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DEFERIMENTO DA DESOCUPAÇÃO
IMÓVEIS ARRENDADOS
MERO DETENTOR
Sumário
I – Não é de reconhecer o direito ao diferimento da desocupação de imóveis arrendados, nos estreitos termos definidos pelas als. a) e b) do nº 2 do art.º 864º, do NCPC, aos meros detentores do imóvel condenados à sua restituição por sentença transitada em julgado, ainda que relativamente a eles se verifiquem “razões sociais imperiosas” e cumpram algum dos critérios previstos nas referidas alíneas.
Texto Integral
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães I. Relatório
AA,AA, BB, CC e DD
instauraram execução de sentença para entrega de coisa certa contra EE,
tendo apresentado, como título executivo, a sentença proferida, em 29.07.2024, no processo que, sob o nº 75/18.6T8VVD, correu termos no Juízo Local Cível de Vila Verde do Tribunal Judicial da Comarca de Braga.
Citada, veio a executada, por requerimento de 25.06.2024, deduzir incidente de diferimento da desocupação do locado, ao abrigo do disposto no art.º 864º, do NCPC, tendo ainda requerido a suspensão da execução, nos termos do disposto no art.º 863º, do mesmo compêndio legal.
Fundamenta a sua pretensão no facto de ser portadora de doença incapacitante em grau superior a 60%, argumentando ainda que a saída imediata do imóvel é susceptível de lhe acarretar graves consequências na saúde.
Notificados, os exequentes opuseram-se, defendendo que o presente incidente não tem fundamento legal, alegando que a executada não é arrendatária, ocupando o imóvel desde 2013 sem qualquer título e impugnando que a executada seja portadora de uma deficiência de grau superior a 60%.
Por decisão proferida em 28.07.2025, foi indeferida a pretensão da executada.
Inconformada, a executada recorreu da aludida decisão, concluindo as suas alegações da seguinte forma:
“1. Nos autos de execução, o tribunal notificou a executada para que esta, querendo, nos termos do disposto no art.º 864º do CPC e no mesmo prazo da oposição à execução, viesse requerer o deferimento da desocupação do imóvel.
2. Dentro do referido prazo, a executada embargou, e deduziu pedido de deferimento da desocupação do imóvel arrendado.
3. Além disso, a executada, fazendo uso do disposto no art. 863º nº 1 do CPC, e uma vez que tinha efetivado o pedido de deferimento da desocupação do imóvel, pediu ainda a suspensão da execução, assim cumprindo os requisitos dessa norma.
4. O tribunal, de forma incorreta, entendeu que a executada estava a pedir a suspensão da execução com base no disposto nos nºs 2, 3, 4 e 5 do mesmo art.º 863º do CPC.
5. A executada apenas fez menção ao nº 1 do art.º 863º do CPC, porque é precisamente esta norma que possibilita a suspensão da execução, por via da apresentação do pedido de deferimento da desocupação do imóvel.
6. A executada não tinha de juntar ao seu pedido os documentos referidos no art.º 863º nº 2 a) e b) do CPC,
7. E não é aplicável ao caso em apreço o disposto nos nºs 3, 4 e 5 do art.º 863º do CPC.
8. A sentença recorrida confunde os casos em que a execução se suspende, quando perfilha o entendimento que o art.º 863º do CPC não permite esse efeito porque a executada não observou os requisitos dos nºs 3, 4 e 5.
9. A sentença recorrida não considerou, como devia, que a suspensão da execução da execução, prevista no nº 1 do art.º 863 do CPC, não está dependente da verificação dos pressupostos indicados nos nºs 3, 4 e 5 desta mesma norma, mas apenas da apresentação do requerimento para o deferimento da desocupação do imóvel.
10. E a sentença recorrida também, não atendeu, como devia, ao facto de ter sido a cessação do contrato de arrendamento primitivo que que veio a dar causa à necessidade da apresentação do pedido de deferimento da desocupação do imóvel, porque a decisão que validou essa cessação ainda não transitou em julgado.
