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AÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO NEGATIVA
AMPLIAÇÃO DO PEDIDO
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Sumário
I - No actual regime processual, na falta de acordo das partes, somente é admissível a ampliação do pedido quando esta constitua o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo (art. 265º, n.º 2, do CPC). II – Numa ação de simples apreciação negativa em que é pedida a declaração da inexistência do direito do Réu na constituição de condomínio, não constitui desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo o pedido em que, fundado em diferenciado complexo de factos, o autor pede a condenação no pagamento de uma compensação a título de danos não patrimoniais alicerçada em responsabilidade civil extracontratual. III – A lide torna-se inútil se ocorre um facto ou uma situação posterior à sua inauguração que implique a desnecessidade de sobre ela recair pronúncia judicial, por ausência de efeito útil. IV - Tendo o Autor alienado ao Réu a sua fração autónoma na pendência da acção, daí resulta a inutilidade superveniente da lide, posto inexistir qualquer estado de incerteza apto a acarretar prejuízo ao Autor, pois não sendo ele dono de nenhuma fração autónoma no edifício em questão, nem titular de qualquer outro direito sobre o mesmo, a constituição de um condomínio não é suscetível de o afetar.
Texto Integral
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
I. Relatório
AA intentou acção declarativa de simples apreciação negativa[1], nos termos dos arts. 10º, n.º 3, al. a), 546º, n.º 1 e 548º do Código de Processo Civil, contra BB, peticionando que seja declarada a inexistência do direito do Réu na constituição de condomínio.
Alegou, para tanto e em síntese, que é proprietário da fração autónoma designada pela letra ... do artigo inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...88 do edifício sito na Rua ..., ... ....
Tal edifício é composto ainda por mais duas frações, designadas pelas letras ... e ....
As ditas frações estão divididas da seguinte forma: fração ... - ... com acesso direto ao arruamento, composto por espaço destinado a lojas (armazéns) dependência, dependência de wc e uma zona de cota +0.70, destinada a arrumos com área total de 225.00m2; fração ... - andar lado direito, destinado à habitação com sótão, com acesso direto do arruamento à caixa de escada, composto de corredor de distribuição, sala comum, três quartos de dormir, cozinha, despensa, wc e quarto de banho e varanda exterior; fração ... - andar lado esquerdo, destinado á habitação com sótão tem aceso direto do arruamento à caixa de escada, composto de hall, corredor de distribuição, sala comum dois quartos de dormir, cozinha, despensa, quarto de banho e varanda exterior.
Tal prédio, desde a sua constituição até então, sempre foi administrado pelos moradores de cada fração, sendo os mesmos quem de forma autónoma e independente faziam e fazem a manutenção das suas frações, isto é, limpeza, manutenção, obras necessárias, quer na parte independente, quer nas partes comuns.
O Réu, de forma unilateral, decidiu constituir um condomínio no dito edifício, o que fez sem ter legitimidade para tal e contra a vontade do Autor.
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Após a citação, quando se encontrava a correr o prazo para o Réu contestar, o Autor requereu, ao abrigo do disposto no art. 265º, n.º 2, do Código de Processo Civil, a ampliação do pedido (ref.ª ...08), peticionando a condenação do Réu a pagar-lhe uma indemnização pelos danos morais causados, em montante nunca inferior a 20.000,00€ e que seja reconhecido que os comportamentos do Réu configuram abuso de direito e visam, de forma coerciva e ilegítima, constranger o Autor a realizar a venda do seu imóvel.
Para tanto arguiu que, durante o prazo legal para a apresentação de contestação, o Réu iniciou unilateralmente obras no prédio em questão, sem qualquer prévia consulta ou aceitação por parte do Autor. As referidas obras incluem intervenções na fachada do edifício e no seu interior, nomeadamente no vão de escadas. O Réu não possui legitimidade para efetuar tais obras e, apesar de diversas interpelações verbais realizadas pelo Autor para que o Réu as cessasse, este não o fez.
Tais obras e condutas abusivas parecem configurar uma tentativa do Réu de “coagir” o Autor a assinar um contrato de compra e venda, presumivelmente em condições desvantajosas, ao exercer pressão psicológica e desrespeitar os direitos do Autor como coproprietário. Essa pressão psicológica teve impacto significativo no Autor, que se viu forçado a subscrever o referido contrato-promessa apenas para evitar maiores problemas com o Réu. As ações do Réu causaram - e causam - ao Autor crises de ansiedade e picos nervosos, que resultaram no afastamento do trabalho por baixa clínica. A conduta reiterada do Réu não apenas desrespeita os direitos do Autor como coproprietário, mas também provoca humilhação, frustração e ofensa ao seu direito de propriedade.
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O Réu deduziu contestação e nesta pronunciou-se quanto à ampliação do pedido formulada pelo Autor, pugnando pela sua inadmissibilidade, por não se mostrarem preenchidos os pressupostos do art. 265º, do Código de Processo Civil (ref.ª ...03).
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Notificado para se pronunciar quanto à exceção de inexistência do direito/interesse em agir/ inutilidade superveniente da lide deduzido pelo Réu, o autor pugnou pela improcedência da exceção e pelo prosseguimento dos autos para julgamento da matéria de facto e de direito, com vista à responsabilização do Réu pelos danos causados (ref.ª ...08).
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Datado de 2/06/2025, foi prolatado despacho que não admitiu a ampliação do pedido; foi fixado o valor da causa (5.000,01€) e elaborado despacho saneador, onde se afirmou a validade e a regularidade da instância; subsequentemente, foi declarada a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 277º, alínea e), do Código de Processo Civil (ref.ª ...11).
