I- Nos contratos de seguro, a definição do risco coberto constitui um elemento essencial do contrato e da determinação do prémio a suportar pelo segurado, conforme resulta do artº 1 do RJCS, uma vez que só constitui sinistro para efeitos de accionamento da cobertura do seguro, o evento aleatório previsto no contrato (cfr. artº 99 do RJCS).
II- Nos contratos de seguro de vida, associados à contração de crédito, a seguradora deve obrigatoriamente informar os segurados do dever de declarar, com exactidão, todas as circunstâncias que conheça e que razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pela seguradora (artsº 183, 18 a 21 e 24 do RJCS).
III- O ónus de prova de ter efectuado esta comunicação cabe à seguradora, quer por via do disposto no artº 24, nº4 do RJCS, quer por via do disposto nos artºs 1, nº3 e 5, nº3 do D.L. nº 446/85 de 25 de Outubro, regime também aplicável a este contrato.
IV- No entanto, tendo sido subscrita uma declaração pelos segurados, na proposta de seguro e no questionário médico, da qual consta que lhes foi dado conhecimento de todas as informações pré-contratuais exigíveis e do dever de prestar informações verídicas, bem como da sanção aplicável em caso da prestação de falsas informações, esta declaração inverte o ónus de prova, cabendo-lhes a prova dos factos que são contrários à declaração.
V- Nos seguros de vida, pode a seguradora condicionar a celebração destes contratos a questionários médicos, os quais delimitam contratualmente este dever de informação sobre o risco (artº 177 do RJCS).
VI- A prestação de informações falsas no questionário médico, sendo omitida doença grave e fatal de que a sinistrada já sofria (pênfigo bolhoso), que foi causa adequada do seu óbito, ocorrido cerca de ano e meio após a celebração do seguro, constitui fundamento de anulação do contrato e de recusa da cobertura do sinistro (cfr. artº 25 do RJCS).
(Sumário elaborado pela Relatora)
Recorrente: AA
Recorrida: A..., S.A
Juiz Desembargador Relator: Cristina Neves
Juízes Desembargadores Adjuntos: Luís Miguel Caldas
Luís Manuel Carvalho Ricardo
*
Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:
1) A assumir a regularização do sinistro por morte de BB, ocorrida em ../../2015, no âmbito da apólice n.º ...89, até ao limite da sua responsabilidade;
2) A pagar ao Banco 1..., S.A. o valor que estiver em dívida à data em que a ré proceder ao pagamento, até ao limite das suas responsabilidades, referente aos financiamentos com os atuais n.ºs ...96, ...96 e ...96;
3) A pagar ao Autor todos os valores por este pagos quer ao Banco 2..., quer ao Banco 1..., S.A. desde ../../2015 e até à data em que a ré venha a proceder ao pagamento ao Banco 1..., incluindo nomeadamente amortização de capital, juros, comissões, impostos e seguros, a liquidar em sede de execução de sentença, mas nunca inferior a € 19.678,42 (dezanove mil seiscentos e setenta e oito euros e quarenta e dois cêntimos) – diferença do capital em dívida à data do óbito e a data de 09.06.2023 –, ao que devem acrescer os juros moratórios, à taxa legal, desde a data de cada um dos pagamentos e até efetivo e integral pagamento;
4) A pagar ao Autor, enquanto único herdeiro da falecida BB, o capital remanescente, acrescidos de juros à taxa legal até efetivo e integral pagamento, em valor não inferior a € 4.402.17 (quatro mil quatrocentos e dois euros e dezassete cêntimos), contabilizando-se os juros vencidos entre 25.4.2015 e a presente data em € 1.431,85 (mil quatrocentos e trinta e um euros e oitenta e cinco cêntimos);
5) Subsidiariamente, restituir ao autor todos os prémios de seguro pagos à ré, em valor não inferior a € 6.114,78 (seis mil cento e catorze euros e setenta e oito cêntimos) e o remanescente a liquidar em sede de execução de sentença, acrescidos dos respetivos juros moratórios, à taxa legal, desde as datas de pagamento e até efetivo e integral pagamento.
Para tanto, alega, em síntese, que é herdeiro de BB, falecida em ../../2015, e do filho menor de ambos, falecido em ../../2017, tendo outorgado ambos o A. e a sua falecida esposa, contrato de seguro com a R., tendo como beneficiário irrevogável em caso de morte o então Banco 2..., S.A., até ao montante em dívida e herdeiros legais da pessoa segura, em partes iguais, 100% do capital remanescente e que, pese embora lhe tenha sido participado o respectivo sinistro – falecimento do 1.º tomador – a R. não liquidou as importâncias seguras, incumprindo as obrigações contratuais a que se vinculou.
Deduziu ainda a intervenção do B..., S.A., alegando que, sendo o Banco o beneficiário da apólice, é necessária a sua intervenção do lado ativo para garantir a legitimidade da demanda.
Absolve-se a Ré A..., S.A. de todos os pedidos contra si deduzidos pelo Autor AA.”
*
“1) Como nota introdutória, impõe-se salientar a atual amplitude processual do Tribunal da Relação na reapreciação da decisão sobre a matéria de facto operada pela 1.ª instância;
2) Firmado o 2.º grau de jurisdição de forma tão eloquente, quer pela lei, quer pela doutrina, quer pela mais alta instância dos tribunais judiciais, impõe-se clarificar que o autor não aceita que o tribunal de 1.ª instância tenha considerado provado o(s) facto(s) seguinte(s):
“4. (...), tendo sido explicadas, informadas as cláusulas do contrato se seguro.”
17. A pessoa segura tinha conhecimento das suas patologias que, intencionalmente, e deliberadamente, omitiu na subscrição da proposta de seguro. – artigo 13.º da contestação.
18. Se a Ré tivesse conhecimento de tais patologias nunca teria celebrado tal contrato de seguro. – artigo 32º da contestação. (nossos grifos)
3) E como não aceita que a referida matéria tivesse sido considerada prova, a 2.ª instância deverá reverter a referida decisão e, consequentemente, deverá considerar não provados os factos alegados, o que se peticiona;
4) Se bem interpretámos a decisão recorrida, o tribunal “a quo” fundamentou a decisão sobre a parte impugnada do ponto 4 da matéria de facto, supratranscrita, nos termos seguintes:
“A convicção do Tribunal assenta sobretudo no conjunto da prova documental apresentada pelas partes, conforme análise critica que se passará a fazer, conjugada com o depoimento das testemunhas atenta a intervenção que tiveram em alguns factos relevantes, tendo em mente as questões de facto controvertidas nesta ação e as regras de distribuição do ónus da prova.
(....)
Quanto aos factos dados como provados no ponto 4, 5, 6, 7 e 8 os mesmos (...). Quanto à explicação e informação das cláusulas o tribunal valorou o teor das declarações prestadas pela testemunha CC, às quais iremos fazer referência infra.” (retirado das páginas 17 e 18 da sentença recorrida – nossos grifos)
E acrescentou mais adiante:
“(...)