11. A sentença recorrida incorre em nova confusão quando argumenta que a suspensão da execução prevista no art.º 863 nºs 3, 4 e 5 do CPC não é aplicável à situação dos autos, para logo de seguida, fundamentando, nos diz que a executada não apresentou os documentos exigidos no nº 3.
12. Ora, se não se aplica não se percebe e necessidade da fundamentação da sentença ao invocar a falta de cumprimento pela executada das exigências do nº 3 do art.º 863º do CPC. É um contrassenso.
13. Não faz qualquer sentido que a sentença recorrida, ao invocar o art.º 864 do CPC, na tentativa de o considerar não aplicável para a executada, apenas se refira à alínea a) do nº 2, ou seja, a hipótese de a execução ter como título uma sentença por falta de pagamento de rendas.
14. A situação dos autos é indiscutivelmente a que se prevê na alínea b) desse mesmo artigo, que se verifica.
15. O que está em causa na ação declarativa, e subjacente na execução, é mesmo a caducidade, ou não, do contrato de arrendamento de que era titular a mãe da executada, e que se transmitiu a esta, não obstante o entendimento contrário da sentença no processo declarativo.
16. A sentença recorrida não vislumbra que, nos termos do art.º 864º do CPC., é possível deferir o pedido de desocupação do imóvel sem conceder a suspensão da execução,
17. E, consequentemente, também não faz a correta interpretação do art.º 863º do CPC no sentido de que aqui apenas se regula a suspensão da execução, sendo que, da conjugação do seu nº 1 com o art.º 864º do CPC, se prevê a possibilidade dessa suspensão, apenas por via da apresentação do pedido de deferimento da desocupação do imóvel.
18. E, em ambos os casos, art.º 863º nº 1 e art.º 864º, estamos perante arrendamentos para habitação, sendo incorreta a ideia de que a primeira norma se aplica exclusivamente aos imóveis arrendados e a segunda aos não arrendados.
19. A executada pediu o deferimento da desocupação do imóvel, alegando os motivos previstos no nº 1, e juntando os documentos que comprovam a situação de saúde indicada no nº 2 al. b), tudo de acordo com as exigências legais.
20. E, invocando o disposto no nº 1 do art.º 863º do CPC, pediu a suspensão da execução, novamente de acordo com os requisitos legais.
21. O entendimento vertido na sentença, com a errada interpretação que fez dos arts. 863º e 864º do CPC, impede de forma ilegal que a executada possa fazer o pleno uso de um direito processual que a lei lhe confere, ou seja, o direito de pedir o deferimento da desocupação do imóvel arrendado, e de juntar a isso a suspensão da execução, tudo porque a sentença recorrida se perdeu em inúmeras confusões, tal como supra se salientou, sobre o regime legal aplicável, caindo numa contradição, nomeadamente quando censura a executada por não cumprir os pressupostos dos nºs 3, 4 e 5 do art. 863º do CPC, e ao mesmo tempo afirmar que esta norma não se lhe aplica.
22. Esta consequência nefasta para a executada significa uma obstrução ilegal de um direito, o que, só por si, envolve uma grosseira violação de princípios fundamentais do texto constitucional, como sejam os princípios da universalidade, da igualdade, da força jurídica dos preceitos constitucionais e do acesso ao direito, tal como se os mesmos são definidos nos arts. 12º nº 1, 13º nº 1, 18º nº 1 e 20º nº 1 da CRP.
23. Pelo que, desde já se invoca a inconstitucionalidade da interpretação que a sentença recorrida faz do sentido e dos efeitos das disposições dos arts. 863º e 864º do CPC, no caso em apreço.
24. Porque se trata da casa de habitação da executada, e esta está na sua posse, deve ser atribuído efeito suspensivo ao recurso, nos termos do disposto no art.º 647º nº 3 b) do CPC.”.
Foram apresentadas contra-alegações pelos exequentes, pugnando pela improcedência do recurso.
O tribunal recorrido admitiu o recurso de apelação, a subir em separado e com efeito devolutivo.
Recebidos os autos, foi solicitada e junta aos presentes autos informação sobre o trânsito em julgado da sentença dada à execução.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. Delimitação do objecto do recurso e questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da apelante, tal como decorre das disposições legais dos art.ºs 635º, nº 4 e 639º do NCPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º nº 2 do NCPC). Por outro lado, não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº 3 do citado diploma legal).
Tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, importa analisar e decidir se deve ser concedido à ora recorrente o diferimento da desocupação do imóvel objecto da acção executiva apensa, por estarem reunidos os pressupostos estabelecidos no art.º 864º, do NCPC e, em consequência, ser suspensa a acção executiva.
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III. Fundamentação
3.1. Fundamentos de facto
Como factualidade relevante interessa aqui ponderar os trâmites processuais consignados no relatório do presente acórdão.
Ter-se-á ainda em consideração o teor da factualidade apurada na decisão recorrida que se passa a transcrever:
“1. AA e marido FF instauraram contra EE a presente Execução de Sentença para Entrega de Coisa Certa, oferecendo à execução a sentença proferida, em 29/07/2024, no processo que, sob o n.º 75/18.6T8VVD, correu termos no Juízo Local Cível de Vila Verde do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, a qual se mostra pendente de recurso ao qual foi atribuído efeito meramente devolutivo (ver despacho proferido nos autos declarativo em 11-12-2024).
2. Na sentença exequenda foi decidido, ao que ora interessa:
«6.1. Declarar a caducidade do contrato de arrendamento por morte da arrendatária GG.
6.2. Condenar a Ré a restituir o prédio urbano composto por morada de casa térreas com cinco divisões para habitação e quintal, sito na Rua ..., freguesia ... (...), no concelho ..., inscrita na matriz sob o artigo ...34, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...12 da freguesia ..., aos Autores.»
3. Nessa sentença foram julgados provados os seguintes factos:
«3.1.1. O prédio urbano composto por morada de casa térreas com cinco divisões para habitação e quintal sito na Rua ..., freguesia ... (...), no concelho ..., inscrita na matriz sob o artigo ...34, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...12 da freguesia ..., encontra-se registada a favor do falecido Autor FF e AA pela inscrição AP. n.º 8 de 16/07/1982.
3.1.2. Em data não concretamente apurada mas não posterior ao ano de 1970, os antepossuidores do prédio referido em 3.1.1. deram-no de arrendamento ao pai da Ré HH, casado com GG.
3.1.3. O pai da Ré, HH faleceu em 1984, tendo a mãe da Ré, GG, mantido o arrendamento.
3.1.4. Em ../../2013, a mãe da Ré faleceu.
(…)
3.1.12. Aquando do falecimento da sua mãe a Ré vivia há mais de um ano no prédio referido em 3.1.1.
(…)
3.1.13. Aquando do falecimento da sua mãe a Ré era portadora de deficiência, com um grau de incapacidade superior a 60%.”.
Para além da factualidade descrita na decisão recorrida, acrescenta-se a seguinte que consta da informação colhida junto da acção declarativa e da consulta electrónica do processo de execução apenso:
a- A sentença proferida nos autos de acção de processo comum que correu termos sob o nº 75/18.6T8VVD, transitou em julgado em 14.07.2025;
b- A acção executiva apensa deu entrada em juízo em 23.05.2025, tendo o agente de execução, em 4.06.2025, procedido à remessa de uma carta registada, com aviso de recepção, para citação da executada, sem despacho judicial prévio, constando da respectiva nota de citação os seguintes termos:
“Fica V. Exa citado, nos termos do artigo 859º do Código Processo Civil (CPC), para, no prazo de 20 (vinte) dias, fazer a entrega indicada no requerimento executivo ou opor-se à execução mediante embargos.
Caso entenda estarem reunidos os requisitos previstos no artigo 864º do CPC dentro do prazo de oposição à execução, o executado pode requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três.”.
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3.2. Fundamentação de direito
No presente recurso está em causa uma decisão do tribunal recorrido que indeferiu o requerimento da executada, que esta denominou de “Diferimento de desocupação de imóvel arrendado para habitação”, ao abrigo do art.º 864º, do NCPC.