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Inconformado com estas decisões [quanto ao indeferimento da ampliação do pedido e à extinção da instância], delas interpôs recurso o Autor (ref.ª ...11) e, a terminar as respetivas alegações, formulou as seguintes conclusões (que se transcrevem):
«I. O presente recurso visa a revogação da sentença proferida nos autos, que, com fundamento na alegada inadmissibilidade da ampliação do pedido, rejeitou o articulado superveniente apresentado pelo Recorrente e, em consequência, declarou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277.º, alínea e), do Código de Processo Civil. II. A sentença recorrida conheceu, de forma antecipada e definitiva, matérias de mérito — nomeadamente a admissibilidade da ampliação do pedido e a subsistência do interesse processual — sem convocar audiência prévia, em clara violação do disposto no artigo 591.º, n.º 1, alínea b), do CPC, e do princípio do contraditório consagrado no artigo 3.º, n.º 3, do mesmo diploma. III. Essa omissão processual constitui nulidade nos termos do artigo 195.º do CPC e contamina a sentença como vício de excesso de pronúncia, previsto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), por ter o Tribunal conhecido de questão sobre a qual as partes não puderam exercer contraditório formal. IV. A ampliação do pedido apresentada pelo Recorrente foi tempestiva, regularmente notificada à parte contrária e juridicamente admissível nos termos do artigo 265.º, n.º 2, do CPC, pois os novos pedidos — nomeadamente o de indemnização por danos não patrimoniais — constituem desenvolvimento lógico e consequência direta da causa de pedir originária. V. Os factos supervenientes invocados (obras não autorizadas, pressões ilegítimas e conduta abusiva do Réu) não configuram uma nova relação jurídica, mas antes intensificam o conflito já judicializado, mantendo-se no mesmo núcleo essencial de factualidade e fundamentação jurídica, o que torna processualmente legítima a adaptação do pedido inicial. VI. A sentença recorrida, ao indeferir liminarmente tal ampliação, frustrou a função do processo como meio de tutela efetiva dos direitos invocados, violando os princípios da adequação formal (art. 547.º), da economia processual e da concentração da lide, previstos no artigo 2.º do CPC. VII. A posterior alienação da fração pelo Recorrente ao Réu não eliminou o interesse processual relativamente aos danos já consumados à data dos factos, cuja tutela jurídica é independente da manutenção da titularidade do imóvel, conforme decorre dos artigos 483.º, 496.º e 1305.º do Código Civil. VIII. A extinção da instância com fundamento em inutilidade superveniente revela erro de julgamento, pois subsistia um pedido autónomo e atual de indemnização por responsabilidade civil extracontratual, cuja apreciação é útil, legítima e exigida pelo princípio da tutela jurisdicional efetiva. IX. A manutenção da sentença recorrida comprometeria gravemente o direito de acesso à justiça consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, e, nessa medida, afigura-se suscetível de integrar uma restrição desproporcional e arbitrária ao exercício de um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias. X. Por força do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, a interpretação e aplicação que neguem o conhecimento de pedidos conexos com o objeto da lide, fundados em factos supervenientes e tempestivamente invocados, poderão ser objeto de sindicância constitucional, por violação do direito à tutela jurisdicional efetiva e do princípio da proporcionalidade. Pelo exposto, requer-se a procedência do presente recurso, com revogação integral da sentença recorrida, admissão da ampliação do pedido deduzida pelo Recorrente e consequente prosseguimento dos autos para apreciação do mérito da causa, assim se garantindo o cumprimento dos princípios da justiça material, da economia processual e da tutela plena dos direitos lesados.
ASSIM DECIDINDO, VOSSAS EXCELÊNCIAS, MUITO ILUSTRES DESEMBARGADORES FARÃO, COMO SEMPRE, JUSTIÇA!».
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Contra-alegou o Réu, pugnando pelo não provimento do recurso e manutenção da decisão recorrida (ref.ª ...03).
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O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (ref.ª ...42).
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Foram colhidos os vistos legais.
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II. Objeto do recurso
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões decidendas consistem em saber:
i) Da nulidade da decisão recorrida;
ii) Da admissibilidade da ampliação do pedido;
iii) Da revogação da inutilidade superveniente da lide.
iv) Da violação do direito de acesso à justiça.
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III. Fundamentos
IV. Fundamentação de facto.
As incidências fáctico-processuais a considerar para a decisão do presente recurso são as descritas no relatório supra (que, por brevidade, aqui se dão por integralmente reproduzidos), tendo, na decisão recorrida, sido igualmente considerados assentes os seguintes factos:
1) AA intentou, em 25 de Março de 2024, a presente ação de simples apreciação negativa contra BB, peticionando que seja declarada a inexistência do direito do Réu na constituição de condomínio.
2) Tal pretensão reporta-se ao edifício sito na Rua ..., ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...88º.
3) À data da propositura da ação, o Autor era o titular inscrito, para efeitos fiscais, da fração autónoma designada pela letra ..., do edifício em regime de propriedade horizontal sito na Avenida ..., União de Freguesias ..., ... e ... (... e ...), inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...88º.
4) O Réu BB foi citado para contestar a presente ação.
5) Em 18 de Dezembro de 2024, o Réu e o Autor apresentam requerimento, ao abrigo do previsto no artigo 141º, do Código de Processo Civil, através do qual peticionam, por acordo, a prorrogação por 30 dias do prazo para apresentação da contestação.
6) Em 22 de Janeiro de 2025, o Autor apresentou articular através do qual formula uma ampliação do pedido.
7) Em 7 de Fevereiro de 2025, o Réu apresenta articulado de contestação.
8) Por documento particular devidamente autenticado, datado de 30 de Janeiro de 2025, Autor e Réu celebraram um ajuste negocial, através do qual o primeiro declarou vender ao segundo a fração autónoma designada pela letra ..., correspondente à habitação no ... andar e sótão, com tudo o qua a compõe, a qual faz parte do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, registada predialmente pela inscrição Ap. ...2 de 1999/02/18, sito na Avenida ..., União de Freguesias ..., ... e ... (... e ...), concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...70, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...88.
9) O Autor não impugnou a celebração de tal ajuste negocial.
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V. Fundamentação de direito.
1. Nulidade(s) da decisão recorrida com fundamento na al. d) do n.º 1 do art. 615º do CPC.
1.1. As causas de nulidade da sentença ou de qualquer despacho (art. 613º, n.º 3 do CPC) são as que vêm taxativamente enumeradas no n.º 1 do art. 615º do CPC.
Nos termos do n.º 1 do art. 615º do CPC, a sentença é nula (entre o mais) quando: «(…) d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; (…)».
