REIVINDICAÇÃO
DEMARCAÇÃO
NULIDADES DA SENTENÇA
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário


1. A não produção de um determinado meio de prova, ou a fixação errada ou incompleta da matéria de facto não dá lugar a nulidade. Pode ser uma decisão certa ou errada, consoante tal meio de prova fosse ou não importante para decidir a matéria de facto, podendo ser alterada em via de recurso, mas nada tendo a ver com a figura das nulidades da sentença, prevista no art. 615º CPC.
2. As nulidades da sentença são vícios que nada têm a ver com o acerto substancial da decisão, mas antes atingem a estrutura interna e formal da decisão, tornando-a imprópria ou inadequada para poder decidir a substância do litígio.
3. Não há qualquer impedimento processual ou substantivo em deduzir no mesmo processo um pedido de revindicação cumulado com um pedido de demarcação.
4. Quando a sentença recorrida julga procedente o pedido de reivindicação e ordena ao réu a devolução do prédio ao autor mas omite qualquer decisão quanto ao pedido de demarcação, e está omissa na matéria de facto provada a área dos dois prédios em confronto, a única solução é, nos termos do art. 662º,2,c CPC, determinar a ampliação da matéria de facto, com vista a determinar a área do prédio do autor e definir com precisão a parcela da superfície terrestre que o mesmo ocupa, para depois, e só depois, poder apreciar o pedido de demarcação dos dois prédios.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

 I- Relatório

AA veio instaurar a presente acção declarativa sob a forma comum contra BB pedindo que o Tribunal declare:

a) O Autor legítimo e exclusivo dono e possuidor do prédio descrito no artigo 1º da petição;
b) O direito do Autor a que esse prédio lhe seja restituído pela Ré, reconstituindo, à sua custa, a situação do mesmo antes de ser por esta ocupado e detido;
c) Na impossibilidade dessa reconstituição natural ou em espécie do seu prédio, o direito do Autor a ser indemnizado em dinheiro, pela Ré, no valor correspondente aos prejuízos que sofreu;
d) O direito do Autor a que sejam definidos e determinados o limite, a linha divisória e a demarcação do seu prédio, em questão, na sua confrontação pelo lado sul, com o prédio da Ré acima descrito.
E que o Tribunal condene a Ré:
e) A ver, reconhecer e respeitar esses direitos do Autor e abster-se da prática de qualquer acto que os perturbe ou prejudique;
f) A restituir, à sua custa, ao Autor o prédio deste, com a área e os limites que vierem a ser estabelecidos na presente acção;
g) A concorrer para a demarcação das extremas entre os seus respectivos prédios, nos termos e condições enunciados nos artigos 23.º e 24.º da petição;
h) A pagar ao Autor a indemnização que vier a liquidar-se em execução da sentença;

Alega para tanto que é exclusivo proprietário do prédio com a área de 3800m2 que confronta com o de 2260m2 da ré, pelo lado sul daquele (do do autor), lado norte deste (do da ré), por linha divisória que não está assinalada. E que a ré procedeu ao corte/abate raso da totalidade das árvores que povoavam a área do seu prédio, nela plantando eucaliptos em toda a área.

Contestou a ré, requerendo no pressuposto de procedência da acção, a intervenção acessória da vendedora, CC, por lhe ter, afinal, declarado (a si, ré) vender área que se verá forçada a ceder ao autor.

A intervenção a título acessório foi admitida por despacho de 9.3.2021.
Sustentou a interveniente acessória a versão do autor.

Teve lugar a audiência final.