O tribunal teve oportunidade de ouvir em declarações a testemunha CC, mediador de seguros por conta da Ré, o qual angariou esta proposta, declarou ser amigo do Autor bem como de BB, à qual desconhecia qualquer problema de saúde. Declarou que se tratava de uma transferência de um seguro, pelo que já não era uma circunstância nova para o Autor e esposa, e garantiu que explicou as condições gerais e as garantias mais valiosas, e que as propostas foram lidas a ambos e por estes assinadas na mesma ocasião.” (retirado da página 20 da sentença recorrida – nossos grifos)
5) Salvo o devido respeito, que é muito, o referido trecho da sentença “sub judice” demonstra à saciedade a violação das mais elementares regras do processo civil, nomeadamente os princípios da fundamentação e da audiência contraditória, este atualmente consagrado no artigo 415.º do CPC;
6) O ónus da prova da parte impugnada do ponto 4 da matéria de facto incumbia à ré, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 1.º e no n.º 3 do artigo 5.º do DL 446/85, de 25/10, e, ao contrário do pugnado pelo tribunal “a quo”, a testemunha CC não
garantiu que, EM CONCRETO E NESTA SITUAÇÃO ESPECÍFICA, tivesse explicado e lido a ambos os tomadores do seguro as condições gerais e as garantias mais valiosas;
7) Na verdade, e como resultará da reapreciação da prova gravada (sessão de 20/02/2025, com início às 10:06 e fim às 10:10:25, com duração de 00:19:06), esta testemunha: i) Não conseguiu precisar sequer o ano em que angariou e mediou a celebração do contrato; ii) Não conseguiu precisar com rigor sequer o local onde foi assinado o contrato; iii) Não conseguiu precisar o que disse/explicou em concreto aos tomadores; e iv) Não conseguiu precisar sequer quem preencheu o formulário;
8) Para suportar esta impugnação, atente-se no conteúdo das concretas perguntas e respostas que lhe foram colocadas e que se encontram transcritas na motivação do presente recurso;
9) Resultando que o tribunal “a quo” subverteu o teor das declarações da testemunha CC, conferindo-lhes na fundamentação uma aparência de segurança, de
conhecimento concreto, de credibilidade quando, na verdade, a testemunha NÃO foi segura, NÃO revelou ter conhecimento/recordação da situação em concreto e, assim, não lhe podia ter sido atribuída a credibilidade e a força probatórias que o tribunal de 1.ª instância lhes concedeu;
10) Aliás, e sempre com o devido respeito, que é muito, o tribunal “a quo” nem sequer concretizou na fundamentação o que a testemunha considerou ser o essencial para os tomadores de seguros de vida, no caso as garantias de cobertura (morte e/ou invalidez), e, neste segmento, atente-se no ponto VI do sumário do Acórdão do STJ, datado de 26/02/2019, tirado no processo n.º 1316/14.4TBVNG-A.P1.S2, relatado pelo Conselheiro Fonseca Ramos;
11) Aquela fundamentação, “rectius” a decisão “sub judice” não é nem clara, nem indubitável, o que equivale ao vício de falta de fundamentação, o que expressamente se argui para todos os legais e devidos respeito, devendo, também por este motivo, ser revogada;
12) Neste concreto segmento do ponto 4 da matéria de facto, o tribunal “a quo” afirmou ter sopesado ainda as declarações de parte do Autor, nos termos seguintes:
“(...)
O Autor em declarações de parte declarou que CC já trazia tudo preenchido, nada questionando acerca da saúde do Autor e esposa, que só assinaram e foram à vida, não houve perda de tempo.
Acresce que resulta de tal questionário a declaração com o seguinte teor “(...), seguindo-se a assinatura de BB, assinatura que não se mostra impugnada, pelo que, podemos presumir, que ao subscrever esta declaração, BB aprovou o seu conteúdo.
Tudo conjugado o tribunal não formou convicção de que a A... assumiu o risco da referida Apólice, nos termos declarados, sem que, antes da celebração do contrato, tivesse esclarecido o autor, enquanto tomador de seguro, e a pessoa segura, entretanto falecida, acerca do dever de declaração inicial do risco, bem como do regime do seu incumprimento, tanto mais que nem o autor, nem a sua falecida mulher tinham quaisquer conhecimentos na área dos seguros, pelo que tal factualidade teve assento nos factos não provados na alínea b) e c).” (retirado das páginas 20 e 21 da sentença recorrida – nossos grifos)
13) Na verdade, e como resultará da reapreciação da prova gravada (sessão de 20/02/2025, com início às 09:51 e fim às 10:01, com duração de 00:10:02), o Autor: i) Descreveu o local onde foi subscrito o seguro (café); ii) Descreveu o procedimento de subscrição do seguro; e iii) Descreveu o que lhe(s) foi informado/explicado (apenas as coberturas) pelo mediador;
14) Para suportar esta impugnação, atente-se no conteúdo das concretas perguntas e respostas que lhe foram colocadas e que se encontram transcritas na motivação do presente recurso;
15) O tribunal “a quo” não parece ter-lhe atribuído relevância/credibilidade processual e utilizou-se o verbo “parecer” porque, na verdade, a 1.ª instância não tomou posição expressa sobre o conteúdo destas declarações de parte, o que expressamente se argui para todos os legais e devidos efeitos;
16) Na verdade, o autor admitiu que foi ele e a esposa que assinaram a proposta de seguro e explicou com razoabilidade o procedimento de subscrição, que, tomando por referência o homem médio, terá de ser considerado o habitual/normal, isto é a existência de uma relação de confiança entre o mediador e os clientes, sendo o primeiro a preencher os papéis e os segundos a assinar;
17) Frise-se, aliás, que quer a testemunha CC, quer o próprio Autor apontaram no sentido de que apenas foram relevadas/explicadas as coberturas da Apólice (morte e/ou invalidez) e nada mais;
18) A presunção trilhada pelo tribunal “a quo”, entre o facto conhecido e o facto desconhecido, mostra-se desprovida de qualquer razoabilidade prática, estando verdadeiramente inquinada por vício de raciocínio e de lógica, o que expressamente se argui;
19) Pois olvidou quer a relação de confiança existente entre o mediador e os tomadores do seguro, quer o procedimento de subscrição relatado pelos intervenientes (assinatura num café,
durante a laboração deste, por parte do autor e da falecida), quer o facto de se tratar de uma
transferência de seguro;
20) Ora, tratando-se de uma transferência de seguro e sopesando as declarações de parte do Autor e as da citada testemunha, no segmento em que podem ser julgadas concretas, o normal é o mediador ter copiado as informações da apólice anterior, preencheu toda a documentação da apólice em dissídio e só depois a deu a assinar aos tomadores, sem qualquer outra explicação e/ou informação, para além das coberturas;
21) EM SUMA: Deve ser considerado NÃO PROVADO o segmento do ponto 4 da matéria de facto, isto é, “4. (...), tendo sido explicadas, informadas as cláusulas do contrato se seguro.”, uma vez que a prova produzida neste particular (declarações de parte do Autor e da testemunha CC – mediador) não dá guarida aquela decisão, bem pelo contrário;
22) Salvo o devido respeito por opinião divergente, a decisão do tribunal “a quo” é profundamente injusta e ilegal, quer de um ponto de vista substantivo, quer de um ponto de vista adjetivo;
23) A 1.ª instância olvidou o concreto teor da comunicação da recorrida através da qual declinou a responsabilidade pela regularização do sinistro, sendo que, como é consabido, “II – A declaração mediante a qual se pretende resolver um contrato deve ser suficientemente precisa quanto aos motivos e intenção, não bastando invocar que se resolve o contrato porque a contraparte incumpriu as obrigações a que estava adstrito, tornando-se mister concretizar a situação de incumprimento que legitimará essa forma de extinção do vínculo. III – Não é admissível a posterior invocação na acção, como fundamento da resolução, de um qualquer incumprimento da contraparte que não tenha sido feito valer oportunamente na declaração resolutória.” (retirado do Acórdão do TRP, de 11/04/2008, Processo n.º 10888/14.2T8PRT-A.P1 – nossos grifos);
24) Ora, sopesando o concreto teor da comunicação da Ré, é manifesto que a declaração resolutória não contém qualquer indicação concreta de qual foi a “patologia prévia à data da contratação da apólice, omitida na contratação do seguro” e, por isso, não indica de forma suficiente qual o motivo para não assumir a regularização do sinistro e, consequentemente, tal comunicação não pode continuar a ser julgada válida e eficaz, por violação do disposto nos artigos 295.º e 224.º, ambos do Código Civil;
25) O tribunal “a quo”, a este propósito considerou: “É certo que não concretiza a patologia, e nem o deveria fazer, desde logo considerando que se trata de um dado pessoal da BB (e tal como alegou o Ilustre mandatário da Ré nas suas alegações finais), e sendo tal comunicação enviada para terceiros nomeadamente para o beneficiário irrevogável, existe a reserva da informação pessoal, não existindo autorização para partilha de tais dados tão sensíveis e pessoais.” (retirado das páginas 42 e 43 da sentença “sub judice” – nossos grifos)
26) Salvo o devido respeito, que é muito, tal posição é absolutamente injustificada e ilegal, pois, por um lado, a A... dispôs a seu favor de um conjunto de cláusulas contratuais que obrigam os tomadores de seguro a facultar a sua informação médica e clínica e, por outro, o autor pugna no sentido de qua o motivo para a não regularização do sinistro tem que ser suficientemente concretizado ao(s) tomador(es) do Seguro e não obrigatoriamente ao Beneficiário Irrevogável da mesma Apólice;
27) Aliás, tendo a BB falecido, a sua informação médica e clínica passou a ser propriedade dos respetivo herdeiros legais (à data o autor e o filho de ambos, entretanto falecido) e, sendo assim, que é, nada obstava, bem pelo contrário, a que a comunicação de não regularização do sinistro fosse concreta e suficientemente fundamentada com o(s) motivo(s) e notificada ao tomador do seguro sobrevivo, ora recorrente;
28) Os factos julgados provados estão, aliás, em contradição com a própria comunicação da A... através da qual declinou a regularização do sinistro, pois nesta a recorrida plasmou o seguinte: “(...) tanto mais que se a A... tivesse conhecido o facto omitido, a apólice assumiria outro enquadramento de contrato de seguro.”