A mencionada nulidade corresponde a um vício de limites, que se divide em dois segmentos, sendo o primeiro atinente à omissão de pronúncia e o segundo relativo ao excesso de pronúncia ou de pronúncia indevida (a única que ao caso releva). O juiz conhece de menos na primeira hipótese e conhece de mais do que lhe era permitido na segunda.
Encontra-se vedado ao juiz conhecer de causas de pedir não invocadas ou de exceções que estão na exclusiva disponibilidade das partes e que estas não invocaram. Ou seja, proíbe-se ao juiz ocupar-se de questões que as partes não tenham suscitado, a menos que a lei lho permita ou lhe imponha o conhecimento oficioso.
O excesso de pronúncia gerador da nulidade «só tem lugar quando o juiz conhece de pedidos, causas de pedir ou exceções de que não podia tomar conhecimento»[2].
Registe-se, no entanto, que a relação entre a pretensão contida na conclusão da petição inicial ou reconvenção e o “decidido” não tem de se caraterizar por uma correspondência ipsis verbis. «Importante e absolutamente necessária é a correspondência entre a manifestação da vontade do requerente, ainda que implícita mas inquestionavelmente contida na pretensão, e a decisão proferida»[3].
No caso em apreço sustenta o recorrente que a “sentença recorrida conheceu, de forma antecipada e definitiva, matérias de mérito — nomeadamente a admissibilidade da ampliação do pedido e a subsistência do interesse processual — sem convocar audiência prévia, em clara violação do disposto no artigo 591.º, n.º 1, alínea b), do CPC, e do princípio do contraditório consagrado no artigo 3.º, n.º 3, do mesmo diploma”, sendo que “[e]ssa omissão processual constitui nulidade nos termos do artigo 195.º do CPC e contamina a sentença como vício de excesso de pronúncia, previsto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), por ter o Tribunal conhecido de questão sobre a qual as partes não puderam exercer contraditório formal”.
Prescreve o art. 591º, n.º 1, al. b) do CPC, que, “[c]oncluídas as diligências resultantes do preceituado no n.º 2 do artigo anterior, se a elas houver lugar, é convocada audiência prévia, a realizar num dos 30 dias subsequentes, destinada a algum ou alguns dos fins seguintes: (…) b) Facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa».
Conjugados os arts. 591º, n.º 1, 592º, n.º 1, 593º, n.º 1, 593º, n.º 3 e 597º do CPC resulta claro que a tramitação de uma ação declarativa comum de valor superior a metade da alçada da Relação (€15.000,00) incluirá a realização de uma audiência prévia, regra que apenas comporta duas exceções tipificadas: quando a lei estabeleça expressamente não ter lugar a realização de audiência prévia; e b) quando o juiz dispense a realização dessa diligência, ao abrigo do disposto no art. 593º, n.º 1[4].
Resulta do mencionado quadro normativo que nas ações de valor superior a metade da alçada da Relação, a realização de audiência prévia não é obrigatória, mas é a regra.
Contudo, nas ações de valor não superior a metade da alçada da Relação – que é o caso dos presentes autos[5] –, o art. 597º do CPC regula os termos posteriores aos articulados, conferindo ao juiz um amplo poder de gestão e adequação processual, norteado pela necessidade e a adequação do ato ao fim do processo.
De acordo com este preceito, o juiz, consoante a necessidade e a adequação do ato ao fim do processo:
a) assegura o exercício do contraditório quanto a exceções não debatidas nos articulados;
b) convoca audiência prévia;
c) profere despacho saneador, nos termos do n.º 1 do art. 595º;
d) determina a adequação formal, agilização e simplificação processual;
e) profere despacho previsto no n.º 1 do art. 596º;
f) profere despacho a programar os atos a realizar na audiência final;
g) designa dia para a audiência final.
O citado normativo regula os termos posteriores aos articulados nas acções de valor não superior a metade da alçada da Relação, conferindo ao juiz um amplo poder de gestão e adequação processual, norteado pela necessidade e a adequação do acto ao fim do processo.
No entanto, mesmo em tais situações, a audiência prévia deve ser convocada sempre que seja a forma mais eficiente de obter a satisfação dos princípios processuais que dela carecem (nesta fase) - maxime, os princípios do contraditório e da cooperação processual[6].
A decisão é discricionária, mas a satisfação dos princípios não o é, pelo que, se o juiz não convocar a audiência, deve oferecer o contraditório por escrito, sempre que, por exemplo, seja necessário ouvir as partes[7].
A presente acção tem um valor não superior a metade da alçada da Relação (5.000,01€).
Constata-se por outro lado que, findos os articulados, a Mmª Juíza “a quo” absteve-se de convocar a audiência prévia e prolatou despacho no sentido de não admitir a ampliação do pedido; subsequentemente, elaborou despacho saneador, onde afirmou a validade e a regularidade da instância e, de seguida, declarou a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos e ao abrigo do disposto no 277º, alínea e), do CPC.
Diversamente do aduzido pelo recorrente, as decisões recorridas – atinente à admissibilidade da ampliação do pedido e à subsistência do interesse processual da lide – não comportam matérias de mérito, mas antes matérias adjetivas ou de índole processual.
Na verdade, a ampliação do pedido tem atinência com o âmbito do objeto do processo ou da instância, e não com o direito substantivo que o autor pretende fazer valer.
Por sua vez, a declaração de extinção da instância constitui decisão de forma, e não de mérito, salientando Alberto dos Reis que, nos casos de extinção da instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, o “tribunal não chega a conhecer do mérito da causa”[8] e Jacinto Rodrigues Bastos para quem, face à ocorrência anormal da lide se tornar impossível ou inútil, a pronúncia a emitir pelo juiz não deve ser nem da absolvição do pedido, nem da absolvição da instância, mas puramente declarativa dessa extinção[9]; identicamente, Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida defende que o despacho de extinção da instância, por inutilidade, produz apenas eficácia de caso julgado formal[10].
Inexiste, por outro lado, violação do princípio do contraditório – alegadamente por o Tribunal ter conhecido de questão sobre a qual as partes não puderam exercer contraditório formal –, porquanto, tendo sido expressamente notificado para se pronunciar quanto à exceção de inexistência do direito/interesse em agir/inutilidade superveniente da lide deduzido pelo Réu, o autor teve oportunidade de se pronunciar – como efetivamente se pronunciou – sobre tais matérias, pugnando pela improcedência da exceção e pelo prosseguimento dos autos para julgamento da matéria de facto e de direito, com vista à responsabilização do Réu pelos danos causados.
