CONTRATO DE EMPREITADA
MORA
CAUSA NÃO IMPUTÁVEL AO DEVEDOR
Sumário

I – Da conjugação dos arts. 777.º, n.º 1, 778.º, n.º 1, 1.ª parte, e 792.º, n.º 1, do Código Civil, resulta o princípio de que o cumprimento da prestação pressupõe que o devedor possa, esteja em condições, de cumprir.
II – Não há incumprimento, na modalidade de mora, da sociedade que se obrigou a reparar um veículo automóvel, substituindo o canhão electrónico da ignição, se aquela encomendou a peça a substituir ao fabricante no próprio dia em que o veículo deu entrada na sua oficina e procedeu à reparação no mesmo dia em que recebeu a peça, estando impossibilitada de cumprir a sua prestação durante o período em que esteve a aguardar o envio da peça.

Texto Integral

Processo: 12463/23.1T8PRT.P1

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I AA intentou, no Juízo Local Cível do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, acção declarativa, com processo comum, contra “A..., S.A.”, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 29.883,63, acrescida de juros à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Alegou para tal que adquiriu à R. um veículo automóvel de marca “Mercedes”, tendo sempre feito as revisões e as reparações necessárias nas instalações desta, sucedendo que, em Maio de 2022, o veículo apresentou uma avaria e o A. levou-o à oficina da R., onde foi constatada a necessidade de substituir o canhão electrónico da ignição, peça que demoraria 5 a 8 dias a chegar, pelo que lhe foi disponibilizado um veículo de substituição pela R., embora de gama inferior ao seu, todavia a reparação só veio a concretizar-se 323 dias depois, em Abril de 2023, e a R. deixou de disponibilizar aquele veículo em Fevereiro de 2023. Com essa situação o A. ficou privado do uso do seu veículo no referido período de tempo, tendo de continuar a pagar os prémios de seguro respectivos, o veículo sofreu desvalorização por estar parado e teve de lhe ser efectuada a revisão, pois já tinha passado o prazo para o efeito, que implicou trabalhos adicionais devido ao tempo em que o veículo esteve imobilizado. O A. ainda sofreu angústia e ansiedade com toda a situação, até porque confiava na R., que se agravou quando lhe foi retirado o veículo de substituição.
A R. contestou, impugnando os factos alegados pelo A. para fundamentar a sua pretensão e alegando que a peça a substituir tinha que ser encomendada à fabricante “B...”, da qual a R. é concessionária, que o prazo referido era meramente indicativo, que encomendou a peça em 19/05/2022, mas o fabricante apenas a entregou em 06/04/2023, ficando a reparação concluída no próprio dia, e que o A., avisado, apenas levantou o veículo em 04/05/2023.
A R. requereu ainda a intervenção acessória provocada de “B..., S.A.”, invocando direito de regresso sobre a mesma caso a acção venha a ser procedente, o que foi admitido, sem oposição, por despacho de 19/01/2024.
A agora interveniente acessória veio apresentar contestação, alegando que não teve intervenção no processo de encomenda de peças, feita directamente pela oficina autorizada ao armazém de peças situado em Espanha, e que a demora excepcional no fornecimento da peça se deveu às circunstâncias extraordinárias decorrentes da pandemia “Covid-19” e da invasão da Ucrânia pela Rússia.
Foi dispensada a realização da audiência prévia, foi elaborado despacho saneador, fixou-se o objecto do litígio e elencaram-se os temas da prova.
Procedeu-se seguidamente a julgamento.
Após, foi proferida sentença, na qual se decidiu julgar a acção improcedente e, em consequência, absolver a R. do pedido.
De tal sentença veio o A. interpor recurso, tendo, na sequência da respectiva motivação, apresentado as seguintes conclusões, que se transcrevem:
«I – Afinal afigura-se-nos suficiente a fundamentação de direito do tribunal “a quo”, para a presente apelação e para provimento da mesma.
II – É manifestamente evidente a busca sôfrega de qualquer interpretação de direito para retirar a razão ao apelante, que nos parece, neste processo também, que demonstrando o erro nos mais básicos fundamentos “descobertos” pelo tribunal “a quo”, também a decisão agora em crise teria que sucumbir.
III - Desde a qualificação da responsabilidade da sua pretensão indemnizatória até á qualificação do contrato, em nossa opinião o Tribunal erra de forma “negligente” negando a evidência dos factos alegados.