Foi então proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência:
A. Declarou o autor proprietário do prédio rústico composto por terreno de mato e lenha, situado no lugar de ..., na freguesia ..., do concelho ..., que confronta do sul com BB (a ré), do nascente com Ribeiro ... e do poente com caminho, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...11 / freguesia ..., com inscrição de aquisição no registo a favor do autor pela ap. ... de 12.03.1996 e inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo n.º ...88.
B. Mais declarou, em explicitação do levado a A, que o prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo n.º ...88, que tem forma próxima de um trapézio rectangular, é delimitado, a nascente, pelo traçado que liga os vértices identificados – na planta à escala numérica 1:1500 junta aos autos em formato pdf por e-mail de 9 de Abril de 2024 – sob os pontos 1 (391) e 17, georreferenciados, respectivamente, pelas coordenadas -...10.99 e ...51.17 (vértice nascente/norte) e -...91.24 e ...16.89 (vértice nascente/sul) do Sistema de Referência Terrestre Europeu - ..., estando o vértice com o ponto 391 também identificados na planta (parcelar) à escala 1:2000 junta no citius a 16.2.2024.
C. Mais declarou que, partindo dessas coordenadas a nascente, o prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo n.º ...88 tem a exacta delimitação com desenho em trapézio rectangular identificado na planta (parcelar) à escala 1:2000 junta em citius a 16.2.2024, constituindo os lados paralelos a delimitação norte e sul do prédio.
D. Que o lado paralelo a sul delimita o prédio do autor do prédio da ré, estando este inscrito na matriz predial rústica sob o artigo n.º ...88[1] e identificado nos pontos Q e R dos factos provados.
E. Condenou a ré a restituir o prédio acima identificado ao autor e a abster-se da prática de quaisquer actos que contendam com o gozo de modo pleno e exclusivo do direito de propriedade do autor aqui declarado.
F. Condenou a ré na obrigação de indemnizar o autor em quantia pecuniária até ao limite de €15.000,00 (quinze mil euros) correspondente ao valor das árvores que a ré de lá retirou, a fixar em incidente de liquidação próprio.
G. Absolveu a ré do demais peticionado.

Inconformada com esta decisão, a Ré dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (arts. 644º,1,a, 645º,1,a, 647º,1 CPC).

Termina com as seguintes conclusões:
1ª- Conforme se procurou demonstrar, a sentença recorrida traduz um significativo erro na apreciação da prova, justificativo que os Exmos Senhores Desembargadores conheçam de facto e de direito no presente caso, admitindo a renovação da prova – cfr. artigo 662º do C.P. Civil.
Face ao teor dos depoimentos que se vêm de referir, aos dados pelos documentos que foram juntos ao processo até à audiência de julgamento, e na sequência das considerações que antecedem, é de concluir pela absoluta pertinência das considerações da recorrente quanto aos referidos pontos da matéria de facto e, nessa decorrência, deve ser dada procedência às alterações por si sugeridas quanto aos mesmos.
2ª- A decisão recorrida ao decidir a matéria de facto como decidiu, desrespeitou o disposto nos artigos 4.º; 411.º; 413º, 414º do C.P. Civil, e ainda o disposto no artigo 346.º do Cód. Civil.
3ª- Apreciada toda a factualidade, deve considerar-se provada a matéria de facto indicada no Capitulo VII supra, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