O que significa que o Tribunal garantiu o contraditório ao autor.
Acresce não se tratar de questões de índole processual oficiosamente suscitadas, já que as mesmas foram invocadas pela parte contrária na contestação.
Verifica-se assim que não foi preterida qualquer formalidade, porque atento o valor da ação e a natureza do processo, não se impõe a realização de audiência prévia.
Desta forma, é de concluir que não foi cometida qualquer nulidade, mostrando-se válido o processo.
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2. Da (in)admissibilidade da ampliação do pedido.
Como é sabido, o objeto da acção consubstancia-se numa pretensão processualizada integrada pelo pedido e causa de pedir.
Com efeito, nas alíneas d) e) do n.º 1 do art. 552.º do CPC, exige-se que o autor, na petição inicial, exponha os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à acção e formule o pedido, respectivamente.
Do disposto no n.º 3 do art. 581.º do CPC extrai-se que o pedido consiste no efeito jurídico que o autor pretende obter com a acção, o qual expressa a concreta tutela jurisdicional que o demandante solicita ao propor a ação.
O pedido deve ser claro e inteligível, bem como preciso, determinado e idóneo, devendo constar da parte final da petição inicial.
O pedido deduzido na conclusão da petição representa o corolário lógico dos factos descritos na narração, os quais são precisamente o fundamento do pedido.
O pedido não só conforma ou molda o objeto do processo, como condiciona o conteúdo da decisão de mérito, a emitir pelo tribunal, porquanto o juiz, na sentença, «deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação», não podendo «ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras» (art. 608º, n.º 2, do CPC) e «não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir» (art. 609º, n.º 1, do CPC), sob pena de nulidade da sentença por omissão de pronúncia, por excesso de pronúncia ou por condenação “ultra-petitum”, respetivamente (art. 615º, n.º 1, als. d) e e), do CPC).
Nas palavras de Lebre de Freitas[11], ao propor a ação, o autor formula o pedido, determinado formalmente pela providência requerida e materialmente pela afirmação duma situação jurídica, dum efeito querido ou dum facto jurídico, e fundado, de acordo com a imposição da substanciação, numa causa de pedir, assim conformando o objeto do processo.
O art. 260º do CPC, consagrando o princípio da estabilidade da instância, dispõe que “citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei”, estabelecendo o art. 564º, al. b), do mesmo diploma legal que, além de outros, especialmente prescritos na lei, a citação torna estáveis os elementos essenciais da causa, nos termos do art. 260º.
Significa isso que, “(…) antes da citação do réu, qualquer daqueles elementos é livremente modificável, nada impedindo que entre o momento da apresentação da petição e o acto de citação o autor altere a causa de pedir ou o pedido ou demande novos réus (…)”[12].
Com a citação, ficam estabilizados os elementos essenciais da instância (sujeitos, pedido e causa de pedir), mas tal não significa que esses elementos fiquem, a partir desse momento, imutáveis ou inalteráveis[13].
Com efeito, e no que respeita ao pedido e causa de pedir são ainda admissíveis, após a citação, as alterações previstas pelos arts. 264º (“Alteração do pedido e da causa de pedir por acordo”) e 265º (“Alteração do pedido e da causa de pedir na falta de acordo”).
“Havendo acordo das partes, o pedido e a causa de pedir podem ser alterados ou ampliados em qualquer altura, em 1.ª ou 2.ª instância, salvo se a alteração ou ampliação perturbar inconvenientemente a instrução, discussão e julgamento do pleito” (art. 264º do CPC).
“Na falta de acordo, a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceita pelo autor, devendo a alteração ou ampliação ser feita no prazo de 10 dias a contar da aceitação” (art. 265º, n.º 1, do CPC).
Também na falta de acordo, o “autor pode, em qualquer altura, reduzir o pedido e pode ampliá-lo até ao encerramento da discussão em 1.ª instância se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo” (n.º 2 do art. 265º do CPC).
Este dispositivo legal admite a ampliação do pedido, na ausência de acordo, se efectuado até ao encerramento da discussão em 1ª instância, contanto que a ampliação seja o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo.
Põe-se, por isso, dois limites à ampliação: um limite temporal e um limite de qualidade ou de nexo.
Quanto ao limite de tempo a ampliação é inadmissível depois de encerrada a discussão na primeira instância.
No caso em apreço o limite temporal não se mostra excedido, pois o requerimento de ampliação do pedido foi formulado quando estava (ainda) a correr o prazo para dedução da contestação.
Quanto ao limite de qualidade e de nexo a ampliação há-de ser o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo, o mesmo é dizer, a ampliação há-de estar contida virtualmente no pedido inicial[14].
Embora a lei não defina o que deve entender-se por “desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo”, a interpretação de tais conceitos deve orientar-se no sentido de a ampliação radicar numa origem comum.
Esse é o entendimento que vem sendo sustentado na doutrina e na jurisprudência[15], ao defenderem que a ampliação do pedido será processualmente admissível, por constituir desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo, quando o novo pedido (objecto de ampliação) esteja virtualmente contido no âmbito do pedido inicial, por forma a que pudesse tê-lo sido também aquando da petição inicial, ou da reconvenção, sem recurso a invocação de novos factos[16].
Como exemplo característico[17]: “pediu-se em acção de reivindicação, a entrega do prédio; pode mais tarde fazer-se a ampliação, pedindo-se também a entrega dos rendimentos produzidos pelo prédio durante a ocupação ilegal. Outro exemplo: pediu-se a restituição de posse de um prédio; pode depois, em ampliação, pedir-se a indemnização das perdas e danos causados pelo esbulho. Num e noutro caso a ampliação é consequência do pedido primitivo. Em vez de ser uma consequência, pode ser um desenvolvimento. Pediu-se o pagamento de uma dívida; pode depois alegar-se que a dívida vencia juros e pedir-se o pagamento destes (…)”.