29) A C..., extrajudicialmente, não imputou qualquer conduta dolosa aos tomadores do seguro (ao autor e à falecida mulher), pois, se o tivesse feito (e provado em fase judicial) seria
aplicável o n.º 1 do artigo 25.º do RJCS, ou seja “Em caso de incumprimento doloso do dever referido no n.º 1 do artigo anterior, o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro.” (nossos grifos)
30) Atendendo ao teor da comunicação da A... também não poderia estar em causa o disposto nas alíneas b) do n.º 1 e do n.º 4 do artigo 26.º do RJCS, pois estas pressupõem que “em caso algum, celebra contratos para a cobertura de riscos relacionados com o facto omitido ou declarado inexactamente.” e que ”em caso algum, teria celebrado o contrato se tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexatamente”;
31) Como se disse, a Seguradora, extrajudicialmente, confessou que “a apólice assumiria outro enquadramento de contrato de seguro” e, assim, ter-se-ia de afastar as condutas dolosas (artigo 25.º do RJCS), bem como o incumprimento negligente com as consequências firmadas nas alíneas b) do n.º 1 e do n.º 4 do artigo 26.º do RJCS, pois, insiste-se, a A..., por um lado, NÃO IMPUTOU QUALQUER CONDUTA DOLOSA e, por outro, CONFESSOU QUE A APÓLICE ASSUMIRIA OUTRO ENQUADRAMENTO (ou seja, jamais alegou que nunca teria celebrado tal contrato de seguro).
32) Considera-se, portanto, um absurdo, o tribunal “a quo” ter considerado provado os seguintes factos: ”17. A pessoa segura tinha conhecimento das suas patologias que, intencionalmente, e deliberadamente, omitiu na subscrição da proposta de seguro. – artigo 13.º da contestação.” e “18. Se a Ré tivesse conhecimento de tais patologias nunca teria celebrado tal contrato de seguro. – artigo 32º da contestação. (nossos grifos)
33) Mesmo que tais factos tivessem respaldo na realidade, no que não se concede minimamente, ter-se-ia sempre de concluir que a A... atuou em ABUSO DE DIREITO, na modalidade de “venire contra factum proprium” – artigo 334.º do Código Civil, o que expressamente se invoca para todos os legais e devidos efeitos;
34) Na medida em que pugnou extrajudicialmente no sentido de que “a apólice assumiria outro enquadramento de contrato de seguro” (afastando assim as condutas dolosas e as condutas negligentes com a consequência prevista nas alíneas b) do n.º 1 e do n.º 4 do artigo 26.º do RJCS) e, judicialmente veio pugnar no sentido de uma atuação dolosa por parte da tomadora do Seguro (com respaldo no artigo 25.º do RJCS);
35) Aliás, não pode olvidar-se o disposto no n.º 4 do artigo 24.º do RJCS quando dispõe: “4 – O segurador, antes da celebração do contrato, deve esclarecer o eventual tomador do seguro ou o segurado acerca do dever referido no n.º 1, bem como do regime do seu incumprimento, sob pena de incorrer em responsabilidade civil, nos termos gerais.” (nossos grifos);
36) Ora, se os tomadores do seguro não foram esclarecidos do dever de declaração inicial do risco e regime do seu incumprimento, e não foram (cfr. declarações de parte do autor e declarações da testemunha CC), é evidente, salvo melhor opinião, que é absolutamente irrelevante quem preencheu o questionário médico e saber se este está ou não sujeito ao regime das cláusulas contratuais gerais;
37) Aliás, relativamente aos pontos 17 e 18 da matéria de facto considerada provada, cuja decisão terá de ser revertida, impõe-se alegar que o tribunal “a quo” desconsiderou a circunstância de a proposta de seguro estar datada de 28/11/2013 e de NÃO EXISTIR QUALQUER REGISTO DE CONSULTA E/OU EPISÓDIO DE URGÊNCIA NOS SEIS MESES ANTERIORES (cfr. documentos da Unidade Local de Saúde ... com entrada no processo em 09/12/2024). E o mesmo se diga relativamente aos documentos traduzidos da Língua Francesa para a Língua Portuguesa, que, de facto, atestam a existência de consultas em 03/07/2012, 15/10/2012, 29/10/2012 e 18/02/2013;
38) Salvo o devido respeito, que é muito, é abusivo por parte do tribunal “a quo” desconsiderar que, inexistindo qualquer registo de consulta e/ou episódio de urgência, em Portugal e/ou França, nos seis meses anteriores à celebração do contrato em dissídio nos autos (28/11/2013), a tomadora do seguro entretanto falecida, tivesse conhecimento das suas patologias e, mais grave do que isso, tivesse omitido tal situação de forma deliberada e intencional na omissão. É FALSO!!!
39) A tomadora do seguro NÃO AGIU COM DOLO e a A... bem sabe que assim foi porque, como se disse, NÃO IMPUTOU QUALQUER ATUAÇÃO DOLOSA, bem pelo contrário, uma vez que até apontou expressamente (na comunicação de não regularização do sinistro) para a possibilidade de “a apólice assumiria outro enquadramento de contrato de seguro”.;
40) EM SUMA: mal andou o tribunal “a quo”, quer no julgamento da matéria de facto, quer no julgamento da matéria de direito e, por isso, impõe-se a revogação da decisão de 1.ª instância, condenando-se a recorrida nos termos peticionados em sede de petição inicial.
Nestes termos e melhores de Direito, e sempre com o Douto Suprimento de V. Exas. deve o presente recurso ser julgado procedente e por via do mesmo, revogar-se a decisão “sub judice”, substituindo-a por outra que condene a ré em conformidade com o pedido, com todas as consequências legais.”
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QUESTÕES A DECIDIR
Nestes termos, as questões a decidir consistem em apurar:
a) da admissibilidade e procedência da impugnação da matéria de facto;
b) se não existem fundamentos para a anulabilidade do contrato de seguro;
c) se a R. seguradora actua em abuso de direito.
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Corridos que se mostram os vistos aos Srs. Juízes Desembargadores-adjuntos, cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1. No dia ../../1999, o autor casou com BB, sem convenção antenupcial. – artigo 1º da petição inicial.
2. No dia ../../2015, BB faleceu no estado de casada com o autor, em primeiras núpcias de ambos, no regime de comunhão de adquiridos, sem testamento ou qualquer disposição de última vontade, tendo-lhe sucedido o autor e o filho menor de ambos, DD. – artigo 2º da petição inicial.
3. No dia ../../2017, o menor DD faleceu no estado de solteiro, sem testamento ou qualquer disposição de última vontade, tendo-lhe sucedido o autor. – artigo 3º da petição inicial.
4. Relativamente a contrato de seguro celebrado entre as partes, a ré A..., no dia 02.12.2013, emitiu Declaração de Emissão da apólice n.º ...89, com efeito do dia 29.11.2013 e vencimento em 28.11.2047, com as coberturas “Seguro Principal”, com o capital de 108,000,00,00€ e vencimento em 29.11.2047, sendo pessoas seguras o autor e a sua então mulher, BB, tendo sido explicadas, informadas as cláusulas do contrato se seguro. – artigo 5º e 20º da petição inicial.
5. Mais declarando que a referida Apólice tinha a cláusula beneficiária: “EM CASO DE MORTE: Banco 2..., S.A. (Beneficiário Irrevogável), até ao montante em dívida; Herdeiros Legais da Pessoa Segura, Em Partes Iguais, 100% do capital remanescente”. – artigo 6º da petição inicial.