4ª- A sentença recorrida padece de omissão de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d) do CPC), por não indicar com precisão os limites do prédio do autor, omitindo as coordenadas dos lados norte, sul e poente, tornando inexequível a restituição decretada, violando ainda o princípio da executabilidade da sentença (art. 607.º, n.º 4 do CPC).
5ª- Foi dado como não provado que o prédio do autor tem 3.800 m², área esta constante da matriz e da verba do inventário (prova documental: caderneta predial e certidão de inventário), em violação do disposto no art. 371.º do Código Civil quanto à força probatória dos documentos autênticos, devendo tal facto ser alterado na matéria de facto provada, com a desanexação posterior, por expropriação, de uma parcela com 1.342 m2, pelo que ficou com a área de 2.458 m2.
6ª- A sentença incorre em erro de julgamento da matéria de facto, ao apoiar-se em prova testemunhal inidónea e desconsiderar documentos com força probatória vinculativa, em afronta ao art. 607.º, n.º 5 e art. 640.º do CPC, sendo devida a reapreciação da prova pela Relação nos termos do art. 662.º do CPC.
7ª- A área do prédio do autor foi reduzida por expropriação à EMP01... em 2002, formalizada por escritura pública, conforme documentos juntos aos autos, sendo a omissão desse facto relevante violadora do princípio da verdade material (art. 5.º, n.º 1 do CPC), afectando directamente a eficácia da decisão de restituição.
8ª- A sentença baseou-se exclusivamente na planta da EMP01... de natureza administrativa, sem força delimitadora definitiva no domínio do direito privado, o que viola os princípios da imparcialidade (art. 410.º do CPC) e do contraditório (art. 3.º do CPC), pela ausência de perícia técnica topográfica contraditória.
9ª- Não há definição dos critérios técnicos para colocação de marcos (art. 1354.º do Código Civil), nem identificação precisa dos vértices divisórios do prédio do autor, o que impede a eficácia da decisão em sede de acção de demarcação, a qual exige rigor quanto à identificação das estremas.
10ª- Não resultou provado de forma suficiente que a ré tenha invadido efectivamente o prédio do autor, nem se apurou a área, localização, ou valor do alegado prejuízo, em violação dos artigos 483.º e 566.º do Código Civil, razão pela qual é indevida a condenação indemnizatória até €15.000,00.
11ª- Nos termos dos arts. 195.º e 607.º do CPC, deve ser declarada a nulidade da sentença por omissão de diligências essenciais (perícia técnica), e ordenada nova instrução com produção de prova pericial para correcta avaliação da área dos prédios e do eventual dano reclamado.
12ª- A distribuição de custas fixada em 9/10 a cargo da ré é desproporcional e injustificada, contrariando os princípios da equidade e da causalidade processual (art. 527.º do CPC), sendo a ré quem mais contribuiu para a obtenção da prova e elementos técnicos relevantes.
No caso de ser entendido que a ré deve ser condenada em custas, deverá ser em percentagem sempre inferior aquelas a fixar ao autor.
13ª- Em consequência, deve ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a sentença na parte em que condena a ré à restituição e à indemnização, ou, subsidiariamente, anulada a decisão com reabertura da instrução, para produção de prova pericial nos termos dos artigos 195.º, 607.º, 615.º, 640.º e 662.º do CPC e com reapreciação da matéria de facto com base em prova documental vinculativa.