O Professor Alberto dos Reis faz ainda a distinção entre “cumulação” e “ampliação”, para o que se terá de relacionar o pedido e causa de pedir[18]. Assim, “a ampliação pressupõe que, dentro da mesma causa de pedir, a pretensão primitiva se modifica para mais; a cumulação dá-se quando a um pedido, fundado em determinado facto, se junta outro, fundado em ato ou facto diverso”.
E exemplifica com um caso duma acção em que se pedia a anulação de duas escrituras de doação por simulação e depois se vem a pedir a anulação duma terceira escritura de doação com o mesmo fundamento. Nesse caso, conclui esse insigne processualista, que: «o Autor não se mantém no mesmo acto ou facto jurídico, não desenvolve ou aumenta o pedido anterior, formula um pedido com individualidade e autonomia perfeitamente diferenciada dos pedidos primitivos»”.
O que há que ter presente “é que o pedido cumulado ou a ampliação sejam desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo e que, por conseguinte tenham essencialmente origem comum, ou seja, causas de pedir, se não totalmente idênticas, pelo menos integradas do mesmo complexo de facto»[19].
No caso concreto, o Autor intentou contra o Réu uma acção declarativa de simples apreciação negativa, permitida pelo art. 10.º, n.ºs 2 e 3, alínea a), do Código de Processo Civil. Estas acções, como aí se prevê, têm por fim obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto. O mesmo é dizer que este tipo de ações visa pôr termo a uma situação de incerteza, mediante a declaração da existência ou inexistência de um direito, pelo que só é legitimo lançar meio deste tipo de ações quando a parte que a ela recorre estiver perante uma incerteza real, séria e objetiva, e quando, dessa incerteza, lhe possa advir um dano.
Como bem salientou a Exma. Juíza “a quo”, ao contrário das acções de condenação, as acções de simples apreciação não se destinam a condenar a parte, mas apenas a afirmar na ordem jurídica a existência de um direito da parte demandante ou a inexistência desse direito por parte da demandada.
O que caracteriza a acção de simples apreciação e a distingue da ação de condenação é a ausência de lesão ou violação do direito.
Assim, na acção declarativa de simples apreciação, seguindo Alberto dos Reis[20], “não se exige do réu prestação alguma, porque não se lhe imputa a falta de cumprimento de qualquer obrigação. O autor tem simplesmente em vista pôr termo a uma incerteza que o prejudica: incerteza sobre a existência de um direito”.
Como justificação das ações de simples apreciação, escreve ainda o mesmo autor[21]: “o estado de incerteza sobre a existência de um direito ou de um facto é susceptível de causar prejuízo a uma pessoa; deve, por isso, pôr-se à disposição dessa pessoa um meio de se defender contra tais prejuízos. Esse meio é a acção declarativa. Quer dizer, o prejuízo inerente à incerteza do direito ou do facto legitima e justifica o uso da acção de simples declaração positiva ou negativa”.
Especificamente, no caso dos autos o autor pretende que seja declarada a inexistência do direito do Réu na constituição de condomínio no edifício composto por três fracções, uma delas pertencente ao Autor.
Para tanto alicerçou tal pretensão no facto de o dito edifício ser constituído por três frações, a cuja descrição procede, na circunstância de o mesmo sempre ter sido administrado pelos respetivos moradores e o Réu, de forma unilateral, sem ter legitimidade para tal e contra a vontade do Autor, ter levado a cabo diligências para proceder à constituição de um condomínio.
Por sua vez, no requerimento em que formulou a ampliação do pedido o Autor alegou novos factos, nomeadamente que o Réu, na pendência da acção, realizou obras não autorizadas em partes comuns do edifício e teve comportamentos reiteradamente intrusivos e pressões de diversa ordem para o autor vender a sua fracção, causando-lhe danos morais, geradores de responsabilidade civil extracontratual com dever de indemnizar.
Como bem ajuizou a Exma Juíza “a quo”, “[c]ompulsado o cerne da ação de simples apreciação negativa proposta pelo Autor é notório que nesta não se englobam os fundamentos invocados para sustentar a ampliação do pedido, o que significa que, a sua alegação, consubstancia uma autêntica alteração da causa de pedir, a qual, porque não se mostra conforme à previsão constante do nº 1, do artigo 265º, do Código de Processo Civil, não é admissível. Assim, também não é de admitir a ampliação do pedido formulado pelo Autor, já que esta assenta em diferente causa de pedir da ação de simples apreciação negativa proposta pelo Autor, sendo certo que estes novos pedidos, típicos de ações de condenação, não emergem nem são o desenvolvimento do pedido primitivo - o pedido de declaração de inexistência do direito de o Réu constituir o condomínio -, provindo antes de alegados comportamentos do Réu ocorridos na pendência da ação e suscetíveis, na perspetiva do Autor, de sustentar atribuição de uma indemnização por danos morais”.
Na verdade, o novo pedido objeto de ampliação não constitui o desenvolvimento nem consequência do pedido primitivo, pelo que não se enquadra na previsão do art. 265.º, n.º 2, CPC.
Como se disse, a ampliação do pedido constitui o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo quando o pedido formulado esteja virtualmente contido no pedido inicial e na causa de pedir da acção, isto é, que dentro do mesmo complexo de factos o pedido primitivo se modifique (quantitativamente) para mais – constituindo desenvolvimento do pedido inicial – ou em que o novo pedido é qualitativamente distinto do pedido inicial – sendo consequência do pedido primitivo.
A esta luz, a requerida ampliação (que verdadeiramente traduz uma cumulação de pedidos assente em diversas causas de pedir) não é mera consequência do que o autor já alegara na petição inicial, onde se limitou a alegar a incerteza jurídica quanto à legalidade do condomínio levado a cabo pelo Réu. O autor não se mantém, pois, no mesmo acto ou facto jurídico, formulando um pedido com individualidade e autonomia perfeitamente diferenciada do pedido primitivo e assente em factos não coincidentes, alicerçado na responsabilidade civil extracontratual geradora da obrigação de indemnizar. O mesmo é dizer que a ampliação requerida não se considera integrada no mesmo complexo de factos, pois envolve alteração da causa de pedir, não estando virtualmente contida no pedido inicial. O autor não se mantém dentro do mesmo acto ou facto jurídico, não desenvolve ou aumenta o pedido anterior, antes formula um pedido com individualidade e autónoma perfeitamente diferenciada do pedido primitivo.