Na aludida decisão, o tribunal recorrido entendeu não só que a executada não beneficia do regime previsto no art.º 864º, do NCPC – aplicável apenas a imóveis arrendados -, como ainda que a executada não comprovou ser portadora de doença aguda, não estando observados no caso os pressupostos para o deferimento do pedido de suspensão da execução, ao abrigo do disposto no art.º 863º, nºs 3 a 5, do NCPC.
A recorrente insurge-se contra o assim decidido, dizendo que o tribunal a notificou para, querendo, nos termos do disposto no art.º 864º do CPC e no mesmo prazo da oposição à execução, requerer o deferimento da desocupação do imóvel, o que fez e dentro do referido prazo.
Mais diz que o tribunal recorrido não percepcionou de forma correcta a sua pretensão, argumentando que não pediu a suspensão da execução com base no disposto nos nºs 3 a 5, do art.º 863º, do NCPC, mas apenas com fundamento no disposto no nº 1, do mesmo normativo legal, o qual possibilita a suspensão da execução por via da apresentação do pedido de diferimento da desocupação do imóvel.
Conclui, assim, que a situação dos autos deve ser apreciada e enquadrada no disposto no art.º 864º, do NCPC, devendo ser diferida a desocupação do imóvel e suspensa a execução, nos termos do art.º 863º, nº 1, do NCPC.
Vejamos, então.
Efectivamente, nos termos do disposto no art.º 863º do NCPC a execução que tem por objecto a entrega de imóvel arrendado ao executado suspende-se:
1) quando o executado requerer o diferimento da desocupação do local arrendado para habitação, motivada pela cessação do respectivo contrato, nos termos do disposto no art.º 864º do NCPC – art.º 863º, nº 1; ou
2) quando se mostre, por atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução, que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda – art.º 863º, nº 3.
No caso previsto no art.º 863º, nº 3 do NCPC – isto é, quando se mostre por atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução, que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local por razões de doença aguda – o agente de execução lavra certidão da ocorrência, junta os documentos exibidos e adverte o detentor, ou a pessoa que se encontra no local, de que a execução prosseguirá salvo se, no prazo de 10 dias, solicitarem ao juiz a confirmação da suspensão, juntando ao requerimento os documentos disponíveis, dando do facto imediato conhecimento ao exequente ou ao seu apresentante. E o executado – ainda que não seja a pessoa cuja saúde justifica a suspensão das diligências executórias – tem o ónus de requerer ao juiz de execução a confirmação da suspensão dessas diligências, no prazo de 10 dias (art.º 863º, nº 4, do NCPC). Seguidamente, no prazo de cinco dias, o juiz da execução, ouvido o exequente, decide manter a execução suspensa ou ordena o levantamento da suspensão e a imediata prossecução dos autos (art.º 863º, nº 5, do NCPC).
Diferentemente, o diferimento da desocupação do local arrendado para habitação, previsto no art.º 864º do NCPC, funda-se em “razões sociais imperiosas”, a saber, a carência de meios do arrendatário (art.º 864º, nº 2, al. a), do NCPC) ou no facto de o arrendatário ser portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60% (art.º 864º, nº 2, al. b), do NCPC).
A petição de diferimento da desocupação, se não for indeferida liminarmente ao abrigo do disposto no art.º 865º, nº 1, do NCPC, é notificada ao exequente, que a pode contestar no prazo de 10 dias, após o que o juiz decide no prazo de 20 dias a contar da sua apresentação (art.º 865º, nº 2, do NCPC).
O diferimento da desocupação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, o qual deverá ter em conta, para além das exigências da boa-fé, as circunstâncias previstas no corpo do art.º 864º, nº 2, do NCPC.
Deste modo, a lei distingue a suspensão das diligências executórias a cargo do agente de execução – prevista no art.º 863º, nºs 3 a 5 - do incidente de diferimento da desocupação do imóvel a decidir pelo tribunal – previsto no art.º 864º -, sendo que esta última situação conduz à suspensão da execução.
A lei prevê ainda situações em que, excepcionalmente, pode haver lugar à suspensão da entrega do imóvel que constitui a casa de habitação do executado, mesmo que este não seja arrendatário.