O autor apresentou contra-alegações, sustentando a improcedência do recurso.

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, as questões a decidir consistem em saber:
a) A sentença recorrida padece de omissão de pronúncia (art. 615º,1,d CPC), por não indicar com precisão os limites do prédio do autor, omitindo as coordenadas dos lados norte, sul e poente, tornando inexequível a restituição decretada, violando ainda o princípio da executabilidade da sentença (art. 607º,4 CPC);
b) nos termos dos arts. 195º e 607º CPC, deve ser declarada a nulidade da sentença por omissão de diligências essenciais (perícia técnica) para correcta avaliação da área dos prédios e do eventual dano reclamado.
c) ocorreu erro no julgamento da matéria de facto;
d) a justeza da condenação em custas;

III
A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:

A. O autor é o exclusivo dono e possuidor do prédio rústico composto por terreno de mato e lenha, situado no lugar de ..., na freguesia ..., do concelho ..., que confronta do sul com BB (a ré), do nascente com Ribeiro ... e do poente com caminho, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...11 / freguesia ..., com inscrição de aquisição no registo a favor do autor pela ap. ... de 12.03.1996 e inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo n.º ...88.
B. Tal prédio veio ao património do autor, em raiz ou nua propriedade, por sucessão de seu pai DD, em partilha da respectiva herança, levada a efeito no Processo de Inventário n.º 144/1992, que correu termos pelo ... Juízo do Tribunal Judicial de Ponte de Lima (extinto), que foi homologada por sentença de 21.01.1994, já transitada em julgado, no qual esse prédio foi relacionado na verba n.º 45.
C. O usufruto vitalício desse prédio foi adjudicado à mãe do Autor, EE, nessa mesma partilha.
D. A qual faleceu em ../../2008.
E. O autor por si, desde a aquisição por partilha, e em continuação dos antecessores desde o óbito destes, detém e usa esse prédio com exclusividade e ininterruptamente há mais de 30 anos.
F. Dele retirando as utilidades e proveitos que entende retirar, colhendo e fazendo seus os respectivos frutos e produtos, abatendo a aproveitando para si, ou vendendo a madeira e o mato existente, pagando os respectivos impostos.
G. Tudo isso à vista, com o conhecimento e reconhecimento de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja, como de coisa sua se tratasse e com a convicção de que exerce um direito próprio, por ser seu dono.
H. Por sua vez, a ré BB é exclusiva dona e possuidora do prédio rústico constituído por terreno de mato e lenha, situado no lugar de ..., na freguesia ..., do concelho ..., a confrontar de norte com AA (o autor), do sul com a proprietária, do nascente com Ribeiro ... e do poente com caminho, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...10 /freguesia ..., com inscrição a favor da Ré pela apresentação n.º 421, de 07.10.201 e inscrito na respectiva matriz predial rústica no artigo n.º ...89.
I. A ré adquiriu esse prédio por compra a CC.
J. Por sua vez, esta CC havia-o adquirido por sucessão, no Processo de Inventário e na partilha acima referidos no artigo 3.º, no qual esse seu prédio foi relacionado na verba n.º 46.
K. O prédio do Autor e o da Ré confinam entre si, sendo o prédio do Autor pelo seu lado sul e o prédio da Ré pelo seu lado norte.
L. A linha divisória ou de demarcação entre o prédio do autor e o prédio da ré, actualmente, não está assinalada com marcos ou quaisquer outros sinais ou elementos identificadores.
M. A ré, sem conhecimento prévio e sem o consentimento do autor, procedeu ao corte/abate raso e total das árvores que povoavam toda a área do prédio.
N. E nele procedeu a uma plantação de eucaliptos, também em toda a sua área.
O. O prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo n.º ...88, que tem forma próxima de um trapézio rectangular, é delimitado, a nascente, pelo traçado que liga os vértices identificados – na planta à escala numérica 1:1500 junta aos autos em formato pdf por e-mail de 9 de Abril de 2024 – sob os pontos 1 (391) e 17, georreferenciados, respectivamente, pelas coordenadas -...10.99 e ...51.17 (vértice nascente/norte) e -...91.24 e ...16.89 (vértice nascente/sul) do Sistema de Referência Terrestre Europeu - ..., estando o vértice com o ponto 391 também identificados na planta (parcelar) à escala 1:2000 junta em citius a 16.2.2024.
P. Partindo dessas coordenadas a nascente, o prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo n.º ...88 tem a exacta delimitação com desenho em trapézio rectangular identificado na planta (parcelar) à escala 1:2000 junta em citius a 16.2.2024, constituindo os lados paralelos a delimitação norte e sul do prédio.
Q. O prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo n.º ...89 tem também forma próxima de um trapézio rectangular, é delimitado, a nascente, pelo traçado que liga os vértices identificados – na planta à escala numérica 1:1500 junta aos autos em formato pdf por e-mail de 9 de Abril de 2024 – sob os pontos 17, 16, 15 e 14, georreferenciados, respectivamente, pelas coordenadas -...91.24 e ...16.89 (vértice nascente/norte); -...81.58 e ...00.69(389); -...86.34 e ...97.11 (387); e -...70.63 e ...62.12(385), (vértice nascente/sul) do Sistema de Referência Terrestre Europeu - ..., estando o vértice com os pontos 389, 387 e 385 também identificados na planta (parcelar) à escala 1:2000 junta em citius a 16.2.2024.
R. Partindo dessas coordenadas a nascente, o prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo n.º ...89 tem a exacta delimitação com desenho em trapézio rectangular identificado na planta (parcelar) à escala 1:2000 junta em citius a 16.2.2024, constituindo os lados paralelos a delimitação norte – sul do prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo n.º ...88 – e sul do prédio.

Factos não provados com interesse para a discussão da causa

1. O prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo n.º ...88 tem 3800 m2 de área e confronta de norte com FF.
2. O prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo n.º ...89 tem 2260 m2 de área.
3. O prédio identificado em A, antes da actuação referida em M, somente possuía vegetação densa constituída por mato, ramificação de acácias e austrálias, tudo sem qualquer valor económico.

IV
Conhecendo do recurso.
IV- 1. As primeiras questões suscitadas consistem em saber se a sentença recorrida é nula, porque:
a) padece de omissão de pronúncia (art. 615º,1,d CPC), por não indicar com precisão os limites do prédio do autor, omitindo as coordenadas dos lados norte, sul e poente, tornando inexequível a restituição decretada, violando ainda o princípio da executabilidade da sentença (art. 607º,4 CPC);
b) por omissão de diligências essenciais (perícia técnica) para correcta avaliação da área dos prédios e do eventual dano reclamado ?