Pode, pois, concluir-se que a ampliação formulada pelo autor não se mostra adjectivamente legitimada, não só por assentar na alegação de uma nova causa de pedir, como também por não constituir um desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo, não estando nele virtualmente contida, suportando-se antes em factos que não haviam sido anteriormente alegados.
Logo, nos termos do n.º 2 do art. 265º do CPC, a ampliação do pedido é legalmente inadmissível.
Consequentemente, sendo de confirmar a decisão recorrida, impõe-se a improcedência deste fundamento do recurso.
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3. Da extinção da instância por inutilidade superveniente da lide [art. 277º, al. e), do CPC].
O art. 277.º, al. e), do CPC estipula que a instância extingue-se com a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide.
A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, enquanto causas determinantes da extinção anormal da instância, resultarão de circunstâncias acidentais/anormais que, na sua pendência, precipitam o desinteresse na solução do litígio, induzindo a que a pretensão do demandante não possa ou não deva manter-se: seja, naqueles casos, pelo desaparecimento dos sujeitos ou do objeto do processo, seja, nestes, pela sua alcançada satisfação fora do esquema da providência pretendida[22].
Como ensina Miguel Teixeira de Sousa[23], na inutilidade superveniente da lide, tal como na impossibilidade, está em causa a falta superveniente de interesse processual, dado que a tutela jurisdicional pretendida pelo autor se tornou, durante a pendência da causa, impossível ou inútil, o que justifica que o juiz se abstenha de conhecer do mérito.
A impossibilidade superveniente da lide ocorre ou porque se extinguiu o sujeito (impossibilidade subjetiva, nos casos de relações jurídicas estritamente pessoais que se extinguem com a morte do titular da relação, não sendo admissível a sucessão nessa titularidade) ou porque se extinguiu o objeto (impossibilidade objetiva, nos casos de relações jurídicas objetivamente infungíveis) ou porque se extinguiu a causa [quando ocorre a extinção de um dos interesses em litígio (p.ex., confusão – art. 868º do Cód. Civil)][24].
A lide torna-se impossível quando, após a instauração da causa, sobrevêm circunstâncias que inviabilizariam o pedido, não em termos de procedência (pois, a ser assim, estar-se-ia no âmbito do mérito), mas por razões adjetivas de impossibilidade de lograr o objetivo pretendido com a acção, por já ter sido atingido por outro meio ou já não poder sê-lo[25].
A lide fica inútil se ocorreu um facto ou uma situação posterior à sua inauguração que implique a impertinência, ou seja, a desnecessidade de sobre ela recair pronúncia judicial, por ausência de efeito útil.
A inutilidade do prosseguimento da lide verificar-se-á, pois, quando seja patente, objetivamente, a insubsistência de qualquer interesse, benefício ou vantagem, juridicamente consistentes, dos incluídos na tutela que se visou atingir ou assegurar com a ação judicial intentada.
Por outras palavras, a inutilidade superveniente da lide dá-se quando, em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, a decisão a proferir já não possa ter qualquer efeito útil, ou porque não é possível dar satisfação à pretensão que o demandante quer fazer valer no processo ou porque o escopo visado com a acção foi atingido por outro meio(designadamente, pelo pagamento da quantia peticionada, pelo cumprimento espontâneo da obrigação em causa ou pela entrega do bem reivindicado).
Essa desnecessidade deve ser aferida em termos objetivos[26] e o facto susceptível de determinar a extinção da instância deve ser de verificação ulterior relativamente à constituição da instância.
Neste sentido, a inutilidade superveniente é uma perda de interesse processual (em demandar e em contradizer) posterior ao início da pendência da ação.
Como a instância se considera iniciada com a proposição da acção e esta se considera proposta, intentada ou pendente logo que seja recebida pela secretaria a respetiva petição inicial, segue-se que só o facto ocorrido posteriormente ao recebimento da petição inicial se deve considerar superveniente (arts. 144º e 259º, n.º 1 do CPC).
Sempre que o efeito jurídico que se pretendia obter com a acção se mostre supervenientemente inútil, o processo não deve continuar, mas antes cessar[27].
Com efeito, se a lide vier a tornar-se inútil ou impossível, depois de instaurada, a instância terá forçosamente que ser declarada extinta.
O autor insurge-se contra a decisão recorrida aduzindo para o efeito que a “posterior alienação da fração pelo Recorrente ao Réu não eliminou o interesse processual relativamente aos danos já consumados à data dos factos, cuja tutela jurídica é independente da manutenção da titularidade do imóvel, conforme decorre dos artigos 483.º, 496.º e 1305.º do Código Civil”; acrescenta que a “extinção da instância com fundamento em inutilidade superveniente revela erro de julgamento, pois subsistia um pedido autónomo e atual de indemnização por responsabilidade civil extracontratual, cuja apreciação é útil, legítima e exigida pelo princípio da tutela jurisdicional efetiva”.
Como é fácil de ver, a enunciada argumentação do autor/recorrente parte da verificação de uma condição, qual seja a procedência da pretensão recursória atinente à admissibilidade da ampliação do pedido.
Sucede que a referida condição não se tem por verificada, visto que, por não se mostrar preenchida a previsão do art. 265º, n.º 2, do CPC, foi confirmada a decisão recorrida que denegou a requerida ampliação do pedido.
Logo, é destituída de qualquer efeito prático a argumentação que tem como pressuposto o deferimento da ampliação do pedido.
Importa, por isso, restringir a nossa apreciação em função da delimitação objetiva e subjetiva do processo, sendo irrelevante para o efeito pretendido a matéria atinente à ampliação do pedido que, como vimos, não foi admitida.
Delimitada a questão nos termos supra enunciados, resta-nos secundar e confirmar o acerto da decisão recorrida.
Com efeito, o autor intentou uma ação declarativa de simples apreciação negativa contra o Réu, pedindo que seja declarada a inexistência do direito do Réu na constituição de condomínio no edifício composto por três frações, uma delas pertencente ao Autor.