IV - O Tribunal “a quo” entende que o facto de aquisição do veículo em 2010/2011 pelo Autor à Ré, faz com que a ligação contratual se mantenha para além da data de compra, ou seja, qualquer serviço contratado entre as partes para além da garantia, faria parte do contrato anteriormente celebrado, dedução peregrina.
V - Após a aquisição do veículo, a aqui apelada, vendedora do veículo, sendo contratada para serviço de reparação, mecânica ou qualquer outro, está fora do contrato de compra inicial, completamente fora, desde logo, também do Decreto-Lei n.º 84/2021, de que o Tribunal “a quo” se recorreu para negar razão ao apelante.
VI – Refira-se a falta de articulação e percepção do Tribunal no que concerne aos normativos do citado decreto-lei para a decisão peregrina e sobretudo estranha, que profere, nada novo deste Tribunal “a quo” …
VII - Refere o tribunal “a quo” no seu invocado decreto de lei, que o mesmo não é aplicável aos autos porque foi outorgado “contrato” antes da entrada do mesmo (esqueceu-se que foi de compra e venda e que reparação da avaria não era no pós venda); mas o Apelante também não quer que este normativo seja aplicável, até porque não o é em face do tipo de contrato realizado, mas admite-se que o senhor julgador tenha sido imbuído de tal novidade legislativa invocada pelo ora apelante e tenha entendido que a reparação da peça em falta tenha decorrido do contrato de compra e venda e 2011, mas não.
VIII - Só o Tribunal “a quo” viu o que não existia e sobretudo, certamente desconhecendo o decreto-lei n.º 84/2021 aplicou o mesmo aos autos, desconhecendo não só o artigo 21.º do mesmo, não entendeu que a reparação contratada foi feita fora do âmbito do contrato de aquisição da viatura, aliás tal situação não alegada nas peças processuais, senão para efeitos de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais do incumprimento da apelada (ré).
IX - A contratação de 18 de maio de 2022, não foi decorrente do contrato de compra e venda da viatura, como aliás é reconhecido pelo Tribunal “a quo”, mas sim um contrato, se se entender de prestação de serviço, que no fundo não seria mais que um contrato de execução de obra, nos termos do artigo 1208.º do Código Civil, ou seja não sendo aplicável o decreto-lei n.º 84/2021, não pelas razões invocadas pelo tribunal “a quo”, mas pelo facto de que não está tal reparação no âmbito dos direitos do consumidor na compra venda de bens, conteúdos e serviços digitais, embora estejamos no âmbito de responsabilidade contratual, uma vez que na responsabilidade contratual o agente ofende a um dever contratual - é inadimplente em relação a uma obrigação contratada.
X - A apelada (ré) praticou o acto ilícito, resultante da obrigação contratualmente assumida; a culpa na prática de tal acto ilícito, consistiu no juízo de reprovação da conduta (culpa presumida na responsabilidade contratual); existe o nexo de causalidade entre o facto ilícito culposo e o prejuízo sofrido pelo credor. Existem de forma clara estes pressupostos.
XI - O tribunal “a quo” consegue entender que um mês e vinte dias é tempo razoável para colocar um canhão de ignição, sem invocar qualquer razão de ciência, não sendo facto notório, fundamentando-se quiçá na experiência pessoal.
XII - Também sem qualquer razão de ciência, mas talvez decorrente da opinião pessoal do julgador, refere que a privação do carro do autor, ora apelante, não é indemnizável, e mesmo admitindo na sentença a privação do uso de veículo automóvel “tão-somente, 2 meses” fosse irrelevante é completamente atentatório à sensibilidade mediana de qualquer cidadão, afirmar que dois meses é irrelevante, acrescido da menção “tão-somente” é atentatório à justiça ou à sua aplicação de forma saudável e escorreita.
XIII - Carece de qualquer sentido a fundamentação, do Tribunal “a quo”, independentemente da sua livre apreciação da prova, e da evidente busca de negar o inegável.
XIV - Quanto à não demonstração pelo autor que a sua viatura se tenha desvalorizado durante o período de tempo que esteve imobilizada na oficina da R.., tal facto é de conhecimento generalizado, sendo a prova dessa generalidade de pessoas cidadãos de onde o tribunal “a quo” se auto exclui.
XV - Atente-se na referência no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo n.º 5822/15.5T8MTS.P1 de 27 de Setembro de 2016 “5.8.3.- É notório que o veículo ao ficar imobilizado na garagem está a perder valor económico.”