A resposta tem de ser negativa.
A não produção de um determinado meio de prova, ou a fixação errada ou incompleta da matéria de facto não dá lugar a nulidade. Pode ser uma decisão certa ou errada, consoante tal meio de prova fosse ou não importante para decidir a matéria de facto, podendo ser alterada em via de recurso, mas nada tendo a ver com a figura das nulidades da sentença, prevista no art. 615º CPC.
Costumamos nestas ocasiões citar o físico alemão Wolfgang Pauli que, confrontado com um trabalho científico dúbio, comentou, irritado: “isto não está certo; isto nem sequer está errado !”
Pensamos ser assim que devem ser vistas as nulidades da sentença: são vícios que nada têm a ver com o acerto substancial da decisão, mas antes atingem a estrutura interna e formal da decisão, tornando-a imprópria ou inadequada para poder decidir a substância do litígio. São vícios lógica e racionalmente prévios à apreciação da substância, que impedem que esta possa ser analisada e criticada, seja pelas partes, seja pelo Tribunal de recurso.
Assim, estas chamadas “nulidades” são sempre vícios de forma, que tornam a sentença incompreensível ou contraditória em si mesma, mas não podem nem devem (o que acontece a um ritmo impressionante na prática) ser confundidas com erros de julgamento ou de substância.

Assim, não ocorrem as nulidade suscitadas.

O que não quer dizer que não existam os erros de julgamento apontados pela recorrente, do que trataremos a seguir.

IV- 2. Impugnação da decisão sobre matéria de facto

Questão prévia
A recorrente afirma que “a sentença não indica com precisão os limites do prédio do autor, omitindo as coordenadas dos lados norte, sul e poente, tornando inexequível a restituição decretada, violando ainda o princípio da executabilidade da sentença (art. 607.º, n.º 4 do CPC). Por outro lado, foi dado como não provado que o prédio do autor tem 3.800 m², área esta constante da matriz e da verba do inventário (prova documental: caderneta predial e certidão de inventário). Sucede ainda que a área do prédio do autor foi reduzida por expropriação pela EMP01... em 2002, formalizada por escritura pública, conforme documentos juntos aos autos, sendo a omissão desse facto relevante violadora do princípio da verdade material (art. 5.º, n.º 1 do CPC), afectando directamente a eficácia da decisão de restituição”.

Vejamos.
Na petição inicial o autor alega que o seu prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...11 e na matriz predial sob o art. ...88 tem a área de 3800 m2. Não faz qualquer referência a expropriação de parte do seu prédio.

Na contestação, a ré alegou que por escritura pública de “compras e vendas” outorgada no dia 24.05.2002 no Cartório Notarial ..., o autor vendeu ½ da raiz e ½ da propriedade plena e a sua mãe EE, ½ do usufruto, à empresa “EMP01..., S.A.”, uma parcela de terreno com a área de 1.342 m2, a destacar do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ...88º, pelo preço global de € 2.718,42. Daqui resulta, afirma a ré, que o prédio do autor inscrito na matriz sob o artigo ...88 tem a área de 2.458 m2.
Junta escritura pública comprovativa do que afirma.

Ora, o pedido que o autor formula ao Tribunal é, em primeiro lugar, ser declarado legítimo e exclusivo dono e possuidor do prédio acima descrito no artigo 1º, e declarado o direito a que esse prédio lhe seja restituído pela Ré, reconstituindo, à sua custa, a situação do mesmo antes de ser por esta ocupado e detido; ser declarado o seu direito a que sejam definidos e determinados o limite, a linha divisória e a demarcação do seu prédio, em questão, na sua confrontação pelo lado sul, com o prédio da Ré acima descrito. E condenar-se a ré a restituir ao Autor o prédio deste, com a área e os limites que vierem a ser estabelecidos na presente acção, e a concorrer para a demarcação das extremas entre os seus respectivos, além do mais.
Daqui resulta que o autor formula os pedidos típicos de uma acção de reivindicação e de uma acção de demarcação. E não o faz de forma subsidiária, mas sim cumulativa.
A ré não suscitou a questão da admissibilidade da cumulação destes dois pedidos.
Mas o seu conhecimento é oficioso (art. 186º,2,c e 196º CPC).
E apesar de a questão ser muito debatida, havendo decisões jurisprudenciais nos dois sentidos, não vemos que haja qualquer obstáculo em estes dois pedidos terem sido formulados no mesmo processo.  Na jurisprudência, seguem esta posição, por exemplo, o Acórdão do TRE de 30.3.2023 (Ana Pessoa) e o Acórdão do TRP de 17.5.2022 (Fernando Vilares Ferreira). Na doutrina, podemos citar Urbano Lopes Dias (Da não incompatibilidade entre os pedidos de reivindicação e de demarcação - Breve comentário ao acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no processo 768/21.0T8CVL.C1, em 15/02/2022), publicado no “Blog do Instituto Português do Processo Civil (IPPC), que escreve: “ao contrário do que decidiram as instâncias, os AA. apenas se limitaram a pedir a demarcação dos prédios e, na sequência da procedência da sua pretensão, pediram que os RR. fossem condenados a retirarem os pertences da parcela indevidamente ocupada; não havia motivo algum a impedir o prosseguimento da lide. Ao contrário do sumariado e decidido, o pedido de demarcação não é substancialmente incompatível com o pedido de reivindicação; acresce que, actualmente, nem incompatibilidade processual existe entre os dois referidos pedidos”.

