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IMPUGNAÇÃO
JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
ÓNUS DA PROVA
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
Sumário
SUMÁRIO (art. 663º, n.º7, do CPC): I. A acção de impugnação de justificação notarial é uma acção declarativa de simples apreciação negativa, posto que tem por finalidade obter a declaração de inexistência do direito de propriedade invocado na escritura. Por isso e por força do disposto no art. 343º, n.º 1, do CC, recai sobre o réu nessa acção o ónus da prova dos factos constitutivos do direito que se arroga. II. Nessa perspectiva, o que se discute na aludida acção é o direito de propriedade que está subjacente a tal acto, ou seja, o direito de propriedade sobre o bem que o justificante declarou na escritura ser titular, tendo por substracto os factos aí invocados. III. A questão da autoridade do caso julgado material respeita, sobretudo, à extensão da auctoritas rei iudicatae à solução das questões prejudiciais, assim denominadas as relativas a relações jurídicas distintas da deduzida em juízo pelo autor, mas de cuja existência ou inexistência dependa logicamente o teor da decisão do pedido, sobre as quais não ocorre decisão, mas simples cognitio. IV. Os juízos probatórios positivos ou negativos que constituem a denominada “decisão de facto” não revestem autoridade de caso julgado no âmbito de outro processo. V. Na decisão precedente, em sede de fundamentação, refere-se, expressamente, que a autora é proprietária das nove fracções autónomas objecto da escritura pública de justificação impugnada nestes autos, como pressuposto lógico-jurídico do deferimento dos pedidos de restituição de tais fracções e de indemnização pela privação do seu uso aí deduzidos pelo autor. VI. A apreciação realizada na sentença precedente, no sentido de reconhecer o direito de propriedade sobre as aludidas fracções a favor do autor, colide frontalmente com a questão a conhecer na presente acção: se os bens pertencem, em exclusivo, ao autor não podem pertencer à ré. VII. Por força do efeito positivo de caso julgado, tal apreciação impõe-se na presente acção, vinculando o Tribunal a assumir o entendimento nela perfilhado para apreciação da questão a conhecer. VIII. Tendo a ré consciência do dever de acatamento da decisão mencionada, evidencia-se, também, que a mesma tinha conhecimento de que a oposição que deduzia no processo, no sentido de afirmar os factos declarados na escritura pública de justificação impugnada e que, por via deles, adquiriu o direito de propriedade sobre as fracções autónomas referidas em tal acto, era contrária à aludida decisão e, por isso, que tal oposição era contrária ao Ordenamento Jurídico e carecida de fundamento, não podendo deduzi-la nos autos. IX. Entende-se, pois, que a ré deduziu nos autos, na forma dolosa, oposição sem fundamento, constituindo tal actuação litigância de má-fé, nos termos do art. 542º, n.º2, al. a), do CPC.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
I.
Turirent – Fundo de Investimento Imobiliário Fechado intentou, contra Saratoga-Tour – Empreendimentos Turísticos e Hoteleiros, SA, a presente acção de simples apreciação negativa, pedindo que:
a. Seja julgada procedente a impugnação da escritura de justificação notarial que identifica, celebrada pela ré, e, em consequência, que seja proferida decisão que declare que as fracções identificadas no artigo 1º da petição inicial, que a ré afirma serem suas na referida escritura, não lhe pertencem;
b. Se ordene o cancelamento de qualquer registo que tenha sido feito com base na mesma escritura de justificação;
c. Se proceda à notificação urgente do Cartório Notarial da propositura da presente acção nos termos e para os efeitos art. 101º, n.º1, do Cód. do Notariado.
Alegou, em síntese, que:
- é titular do direito de propriedade sobre sete fracções autónomas de um prédio urbano que identifica;
- a 17-05-2022, a ré declarou em escritura de justificação notarial que é titular do direito de propriedade sobre as sete fracções acima referidas, por o ter adquirido por usucapião;
- a titularidade do direito de propriedade a seu favor sobre as aludidas fracções foi reconhecida em sentença proferida em acção onde o próprio e a ré participaram como partes, alguns meses antes da celebração da escritura pública impugnada.
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A ré, a 07-11-2022, apresentou contestação onde concluiu pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido.
Em síntese, alegou que os factos constantes da escritura de justificação por si celebrada são verdadeiros e que os mesmos são idóneos à aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre as fracções identificadas pelo autor.
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O autor, a 05-12-2022, pronunciou-se sobre a contestação apresentada, reiterando o alegado e peticionado no requerimento inicial, e pediu a condenação da ré em multa e indemnização a fixar pelo Tribunal como litigante de má-fé.
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A ré, a 19-12-2022, respondeu refutando litigar de má-fé e concluiu pela improcedência do pedido da sua condenação a tal título.
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No em cumprimento do acórdão desta Relação proferido a 07-11-2024, realizou-se audiência prévia
*
A 12-02-2025, foi proferida sentença que julgou a acção procedente e, em consequência, declarou ineficaz a escritura de justificação notarial celebrada pela ré em 17-05-2022, no Cartório Notarial de Lisboa, sito na Rua Rodrigues Sampaio, n.º 97, 5, perante o Notário ….
Na mesma decisão, condenou-se a ré, como litigante de má-fé, no pagamento de multa em valor equivalente a 10 UC e de indemnização à parte contrária de igual valor.
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Inconformada, a 19-03-2025, a ré interpôs recurso que culminou com as seguintes conclusões (transcrição):
1 – A Recorrente vem apresentar recurso do douto Despacho Saneador-Sentença proferida em 12-02-2025, cuja parte decisória se transcreve, porquanto decidiu da seguinte forma:
“(…)
Por todo o exposto o tribunal julga a presente ação procedente, e em consequência, declara ineficaz a escritura de justificação notarial celebrada pela R. em 17/5/2022, no cartório notarial de Lisboa, da Rua Rodrigues Sampaio, nº 97, 5, perante o notário …
Tratando-se de uma ação de apreciação negativa apenas esta declaração de
ineficácia cumpre ser determinada.
