/99, de 31/8, supletiva, exigindo do Estado requerente as garantias necessárias ao cumprimento das normas imperativas que, não sendo fundamentos de recusa, são requisitos gerais negativos de cooperação internacional, nos termos do artigo 6º/ da referida Lei.
Tais garantias reportam-se, também, aos compromissos de cumprimento da regra da especialidade, ao impedimento de reextradição.
Quando a autoridade judiciária do Estado‑Membro de execução dispõe de elementos que comprovam um risco real de tratamento desumano ou degradante carecem de ser pedidas, igualmente, garantias formais ao Estado requerente, relativas à pessoa do extraditando, de que não será sujeito a tortura, nem a um sistema carcerário desrespeitador da dignidade humana, que ponha em risco a sua segurança, saúde, na sua vertente de integridade física e psicológica e até a própria vida.
No caso da Costa do Marfim, atentas as “Observações finais sobre o relatório inicial da Costa do Marfim”, elaborado pelo Comité contra a Tortura das Nações Unidas, no âmbito do Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos que ou Degradantes impõe-se ainda a obtenção de garantias relativas ao julgamento por um Tribunal independente e à obtenção de condições de defesa condignas, proporcionados por acompanhamento por um advogado.
Pelo exposto, acorda-se em julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência, revoga-se o acórdão recorrido e determina-se a baixa dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa para obtenção das garantias em falta e reapreciação do pedido de extradição em consonância com aquelas que forem fornecidas.
Sem custas, uma vez que no processo de extradição não são devidas.
Lisboa,5 /11/2025
Maria da Graça Silva (relatora)
Maria Margarida Almeida
António Augusto Manso
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1. Acórdão Tribunal de Justiça da União Europeia (Grande Secção) n.º182-C/15, de 16 de Setembro de 2016, designado como “Caso Aleksei Petruhhin”, transcrito na parte relevante pelo acórdão recorrido e que aqui se replica, de onde consta que:
«- “Na falta de regras de direito da União que regulem a extradição entre os Estados Membros e um Estado terceiro, importa, para preservar os nacionais da União de medidas suscetíveis de os privar dos direitos de livre circulação e de residência previstos no artigo 21.° TFUE, não deixando de lutar contra a impunidade em caso de infrações penais, lançar mão de todos os mecanismos de cooperação e de assistência mútua existentes em matéria penal em virtude do direito da União”;
- “Assim, há que privilegiar a troca de informações com o Estado Membro da nacionalidade do interessado, a fim de dar às autoridades desse Estado Membro, desde que sejam competentes, ao abrigo do respetivo direito nacional, para proceder criminalmente contra essa pessoa por atos praticados fora do território nacional, a oportunidade de emitir um mandado de detenção europeu para fins de procedimento penal. Com efeito, o artigo 1.°, n.os 1 e 2, da Decisão Quadro 2002/584 não exclui, nesse caso, a possibilidade de o Estado Membro da nacionalidade do presumível autor da infração emitir um mandado de detenção europeu para a entrega dessa pessoa para fins de procedimento penal. Ao cooperar desse modo com o Estado Membro da nacionalidade do interessado e ao dar prioridade a esse eventual mandado de detenção sobre o pedido de extradição, o Estado Membro de acolhimento atua de forma menos atentatória do exercício do direito à livre circulação, evitando simultaneamente, na medida do possível, o risco de a infração objeto do procedimento penal ficar impune. (cf. n.os 31 34, 39, 40, 47 50, disp. 1)”».
2. Em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20120360.html.
3. Vide “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Volume I, Coimbra Editora, páginas 497 e 498.
4. Cfr acórdão do STJ, tirado no processo 78/23.9YRCBR.S1, a 31/5/2023, publicado em https://juris.stj.pt/78%2F23.9YRCBR.S1/4LCZxdPB6jeTg5iYKALktI2ei4c, com sublinhados nossos.
5. Cfr acórdão do STJ, tirado no processo 78/23.9YRCBR.S1, a 31/5/2023, publicado em https://juris.stj.pt/78%2F23.9YRCBR.S1/4LCZxdPB6jeTg5iYKALktI2ei4c, com sublinhados nossos.
6. O Comité analisou o relatório inicial da Costa do Marfim nas suas 2121. ª e 2124. ª reuniões, realizadas em 16 e 17 de julho de 2024, e adotou as presentes observações finais na sua 2132.ª reunião, realizada em 24 de julho de 2024, consultável em https://docs.un.org/en/CAT/C/CIV/CO/1,