E finalmente, citamos ainda Miguel Teixeira de Sousa, em comentário ao acórdão do TRG, de 25.03.2019 (P. 3279/19.0T8BRG-B-G1): “(…) a interessante questão que ele [acórdão] suscita é a de saber se o pedido de reivindicação e o pedido de demarcação são substancialmente incompatíveis. É claro que os fundamentos de cada um dos pedidos são distintos. No entanto, isto não chega para entender que há uma incompatibilidade substancial entre o pedido de reivindicação e o pedido de demarcação. Se o prédio for reivindicado ao proprietário de um prédio confinante, não é impossível entender que o reivindicante pode formular não só o pedido de reivindicação, mas também o de demarcação. A incompatibilidade substancial entre os pedidos ocorre quando ambos se excluem mutuamente. Não é o caso do pedido de reivindicação e do pedido de demarcação. Em vez de se excluírem mutuamente, esses pedidos completam-se entre si, dado que o que se reivindica é o que resulta da demarcação a realizar entre os prédios confinantes”. Também no comentário ao acórdão do TRP de 13.07.2021 (500/20.6T8ALB.P1) o mesmo autor escreve: “coloca-se uma pergunta muito simples: o que deve fazer alguém que se considera proprietário de um terreno, mas que tem dúvidas quanto à sua demarcação perante o terreno vizinho de que é titular o demandado? Segundo a orientação da RP, o que o reivindicante deve fazer é ignorar quaisquer dúvidas sobre as estremas dos prédios e reivindicar o prédio com a dimensão que julga ser a verdadeira. "Depois logo se verá". Segundo uma outra orientação, o reivindicante deve reivindicar o prédio contra o vizinho e, porque tem dúvidas quanto às estremas dos respectivos prédios, não deixar de, de acordo com uma litigância aberta e clara, as referir e, em consequência, cumular o pedido de demarcação. Porque esta solução é muito mais transparente, não pode deixar de ser esta a solução preferível. Resta acrescentar que não há nenhuma incompatibilidade substantiva entre o pedido de reivindicação e o pedido de demarcação: a reivindicação define a titularidade de prédio; a demarcação define, quando tal seja necessário, a extensão do prédio. Assim, é perfeitamente admissível reivindicar o que resultar da demarcação”.

Dito isto, verifica-se que, na sentença, não consta dos factos provados a área do prédio do autor e a área do prédio da ré. O Tribunal deu como não provado que o prédio do autor tivesse 3800 m2 de área e que o prédio da ré tivesse 2260 m2. Mas não fixou qual a área real dos prédios. Ora, a prova da área do prédio reivindicado é, cremos que de forma pacífica, um elemento essencial para a decisão da acção. Sem ela, estar-se-á a mandar devolver o quê ? Quantos metros quadrados ?