XVI - Mais claro não há, para o Tribunal “a quo” todos os pedidos estariam votados ao insucesso, os feitos e os mais que viessem a ser feitos.
NORMAS VIOLADAS:
Artigo 1208.º do Código Civil; artigo 342.º n.º 1 do Código Civil; artigo 777.º do Código Civil; 414.º n.º 1 do Código de Processo Civil;
SENDO DADO PROVIMENTO À PRESENTE APELAÇÃO E DECIDINDO-SE EM CONFORMIDADE,
FÁR-SE-Á
JUSTIÇA».
A R. apresentou contra-alegações, defendendo que o recurso não deve ser admitido por não ter sido cumprido o ónus previsto no art. 639º do C.P.C., uma vez que as conclusões apresentadas são prolixas e confusas e mais não constituem do que uma reprodução das alegações, e pugnando pelo não provimento do recurso e pela manutenção da decisão recorrida.
A interveniente igualmente apresentou contra-alegações, aduzindo que o recorrente não indicou o sentido com que as normas que considera terem sido violadas na decisão recorrida deveriam ter sido interpretadas, pelo que aquele deve ser convidado a proceder às especificações previstas no art. 639º, nº 2, al. b), do C.P.C., sob pena de rejeição do recurso, e defendendo que deve ser negado provimento ao recurso e confirmada a sentença recorrida.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - Considerando que o objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), e tendo ainda em conta que “as questões que integram o objeto do recurso e que devem ser objeto de apreciação por parte do tribunal ad quem não se confundem com meras considerações, argumentos, motivos ou juízos de valor”, cabendo ao tribunal de recurso “apreciar as questões solicitadas, sob pena de omissão de pronúncia”, mas não “responder, ponto por ponto, a cada argumento que seja apresentado para a sua sustentação” (cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 7ª ed. actualizada, 2022, págs. 135 e 136), são as seguintes as questões a tratar:
a) admissibilidade do recurso;
b) responsabilidade contratual da R.;
c) indemnização a arbitrar.
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Vejamos a primeira questão.
Invoca a recorrida que o recorrente, no requerimento de recurso, apresentou conclusões prolixas e confusas e que mais não constituem do que uma reprodução das alegações.
Por seu turno, a interveniente aduz que o recorrente não indicou o sentido com que as normas que considera terem sido violadas na decisão recorrida deveriam ter sido interpretadas.
Nos termos do disposto no art. 639º, nº 1, do C.P.C., o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
E de acordo com o nº 2, al. b), da mesma norma, versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar o sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas.
Nos termos do disposto no art. 639º, nº 1, do C.P.C., o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
“Cumpre ao recorrente enunciar os fundamentos da sua pretensão no sentido da alteração, anulação ou revogação da decisão, rematando com as conclusões que representarão a síntese das questões que integram o objecto do recurso”, incluindo as especificações das alíneas do nº 2 do normativo em apreço.
“Rigorosamente, as conclusões devem (deveriam) corresponder a fundamentos que, com o objetivo de obter a revogação, alteração ou anulação da decisão recorrida, se traduzam na enunciação de verdadeiras “questões” de direito (ou de facto) cujas respostas interfiram com o teor da decisão recorrida e com o resultado pretendido, sem que jamais se possam confundir com os “argumentos” de ordem jurisprudencial ou doutrinário que não devem ultrapassar o sector da motivação.
As conclusões (…) devem respeitar, na sua essência, cada alínea do n.º 2, integrando-se as respostas a tais premissas essenciais no encadeamento lógico da decisão pretendida. Se para atingir o resultado declarado o tribunal a quo assentou em determinada motivação, dando respostas às diversas questões, as conclusões devem elencar os passos fundamentais que, na perspectiva do recorrente, deveriam ter sido dados para atingir um resultado diverso.
Todavia, com inusitada frequência se verificam situações irregulares: alegações deficientes, obscuras, complexas ou sem as especificações referidas no n.º 2”, prevendo-se no nº 3 do art. 639º do C.P.C. a possibilidade de o relator convidar ao aperfeiçoamento das conclusões.