Como se disse, o autor alicerça a sua pretensão no facto de o dito edifício ser constituído por três frações, na circunstância de o mesmo sempre ter sido administrado pelos respetivos moradores e o Réu, de forma unilateral, sem ter legitimidade para tal e contra a vontade do Autor, ter levado a cabo diligências para proceder à constituição de um condomínio.
Resulta, porém, dos autos que, na pendência da acção, mais propriamente em 30 de janeiro de 2025, o Autor alienou a sua fração autónoma ao Réu.
Ora, este facto tem, na verdade, relevância jurídica nos autos, porquanto, não tendo sido admitida a ampliação do pedido formulado, a única pretensão a considerar é a formulada na petição inicial, qual seja, a da declaração da inexistência do direito de o Réu constituir um condomínio.
Socorrendo-nos uma vez mais da fundamentação aduzida na decisão recorrida, dir-se-á que tal “pretensão, processualmente fundada aquando da propositura da ação, deixou de o ser, já que cessou o estado de incerteza e imprescindibilidade da intervenção jurisdicional para o sanar invocados pelo Autor, na medida em que este deixou de deter qualquer direito a proteger no âmbito da situação gerada pela constituição do condomínio no edifício suprarreferido. Do exposto resulta, assim, inequívoca a inutilidade superveniente da apreciação do pedido formulado pelo Autor em sede de petição inicial, já que inexiste qualquer estado de incerteza apto a acarretar prejuízo ao aqui Autor, pois não sendo ele dono de nenhuma fração autónoma no edifício em questão, nem titular de qualquer outro direito sobre o mesmo, a constituição de um condomínio não o afeta de forma alguma”.
A lide inerente ao pedido primitivo declarativo perdeu, de facto, todo o efeito útil com a alienação da fracção feita pelo autor ao réu.
Todas as demais considerações expendidas pelo recorrente fundam-se no facto de subsistir, “de forma plena e autónoma, o interesse do Recorrente na apreciação dos danos causados pelos comportamentos do Réu, os quais, à luz do direito substantivo, geram responsabilidade civil extracontratual com dever de indemnizar”.
Contudo, essa pressuposição – como se disse e reitera – está excluída da nossa apreciação, mercê da não admissibilidade da requerida ampliação do pedido.
Por conseguinte, qualquer consideração suplementar baseada naquele inverificado pressuposto constituiria um exercício estéril, motivo por que nos absteremos desse exercício argumentativo.
A linearidade dos factos em apreço não deixa margem para quaisquer dúvidas:
Estando em causa a declaração da inexistência do direito do Réu constituir um condomínio e tendo o autor, na pendência da acção, alineado ao réu a fração do prédio em causa, este sucedeu naqueloutro na titularidade do direito litigioso.
Deu-se, por conseguinte, a falta superveniente de interesse processual, o que justifica que o juiz se abstenha de conhecer do mérito
Não podemos perder de vista, como salienta Paulo Pimenta[28], que o que justifica as accões de simples apreciação negativa é a chamada arrogância extrajudicial por parte do réu, expressa na afirmação da titularidade de um direito ou da existência de um facto, arrogância que prejudica o autor, ainda que esse prejuízo possa não ser imediato ou material.
Ora, em face da inutilidade superveniente da lide, nenhuma utilidade deriva para o autor pela procedência da acção e, correlativamente, nenhum prejuízo advém para o réu, pelo que a decisão judicial de tutela não teria nenhum efeito jurídico, sendo um acto processual inútil, inócuo ou indiferente, em termos de não modificar a situação posta em juízo[29].
Consequentemente, forçoso será concluir – como na decisão recorrida – que “cessou a situação factual justificativa da propositura da presente ação de simples apreciação negativa por parte do Autor”, impondo-se confirmar a declaração da extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 277º, alínea e), do CPC.
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4. Da violação do direito de acesso à justiça.
Aduz o recorrente que a “manutenção da sentença recorrida comprometeria gravemente o direito de acesso à justiça consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, e, nessa medida, afigura-se suscetível de integrar uma restrição desproporcional e arbitrária ao exercício de um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias”.
Acrescenta que: “Por força do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, a interpretação e aplicação que neguem o conhecimento de pedidos conexos com o objeto da lide, fundados em factos supervenientes e tempestivamente invocados, poderão ser objeto de sindicância constitucional, por violação do direito à tutela jurisdicional efetiva e do princípio da proporcionalidade”.
Vejamos.
Os tribunais, nas causas que lhes são submetidas a julgamento, não podem aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados (art. 204º da Constituição da Républica Portuguesa - CRP).
O juízo de inconstitucionalidade só tem razão de ser enquanto reportado a normas jurídicas e não a decisões judiciais.
Sob a epígrafe “Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva”, o art. 20.º da Constituição garante a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos (n.º 1), em termos efetivos, o que comporta o direito à decisão da causa em prazo razoável (n.º 4), impondo-se especificamente ao legislador que, para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, assegure procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos (n.º 5).
Como se explicita no Ac. do TC n.º 46/2014, de 9/01 (relator Fernando Vaz Ventura), in www.dhsi.pt., a “jurisprudência do Tribunal Constitucional encontra-se consolidada na consideração de que o direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional implica a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efetiva, cujo âmbito normativo abrange nomeadamente: (a) o direito de ação, no sentido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada; (c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a decisão haver de ser proferida dentro dos prazos preestabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado àcomplexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas (cfr. Acórdão n.º 440/94)”.
Sendo estas as dimensões nucleares em que se concretiza o direito fundamental invocado pelo recorrente, não se vê que a interpretação normativa seguida na decisão recorrida – e que foi objeto de confirmação no presente acórdão – o tenha posto em causa e que o recorrente tenha sofrido limitação ou restrição intolerável no seu direito a uma solução jurisdicional do conflito.
Desde logo, porque no que concerne ao modo como delineou e concebeu a propositura da acção de simples apreciação negativa o recorrente teve a possibilidade/liberdade de alegar a causa de pedir que servia de fundamento à alegada inexistência do direito do demandado.
Diversamente do explicitado pelo recorrente, a decisão impugnada teve precisamente em consideração o facto de a ampliação do objeto da instância não ter sido admitida, posto que a pretensão de ampliação do pedido foi rejeitada.