Com efeito, o art.º 861º do NCPC que se refere à entrega da coisa, estabelece no seu nº 6: “Tratando-se da casa de habitação principal do executado, é aplicável o disposto nos n.ºs 3 a 5 do artigo 863.º e, caso se suscitem sérias dificuldades no realojamento do executado, o agente de execução comunica antecipadamente o facto à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes.”.
O legislador distingue, pois e igualmente, a protecção a conferir ao executado nos casos do imóvel que constitui a sua habitação ser arrendado ou não, sendo que em ambos os casos foi estabelecida uma regulamentação da protecção do executado que tem de entregar o imóvel onde reside, fundamentada em razões sociais, ainda que em moldes diferentes.
Regressando ao caso em apreço, constatamos que:
- o pedido da apelante formulado no requerimento que foi objecto de decisão no despacho sob recurso consistiu expressamente no diferimento da desocupação do imóvel;
- naquele seu requerimento a executada não só denomina o incidente como “diferimento da desocupação do imóvel” como invoca expressamente o regime legal correspondente, invocando que tem uma incapacidade comprovada superior a 60%; e
- o requerimento da executada não foi precedido de qualquer diligências de apreensão do imóvel pelo agente de execução, nem a executada juntou aos autos qualquer atestado médico reveladora de uma situação de risco para a vida, em consequência de doença aguda.
Ou seja, de uma interpretação do referido requerimento à luz das regras previstas nos art.ºs 236º e seguintes do CC, não se pode senão concluir que aquilo que a executada peticionou foi o diferimento da desocupação do imóvel e, por via, disso a suspensão da execução nos termos do nº 1, do art.º 863º, do NCPC.
Como se diz no ac. da RL de 9.05.2024 (processo nº 616/22.4T8CLD.L1, consultável in www.dgsi.pt), “[n]o actual regime processual civil, a interpretação dos articulados das partes deve ser efetuada com base nos princípios interpretativos aplicáveis às declarações negociais, valendo com o sentido que um declaratário normal lhes atribuiria, prevalecendo a substância sobre a forma, visando aproveitar ao máximo os atos praticados pelas partes, por forma a garantir o princípio da efetiva tutela jurisdicional, consagrado no artigo 20º da CRP, bem como a justa composição do litígio – cfr. art.ºs 295º, 236º, CC e 7º, nº 1, NCPC.”.
Assente que a executada apenas pretendeu deduzir o incidente de diferimento da desocupação do imóvel, haverá, pois, que ter em atenção que o julgador está vinculado ao princípio do pedido, isto é, a decisão proferida deve corresponder ao pedido formulado pelo autor/requerente, sob pena de nulidade da mesma (art.º 615º, nº 1, al. e), do NCPC).
Com efeito, é o autor/requerente, enquanto titular do interesse feito valer em juízo, quem melhor saberá o que pretende obter do recurso à via judicial, e é no pedido que expressa tal pretensão. Como se refere no sumário do ac. do STJ de 19.01.2017 (processo nº 873/10.9T2AVR.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt), “a decisão judicial, enquanto prestação do dever de julgar, deve conter-se dentro do perímetro objetivo e subjetivo da pretensão deduzida pelo autor, em função do qual se afere também o exercício do contraditório por parte do réu, não sendo lícito ao tribunal desviar-se desse âmbito ou desvirtuá-lo.”.
Isto posto, clarificado que está o sentido do requerimento apresentado pela executada e o regime abstratamente aplicável a tal pretensão, importa agora verificar se, em concreto, a situação dos autos se pode e deve enquadrar no regime previsto no art.º 864º, do NCPC, como pugna a recorrente.
Não é controverso que estamos perante uma execução que tem por objecto a entrega de um imóvel, à qual são aplicáveis as disposições previstas nos art.ºs 859º e seguintes do NCPC.
E, como vimos, o incidente de diferimento da desocupação do imóvel arrendado para habitação, tem lugar no âmbito da acção executiva, vindo o seu regime previsto no art.º 864º e seguintes, do NCPC.
Estabelece este art.º 864.º com a epígrafe “Diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação”, no seu nº 1: “No caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo para a oposição à execução, o executado pode requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar até ao limite de três.”.