Mais se condena o R. como litigante de má fé, no pagamento de uma multa de 10 UC e numa indemnização à parte contrária de igual valor.”
2 – O Tribunal só dá factos como provados, pontos 1-14, sem que se pronuncie sobre os
factos não provados.
3 - Ocorre falta de fundamentação de facto e de direito da decisão judicial, quando exista falta absoluta de motivação ou quando a mesma se revele gravemente insuficiente, em termos tais que não permitam ao respetivo destinatário a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial. Ocorre contradição ou oposição entre os fundamentos de facto e de direito e a decisão judicial quando aqueles conduzirem, de acordo com um raciocínio lógico, a resultado oposto ao que foi decidido, ou seja quando a decisão tomada
justifica uma decisão precisamente oposta à tomada. A decisão judicial diz-se “obscura”
quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível (não se sabe o que o juiz quis
dizer) e será “ambígua” quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes (hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos).
4 - A Contestação da Ré é de todo ignorada, nem tão pouco é levada aos factos não provados.
5 - Da nulidade da sentença por falta de fundamentação de facto e de direito que a justificam. Resulta do disposto no art. 607º, n.º 3, do C. P. Civil que, na elaboração da sentença, e após a identificação das partes e do tema do litígio, deve o juiz deduzir a fundamentação do julgado, explicitando “os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.”
6 - Por seu turno, sancionando o incumprimento desta injunção, prescreve o art. 615º, n.º
1, al. b), do C. P. Civil que é nula a sentença que “não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
7 - Todavia, no atual quadro constitucional (art. 205º, n.º 1, da Constituição da República
Portuguesa), em que é imposto um dever geral de fundamentação das decisões judiciais, ainda que a densificar em concretas previsões legislativas (cfr. art. 154º do C. P. Civil), parece que também a fundamentação de facto ou de direito gravemente insuficiente, isto
é, em termos tais que não permitam ao respetivo destinatário a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial, deve ser equiparada à falta absoluta de especificação
dos fundamentos de facto e de direito e, consequentemente, determinar a nulidade do ato
decisório.
8 - A.2) Da nulidade da sentença por a sua fundamentação estar em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torna a decisão ininteligível 9 - De acordo com o disposto na al. c), do n.º 1, do citado art. 615º, do C. P. Civil, a sentença será nula “quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra
alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
10 - Assim sendo, existirá violação das regras necessárias à construção lógica da sentença
quando os seus fundamentos conduzam logicamente a conclusão oposta ou diferente da que no mesmo resulta enunciada.
11 - A propósito da nulidade de que ora curamos, de forma clara, refere Antunes Varela,
em comentário ao preceituado no art. 668º, n.º 1, al. c), do pretérito CPC – correspondente
ao atual art. 615º, n.º 1, al. c) do NCPC –, o que está em causa refere-se à “contradição real entre os fundamentos e a decisão e não às hipóteses de contradição aparente, resultantes de simples erro material, seja na fundamentação, seja na decisão.” A Ré ficou
impedida de provar essa matéria em sede de julgamento.
12 - A.3) Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia. Segundo o disposto no art.
615º, n.º 1 al. d) do CPC é nula a sentença quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
13 - Esta previsão legal está em consonância com o comando do art. 608º, n.º 2 do C. P.
Civil, em que se prescreve que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes,
salvo se lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
14 - Coisa diferente das questões a decidir são os argumentos, as razões jurídicas alegadas
pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, que não constituem “questões” no sentido
pressuposto pelo citado art. 608.º, n.º 2 do C. P. Civil. Assim, se na apreciação de qualquer
questão submetida ao conhecimento do julgador, este não se pronuncia sobre algum ou alguns dos argumentos invocados pelas partes, tal omissão não constitui uma nulidade da
decisão por falta de pronúncia.
15 - Quer isto dizer que ao Tribunal cabe o dever de conhecer do objeto do processo, definido pelo pedido deduzido (à luz da respetiva causa de pedir – cfr. art. 581º, n.º 4, do C. P. Civil, que consagra o denominado princípio da substanciação) e das exceções deduzidas. Terá, pois, de apreciar e decidir as todas as questões trazidas aos autos pelas
partes – pedidos formulados, exceções deduzidas, … – e todos os factos em que assentam,
mas já não está obrigado a pronunciar-se sobre todos os argumentos esgrimidos nos autos.
16 – O Tribunal a quo omite a matéria da contestação, mormente os pontos 14-19, bem como omite a referência à documentação da Ré, nomeadamente contratos de arrendamento juntos.
17 - O sentido crítico das provas, sobretudo com a audiência de julgamento que foi negada
pelo Tribunal, levaria a uma decisão diversa ou pelo menos a uma ponderação das provas
apresentadas.
18 - As escrituras públicas, nomeadamente as de justificação notarial, só serão nulas nos precisos termos em que a lei o determine, ou seja, nos termos previstos nos artigos 70.º e 71.º, do Código do Notariado e independentemente da veracidade ou falsidade das declarações que delas ficaram a constar, emitidas perante o Notário.
19 - Ora a nulidade invocada na douta Pi não consta do elenco do artigo 70.º e 71.º, do Código do Notariado, na redacção do D. Lei nº 207/95, de 14/08, com as alterações introduzidas pelo Dl. nº 273/2001, de 13/10.
20 - É princípio geral do direito processual que cabe ao órgão que praticou o ato nulo apreciá-lo e suprir a nulidade, quando for o caso, nos termos da disciplina dos actos nulos
tal como fixada nos artigos 196.º a 200.º do CPCivil. É seguindo este princípio processual
que as nulidades nos procedimentos que correm nos notários e conservatórias são arguidas junto de quem praticou o ato, apenas cabendo recurso judicial da decisão final.
O que não foi feito.
21 - Como se sabe, assim como os direitos reais definitivos podem ter mais que um sujeito, também na posse exercida à sua imagem se pode admitir a contitularidade – é a chamada figura da composse, que pressupõe a compatibilidade dos exercícios possessórios (referida, v.g., no artº 1286º, do CC) – ver M.H. Mesquita, Direitos Reais, pg. 88 e Oliveira Ascensão, Reais, § 60). Tendo ocorrido a composse quando a posse de uma coisa é exercida por duas ou mais pessoas. E à composse aplicam-se, supletivamente, as regras relativas à compropriedade (artº 1404º, do CC).