6. Beneficiário irrevogável o Banco 2..., S.A. porque este financiara o autor e a sua então mulher, no ano de 2013, para aquisição de habitação própria e permanente e crédito hipotecário, através dos financiamentos n.ºs ...43, ...43 e ...43, sendo este o capital garantido pela apólice da ré. – artigo 7º da petição inicial.
7. O Banco 2..., S.A. foi vendido ao B..., S.A., incluindo a maior parte dos seus ativos e passivos, entre os quais os contratos de financiamento supra referidos. – artigo 8º da petição inicial.
8. Em abril de 2015, o autor participou o sinistro à A..., para acionamento da apólice supra referida, com base no risco coberto de Morte de BB. – artigo 11º da petição inicial.
9. Á data do óbito, a dívida ao beneficiário irrevogável da referida apólice, o então Banco 2..., não era inferior a € 103.597,83 (cento e três mil quinhentos e noventa e sete euros e oitenta e três cêntimos), mais concretamente:
do financiamento n.º ...43, que em função da aquisição passou ao n.º ...96: € 52.215,92;
do financiamento n.º ...43 que em função da aquisição passou ao n.º ...96: € 35.060,77;
do financiamento n.º ...43 que em função da aquisição passou ao n.º ...96: € 16.321,14. – artigo 12º e 45º da petição inicial;
10. O autor tem vindo a proceder ao pagamento dos financiamentos desde a morte da sua então mulher (../../2015), através de amortização de capital, pagamento de juros e outras despesas conexas (IS, comissões bancárias, seguros, entre outras), primeiro ao Banco 2... e depois ao Banco 1..., e à data de 9.06.2023, o capital em dívida era de €83.919,41: do financiamento n.º ...96: € 41.663,03;
do financiamento n.º ...96: € 27.975,12;
do financiamento n.º ...96: € 14.281,26;. – artigo 44º e 48º da petição inicial.
11. O Autor e a sua então mulher, desde o início do contrato de seguro até à presente data pagaram a título de prémios a quantia não inferior a €6.114,78, mais concretamente Ano de 2013: € 358,94;
Ano de 2014: € 404,22;
Ano de 2015: € 431,54;
Ano de 2016: € 462,53;
Ano de 2017: € 547,45;
Ano de 2018: € 587,75;
Ano de 2019: € 633,74;
Ano de 2020: € 685,95;
Ano de 2021: € 745,07;
Ano de 2022: € 811,73;
1.º semestre do ano de 2023: € 446,55; - artigo 54º da petição inicial.
12. O autor, através do mandatário então constituído, Dr. EE, remeteu à A... toda a documentação por esta solicitada para apreciação do sinistro, tendo a Ré, por carta datada de 05.11.2018, declinado a responsabilidade com os seguintes fundamentos:
“(...), vimos pela presente informar que, após a análise de toda a documentação clínica que nos foi facultada, foi possível concluir que a Pessoa Segura possuía patologia prévia à data da contratação da apólice, omitida na contratação do seguro. Face ao exposto, e nos termos quer do art. 6º (Dever de Declaração Inicial do Risco) e subsequentes, constante das Condições Gerais aplicáveis (em anexo), quer nos termos da Lei do Contrato de Seguro, lamentamos informar que declinamos o sinistro participado, não havendo lugar ao pagamento de qualquer indemnização, considerando-se o contrato de seguro em causa anulável por omissão do dever inicial do risco, tanto mais que se a A... tivesse conhecido o facto omitido, a apólice assumiria outro enquadramento de contrato de seguro.(...)” – artigo 14º da petição inicial.
13. A causa de morte de BB foi: a) encefalopatia anóxica (38 horas); b) paragem cardio-respiratória (38 horas) c) obstrução da via aérea (38 horas); d) pênfigo bolhoso (4 anos) – artigo 40º da petição inicial concretizado com o teor do certificado de óbito n.º ...61, nos termos do disposto no artigo 5º, n.º 2 alínea b) do Código de Processo Civil.
14. Na proposta de seguro, onde se incluem os questionários de saúde das pessoas seguras, constata-se que, no que se refere à pessoa segura falecida, que as respetivas declarações de saúde se encontram limpas, - artigo 11º da contestação;
15. Ou seja, das questões apresentadas, e em três questões tais como se tomava medicação regularmente, se padecia de doenças do aparelho respiratório ou outras, a pessoa segura respondeu negativamente. – artigo 12º da contestação;
16. Da informação clínica obtida pela Ré, constatou-se que a BB tinha o seguinte historial clínico, com data anterior à da subscrição do contrato de seguros, ou seja, 29.11.2013:
01.01.1999 – Inicio da doença penfigoide/Doença Bolhosa Autoimune (DBAI);
03.07.2012 – 1ª consulta no Centro de Referenciação de Doenças Raras – Delegação de Avicenne, França. Diagnóstico positivo de penfigoide das mucosas e penfigoide cicatricial com novas lesões e lesões oftalmológicas e ORL graves;
??.10.2012 – TAC com alterações (nódulos hipodensos hepáticos e micronódulos esplénicos);
15.10.2012 – Consulta com registo de estabilidade de lesões;
29.10.2012 – Consulta com registo de agravamento e novas lesões, receituário;
18.02.2013 – consulta com registo de agravamento de lesões oculares e ORL, anemia, linfopenia, receituário;
21.02.2013 – Internamento para tratamento;
08.03.2013 – Tratamento em ambulatório, doença continua activa;
21.03.2013 – Consulta com registo de estabilidade das lesões e receituário;
17.06.2013 – Consulta com registo de remissão quase completa das lesões activas e agravamento das lesões cicatriciais. – artigo 10º da contestação;
17. A pessoa segura tinha conhecimento das suas patologias que, intencionalmente e deliberadamente, omitiu na subscrição da proposta de seguro. – artigo 13º da contestação.
18. Se a Ré tivesse conhecimento de tais patologias nunca teria celebrado tal contrato de seguro. – artigo 32º da contestação.
Factos não provados
Da petição inicial:
a) Artigo 7 – A (O Banco 2..., à data, ficou na posse das cópias e das certidões dos referidos financiamentos para conclusão do processo de registo de hipoteca(s), mas não chegou a entregar tais documentos ao autor e/ou à sua falecida mulher).
b) Artigo 16º (… a A... assumiu o risco da referida Apólice, nos termos declarados, sem que, antes da celebração do contrato, tivesse esclarecido o autor, enquanto tomador de seguro, e a pessoa segura, entretanto falecida, acerca do dever de declaração inicial de risco, bem como do regime do seu incumprimento);
c) Artigo 18º (Tanto mais que nem o autor, nem a sua falecida mulher tinham quaisquer conhecimentos na área dos seguros);
d) Artigo 20º, parcialmente (…nem facultadas….).
Da contestação:
e) Artigo 5º (Em 23.06.2015 a ora contestante solicitou a respectiva documentação em falta para a instrução do sinistro);
f) Artigo 6º (Em 3.08.2025 foi recepcionada pela ora Ré carta de advogado a remeter alguma documentação), com exceção do demais por se tratar de impugnação;
g) Artigo 7º (Em 25.08.2025 foi remetida carta ao advogado solicitando documentos em falta, designadamente relatório do médico de família ou do médico assistente com o historial clínico completo);
h) Artigo 8º (Procedimento que se seguiu com as datas de 8.01.2016, 1.04.2016, 6.09.2026, 24.10.2016, 29.03.2017, 4.04.2027, 4.07.2017, 3.10.2017, 19.02.2018, 4.09.2018 e 18.09.2018);
i) Artigo 18º parcialmente (…ou, pelo menos sujeitá-lo-ia a um agravamento do prémio).
Da petição inicial: artigo 4º; artigo 5º e 6º, parcialmente na parte não transposta para os factos provados; 8º-A; 9º, 10º, 13º; 15º, 17º, 19º, 20º, na parte conclusiva, 21º, 22º, 23º, 24º, 25º, 26º, 27º, 28º, 29º, 30º, 31º, 32º, 34º, 35º, 36º, 37º, 38º, 39º, 41º, 42º, 43º, 46º, 47º, 48º, 49º, 50º, 50º-A; 51º, 52º, 53º, 55º e 56º;
Da contestação: artigo 1º, 2º, 3º, 4º, 14º, 15º, 16º, 17º, 18º, 19º, 20º, 21º, 22º, 23º, 24º, 25º, 26º, 27º, 28º, 29º, 30º, 31º, 33º, 34º e 35º.