“A prolação do despacho de aperfeiçoamento fica dependente do juízo que for feito acerca da maior ou menor gravidade das irregularidades ou incorreções, em conjugação com a efetiva necessidade de uma nova peça processual que respeite os requisitos legais. Para isso pode ser conveniente tomar em consideração os efeitos que a intervenção do juiz e as subsequentes intervenções das partes determinem na celeridade. Parece adequado ainda que o juiz atente na reação do recorrido manifestada nas contra-alegações, de forma a ponderar se alguma irregularidade verificada perturbou o exercício do contraditório, designadamente quando se esteja perante conclusões obscuras” (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022, 7ª edição actualizada, págs. 182, 186, 187 e 188).
No caso, compulsado o teor do requerimento de recurso verifica-se que as conclusões não foram formuladas de forma escorreita, estando redigidas de modo algo confuso (talvez porque o próprio recorrente faça alguma confusão com o que seja o efectivo teor da decisão recorrida), e que coincidem em parte (mas não na totalidade), embora de forma mais concentrada, com o que consta da alegação. Tal situação não é equiparável a uma situação de falta de conclusões, mas de conclusões deficientes.
Ademais, quanto ao sentido de interpretação das normas violadas, embora não haja uma enumeração conjunta das normas e dessa indicação, da leitura das conclusões verifica-se que, ainda que de forma confusa e mesclada, o recorrente invoca aquilo que defende em termos de aplicação do direito ao caso concreto.
Donde, afigura-se que, apesar da referida deficiência das conclusões, estas cumprem, ainda assim, a sua função de delimitação do objecto do recurso, pois enunciam de forma individualizada as questões suscitadas pelo recorrente (a sua discordância em relação à solução de direito encontrada na decisão recorrida) e, como se vê das contra-alegações dos recorridos, foram correctamente percepcionadas por estes, que exerceram o seu contraditório de forma cabal, pronunciando-se nos termos que entenderam sobre aquelas – não se mostrando, assim, necessário existir despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões, cuja respectiva compreensão não estava afectada de tal ordem que pusesse em causa a resposta da parte contrária.
É, portanto, admissível o recurso, não colhendo as objecções nesse sentido levantadas pelas recorridas.
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Passemos à segunda questão.
São os seguintes os factos dados como provados na sentença recorrida (transcrição):
«1 - O Autor é proprietário do veículo marca Mercedes-Benz, modelo “...”, com a matrícula “..-JE-..”, tendo o mesmo sido adquirido à Ré.
2 – Tal veículo foi cedido ao A. em Maio de 2010, em regime de Aluguer de Longa Duração, por 12 meses, tendo, posteriormente, em 15-7-2011, sido adquirido pelo A..
3 – O veículo “JE” teve a sua primeira matrícula em 18-5-2010.
4 - A Ré é uma sociedade comercial que tem como escopo a importação, exportação e comércio de veículos automóveis, suas peças e acessórios e respectiva manutenção e reparação, a importação, exportação e comércio de produtos petrolíferos, a indústria de aluguer de veículos de mercadorias sem condutor e o aluguer de veículos de passageiros sem condutor, a assistência aos referidos veículos, a mediação de seguros, bem como a prática de todos os actos comerciais, industriais e financeiros que directa ou indirectamente possam estar ligados com as referidas actividades, incluindo a actuação como intermediário de crédito tendo em vista a venda dos bens ou a prestação de serviços por si oferecidos.
5 - Todas as revisões necessárias ao veículo, assim como as reparações inerentes, foram sempre efectuadas nas oficinas de Ré, ao longo da relação comercial iniciada com a aquisição da identificada viatura.
6 - Em 18-5-2022, o autor verificou uma avaria no veículo, tendo o mesmo sido de imediato levado à oficina da ré “A...”.
7 – O referido veículo encontrava-se imobilizado, tendo sido transportado através de reboque para as instalações da R..
8 – Nessa data, o veículo “JE” tinha percorrido 230 042 quilómetros.
9 - Nesse dia, foi realizado o diagnóstico pelos serviços técnicos da Ré, tendo sido detectada uma avaria no canhão electrónico da ignição.
10 – A reparação dessa avaria implicava a substituição do canhão electrónico da ignição.
11 – A. R. referiu ao A. que teria de aguardar pelo envio, pelo fabricante “B...”, de um novo canhão electrónico da ignição, com vista à realização da reparação.
12 – A R. informou o A. que o prazo estimado para recepção da referida peça se situava entre os 5 e os 8 dias.
13 – O veículo “JE” ficou na oficina da R. a aguardar a chegada da referida peça, com vista a realizar a reparação.