22 - Violou-se assim o artigo 205 da CRP em confronto com o artigo 607 n.º 4 do CPC,
que impõe o dever de fundamentação da decisão. Pois, tendo em conta a complexidade
da causa, a fundamentação da matéria de facto é inexistente ou gravemente deficiente, que leva à mesma conclusão.
23 - O dever de fundamentação da decisão proferida em sede de matéria de facto – imposto pelo nº 4 do art. 607º CPC – não se mostra cumprido com um simples resumo dos elementos probatórios, quando apenas se analisa a prova da Autora/Recorrida, por uma identificação de cada um dos documentos juntos aos autos e se tal exposição não se
encontrar acompanhada da explicitação, relativamente a cada um dos factos ou matérias
em causa, de quais, de entre esses meios de prova ou alguns deles, foram relevantes, por
que deu mais credibilidade a uns depoimentos e não a outros, julgou relevantes ou irrelevantes certas conclusões dos peritos ou achou satisfatória ou não a prova resultante
de documentos.
24 - Assim não está cumprido o ónus, devendo em consequência ser o processo reenviado
para o Tribunal para corrigir o vício.
25 - Assim deverá o Tribunal ad quem anular a decisão proferida em 1ª instância, a fim de o Tribunal a quo fundamentar devidamente a decisão por si proferida.
26 - E ainda, porque o Juiz a quo nos termos do artigo 615, n. 1, al. d) deixou de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia
tomar conhecimento, como sucede no caso sub judice.
27 - A Ré/ Recorrente, impugnou toda a matéria de facto, especificadamente como impõe
o artigo 574 do CPC.
28 - É que, a referida omissão teve manifesta influência no exame e decisão da causa. Vejamos. como resulta do disposto no art.º 423.º, n.º 1 do C.P.C. “os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa, devem ser apresentados
com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.”
29 - Nos termos do disposto no art.º 607.º, n.º 3 do C.P.C., “a decisão proferida declarará
quais os factos que o tribunal julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos
para a convicção do julgador.”
30 - A 4) Da falta de observância do Princípio do contraditório. Mantém-se a nulidade
invocada no Recurso anterior da violação do princípio do contraditório.
31 - Continuamos a estar perante uma decisão surpresa que lesa os direitos da Ré, nomeadamente o direito a um processo justo, equitativo, violando assim o preceito constitucional plasmando no artigo 20 da CRP, que a todos é garantido o acesso à justiça. Estando em causa o artigo 20 n.º 1, 4 e 5 da CRP.
32 - Com o aditamento do nº 3, do art. 3º, do CPC, e a proibição de decisões-surpresa, pretendeu-se uma maior eficácia do sistema, colocando, com maior ênfase e utilidade prática, a contraditoriedade ao serviço da boa administração da justiça, reforçando-se, assim, a colaboração e o contributo das partes com vista à melhor satisfação dos seus próprios interesses e à justa composição dos litígios.
33 - O referido nº 3, do artigo 3º, veio ampliar o âmbito da regra do contraditório, tradicionalmente entendido como garantia de uma discussão dialética entre as partes ao longo do desenvolvimento do processo, trazendo para o nosso direito processual uma conceção mais alargada, visando-se prevenir as “decisões surpresa”.
34 - A regra do contraditório passou, assim, a abarcar a própria decisão de uma questão de direito, decisiva para a sorte do pleito, inovatória, inesperada e não perspetivada pelas
partes, tendo de ser dada a estas a possibilidade de, previamente, a discutirem sendo que
tal “entendimento amplo da regra do contraditório, afirmado pelo nº3, do art. 3º, não limita obviamente a liberdade subsuntiva ou de qualificação jurídica dos factos pelo juiz
– tarefa em que continua a não estar sujeito às alegações das partes relativas à indagação,
interpretação e aplicação das regras de direito (art. 664º); trata-se apenas e tão somente, de, previamente ao exercício de tal “liberdade subsuntiva” do julgador, dever este facultar
às partes a dedução das razões que considerem pertinentes, perante um possível enquadramento ou qualificação jurídica do pleito, ou uma eventual ocorrência de exceções dilatórias, com que elas não tinham razoavelmente podido contar”.
35- Pelo que estamos no âmbito de uma decisão surpresa que lesa os direitos da Ré, nomeadamente o direito a um processo justo, equitativo, violando assim o preceito constitucional plasmando no artigo 20 da CRP, que a todos é garantido o acesso à justiça.
Estando em causa o artigo 20 n.º 1, 4 e 5 da CRP.
36 - Decisão - surpresa é a solução dada a uma questão que, embora previsível, não tenha sido configurada pela parte, sem que a mesma tivesse obrigação de a prever.
37 - Com o aditamento do nº 3, do art. 3º, do CPC, e a proibição de decisões-surpresa, pretendeu-se uma maior eficácia do sistema, colocando, com maior ênfase e utilidade prática, a contraditoriedade ao serviço da boa administração da justiça, reforçando-se, assim, a colaboração e o contributo das partes com vista à melhor satisfação dos seus próprios interesses e à justa composição dos litígios.
38 - Em conformidade, preceitua o art. 62º da CRP (Constituição da República Portuguesa) que: 1 - A todos é garantido o direito à propriedade privada…, nos termos da
Constituição.
39 - Em anotação a este preceito, ponderam os Profs. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (“Constituição da República Portuguesa Anotada”, 4ª Ed. revista, Vol. I, pags. 805) que “um elemento essencial deste direito consiste no direito de não se ser privado da propriedade (nem do seu uso)” e que, muito embora o mesmo não goze de protecção constitucional em termos absolutos, o mesmo está garantido como um “direito de não ser arbitrariamente privado da propriedade e de ser indemnizado no caso de desapropriação”.