No segmento decisório verifica-se que o Tribunal declara o autor proprietário do prédio reivindicado, fixa-lhe as confrontações a sul, a nascente e a poente, mas já não a norte. E condena a ré a restituir o prédio identificado ao autor.
O problema, que a recorrente bem expõe, é que o prédio do autor não está devidamente identificado, pois a matéria de facto não contém a sua área nem a sua confrontação a norte. E assim, fica-se sem saber exactamente qual é a exacta parcela da superfície terrestre que a ré tem de restituir ao autor. O que tem as mais graves repercussões em matéria de execução da decisão.
O que a sentença recorrida fez foi identificar os limites do prédio do autor pelo traçado que retirou da planta à escala numérica 1:1500 junta aos autos em formato pdf por e-mail de 9 de Abril de 2024, e também da planta (parcelar) à escala 1:2000 junta ao citius a 16.2.2024. Sucede que, como refere a recorrente, e resulta do email enviado pela EMP01... ao Ilustre Mandatário da recorrente e junto aos autos em 13.5.2025, “os projectos de expropriações considerarem exclusivamente as coordenadas dos vértices definidores da poligonal de expropriação, pelo facto não dispomos das coordenadas dos marcos de propriedade que delimitam a poligonal do prédio restante”.
Ainda, nos factos provados não é feita uma única referência à expropriação que amputou parte do prédio do autor.
Não olvidamos que o Juiz da causa foi ao local, e consignou que “como presencialmente se pôde constatar (e também se alcança das fotografias juntas com a contestação da ré), o local das propriedades de autor e ré é muito acidentado, constituído por arvoredo denso, de grande porte, agora, aparentemente, com predominância do eucalipto. Ademais, a ré, nos articulados, e as testemunhas, seus filhos, em audiência, reconhecem a alteração do estado do terreno naquele local, por via do abate e arraso do que por lá se encontrava e plantação de eucalipto. Nestas circunstâncias, reconhecer, no local, a configuração original de prédios seria, em princípio, tarefa hercúlea, se não mesmo impossível”.
E, finalmente, a sentença recorrida ignorou completamente o pedido do autor de declaração judicial de qual a linha divisória de demarcação do seu prédio com o prédio da Ré acima descrito, e o pedido de condenação da Ré a concorrer para a demarcação das extremas entre os seus respectivos prédios, nos termos e condições acima enunciados nos artigos 23º e 24º.
Ora, a presente acção segue os termos do processo comum de declaração, sendo que, como vimos, um dos pedidos é um típico pedido de demarcação de prédios contíguos.
A lei estabelece por isso regras sobre o modo como a demarcação deve ser feita (art. 1354º CC). No caso de haver litígio entre os proprietários confinantes, a questão é dirimida judicialmente. Na versão anterior à reforma de 1995/96, o Código de Processo Civil reservava para o efeito um meio processual próprio, a acção de demarcação, que constituía uma modalidade das chamadas acções de arbitramento, previstas no art. 1052º, com as particularidades do art. 1058º. Aquele meio foi abolido nessa reforma, devendo os interessados recorrer à acção declarativa comum e sendo as questões nela levantadas objecto de prova pericial[2].
A demarcação judicial, na falta de acordo é feita nos termos do art. 1354º CC.

Resumindo e concluindo.

Dispõe o art. 662º,2 CPC que a Relação “deve ainda, mesmo oficiosamente: c) anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta.
Salvo melhor opinião, e por tudo o que dissemos, estamos perante situação em que é essencial a ampliação da matéria de facto, com vista a determinar a área do prédio do autor e definir com precisão a parcela da superfície terrestre que o mesmo ocupa, para depois, e só depois, poder apreciar o pedido de demarcação dos dois prédios.
Importa pois anular a sentença, devendo a audiência de julgamento ser reaberta, para, entre outra que seja considerada pertinente, produzir prova pericial que permita de uma vez por todas fixar a área do prédio reivindicado, determinar o exacto local da superfície terrestre onde o mesmo está situado, e proceder à demarcação com o prédio da ré.

Sumário:


V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso parcialmente procedente, e em consequência:
a) anula a sentença recorrida;
b) determina a reabertura da audiência a fim de ser produzida prova pericial e eventualmente outra que se entenda pertinente, destinada a completar a matéria de facto provada nos termos supra expostos e a proceder à demarcação dos prédios de autor e ré.

Custas pelo vencido a final.

Data: 30.10.2025
 
Relator
(Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto (Paulo Reis)
2º Adjunto (Maria dos Anjos Melo Nogueira)


[1] Aqui existe um manifesto lapso de escrita, não controvertido, pois é pacífico que o prédio da ré está inscrito na matriz sob o artigo ...89 (H dos factos provados). Será corrigido no sítio próprio.
[2] Lições de direitos reais, Luís Carvalho Fernandes, 4ª edição