14 – Passados 15 dias da entrega do veículo para reparação, a R. informou o A. que a peça encomendada chegaria previsivelmente em Julho de 2022.
15 - Em Julho de 2022, a R, informou o A. que a peça chegaria, previsivelmente, em Outubro de 2022.
16 – Em 20-10-2022, o Ilustre Mandatário do A. enviou à R. a carta junta como docs. nºs 3 e 4 à petição, concedendo-lhe o prazo de 10 dias para efectivação da reparação.
17 – A R. respondeu por carta de 25-10-2022, junta como doc. 5 à petição, informando que não podia ser levada a cabo a reparação, uma vez que ainda se encontrava a aguardar a recepção da peça.
18 – Em Outubro de 2022, a R. informou o A. que a peça chegaria previsivelmente em Dezembro de 2022.
19 – Por carta de 28-12-2022, junta como doc. nº 6 à petição, a R. informou o Ilustre Mandatário da A. que a peça chegaria, previsivelmente, em Janeiro de 2023.
20 – Por carta de 10-2-2023, junta como doc. 7 à petição, a R. solicitou ao A. a entrega do veículo de substituição até 17-2-2023, mais informando que o A. poderia, querendo, efectuar contrato de aluguer desse veículo junto da empresa “C...”, assim o mantendo na sua posse.
21 – Nessa sequência, o A. entregou o veículo de substituição à R. em 16-2-2023.
22 – A referida “C...” faz parte do grupo empresarial da R..
23 – O Ilustre Mandatário da A. respondeu à R., por carta de 27-2-2023, junta como doc. 8, instando-a a proceder à reparação da viatura “JE” até 6-3-2023, sob cominação de instauração de acção judicial.
24 – Por “e-mail” enviado pela R. ao Ilustre Mandatário do A., datado de 6-4-2023, junto como doc. 9 à petição, a R. informou que o veiculo “JE” já se encontrava reparado e pronto para levantamento, mais anexando a respectiva factura relativa ao preço da reparação, junta como doc. nº 10 à petição.
25 – Nessa carta, a R. informou o A. que carecia de ser efectuada a revisão à viatura, estando o prazo previsto para tal operação ultrapassado em 60 dias.
26 – O Ilustre Mandatário da A. respondeu à R., por “e-mail” de 20-4-2023, junto como doc. 11 à petição, alegando não ser devedor de qualquer pagamento de serviços, sendo antes credor da R. por força da demora na realização da reparação.
27 – A R. respondeu por “e-mail” de 27-4-2023, junto como doc. nº 12 à petição, solicitando o pagamento do montante indicado na factura, bem como o levantamento da viatura, sob pena de, não sendo efectuado tal levantamento, ser-lhe cobrado o valor de 60 € diário a titulo de parqueamento do veículo nas suas instalações.
28 – Durante o período de permanência do veículo “JE” nas instalações da R., o A. continuou a pagar o respectivo prémio de seguro, tendo despendido, para esse efeito, relativamente ao período situado ente 1-5-2022 e 30-4-2023, a quantia global de 1 769,52 €.
29 – Após levantar a viatura, o A. procedeu à revisão da mesma no concessionário “D..., SA”, tendo despendido, para esse efeito, 594,93 €.
30 – Nessa revisão, foram efectuados trabalhos de substituição do filtro de ar, substituição de filtro de combustível e substituição de óleo e filtro do motor.
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31 – No dia 18-5-2022, foi cedida pela R. ao A. uma viatura de substituição, marca “Mercedes Benz”, modelo “...”, com matricula “..-XI-..”.
32 – Tal viatura foi cedida no âmbito do serviço “24 horas”.
33 – Tal serviço é concedido gratuitamente pelo fabricante “B...”, pelo período de 3 a 5 dias, e é atribuído ao todos os clientes que tenham plano de manutenção do veículo regularizado.
34 - O A. utilizou o referido veículo de substituição entre 18-5-2022 e 20-6-2022.
35 – A R. cedeu ao A. a utilização de veículo de substituição para além dos referidos 3 a 5 dias.
36 – Efectivamente, em 20-6-2022, a referida viatura inicialmente cedida ao A. foi substituída por uma viatura de marca “Mercedes”, modelo “...”, com matrícula “..-ZU-..”.
37 – O A. utilizou tal veículo de substituição no período compreendido entre 20-6-2022 e 16-2-2023.
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38 – Durante o período em que o veiculo “JE” esteve a aguardar reparação nas instalações da R., o A. sentiu angústia e ansiedade.