40 - Em sintonia com o transcrito preceito da Lei Fundamental, dispõe o art. 1308º do CC
que “Ninguém pode ser privado, no todo ou em parte, do seu direito de propriedade senão
nos casos fixados na lei”.
41 - Da Litigância de Má Fé O Tribunal resolveu condenar a Ré/Recorrida como litigante
de má fé.
42 - Não obstante o Tribunal a quo, ter violado o princípio do contraditório, ainda condenou a Ré como litigante de má fé.
43 - Ora contra a Ré foi deduzida uma acção, da qual teria necessariamente de se defender.
44 - A Ré tem posse efectiva dos imóveis e existem ainda pendentes processos de embargos no âmbito dos processos executivos, que lhe foram deferidos liminarmente.
45 - Atentas estas informações nunca a Ré poderia ser condenada como litigante de má- fé na dupla vertente.
46 - Na verdade, entende a Ré, que não actua com má fé.
47 - A Ré realizou escritura, dos imóveis objecto dos presentes autos, por usucapião.
48 - Escritura que a Autora quer colocar em causa com a presente acção;
49 - A Ré contestou acção interposta pela Autora;
50 - Relativamente ao documento que a Ré alega como falso, nos artigos 12 e seguintes do douto articulado, foi extraída certidão para investigação, pelo que os efeitos desse documentos apenas dizem respeito a esse processo;
51 - Não existindo nestes autos, qualquer documento que comprove que decorre qualquer investigação criminal, nem o estado do processo.
52 - Não foi a Ré notificada de qualquer processo crime, pelo que desconhece se corre processo crime.
53 - E mesmo que corra processo crime, cuja Ré não tenha sido ainda constituída Arguida, sempre se presume a inocência da Ré, ou dos intervenientes no documento, artigo 32 n.º 2 da CRP.
54 - Assim pugna-se pela improcedência do pedido de condenação da Ré como litigante de má fé.
56 – Não alterou a Ré a verdade dos factos, nem fez uso indevido do processo, porquanto, apenas de defendeu de uma contestação e de uma providência cautelar que antecedeu.
No termo da peça processual, conclui-se pela revogação da sentença recorrida.
*
O autor, a 30-04-2025, respondeu pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção da decisão impugnada, apresentando as seguintes conclusões, que se transcrevem:
1ª A Ré, ora Recorrente quer impugnar a decisão recorrida com fundamento em nulidade mas os vícios que lhe aponta não integram a previsão legal do artº 615º do CPC, não padecendo a sentença em causa de qualquer nulidade.
2ª Na verdade, a sentença ora impugnada não merece qualquer reparo, não se verificando nenhum dos vícios – nunca geradores de nulidade – que a Ré, ora Recorrente, lhe aponta.
3ª A sentença não padece de qualquer vício e, ainda que não tivessem sido dados como provados os factos invocados pelo Autor, ora Recorrido, os (poucos) factos invocados pela Ré, ora Recorrente, sempre seriam insuficientes para permitir que se pudesse provar os factos constitutivos do direito da Recorrente, como a posse e a inversão desta, de forma a poder haver aquisição por usucapião, sendo que a Recorrente nada de nada refere quanto à suposta impossibilidade de comprovar o seu alegado direito pelos meios normais;
4º Pelo que bem andou o Tribunal a quo, ao decidir a ação no saneador, de nada servindo à Ré, ora Recorrente a realização da audiência de julgamento, por muitos documentos que entendesse juntar e muitas testemunhas que apresentasse, pois que estes nunca teriam o efeito de suprir a falta de invocação dos factos constitutivos do direito da Ré, ora Recorrente, que não ficaram a constar contestação
5ª Os factos dados como provados na sentença recorrida, tiveram como fundamento prova documental, mais exactamente, sentenças judiciais transitadas em julgado e com a força de caso julgado, que declararam que os imóveis dos autos são do Autor, ora Recorrido, e que a Ré, ora Recorrente não tem sequer a posse dos mesmos e nunca a teve, declarando ainda que a Ré fez deles uma ocupação ilícita, o que ficou indicado de forma clara na sentença recorrida;
6ª Perante estas evidências não se vislumbra que prova poderia a Ré, ora Recorrente, vir a fazer que pudesse por em causa o que já ficou definitivamente decidido em anteriores ações judiciais;
7ª São esses os factos dados por provados nos factos assentes desta decisão, e que constam todos eles de decisões judiciais transitadas em julgado e que a sentença recorrida identifica especificamente.
8ª Em cada facto provado, o Tribunal deixa expresso de que o elemento probatório se socorreu constatando-se que foi documental e, além de certidões prediais e da escritura de justificação, consistiram em sentenças judiciais transitadas em julgado, que declararam o contrário do que a Ré, ora Recorrente veio afirmar na escritura de justificação e na contestação que apresentou nos autos
9ª Nem sequer havia prova que a Ré, ora Recorrente, pudesse fazer que destruísse a força do caso julgado.
10º Acresce que, de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, não é necessário que o tribunal tome posição sobre todos os argumentos aduzidos pelas partes, mas que conheça todas as questões relevantes para a decisão de direito, sem dúvida alguma, como sucedeu nos presentes autos.
11ª Ora o Tribunal a quo considerou e analisou todas as questões suscitadas pela Ré, ora Recorrente, concluindo que Os factos declarados na escritura de justificação notarial, não permitem a aquisição da propriedade, nem por via do contrato, nem por via da usucapião, posto que as sentenças judiciais mencionadas nesta decisão e dadas por assentes, declararam que nem a SOCIMUR tinha qualquer direito de crédito sobre as frações (pelo que não o podia ceder à R), nem a ocupação das frações consubstancia uma posse, mas sim uma ocupação ilícita que foi judicialmente declarada como tal, e determinada a restituição das frações ao A..
12ª Não padecendo a sentença de nenhum vício.
13ª A decisão surpresa que a lei pretende afastar com a observância do princípio do contraditório, contende com a solução jurídica que as partes não tinham a obrigação de prever, para evitar que sejam confrontadas com decisões com que não poderiam contar, e não com os fundamentos que não perspetivavam de decisões que já eram esperadas ou com decisões proferidas já esperadas mas noutro momento processual, como é a presente
que, por isso, não pode entender-se decisão-surpresa.