É desta forma concedida ao arrendatário a faculdade de, no âmbito do procedimento executivo de entrega do imóvel arrendado para a sua habitação, solicitar o diferimento da desocupação do arrendado, por razões sociais imperiosas.
Estas razões sociais imperiosas estão densificadas no n.º 2 do art.º 864.º e contemplam a situação de carência de meios do arrendatário, presumindo-a quanto a beneficiários do subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção (al. a)) e a circunstância de se tratar de arrendatário com deficiência com grau de incapacidade comprovada igual ou superior a 60% (al. b)).
Em qualquer caso, o diferimento de desocupação do imóvel arrendado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa fé, a circunstância do arrendatário não poder dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas.
Por seu turno, o art.º 865º, nº 4 do NCPC estabelece que o diferimento da desocupação não pode exceder o prazo de cinco meses a contar da data do trânsito em julgado que o concede.
Constata-se assim, que o legislador veio consagrar um apoio, que é transitório, por razões sociais imperiosas que identifica, ao executado arrendatário que se apresenta com um grau de incapacidade elevada ou carência de meios económicos ou financeiros para suportar o pagamento da renda de um imóvel para habitação, estabelecendo em cinco meses, o prazo máximo para o diferimento da desocupação.
Tal como nos dizem Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo (in, A Acção Executiva Anotada e Comentada, p. 581): “Reflete aqui o legislador uma preocupação de harmonização prática dos dois direitos conflituantes em jogo: o interesse do executado em retardar a entrega do imóvel em causa e o interesse do senhorio em não ficar economicamente prejudicado com esse diferimento, tando mais que já dispõe de título que lhe concede a via para a entrega efectiva do imóvel.”.
Na situação em presença, porém, não podemos deixar de acompanhar o tribunal recorrido quando afirma que a situação em causa nos autos não se enquadra no regime previsto no art.º 864º do NCPC, uma vez que – de acordo com a sentença dada à execução e já transitada em julgado - não estamos perante a entrega de um imóvel arrendado para habitação.
Na acção declarativa onde foi proferida a aludida sentença considerou-se que a ora executada não era arrendatária, mas uma mera detentora do imóvel em questão.
E tal decisão que recaiu sobre a relação material controvertida entre as partes, uma vez transitada em julgado, tem força obrigatória dentro do processo e fora dele – cfr. art.º 619º, nº 1, do NCPC.
Por outro lado, não é inteiramente correcto dizer-se que a executada foi citada pelo tribunal para, querendo, deduzir o incidente de diferimento de desocupação do imóvel ao abrigo do disposto no mencionado art.º 864º, do NCPC.
Conforme decorre do acima exposto, a citação da executada foi efectuada pelo agente de execução, sem que tenha sido proferido despacho judicial prévio e na nota de citação apenas consta: “Caso entenda estarem reunidos os requisitos previstos no artigo 864º do CPC dentro do prazo de oposição à execução, o executado pode requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três.” (o sublinhado é nosso).
Ora, como se diz na decisão recorrida, o regime excepcional previsto no art.º 864º, do NCPC foi exclusivamente pensado para os imóveis arrendados ao executado, não se justificando que se aplique às execuções em que esteja pedida a entrega de imóveis não arrendados (para esses casos está prevista uma regulamentação de protecção ao executado distinta, como vimos supra).
Com efeito, apesar de frequentemente se colocar a questão de saber se este regime pode ser aplicado analogicamente ou por via de uma interpretação extensiva à entrega de um qualquer imóvel para habitação – não arrendado, desde que se verifiquem as mesmas razões de carência económica e social previstas naquela norma, a jurisprudência tem vindo invariavelmente a pronunciar-se de forma negativa.
Veja-se, a este respeito, o recentíssimo ac. da RL de 25.09.2025 (prolatado a propósito de uma situação com contornos semelhantes à dos presentes autos, no processo nº 1795/25.4T8FNC.L1, consultável in www.dgsi.pt) e toda a jurisprudência nele citado.