Decidindo:
Relativamente aos requisitos de admissibilidade do recurso quanto à reapreciação da matéria de facto pelo tribunal “ad quem”, versa o artº 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, o qual dispõe que:
«Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
No que toca à especificação dos meios probatórios, «Quando os meios probatórios como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (artigo 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).
No que respeita à observância dos requisitos constantes deste preceito legal, após posições divergentes na nossa jurisprudência, o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se no sentido de que «(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.» [3]
Assim, “O que verdadeiramente importa ao exercício do ónus de impugnação em sede de matéria de facto é que as alegações, na sua globalidade, e as conclusões, contenham todos os requisitos que constam do art. 640º do Novo CPC.
A saber:
- A concretização dos pontos de facto incorrectamente julgados;
- A especificação dos meios probatórios que no entender do Recorrente imponham uma solução diversa;
- E a decisão alternativa que é pretendida.[4]
Nestes termos, deste preceito resultam dois ónus principais e um secundário, consistente os primeiros na indicação concreta da matéria de facto impugnada, dos meios de prova que sustentam decisão diversa e da decisão que deveria ter sido tomada; o segundo, “na indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados – art. 640.º, n.º 2, al. a), do CPC”[5].
O recurso interposto cumpre os ónus impostos por este preceito legal, indicando não só os pontos da matéria de facto impugnados, como a resposta que lhes haveria de ser dada, os concretos meios de prova que sustentam cada um destes factos e ainda, as passagens da gravação em que se funda para ver alteradas as respostas a estes pontos da matéria de facto, de forma perfeitamente perceptível.
O ónus de impugnação imposto ao recorrente pelo artº 640 do C.P.C. não obsta a que este tribunal de recurso, examinando os meios de prova produzidos, chegue a uma convicção diversa do tribunal de primeira instância. Na verdade, no que toca à possibilidade e limites da reapreciação da matéria de facto, do disposto no artº 640, nº2, al b) e 662 do C.P.C. resulta assegurado aos recorrentes um efectivo duplo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto. Nesta medida, impõe-se ao tribunal de recurso a alteração da matéria de facto se a decisão proferida pelo tribunal recorrido tiver violado as regras de ciência, razoabilidade e experiência, contidos no princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no artº 607 nº 5 do C. P.C.[6] ou se verificar que foram violadas regras de direito probatório material ou se a prova produzida, os factos tidos como assentes ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa.
Conforme acertadamente refere Miguel Teixeira de Sousa[7], o princípio da livre apreciação da prova “baseia-se na prudente convicção do Tribunal sobre a prova produzida (art.º 655.º, n.º1), ou seja, as regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência”, não sendo lícito a fixação de factos que não assentem nestas regras. É no entanto certo que este tribunal já não beneficia dos princípios da oralidade e da mediação de que beneficiou o tribunal de primeira instância, pelo que, como bem salienta Ana Luísa Geraldes[8], a apreciação deste tribunal tem de ter em conta a ausência destes princípios. Assim “(e)m caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova”.
Volvendo à impugnação da matéria de facto, a sentença recorrida lavrou a seguinte fundamentação em relação à parte final do ponto 4: em relação à “explicação e informação das cláusulas o tribunal valorou o teor das declarações prestadas pela testemunha CC (…) Quanto à alegada falta de esclarecimento por parte da Ré, quer do Autor quer da pessoa segura falecida acerca do dever de declaração inicial de risco, bem como do regime do seu incumprimento, tanto mais que nem o autor, nem a sua falecida mulher tinham quaisquer conhecimentos na área dos seguros: a contratação de um seguro de vida (sendo que já não era o primeiro contrato de seguro que estavam a celebrar) não pode ser considerado um assunto complexo, sendo que à sua celebração e ao seu cumprimento ninguém pode declarar ser alheio, atenta a simplicidade do questionário de saúde, não se lhes exigia que soubessem os termos técnicos que envolve a contratação de um empréstimo bancário, mas perante a obrigatoriedade de celebrarem um contrato de seguro vida, era-lhes exigido saber o que são questões de saúde, as quais, e considerando o teor do questionário, até se apresentam de linear interpretação e resposta simples, não sendo para tal exigido um conhecimento acima da média.
O tribunal teve oportunidade de ouvir em declarações a testemunha CC, mediador de seguros por conta da Ré, o qual angariou esta proposta, declarou ser amigo do Autor bem como de BB, à qual desconhecia qualquer problema de saúde. Declarou que se tratava de uma transferência de um seguro, pelo que já não era uma circunstância nova para o Autor e esposa, e garantiu que explicou as condições gerais e as garantias mais valiosas, e que as propostas foram lidas a ambos e por estes assinadas na mesma ocasião.
O Autor em declarações de parte declarou que CC já trazia tudo preenchido, nada questionando acerca da saúde do Autor e esposa, que só assinaram e foram à vida, não houve perda de tempo.
Acresce que resulta de tal questionário a declaração com o seguinte teor “A pessoa segura declara ter lido o conteúdo do presente questionário antes de o assinar, que este corresponde fielmente às respostas que declarou, sabendo que a não declaração de todas as circunstâncias que conheça e que razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pela A..., S.A., pode acarretar a perda parcial ou total dos direitos resultantes do seguro.”, seguindo-se a assinatura de BB, assinatura que não se mostra impugnada, pelo que, podemos presumir, que ao subscrever esta declaração, BB aprovou o seu conteúdo.”
Do acima exposto resulta que não só a decisão recorrida fundamentou de forma extensa e clara este ponto, como o fundamentou no depoimento da testemunha CC e na declaração vertida no questionário de saúde, subscrita pela referida BB.
Ora, se é certo que o artº 154 do C.P.C. impõe o dever de fundamentação de todas as decisões judiciais, em consonância com a exigência constitucional contida no artº 205, nº1, da nossa Constituição, fundamentação que, no caso da matéria de facto, deve observar o disposto no artº 607, nº4 do C.P.C., a decisão proferida pelo tribunal a quo, em relação a este ponto de facto, mostra-se extensamente fundamentada.
Que o ónus de prova da prestação das informações constantes deste contrato, nomeadamente do risco e da exclusão do risco, cabia à seguradora, não se oferece dúvida e decorre do disposto no artº 24, nº1 do RJCS (aprovado pelo D.L. nº 72/2008 de 16 de Abril) e do n.º 3 do artº 1 e no n.º 3 do artº 5 do DL nº 446/85, de 25/10. No entanto, se é à Seguradora que cabe o ónus de prova de que forneceu as informações referentes às condições do seguro e ao dever do segurado de declarar todas as circunstâncias relevantes para a aferição do risco, à pessoa segura/aderente cabe o ónus de alegação dos factos integradores da violação desse dever de informação, só nesse caso se impondo o ónus de prova da prestação destas informações pelo vinculado à obrigação[9].
A este respeito, o A. alegou na sua p.i. (artº 16) que “a A... assumiu o risco da referida Apólice, nos termos declarados, sem que, antes da celebração do contrato, tivesse esclarecido o autor, enquanto tomador de seguro, e a pessoa segura, entretanto falecida, acerca do dever de declaração inicial de risco, bem como do regime do seu incumprimento;
Assim, a violação do dever de informação que aqui é imputada à R. incide sobre o artº 6 da Declaração Inicial do Risco das Condições Gerais da Apólice, ou seja, o incumprimento pela Seguradora do dever de informação imposto pelo artº 24, nº4 do RJCS, cumprindo a esta, em termos gerais, quer por via deste preceito, quer por via do disposto nos artºs 1, nº3 e 5, nº3 do D.L. nº 446/85, o ónus de prova da prestação destas informações.
Ora, a este respeito referiu a testemunha CC, que o A. e a falecida BB pretendiam alterar o seguro que já tinham, tendo-lhes apresentado a proposta de seguro em causa e explicado as condições mais importantes deste contrato, nomeadamente as coberturas e prémios e o dever de prestar declarações verdadeiras. Só após os clientes subscreveram a proposta que se mostra junta com a contestação da R. seguradora datada de 28/11/2013.