14ª É evidente a má-fé com que a Ré, ora Recorrente litiga e com que se mantém a litigar, desde logo por insistir na pretensão que, de má-fé, deduziu em sede de contestação e, tendo sido negada, tenta valer por via de recurso, pelo que também aqui se deve manter inalterada a decisão recorrida;
15º Assim, deve negar-se provimento ao recurso apresentado pela Ré e Recorrente, por manifesta falta de fundamento quer de facto quer de direito, mantendo inalterada a sentença recorrida, que não merece qualquer censura.
*
A 06-05-2204, o recurso foi admitido, com subida nos autos e com efeito devolutivo, o que não foi alterado neste Tribunal.
Na mesma decisão, deu-se cumprimento ao disposto no art. 617º, n.º1, do CPC, refutando-se a nulidade da decisão recorrida.
*
II.
1.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635º, n.º4, 636º e 639º, n.º1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art. 608º, n.º2, parte final,ex vi do art. 663º, n.º2, parte final, ambos do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Tendo isto presente, no caso, atendendo às conclusões transcritas, a intervenção deste Tribunal de recurso é circunscrita às seguintes questões:
1. Saber se a sentença recorrida é nula por falta de fundamentação (art. 615º, n.º1, al. b), do CPC);
2. Saber se a sentença recorrida é nula por contradição entre os fundamentos e o decidido, ambiguidade ou obscuridade (art. 615º, n.º1, al. c), do CPC);
3. Saber se a sentença recorrida é nula por omissão de pronúncia (art. 615º, n.º1, al. d), do CPC);
4. Saber se a sentença recorrida padece de algum vício por preterição do princípio do contraditório e, por via disso, constitui uma decisão surpresa;
5. Saber se a sentença recorrida viola o disposto no art. 1308º do CC e, em caso positivo, respectivas consequências;
6. Saber se ocorre fundamento para a revogação da sentença recorrida no segmento respeitante à condenação da ré, ora recorrente, como litigante de má-fé.
*
2.
A factualidade dada como provada na decisão impugnada é a seguinte:
1. Consta registada a propriedade na Conservatória de Registo Predial de Lisboa, Freguesia de Benfica sob o nº 2543/20020128, por aquisição registada em 20/1/2007, a favor da A., à sociedade de construções Jofersandi, Lda, das frações:
a) fração autónoma identificada pela letra “A”, correspondente a Piso menos dois - Estacionamento designado pelo n° 25;
b) fração autónoma identificada pela letra “B”, correspondente a Piso menos um - Estacionamento designado pelo n° 97;
c) fração autónoma identificada pela letra “C”, correspondente a Piso menos um - Estacionamento duplo designado pelos n°s 98 e 99;
d) fração autónoma identificada pela letra “D”, correspondente a Estacionamento duplo designado pelos n°s 100 e 101;
e) fração autónoma identificada pela letra “G”, correspondente a Piso zero letra “C” - Estabelecimento comercial com três estacionamentos designados pelos n. s 64, 65 e 66 no piso menos um;
f) fração autónoma identificada pela letra “H”, correspondente a Piso zero letra “D” - Estabelecimento Comercial com três estacionamentos designados pelos nºs 77, 78 e 79, no piso menos um;
g) fração autónoma identificada pela letra “I”, correspondente a Piso zero letra “E” - Estabelecimento Comercial com dois estacionamentos designados pelos nºs 75 e 76, no piso menos um;
h) fração autónoma identificada pela letra “J”, correspondente a Piso zero letra “F” - Estabelecimento comercial com dois estacionamentos designados pelos nºs 67 e 68 no piso menos um;
i) fração autónoma identificada pelas letras “AO”, correspondente a Piso seis letra “A” - Um fogo destinado a habitação com uma arrecadação designada pela letra “AO” e dois estacionamentos designados pelos nºs 8 e 9 no piso menos dois
2. No dia 17 de Maio de 2022, a Ré celebrou, no Cartório Notarial Dr. … e perante o Senhor Notário, a escritura de JUSTIFICAÇÃO notarial que está de folhas 92 a 96 do Livro de Notas para Escrituras Diversas número 259-A do referido Cartório, cujo teor consta de fls. 40 a 47 dos autos e que se dá por integralmente reproduzido;
3. Na referida escritura consta declarado:
“Que, no dia dois de Outubro de dois mil e dois, foi celebrado um contrato de empreitada entre a “Sociedade de Construções Jofersandi, Lda.” e a sociedade “Diastos - Imobiliária, S.A”, no qual acordaram que esta iria efetuar obras de acabamento interiores e exteriores do Bloco 1 do supra identificado prédio urbano; Que nessa data de dois de Outubro de dois mil e dois e para garantia do pagamento do custo daquelas obras calculadas então em montante não inferior a 698.900,00€ acrescido de juros moratórias e IVA, a referida sociedade “Diastos - Imobiliária, S.A” ficou com a posse daquelas fracções autónomas supra identificadas.
Que, acordaram ainda que no final das referidas obras a posse das supra identificadas fracções deveria ser entregue ao dono da obra, a mencionada “Sociedade de Construções Jofersandi, Lda”, mediante pagamento do preço acordado com a sociedade construtora a “Diastos - Imobiliária, S.A.
Que até que se verificasse o pagamento referente aos custos das obras de acabamentos interiores e exteriores do supra identificado edifício o valor seria assim garantido pelo direito de retenção das supra identificadas fracções pela mencionada sociedade “Diastos - Imobiliária,S.A”.
Que caso não fosse incumprido o mencionado pagamento e nos termos dessa mesma garantia as supra identificadas fracções passariam a pertencer à mencionada “Diastos - Imobiliária, S.A.