Daí que seja destituído de fundamento dizer-se que a decisão de mérito possa ter sido restringida por uma interpretação processual excessivamente restritiva ou que desconsidere a evolução do objeto da lide.
Com efeito, foi precisamente o facto de terem sido aportados aos autos incidências processuais novas verificadas na pendência da acção que conduziu à declaração da extinção da instância por inutilidade superveniente da lide. Isto porque, mercê da alienação da fracção feita pelo autor ao réu, aquele deixou de ter interesse processual no desenlace da lide.
Depois, porque a declarada extinção da instância por inutilidade superveniente da lide restringe o seu âmbito de aplicação aos presentes autos, não precludindo, nem impedindo que, no tocante à pretensão indemnizatória alicerçada na responsabilidade civil extracontratual objeto da ampliação do pedido, o autor/recorrente possa fazer valer tal direito em acção autónoma, sem qualquer restrição imputável à extinção da presente lide fundada na alínea e) do artigo 277.º do CPC.
Parafraseando o explicitado nas contra-alegações, o direito de acesso aos tribunais não impõe o conhecimento de pedidos inadmissíveis à luz da estrutura processual; inexiste o direito subjetivo a ver apreciado mérito de pretensão indevidamente inserida em ação inadequada.
Em consequência, a interpretação dada pela decisão recorrida ao normativo da extinção da instância por inutilidade superveniente da lide em face da perda do interesse processual no âmbito da lide não viola o direito à tutela judicial efetiva, não padecendo a interpretação normativa da indicada inconstitucionalidade.
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Assim, a decisão recorrida é de manter, improcedendo as conclusões do apelante.
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Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art. 527º do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que lhes tiver dado causa, presumindo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção.
Como a apelação foi julgada improcedente, mercê do princípio da causalidade, as custas da apelação serão da responsabilidade do recorrente/autor (art. 527º do CPC).
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VI. DECISÃO
Perante o exposto acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas da apelação a cargo do apelante (art. 527º do CPC).
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Guimarães, 30 de outubro de 2025
Alcides Rodrigues (relator)
Ana Cristina Duarte (1ª adjunta)
Alexandra Rolim Mendes (2ª adjunta)
[1] Tribunal de origem: Juízo Local Cível de Barcelos - Juiz ... - do Tribunal Judicial da Comarca de Braga. [2] Cfr. Ac. do STJ de 6/12/2012 (relator João Bernardo), in www.dgsi.pt. [3] Cfr., António Júlio Cunha, Direito Processual Civil Declarativo, 2ª ed., Quid Juris, pp. 63 e 365. [4] Cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, Almedina, p. 685. [5] Posto que à presente ação foi fixado o valor de 5.000,01€ (ref.ª ...11), sem que tal segmento decisório tenha sido impugnado. [6] Cfr. Ac. da RP de 23.3.2020 (relatora Ana Paula Amorim) e o Ac. da RC de 22.09.2021 (relator Fonte Ramos), in www.dgsi.pt. [7] Cfr. Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2014, 2ª edição, vol. I., p. 558. [8] Cfr. Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 3º, Coimbra Editora, 1946, p. 372. [9] Cfr. Notas ao Código de Processo Civil, vol. II, 3.ª ed., 2000, p. 55. [10] Cfr. Direito Processual Civil, Vol. I, 2ª ed., 2017, Almedina, p. 626). [11] Cfr. Introdução ao Processo Civil - Conceito e princípios gerais à luz do novo Código, 4.ª ed., Gestlegal, p. 165. [12] Cfr. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, I, Almedina, p. 89; no mesmo sentido, Alberto dos Reis, Comentário (…), vol. 3º, p. 66. [13] Cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio da Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª ed., 1985, pp. 278/279. [14] Cfr. Alberto dos Reis, Comentário (…), vol. 3º, pp. 92/93. [15] Cfr., Alberto dos Reis, Comentário (…), vol. 3º, p. 93 e Castro Mendes, Direito Processual Civil, vol. II, AAFDL, 1987, p. 347; Ac. da RG de 6.02.2020 (relatora Anizabel Sousa Pereira) e Ac. da RP de 19.05.2022 (relatora Judite Pires), todos em www.dgsi.pt. [16] Quando a ampliação importe a alegação de factos novos, a mesma só é processualmente admissível se tais factos forem supervenientes; nessa hipótese, o autor, ou o reconvinte, deve introduzir os novos factos, nos quais sustenta a ampliação do pedido, através de articulado superveniente, de acordo com o disposto no art. 588.º do CPC, instrumento processual adequado, nestas circunstâncias, para requerer a ampliação do pedido (cfr. Lebre de Freitas, obra citada, p. 166, nota 30). [17] Cfr. Alberto dos Reis, Comentário (…), vol. 3º, p. 93. [18] Cfr. obra citada, p. 95. [19] Cfr. Castro Mendes/Miguel Teixeira de Sousa Castro Mendes, Manual de Processo Civil, Volume I, 2022, AAFDL Editora, p. 463. [20] Cfr. Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª ed., Coimbra Editora, 1982, p. 19. [21] Cfr. R.L.J. Ano 80º, p. 231. [22] Cfr. Acórdão uniformizador de jurisprudência do STJ n.º 1/2014, de 8/05/2013 (relator Fernandes da Silva), in Diário da República, 1.ª série, de 25 de Fevereiro de 2014. [23] Cfr. Código de Processo Civil Online CPC: art. 130.º a 361.º, Versão de 2025/09, p. 181 [24] Cfr. Alberto dos Reis, Comentário (…), vol. 3º, p. 368. [25] Cfr. Ac do STJ de 15/03/2012 (relator Sebastião Póvoas), in www.dgsi.pt. [26] Cfr. Ac do STJ de 15/03/2012 (relator Sebastião Póvoas), in www.dgsi.pt. [27] Cfr. Decisão sumária singular da RC de 05-12-2012 (relator Henrique Antunes), in www.dgsi.pt. [28] Cfr. Processo Civil Declarativo, 2ª ed., Almedina, 2017, p. 41. [29] Cfr. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2018, p. 429.