Acresce que, nesta proposta, consta a seguinte declaração a que se seguiram as assinaturas do A. e da BB:
“A presente proposta foi preenchida pelo e/ou do tomador de seguro/pessoa segura, declarando o tomador de seguro/pessoa segura ter lido o seu conteúdo antes de assinar, que este corresponde fielmente às respostas declaradas, sabendo que a não declaração de todas as circunstâncias que conheça(m) e que deva(m) ter por significativas para a apreciação do risco pela A..., S.A., pode acarretar a perda parcial ou total dos direitos resultantes do seguro.
O tomador declara que tomou conhecimento de todas as informações a que se referem os artigos 18º a 21º e 183º do Decreto-lei nº 72/2008 de 16 de Abril, que constam das informações pré-contratuais, que lhe foram entregues e confirma que lhe foram prestados todos os esclarecimentos de que necessita para compreensão do contrato, nomeadamente, sobre as garantias e exclusões, sobre cujo âmbito e conteúdo se considera esclarecido.”
Se tal declaração por si só, não constitui prova plena do conhecimento efectivo das condições gerais e especiais do contrato e, nomeadamente que a Seguradora cumpriu o dever de informação imposto pelo artº 24, nº4 do RJCS, terá de ter pelo menos a virtualidade de inverter o ónus de prova dos factos que são contrários a esta declaração[10], cabendo então ao apelante alegar e provar que, pese embora a declaração genérica por si prestada, cláusulas existiram que lhe não foram comunicadas, ou explicado o seu concreto sentido[11], nem informado previamente do dever de prestar todas as informações relevantes para a aferição do risco pela seguradora.
Ocorre que não só não foi feita a prova de que não foi prestada informação sobre o conteúdo desta clausula (reproduzida nas condições gerais e especiais e nas próprias declarações contantes da Proposta), que corresponde no essencial ao disposto no artº 24 do RJCS, como a clausula em apreço é de fácil apreensão pelo destinatário. Com efeito, não bastam as declarações do A., parte nesta causa e nela interessado, pois que sujeito ao princípio da livre valoração da prova (artº 466, nº3 do C.P.C.), é desconforme ao teor do depoimento da testemunha CC.
Acresce que a celebração do seguro foi precedida de questionário médico, nos termos previstos no artº 177, nº1 do RJCS, dele constando de forma clara e concisa as informações que a seguradora entendia por pertinentes para a avaliação do risco, não alegando o A. que a falecida não tenha percebido qualquer das perguntas ou que tenha solicitado informações não respondidas pela seguradora. Em causa não está sequer a omissão de informações pertinentes para a aferição do risco, mas antes a prestação de falsas declarações às perguntas concretamente colocadas no questionário médico – com resposta negativa a todas as questões, nomeadamente aquelas referentes a doenças pré-existentes, toma de medicação e internamentos - sendo de fácil apreensão as consequências da prestação dolosa de falsas declarações, que resultam aliás expressas no artº 25 do RJCS e na aludida clausula 6ª.
Como é também de fácil apreensão o dever de preenchimento e de preenchimento com veracidade do questionário médico que precedeu a celebração deste seguro, constando aliás deste questionário uma declaração com o seguinte teor “A pessoa segura declara ter lido o conteúdo do presente questionário antes de o assinar, que este corresponde fielmente às respostas que declarou, sabendo que a não declaração de todas as circunstâncias que conheça e que razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pela A..., S.A., pode acarretar a perda parcial ou total dos direitos resultantes do seguro”.
Acresce que, conforme resulta do artº 6 nº2 do D.L. nº 446/85, diploma aqui invocado pelo recorrente, cabe ainda à pessoa segura o dever de solicitar esclarecimentos complementares, em caso de dúvida sobre o sentido de uma cláusula, o que se não alega ter sido solicitado pelo tomador de seguro e negado pelo obrigado à informação.
Em relação ao ponto 18, é manifesto dos factos relatados no ponto 16 e do teor do questionário médico, bem como do teor do depoimento da testemunha Dr. FF, pessoa que examinou os relatórios médicos da A., que a segurada sabia da existência desta doença (tratada num centro de doenças raras em França), que era já muito grave, altamente incapacitante e fatal, atenta a estenose da laringe superior a 75% e as dificuldades respiratórias associadas, situação que foi causa adequada da sua morte, ocorrida menos de ano e meio após.
Como refere a bem fundamentada decisão da primeira instância, “Considerando tais elementos clínicos o tribunal formou convicção segura de que BB ao tempo da subscrição da proposta de seguro (2.12.2013, com efeitos a 29.11.2013) encontrava-se diagnosticada com a doença penfigoide/Doença Bolhosa Autoimune, desde 3.7.2012 e que era seguida num Centro de Referenciação de Doenças Raras sito em França, onde se deslocava para consultas e tratamentos, quer quanto às lesões que ativas nas mucosas (que estariam, num período perto do seu decesso, em remissão) quer quanto às lesões cicatriciais, essas muito graves.
Quanto ao conhecimento por parte de BB acerca de tais factos, perante a realização de tal acompanhamento e tratamentos bem como as informações que soube prestar nos serviços médicos em Portugal, é inverosímil, porque contrária à razão e ao id quod plerumque accidit, que BB desconhecesse as fragilidades de que padecia, e que se vieram a revelar fatais.”
Ora, como refere Lebre de Freitas[12] “No âmbito do princípio da livre apreciação da prova, não é exigível que a convicção do Julgador sobre a validade dos factos alegados pelas partes equivalha a uma certeza absoluta, raramente atingível pelo conhecimento humano. Basta-lhe assentar num juízo de suficiente probabilidade ou verosimilhança.”
A certeza do julgador quanto aos factos é sempre uma certeza relativa, de acordo com regras de probabilidade e de verosimilhança, não sendo exigível certezas absolutas. Acresce que, conforme refere Pires de Sousa[13] o “standard de prova deve variar segundo a matéria concreta que esteja em litígio, designadamente em função dos bens ou direitos que se encontram em jogo, em função da importância e necessidade de obter uma decisão célere bem como dos custos expectáveis da produção e análise da informação potencialmente relevante. Cremos também que a ideia (…) de que o standard de prova deve ser mais exigente quanto maior for a improbabilidade do evento alegado colhe todo o sentido.”
Ou seja, de acordo com regras de verosimilhança e probabilidade, deve entender-se que existindo esta doença, gravíssima e com desenlace fatal, tendo em conta a sua evolução, com sintomas respiratórios e oculares (entre outros) altamente incapacitantes, a segurada forçosamente dela tinha conhecimento e, ao preencher o questionário omitindo toda e qualquer doença, internamento ou medicação, para contratação de um seguro de vida, visa omitir dolosamente esta situação da seguradora, bem sabendo que este risco não seria coberto se a declarasse.
Não é conforme às regras de experiência comum que quem subscreve um questionário médico, sendo previamente advertido do dever de dizer a verdade e que as suas declarações são relevantes para a celebração de um seguro de vida, omita doenças graves e fatais, sem ter conhecimento dessa omissão e sem ter noção das consequências para a seguradora, transformando a cobertura de um risco na cobertura de um evento futuro, mas certo.
Não é crível que quem preenche um questionário no qual negue ter tido qualquer intervenção cirúrgica, ter ou ter tido qualquer doença ou ter tomado ou tomar, à data da celebração do seguro, qualquer medicação, ou ter tido qualquer internamento, o faça sem intenção de iludir a seguradora.
Concluir pela irrelevância de todos estes comportamentos da pessoa segura, equivaleria retirar qualquer relevância ao dever, imposto pelo artº 24, nº1 do RJCS, de declarar com verdade todas as condições relevantes para a celebração do seguro e que lhe foram concretamente colocadas, sendo estas perguntas claras, directas e perceptíveis pelo cidadão comum. Às seguradoras caberia então a obrigação – que não a mera faculdade que resulta do disposto no artº 177, nº1 do RJCS, tendo em conta que o seguro é celebrado com base nas declarações do segurado - de solicitar em todos os casos, exames de saúde, até para pessoas que declarassem ser absolutamente saudáveis, com a inerente delonga e custo que não deixaria de ser reflectido no valor dos prémios.