Que o pagamento da dívida nunca foi efectuado pelo que a sociedade “Diastos - Imobiliária, S.A” manteve desde a mencionada data de dois de Outubro de dois mil e dois, a posse daquelas fracções;
Que, no dia vinte e dois de Março de dois mil e sete, a sociedade “Diastos - Imobiliária, S.A” cedeu à sociedade “SOCIMUR - Sociedade Imobiliária Urbana, S.A”, NIPC 500.269.793, os supra identificados direitos de crédito, e, com isso, a posse das supra identificadas fracções.
Que as referidas obras foram concluídas em data que não se consegue precisar mas terá sido antes do dia vinte e dois de Março de dois mil e sete.
Que o pagamento do preço nunca foi efectuado por parte da mencionada “Sociedade de Construções Joffersandi, Lda”.
Que após o dia vinte e dois de Março de dois mil e sete, a sociedade “SOCIMUR - Sociedade Imobiliária Urbana, S.A, inverteu o título da sua posse e passou a agir como proprietária efectiva das supra identificadas fracções, agindo sempre de forma correspondente ao direito de propriedade, tendo ficado com a posse das identificada fracções enquanto proprietária e a tem vindo a exercer de urna forma pública, pacifica, continua e de boa-fé, nomeadamente, pago todos os impostos e taxas, mensalidade do condomínio, tem também utilizado as fracções, limpo e restaurando as mesmas.
Que, por contrato de cessão de créditos celebrado no dia vinte e um de Outubro de dois mil e treze, a mencionada sociedade “SOCIMUR - Sociedade Imobiliária Urbana, S.A”, vendeu à sociedade “Saratoga-Tour - Empreendimentos Turísticos e Hoteleiros, S.A” os supra identificados direitos de crédito, e, com isso, esta sucedeu naquela posse das supra identificadas fracções e continuada a mesma nos mesmos termos, tendo assim sucedido e continuado a posse da mencionada sociedade “SOCIMUR – Sociedade Imobiliária Urbana, S.A”, da mesma forma que esta vinha a exercer, de uma forma pública, pacífica, continua e de boa-fé.
Que tem assim a sociedade “Saratoga-Tour - Empreendimentos Turísticos e Hoteleiros, S.A” uma posse, dos supra identificados fracções, titulada pelo respectivo contrato de cessão de créditos.
Que desconhece como e quando o titular inscrito nas supra identificadas fracções “Turirrent - Fundo de Investimento Imobiliário Fechado” adquiriu as mesmas mas certo é que esse Fundo nunca teve a posse daquelas fracções.
Assim, desde a referida data de vinte e dois de Março de dois mil e sete a mencionada sociedade “SOCIMUR - Sociedade Imobiliária Urbana, S.A” entrou nos termos supra expostos na posse das fracções autónomas supra identificadas, tendo adquirido e mantido a sua posse sem oposição e com conhecimento de todos, agindo sempre por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, pagando os impostos e taxas referentes aos mesmos imóveis, tendo por isso uma posse, pública, pacífica, contínua e de boa fé, tendo a mencionada sociedade “Saratoga-Tour - Empreendimentos Turísticos e Hoteleiros, S.A”, sucedido e continuado a posse daquela, da mesma forma que aquela a sociedade “SOCIMUR - Sociedade Imobiliária Urbana, S.A” vinha a exercer, tendo a ora justificante a sociedade “Saratoga-Tour - Empreendimentos Turísticos e Hoteleiros, S.A”, por isso uma posse, pública, pacífica, contínua e de boa-fé, que dura há mais de quinze anos, pelo que adquiriu as identificadas fracções por usucapião, não tendo, todavia, dado o modo de aquisição, documento algum que lhes permita fazer prova do seu direito de propriedade.”
4. Correu termos acção judicial entre A. e R. (e outros RR) sob o processo nº 20249/17.6T8LSB, deste Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo Central Cível de Lisboa - Juiz 12, cuja sentença transitada em julgado consta de fls. 57 a 72 dos autos e cujo teor se dá por integralmente reproduzido, e onde foi decidido que não tendo a aqui R. e ali R. qualquer título que legitime a ocupação das frações, foi condenada a desocupar e entregar ao A. as frações ocupadas, assim como os demais RR a fazê-lo quanto a outras frações, tudo em termos que constam da dita decisão;
5. AA e Mulher, BB foram os participantes originários do Fundo ora A. (facto provado na sentença referida no ponto 4, invocando-se a autoridade do caso julgado dos factos provados nessa decisão para estes autos);
6. A Ré, SARATOGATOUR, SA., foi constituída como sociedade por quotas, em 30.10.2003, tendo como sócios AA e BB, sendo ambos gerentes, até 23.10.2009, data em que BB renunciou às funções de gerente (facto provado na sentença referida no ponto 4, invocando-se a autoridade do caso julgado dos factos provados nessa decisão para estes autos);
7. A SOCIEDADE DE CONSTRUÇÕES JOFERSANDI, LIMITADA, actualmente em liquidação, por ter sido declarada insolvente, teve como sócios, AA e Mulher, BB, sendo estes também os seus gerentes (embora o cônjuge Mulher só até Julho de 2009), (facto provado na sentença referida no ponto 4, invocando-se a autoridade do caso julgado dos factos provados nessa decisão para estes autos) – facto constante dos pontos 7 e 8 da matéria de facto provada constante da sentença recorrida;
8. A SOCIMUR, SA., actualmente dissolvida e com encerramento da liquidação, tratava-se de sociedade anónima, que teve como Presidente do Conselho de Administração, o referido AA que, aliás, foi o único administrador desta sociedade desde a sua constituição e durante muitos anos (embora estivesse previsto que a administração seria exercida por um conselho composto de 3 a 7 membros, só se obrigando esta pela assinatura em conjunto de três administradores); (facto provado na sentença referida no ponto 4, invocando-se a autoridade do caso julgado dos factos provados nessa decisão para estes autos) – facto constante do ponto 9 da matéria de facto provada constante da sentença recorrida;
9. A DIASTOS, IMOBILIÁRIA, SA., que se trata de sociedade anónima, no quadriénio de 2007/2010, teve como Presidente do Conselho de Administração uma filha de AA e Mulher, BB, mais exactamente, CC, sendo também Administradora desta sociedade no mesmo quadriénio, a outra filha do casal, DD, (facto provado na sentença referida no ponto 4, invocando-se a autoridade do caso julgado dos factos provados nessa decisão para estes autos) – facto constante do ponto 10 da matéria de facto provada constante da sentença recorrida;