39 – Sentimentos estes que se agravaram quando a R. lhe solicitou a entrega do veículo de substituição.
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40 – A R. não é fabricante de peças para os veículos “Mercedes”.
41 – A peça em causa - o canhão electrónico da ignição – foi encomendada pela R. à “B...” em 18-5-2022, através de plataforma informática interna.
42 – Aquando da realização da encomenda pela R., tal peça encontrava-se esgotada no fabricante.
43 – Em 19-5-2022, a R. efectuou, na referida plataforma electrónica, pedido de priorização do envio dessa peça, tendo tal encomenda passado, em 20-5-2022, a ser qualificada como “prioritária”.
44 – A referida peça foi expedida pelo fabricante em 5-4-2023 e foi recebida pela R. em 6-4-2023.
45 – O valor de mercado do veículo “JE” ascendia, em 2023, a cerca de 17 500 €.
46 – Em 6-4-2023, o A. foi informado telefonicamente pela R. que o veículo se encontrava reparado e que já poderia ser levantado.
47 – O A. procedeu ao levantamento da viatura “JE” em 4-5-2023.
48 – O plano de manutenção e revisão do veiculo “JE” deve ser cumprido a cada 25 000 quilómetros percorridos ou de 12 em 12 meses, conforme o que correr em primeiro lugar.
49 – Entre 18-5-2022 e 30-11-2022, a referida “C...” cobrou à R. a quantia total de 18 553,23 € pelo aluguer dos veículos de substituição cedidos ao A..
50 – A “B...” reembolsa as concessionarias “Mercedes” dos custos de aluguer dos veículos de substituição por indisponibilidade de peças, até ao valor de mercado do veículo.».
Tendo sido dados como não provados os seguintes factos (transcrição):
«1 – A R. comprometeu-se perante o A. a obter a peça em falta - o canhão electrónico da ignição - no prazo de 5 a 8 dias.
2 – Os veículos de substituição cedidos pela R. ao A. eram de gama inferior ao “JE”.
3 – Por força da imobilização do veículo “JE” nas instalações da R., o mesmo sofreu desvalorização, no montante de 1 200 €.
4 – O período de tempo decorrido entre o pedido da peça pela R. e a sua entrega pelo fabricante ficou a dever-se a constrangimentos gerados pela pandemia “Covid 19” e à guerra na Ucrânia.».
A. e R. celebraram um contrato de empreitada, com o objecto de reparação do veículo automóvel do A. identificado no ponto 1 da matéria de facto, o que não vem posto em causa pelas partes. Tal como não vem posto em causa que a questão colocada à apreciação do tribunal é uma questão de responsabilidade contratual, imputando o recorrente à R. o incumprimento daquele contrato de empreitada, como, aliás, assim foi entendido na sentença recorrida – simplesmente aqui se concluiu que não estavam preenchidos no caso todos os requisitos da responsabilidade contratual, nomeadamente a existência de culpa por parte da R..
O incumprimento que está em causa é na modalidade de mora. Com efeito, a reparação de que necessitava o veículo do A. foi efectuada (substituição do canhão electrónico da ignição), ocorrendo apenas que desde que o veículo deu entrada na oficina da R. até que a reparação foi feita decorreram 10 meses e 19 dias.
Apreciemos.
Da matéria de facto resulta que para realizar a reparação era necessário aguardar pelo envio de um novo canhão electrónico da ignição pelo fabricante “B...” e que o veículo ficou na oficina da R. a aguardar a chegada de tal peça, que a R. encomendou, através de plataforma informática interna, logo no próprio dia em que o veículo do A. deu entrada na oficina.
E que a peça foi expedida pelo fabricante em 05/04/2023 e foi recebida pela R. em 06/04/2023, que logo nesse dia procedeu à reparação do veículo.
Dispõe o art. 777º, nº 1, do Código Civil, que na falta de estipulação ou disposição especial da lei, o credor tem o direito de exigir a todo o tempo o cumprimento da obrigação, assim como o devedor pode a todo o tempo exonerar-se dela.
Acrescentando o nº 1, 1ª parte, do art. 778º do Código Civil que se tiver sido estipulado que o devedor cumprirá quando puder, a prestação só é exigível tendo este a possibilidade de cumprir.
Por outro lado, determina o art. 792º, nº 1, do Código Civil, que se a impossibilidade de cumprimento da prestação for temporária, o devedor não responde pela mora no cumprimento.