Por último, no que se reporta ao ponto 18, assentou este nas declarações do Dr. FF, segundo o qual caso fosse prestada informação sobre o estado de saúde da falecida BB, teria sido recusado o seguro, pois que o seu estado era incapacitante e fatal, sendo certo que este depoimento não é contrariado pelo teor da comunicação remetida ao A. na qual a seguradora considera o contrato de seguro anulável, por omissão do dever inicial do risco.
Nestes termos, improcede a impugnação da matéria de facto.
***
Vejamos. Denomina-se contrato de seguro o contrato pelo qual uma pessoa transfere para outra o risco de verificação de um dano, na esfera própria ou alheia, mediante o pagamento de uma remuneração. A pessoa que transfere o risco diz-se tomador ou subscritor do seguro, a que assume esse risco e percebe a remuneração – prémio – diz-se segurador; o dano eventual é o sinistro; a pessoa cuja esfera jurídica é protegida é o segurado – que pode ou não coincidir com o tomador do seguro (artºs 1.º, 16.º, n.º 1, e 24.º n.º 1, do RJCS).
Em qualquer caso, visa-se a cobertura de um risco do tomador de seguro ou de outrem, pela transferência deste risco da esfera jurídica do tomador de seguro para a do segurador, sujeito ao pagamento de uma contrapartida: o prémio de seguro.
Este é o cerne da questão, na medida em que a definição do risco coberto constitui um elemento essencial do contrato de seguro e da determinação do prémio a suportar pelo segurado, conforme resulta do artº 1 do RJCS. Com efeito, só constitui sinistro para efeitos de accionamento da cobertura do seguro, o evento aleatório previsto no contrato (cfr. artº 99 do RJCS)[14].
O dever de declaração inicial do risco, resulta imposto ao segurado pelo artº 24, nº1 do RJCS, estando este obrigado, “antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador.”
A este respeito diz-nos Nuno Reis[15] que “Antes da celebração de um contrato, a seguradora deve aferir o risco que está prestes a assumir contratualmente. É assim uma vez que a seguradora deve calcular o prémio adequado ao risco assumido e assim evitar os perigos inerentes à selecção adversa. Considerando que a não prestação de informações incorrectas coloca em crise a própria aleatoriedade típica do contrato de seguro e que é na esfera do próprio tomador que serão encontrados os factores necessários à aferição daquele risco, diz-se que o contrato de seguro é um contrato em que a regra de comportamento de acordo com a boa fé deve ser entendida com grande exigência (princípio da uberrima bona fides ou da utmost good faith).” (…) Por outro lado, a violação dos deveres de informação conduz à aplicação de um regime distinto daquele previsto para os vícios da vontade negocial: os elementos dos tipos objectivos são distintos e verifica-se a circunstância particular de a parte tutelada pelos deveres de informação não ser a parte mais fraca na relação pré-contratual.”
Resultando a aposição nestes contratos de clausulas pré-determinadas, sem negociação de qualquer das suas clausulas, são impostos deveres de comunicação e esclarecimento, que decorriam já do disposto no artº 5 e 6 do D.L. nº 446/85 e do princípio da boa fé contratual constante do artº 227 do CC. e que resultam do regime especial vertido nos artºs 18, 21, 24 e 183 do RJCS, quer à seguradora – designadamente de esclarecer o tomador do seguro do dever de prestar declarações verídicas e das consequências em que pode incorrer se as não prestar - quer ao próprio segurado, nomeadamente o de prestar todas as informações relevantes para a aferição do risco a cobrir.
Este dever de informação sobre o risco, a cargo do segurado, nos seguros de vida, é independente da formulação de questionário específico (cfr. decorre do disposto no artº 24, nº2 do RJCS). O segurado está sempre obrigado a declarar todas as circunstâncias que possa ter por significativas para o risco que pretende ver coberto pela seguradora.
De acordo com Arnaldo Costa Oliveira[16] este dever de informação “depende de (1) este ter conhecimento do facto e de (2) o tomador “razoavelmente dever (tê-lo) por significativo para a apreciação do risco para o segurador. (…). O segundo requisito do dever de informação pressupõe que o tomador compreende o sentido do contrato de seguro a celebrar e, nessa medida, que percebe que o segurador se vincula e exige certo prémio como contrapartida de uma avaliação do risco em face de toda a informação disponível.” No entanto, se “o tomador por ignorância ou pouca reflexão, não compreende bem o sentido do contrato que pretende celebrar, nem por isso deixa de ter o mesmo dever de informação. A lei refere-se a uma leitura “razoável”, não só dos riscos existentes e da sua relevância, mas, por identidade de razão, do próprio contrato.”, de acordo com “um critério abstracto, ou seja, um critério de normalidade, e não um critério dependente das concretas capacidades do tomador.”
Certo que é irrelevante o incumprimento deste dever de informação se o segurador já sabia, ou devia saber as informações omitidas. Por outro lado, quando se verifique qualquer das circunstâncias descritas nas diversas alíneas do nº3 do artº 24 do RJCS, ou seja, nos casos em que o segurador tenha incorrido em negligência na elaboração das perguntas do questionário ou no tratamento das respostas, se tiver aceite o contrato, não se pode prevalecer destas circunstâncias, salvo existindo dolo do tomador do seguro ou do segurado com o propósito de obter uma vantagem (dolo fraudulento).
Conforme resulta do preâmbulo deste diploma, “Mantendo-se a regra que dá preponderância ao dever de declaração do tomador sobre o ónus de questionação do segurador, são introduzidas exigências ao segurador, nomeadamente impondo-se o dever de informação ao tomador do seguro sobre o regime relativo ao incumprimento da declaração de risco, e distingue-se entre comportamento negligente e doloso do tomador do seguro ou segurado, com consequências diversas quanto à validade do contrato. Neste âmbito, cabe ainda realçar a introdução do parâmetro da causalidade para aferir a invalidade do contrato de seguro e do já mencionado dever específico, por parte do segurador, de, aquando da celebração do contrato, elucidar devidamente a contraparte do regime de incumprimento da declaração de risco. Quanto à causalidade, importa a sua verificação para ser invocado pelo segurador o regime da inexactidão na declaração inicial de risco e a consequente invalidade do contrato de seguro.”
Nos seguros de vida, a declaração inicial do risco pode ser prestada também mediante o preenchimento de questionários médicos - que delimitam contratualmente o dever de declaração do risco - acompanhados ou não da celebração de exames médicos (artº 177 e 178 do RJCS), dependendo a celebração do contrato de seguro das declarações sobre o estado de saúde do segurado e do resultado desses exames médicos.
Por outro lado, resulta ainda do disposto no artº 25, nº1 e 3, do RJCS, que o contrato é anulável, em caso de incumprimento doloso da obrigação de declaração inicial do risco, mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro, caso em que o segurador não está obrigado a cobrir o sinistro que ocorra antes de ter tido conhecimento do incumprimento doloso deste dever.
Conforme refere ainda Arnaldo Costa Oliveira[17], está em causa o simples dolo, em conformidade com o disposto no artº 253, nº1 do C.C. que o define como “qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração, bem como a dissimulação, pelo declaratário ou terceiro, do erro do declarante.”
No caso dos autos, e no que se reporta ao cumprimento dos deveres de informação impostos à segurada, resultou da prova produzida que esta incumpriu estes deveres e incumpriu-os dolosamente, prestando falsas declarações no questionário médico que lhe foi apresentado pela seguradora no exercício da faculdade que lhe é conferida pelos artºs 176 e 177 do RJCS.
Tendo a falecida preenchido este questionário, indicando que não sofria nem sofrera de qualquer doença, nem tomava ou tomara qualquer medicação e nunca fora sujeito a intervenções cirúrgicas, nem internamentos, está demonstrado que incorreu em falsas declarações de forma intencional e dolosa[18], sujeitando-se assim às consequências previstas na clausula 25, nº1 do RJCS, que determina que “Em caso de incumprimento doloso do dever referido no n.º 1 do artigo anterior, o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro.”
Por outro lado, provou-se que a seguradora não teria celebrado este seguro tendo em conta as patologias de que sofria a tomadora de seguro, que eram não só incapacitantes, mas também com desenlace fatal, conforme esclareceu o Dr. FF, pelo que está verificado o nexo de causalidade relevante.