10. A Presidente CC manteve-se em funções até abril de 2013, data em que renunciou e a sociedade DIASTOS, IMOBILIÁRIA, SA., passou a ter um administrador único, que é, desde então, EE, o qual já vinha exercendo funções de administrador (juntamente com FF), desde 2010; (facto provado na sentença referida no ponto 4, invocando-se a autoridade do caso julgado dos factos provados nessa decisão para estes autos) – facto constante do ponto 11 da matéria de facto provada constante da sentença recorrida;
11. Em Dezembro de 2011, o aqui Autor foi também citado para uma ação declarativa ordinária, que correu termos pela então 6ª Vara Cível, 1ª Secção, do Tribunal das Varas de Lisboa, sob o nº 2576/11.8TVLSB, em que foi Autora a Socimur – Sociedade Imobiliária Urbana, SA, alegando a referida Socimur que teria adquirido à já identificada Diastos, Imobiliária, SA., o crédito da mesma sobre a insolvente Jofersandi, Lda., decorrente de empreitada não paga sobre imóveis actualmente propriedade do Fundo, ora Autor (e Réu na referida acção), pedindo a Autora Socimur, que fosse reconhecido direito de retenção, nos seguintes termos:
1ºCondenar o R a reconhecer que a A. exerce desde 22/3/2007 o direito de retenção exercido desde 3/5/2001 pela DIASTOS, imobiliária, SA., e que esta lhe transmitiu naquela data, sobre os seguintes imóveis:
- Fracção V do edifício em propriedade horizontal sito na Estrada da Ribeira, na Amoreira, correspondente ao Bloco C, rés-do-chão esquerdo (segundo piso) – destinada a habitação – com uma arrecadação nº 4 e um estacionamento com o nº 22 na cave (1º piso), descrita na 2ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob a ficha ..../........ – V/Alcabideche;
- Fracção X do edifício em propriedade horizontal sito na Estrada da Ribeira, na Amoreira, correspondente ao Bloco C, rés-do-chão direito (segundo piso) – destinada a habitação – com uma arrecadação nº 11 e um estacionamento com o nº 21 na cave (1º piso), descrita na 2ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob a ficha ..../........ – X/Alcabideche;
- Fracção Z do edifício em propriedade horizontal sito na Estrada da Ribeira, na Amoreira, correspondente ao Bloco C, 1º andar esquerdo (terceiro piso) – destinada a habitação – arrecadação nº 2 e dois estacionamentos com os nºs 8 e 9 na cave (1º piso), descrita na 2ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob a ficha ..../........ – Z/Alcabideche;
- Fracção AB do edifício em propriedade horizontal sito na Estrada da Ribeira, na Amoreira, correspondente ao Bloco C, 2º andar esquerdo (quarto piso) – destinada a habitação – com uma arrecadação nº 3 e dois estacionamentos com os nºs 10 e 11 na cave (1º piso), descrita na 2ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob a ficha ..../........ – AB/Alcabideche;
2º Condenar o R a reconhecer que o A exerce desde 22/3/2007 o direito de retenção exercido desde 2/10/2002, pela Diastos, Imobiliária, SA. e que esta lhe transmitiu naquela data, sobre os seguintes imóveis:
- Fracção AO do edifício em propriedade horizontal sito na Rua ..., correspondente ao piso seis, letra “A”, fogo destinado a habitação com uma arrecadação designada pela letra “AO” e dois estacionamentos designados pelos nºs 8 e 9 no piso menos dois, descrita na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob a ficha ..../........ – AO/Benfica;
- Fracção G do edifício em propriedade horizontal sito na Rua ..., correspondente ao piso zero, letra “C” – estabelecimento comercial três estacionamentos designados pelos nºs 64, 65 e 66 no piso menos um, descrita na mesma Conservatória sob a ficha ..../........ – G/Benfica;
- Fracção H do edifício em propriedade horizontal sito na Rua ..., correspondente ao piso zero, letra “D” – estabelecimento comercial três estacionamentos designados pelos nºs 77, 78 e 79 no piso menos um, descrita na mesma Conservatória sob a ficha ..../........ – H/Benfica;
- Fracção I do edifício em propriedade horizontal sito na Rua ..., correspondente ao piso zero, letra “E” – estabelecimento comercial dois estacionamentos designados pelos nºs 75 e 76 no piso menos um, descrita na mesma Conservatória sob a ficha ..../........ – I/Benfica;
- Fracção J do edifício em propriedade horizontal sito na Rua ..., correspondente ao piso zero, letra “F” – estabelecimento comercial dois estacionamentos designados pelos nºs 67 e 68 no piso menos um, descrita na mesma Conservatória sob a ficha ..../........ – J/Benfica;
- Fracção A do edifício em propriedade horizontal sito na Rua ..., correspondente ao piso menos dois – estacionamento designado pelo nº 25, descrita na mesma Conservatória sob a ficha ..../........ – A/Benfica;
- Fracção B do edifício em propriedade horizontal sito na Rua ..., correspondente ao piso menos um – estacionamento designado pelo nº 97, descrita na mesma Conservatória sob a ficha ..../........ – B/Benfica;
- Fracção C do edifício em propriedade horizontal sito na Rua ..., correspondente ao piso menos um – estacionamento duplo designado pelos nºs 98 e 99, descrita na mesma Conservatória sob a ficha ..../........ – C/Benfica;
- Fracção D do edifício em propriedade horizontal sito na Rua ..., estacionamento duplo designado pelos nºs 100 e 102, descrita na mesma Conservatória sob a ficha ..../........ – D/Benfica;
3º Ordenar o registo das decisões condenatórias peticionadas nos números anteriores;
4º Condenar o R nas custas, condigna procuradoria e demais despesas legais. (facto provado na sentença referida no ponto 4, invocando-se a autoridade do caso julgado dos factos provados nessa decisão para estes autos) – facto constante do ponto 12 da matéria de facto provada constante da sentença recorrida;
12. Esta acção veio a ser julgada inteiramente improcedente, por decisão confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, e cuja sentença consta de fls. 83 a88 dos autos e cujo teor se dá por inteiramente reproduzido (facto provado na sentença referida no ponto 4, invocando-se a autoridade do caso julgado dos factos provados nessa decisão para estes autos) – facto constante do ponto 13 da matéria de facto provada constante da sentença recorrida;
13. No âmbito da contestação judicial dos autos nº 20249/17.6T8LSB, supra mencionados, a aqui R. contesta a acção referindo “é verdade que o A. é o proprietário das frações referidas no art. 4º da pi desde 29/12/2006. Contudo impugna-se tudo o demais alegado”, fls. 73 a 75 dos autos – facto constante do ponto 9 da matéria de facto provada constante da sentença recorrida.