Com efeito, no elucidativo sumário do referido aresto pode ler-se o seguinte:
“I - O art.º 864º do NCPC, apresentando-se como norma excepcional, não é susceptível de aplicação analógica a outros contratos distintos do arrendamento (art.º 11 do CC) e bem assim, por maioria de razão, à execução fundada em sentença que decretou a entrega do imóvel ao Exequente, na sequência de acção declarativa de reivindicação. II – Na medida em que o diferimento de desocupação previsto nos artºs 864º e 865º do NCPC constitui um meio de tutela excepcional, estando reservado aos casos neles previstos, ou seja, de execução para entrega de casa de habitação arrendada, é inviável o recurso a interpretação extensiva daquele, na medida em que o legislador distinguiu cabal e expressamente as situações de arrendamento e todas as outras situações em geral em que se pretende a entrega de imóveis que constituam habitação do executado. III - Não detendo a qualidade de arrendatário ou insolvente, a quem o legislador entendeu conferir, de forma exclusiva e nos estreitos termos definidos pelas als. a) e b) do nº 2 do art.º 864º, a tutela legal, não é de reconhecer essa mesma tutela legal com o direito ao diferimento da desocupação aos meros detentores do imóvel condenados à sua restituição por sentença transitada em julgado, ainda que relativamente a eles se verifiquem “razões sociais imperiosas” e cumpram algum dos critérios previstos nas referidas alíneas. IV – A restrição do direito de propriedade em que se traduz este instituto só pode ocorrer nos casos expressamente previstos na lei e no caso de se mostrarem reunidos os requisitos legais, não sendo possível a sua aplicação quer por analogia quer por interpretação extensiva, a outras situações que não sejam as expressamente previstas.”.
Ante todo o exposto, não pode a executada, ora recorrente, beneficiar da tutela prevista no art.º 864º, do NCPC, ainda que padeça, em concreto de uma incapacidade superior a 60% e, consequentemente, não há lugar à suspensão da execução, nos termos do art.º 863º, nº 1, do mesmo diploma legal.
Com efeito, a executada só se poderia socorrer do regime previsto no art.º 863º, nºs 3 a 5 do NCPC – aplicável à entrega coerciva de imóveis não arrendados, por força do disposto no art.º 861º, nº 6, do mesmo diploma -, caso estivessem reunidos os respectivos pressupostos (o que manifestamente não ocorre, porquanto não foi junto aos autos qualquer atestado médico comprovativo de uma situação de risco para a vida, como a própria admite).
E, assim sendo, não podemos deixar de concluir pela improcedência da pretensão da executada, como fez o tribunal recorrido, não se descortinando em que se poderão consubstanciar as propaladas violações dos princípios da universalidade, da igualdade; da força jurídica dos preceitos constitucionais e do acesso ao direito ou qualquer outro de natureza constitucional, desde logo e decisivamente porque falha rotundamente o pressuposto em que a recorrente fazia assentar esta violação dos preceitos constitucionais, ou seja, ter ocorrido uma pretensa obstrução ao exercício de um direito da executada que invoca mas que inexiste obviamente.
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De tudo quanto se expõe, impõe-se recusar provimento ao recurso, sendo de manter a decisão de improcedência do incidente deduzido pela executada/recorrente e, consequentemente, de indeferimento da suspensão da execução, ainda que ao abrigo do disposto nos art.ºs 863º, nº 1 e 864º, do NCPC.
As custas são da responsabilidade da recorrente (art.º 527º, nºs 1 e 2 do NCPC).
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7 do NCPC):
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IV. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso do autor e, em consequência, mantem-se a decisão de improcedência do incidente deduzido pela executada/recorrente e, consequentemente, de indeferimento da suspensão da execução, ainda que ao abrigo do disposto nos art.ºs 863º, nº 1 e 864º, do NCPC.
Custas do recurso a cargo da recorrente.
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Guimarães, 30.10.2025 Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária
Juíza Desembargadora Relatora: Dra. Carla Maria da Silva Sousa Oliveira
1º Adjunto: Juiz Desembargador: Dr. Alcides Rodrigues
2º Adjunto: Juiz Desembargador: Dr. António Beça Pereira