Resulta da conjugação destes normativos o princípio de que o cumprimento da prestação pressupõe que o devedor possa, esteja em condições, de cumprir:
- estando em condições de cumprir, o devedor pode exonerar-se, cumprindo em qualquer momento a obrigação (tratando-se de obrigações puras, que não têm estipulado prazo de cumprimento, seja por força da lei ou do contrato);
- tal circunstância pode até ser expressamente estipulada no contrato: a denominada cláusula cum potuerit (diferente da cláusula cum voluerit prevista no nº 2 do art. 778º do C.C.) – que pode respeitar quer à possibilidade económica, quer à possibilidade material ou disponibilidade de tempo (no caso da prestação de facto) do devedor, ou mesmo ser condicionada à chegada de peças importadas;
- enquanto se mantiver a impossibilidade de cumprir, o devedor não fica constituído em mora – “o cumprimento é apenas protelado para um momento posterior (para quando for possível), sem consequências para o devedor”, sendo que só é temporária a impossibilidade “quando o cumprimento da obrigação for susceptível de mora”, não existindo fixado um termo essencial (cfr. P. Lima – A. Varela, Código Civil anotado, vol. II, 3ª ed., 1986, pág. 46).
Na situação dos autos não estava fixado prazo para a R. cumprir, não resultando provado que esta se tivesse comprometido a obter a peça em determinado prazo e respeitando as estimativas de prazo que foram sendo indicadas pela R. ao A. à chegada da peça e não à realização da reparação em si (para além de se tratar precisamente de estimativas).
Por outro lado, tendo em conta os contornos da situação, do que resulta que o A. deixou o veículo na oficina da R. e foi-se conformando com as informações dos sucessivos adiamentos do envio da peça pelo fabricante, poderia até concluir-se pela existência de um acordo implícito de que a R. cumpriria apenas quando pudesse, isto é quando a peça chegasse (cfr. art. 217º do C.C. – declaração tácita).
De todo o modo, ainda que não se considere estipulada no caso a cláusula cum potuerit, sempre decorre da matéria de facto que a R. esteve impossibilitada de cumprir até à data da chegada da peça, cumprindo a sua obrigação de reparação logo no próprio dia em que recebeu aquela (e pôs o veículo reparado à disposição do A. nesse mesmo dia, sendo imputável a este o facto de apenas o ter ido levantar em 04/05/2023, 28 dias depois).
E estando a R. impossibilitada de cumprir, a mesma não responde por mora no cumprimento durante o período em que durou a impossibilidade (ou seja desde que pediu a peça, no próprio dia em que o veículo foi para a oficina, e enquanto esta não chegou), posto que não houve perda de interesse do credor da prestação (dos factos não decorre a ocorrência da situação prevista no art. 808º do Código Civil, e atenta a finalidade da obrigação – a substituição do canhão –, objectivamente mantinha-se o interesse na prestação, que, aliás, foi cumprida, ficando o veículo reparado).
Além do mais, depois de terminada a impossibilidade de cumprir por parte da R. não houve qualquer mora no cumprimento, visto que aquela cumpriu no próprio dia em que cessou a impossibilidade.
Aqui chegados, impõe-se a conclusão de que não houve incumprimento (na modalidade de mora no cumprimento) por parte da R.. E, não havendo incumprimento, obviamente não há responsabilidade contratual, nem se coloca a questão de apreciar dos pressupostos desta e da correspectiva obrigação de indemnizar, nomeadamente a culpa (como foi apreciado na decisão recorrida).
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Tendo em conta o resultado do tratamento da questão anterior, fica prejudicada a apreciação da terceira questão enunciada (não havendo responsabilidade contratual por incumprimento, não há obrigação de indemnizar, logo não há que apreciar dos danos, qualquer deles, alegados pelo A.).
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Em face do resultado do tratamento das questões analisadas, é de concluir pela não obtenção de provimento do recurso interposto pelo A. e pela consequente confirmação da decisão recorrida.
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III - Por tudo o exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
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Custas da apelação pelo recorrente (art. 527º, nºs 1 e 2, do C.P.C.).
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Notifique.
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Sumário (da exclusiva responsabilidade da relatora - art. 663º, nº 7, do C.P.C.):
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datado e assinado electronicamente
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Porto, 23/10/2025
Isabel Ferreira
José Manuel Correia
Álvaro Monteiro