Por último, apesar de alegado o abuso de direito, não se vê em que assenta o A. esta alegação, qual seja a conduta imputada à R. que viole os deveres de boa fé que devem nortear a sua actuação com os tomadores de seguro/segurados, qual a actuação desta seguradora que constitua o venire contra factum proprium.
Com efeito, o abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, caracteriza-se pelo exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente. Traduz-se afinal, num acto ilegítimo, consistindo como refere Cunha de Sá[19] “a sua ilegitimidade num excesso de exercício de um certo e determinado direito subjectivo”, ultrapassados os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo próprio fim social e económico do direito, conforme decorre do artº 334 do C.C.
Assim, o ponto de partida do venire, como refere Baptista Machado,[20] consiste na adopção de uma conduta por um sujeito jurídico que, “objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também, no futuro, se comportará, coerentemente, de determinada maneira”, podendo “tratar-se de uma mera conduta de facto ou de uma declaração jurídico-negocial que, por qualquer razão, seja ineficaz e, como tal, não vincule no plano do negócio jurídico”.
É, no entanto, necessário que esta conduta tenha criado na contraparte uma situação de confiança, que essa situação de confiança seja justificada e que, com base nessa situação de confiança, a contraparte tenha actuado de determinada forma. Conforme refere Menezes Cordeiro[21], é necessário que se verifiquem os seguintes pressupostos:
“(...) 1.° Uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium);
2.° Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis;
3.° Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;
4.° Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível.”
A comunicação enviada ao A. na qual a R. declina o sinistro e considera o contrato anulável “por omissão do dever inicial do risco”, não pode ter criado no A. outra convicção se não a de que se recusava a pagar por doença pré-existente e não informada. A expressão “tanto mais que se a A... tivesse conhecido o facto omitido, a apólice assumiria outro enquadramento de contrato de seguro”, não significa que esta aceitaria o contrato com as coberturas de morte e invalidez permanente em relação à falecida BB. Não é conforme ao normal bom senso defender que, sofrendo a pessoa segura de doença fatal, a seguradora aceitaria este seguro de vida com estas coberturas. Nesse caso não seria o risco, o evento aleatório que estaria coberto, mas antes um evento futuro e certo, o que é contrário à noção de sinistro.
Improcede, assim, a apelação.
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[10] Neste sentido PINTO MONTEIRO, Manuel, “Banca e Cláusulas Contratuais Gerais”, Colectânea I Congresso de Direito Bancário – Coord. Pestana Vasconcelos, pág. 105, referindo que “… uma declaração dessas, por si só, pode não chegar como meio de prova de que os deveres de informação a que o banco está adstrito foram adequadamente cumpridos. Mas também não pode ficar-se indiferente a ela como se não existisse. Temos entendido a este respeito, que essa declaração inverte, em princípio, o ónus da prova: terá de ser o cliente (…),a ter de vir a provar o contrário do que afirma nessa declaração.
É o princípio da auto-responsabilidade que aconselha esta solução”. A este respeito, vide ainda GUIMARÃES, Maria Raquel , “As cláusulas contratuais gerais bancárias na Jurisprudência recente dos Tribunais Superiores” - Colectânea II Congresso de Direito Bancário, Coord. Pestana Vasconcelos, pág. 203. Ainda sobre o dever de informação nos seguros (de grupo), REIS, Nuno Trigo dos, O Dever de Informação no Contrato de Seguro de Grupo, Almedina 2007, a págs. 42, refere que “a violação de deveres de informação pré-contratuais representa uma dassituações mais constelações típicas da culpa in contrahendo (art. 227.º do Cód. Civil).Entre os casos que nos interessam, conta-se, desde logo, a produção de asserções sobre factos (naturais ou jurídicos) susceptíveis de induzir em erro a outra parte no processo negocial”.
[11] Em Acórdão de 24-03-2011, proferido no processo 1582/07.1TBAMT-B.P1.S1, de que foi Relator Granja da Fonseca, defendeu-se que “O ónus da prova da comunicação adequada e efectiva cabe à parte que utilize as cláusulas contratuais gerais (art. 5.º, n.º 3). Deste modo, o utilizador que alegue contratos celebrados na base de cláusulas contratuais gerais deve provar, para além da adesão em si, o efectivo cumprimento do dever de comunicar (cf. art. 342.º, n.º 1, CC), sendo que, caso esta exigência de comunicação não seja cumprida, as cláusulas contratuais gerais consideram-se excluídas do contrato singular (art. 8.º, al. a)) (…) surge ainda a exigência de informar a outra parte, de acordo com as circunstâncias, de todos os aspectos compreendidos nas cláusulas contratuais gerais cuja aclaração se justifique (art. 6º, n.º 1) e de prestar todos os esclarecimentos razoáveis solicitados (art. 6.º, n.º 2). (…) O cumprimento desse dever prova-se através de indícios exteriores variáveis, consoante as circunstâncias. Assim perante actos correntes e em face de aderentes dotados de instrução básica, a presença de formulários assinados pressupõe que eles os entenderam; caberá, então, a estes demonstrar quais os óbices.” A mesma conclusão é de retirar quando o próprio aderente declare terem sido comunicadas e ter compreendido estas clausulas.
[12] LEBRE DE FREITAS, Introdução ao Processo Civil, Coimbra Editora, 1996, pág. 160.
[13] PIRES DE SOUSA, Luís Filipe, Prova Testemunhal, Almedina 2013, pág. 383.
[14] Sobre a essencialidade do risco nos contratos de seguro, sob pena de constituírem “simples apostas” vide CORDEIRO, António Menezes, Direito dos Seguros, ob. cit., pág. 541; MARTINEZ, Pedro Romano, Direito dos seguros: apontamentos, Principia, Cascais, 2006, pág. 9, segundo o qual “por via do seguro, pretende-se transferir o risco que seria suportado numa esfera jurídica para outra entidade, mediante o pagamento de uma contrapartida”; esclarece ainda este autor, em anotação ao artº 1 da Lei do Contrato de Seguro, Almedina 2011, 2ª edição, a págs. 40 que, no entanto, a “obrigação típica do segurador não é a de assumir o risco de outrem, mas sim a de realizar a prestação resultante de um sinistro associado a tal risco. (…) O contrato de Seguro caracteriza-se pela obrigação, assumida pelo segurador, de realizar uma prestação (máxime pagar uma quantia) relacionada com o risco do tomador do seguro ou de outrem”; REGO, Margarida Lima, Contrato de Seguro e Terceiros - Estudo de Direito Civil, Coimbra Editora, 2010, a págs. 66, define, em termos gerais, o seguro como o contrato mediante o qual “uma parte, mediante retribuição, suporta um risco económico da outra parte ou de terceiro…”. No seguro obrigatório automóvel, o sinistro constituirá, de acordo com a Norma Regulamentar n.º 14/2008-R, de 27 de Novembro, do Instituto de Seguros de Portugal “a verificação, total ou parcial, do evento que desencadeia o accionamento da cobertura do risco prevista no contrato, considerando-se como um único sinistro o evento ou série de eventos resultante de uma mesma causa;” Já para ANTUNES, José A. Engrácia, Direito dos Contratos Comerciais, ob. cit. o contrato de seguro é aquele “pelo qual uma pessoa singular ou coletiva (tomador de seguro) transfere para uma empresa especialmente habilitada (segurador) um determinado risco económico próprio ou alheio, obrigando-se a primeira a pagar uma determinada contrapartida (prémio) e a última a efetuar uma determinada prestação pecuniária em caso de ocorrência do evento aleatório convencionado (sinistro).”
[15] Ob. cit., pág. 58.
[16] OLIVEIRA, Arnaldo da Costa, anotação ao artº 24, da Lei do Contrato de Seguro, Almedina, 2ª edição, pág. 149.
[17] OLIVEIRA, Arnaldo da Costa, anotação ao artº 24, da Lei do Contrato de Seguro, Almedina, 2ª edição, pág. 157.
[18] Aqui aferido no sentido dolo-culpa, conforme refere MARTINEZ, Pedro Romano, Lei do Contrato de Seguro Anotado, Almedina, 2011, pág. 161.
[19] CUNHA DE SÁ, Fernando Augusto, Abuso de Direito, 2ª reimpressão, 2005, Almedina, pág. 103.
[20] Obra Dispersa, I, 415 e ss.
[21] Revista da Ordem dos Advogados, Ano 58, Julho 1998, pág. 964