*
3.
Conhecendo da primeira questão acima enunciada, que se reconduz em saber se a sentença recorrida é nula por falta de fundamentação (art. 615º, n.º1, al. b), do CPC).
Nas conclusões 5 a 7, se bem as compreendemos, a recorrente alega que a sentença recorrida é nula, por falta de fundamentação, por não enunciar os factos não provados e não conhecer dos factos alegados na contestação, não sendo possível “alcançar o quadro factual e jurídico subjacente ao sentido decisório” (cf. pág. 14 do requerimento de recurso).
A sentença – e, por força do disposto no art. 613º, n.º3, do CPC, os despachos judiciais – pode padecer de duas causas distintas de vícios: por conter erro no julgamento dos factos e do direito – o denominado error in judicando –, tendo, como consequência, a sua revogação pelo tribunal superior; por sofrer de um erro na sua elaboração e estruturação ou por o decisor ter ficado aquém ou ter ido além do que lhe cabia decidir (thema decidendum), sendo a consequência a nulidade, conforme previsto no art. 615º do CPC. Nas primeiras situações referidas, ocorrem vícios do acto de julgamento; nas segundas situações mencionadas, verificam-se vícios formais, externos ao acto de julgamento propriamente dito, antes relacionados com a sua exteriorização ou com os seus limites.
Uma das causas de nulidade da sentença ocorre quando nela não se especifiquem os fundamentos de facto ou de direito que justificam a decisão (art. 615º, n.º1, al. b), do CPC).
De acordo com o disposto no art. 607º, n,º2 e 3, do CPC, que define as regras a observar pelo juiz na elaboração da sentença, esta “começa por identificar as partes e o objeto do litígio, enunciando, de seguida, as questões que ao tribunal cumpre conhecer”, seguindo-se “os fundamentos de facto”, onde o juiz deve “discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as regras jurídicas, concluindo pela decisão final”.
O art. 607º, n.º 4, do CPC, determina que, na “fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção”; e “tomando ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras da experiência”.
Por fim, no art. 607º, n.º 5, do CPC, refere-se que o “juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, não abrangendo, porém, aquela livre apreciação “os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.
Por força do disposto no art. 154º do CPC, as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido são sempre fundamentadas, em concretização do determinado no art. 205º, n.º1, da Constituição da República Portuguesa.
O dever de fundamentação referido tem por finalidade “imporao juiz a verificação e controlo crítico da lógica da decisão e permitir às partes o recurso desta com perfeito conhecimento da situação e colocar a instância de recurso em posição de exprimir, com maior certeza, um juízo concordante ou divergente” (ac. STJ de 05-03-2015, processo n.º 7331/10.0TBOER.L1.S1; ac. TRL de 21-03-2024, processo n.º 1019/23.9T8ALM-B.L1-2, ambos acessíveis em dgsi.pt).
A nulidade em referência abrange apenas a absoluta falta de fundamentação da decisão e não a fundamentação alegadamente errada, incompleta ou insuficiente (cf., no mesmo sentido, a título de exemplo o Ac. STJ de 03-03-2021, processo n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1, acessível em dgsi.pt. Veja-se, também: Geraldes, Pimenta e Pires de Sousa, CPC Anotado, Vol. I, 3ª ed., 2024, Livraria Almedina, p. 793, nota 10; Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1985, p. 687; Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, p. 221; Lebre de Freitas, A Ação declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 332);
A falta absoluta de fundamentação pode respeitar apenas aos fundamentos de facto da decisão ou apenas aos seus fundamentos de direito (cf. o ac. STJ de 15-05-2019, processo n.º 835/15.0T8LRA.C3.S1, acessível em dgsi.pt), além de poder incidir sobre ambos.
Afere-se da decisão impugnada que a mesma não contém referência aos factos não provados por a mesma ter sido proferia após os articulados, sem realização da audiência final, portanto.
A decisão referida contém o elenco dos factos provados, o motivo de os mesmos serem tidos como demonstrados nos autos (por referência aos documentos que os evidenciam) bem como os fundamentos jurídicos da solução que perfilha para o litígio, expressando o entendimento de que tal solução torna a realização da audiência final e conhecimento dos factos alegados pela ré inútil.
Do referido resulta que, ao invés do defendido pela recorrente, da decisão não se afere qualquer falta absoluta de fundamentação.
Conclui-se, pelo exposto, que a decisão impugnada não padece da nulidade prevista no art. 615º, n.º1, al. b), do CPC, arguida pela recorrente.
*
4.
- Da nulidade prevista no art. 615º, n.º1, al. c), do CPC.
Passando à apreciação da segunda questão acima enunciada, que consiste em saber se a decisão recorrida padece de nulidade por contradição entre os fundamentos e o dispositivo, ambiguidade ou obscuridade.
Nas conclusões 8 a 11, a recorrente invoca que a decisão recorrida é nula por:
- a argumentação de facto e de direito nela convocada só poder conduzir à decisão no sentido da improcedência da acção, atento o facto de não ter observado a posição da recorrente, nem a ter vertido nos factos provados ou nos factos não provados;
- enfermar de ambiguidade ou obscuridade, que a torna ininteligível, por não fazer menção à posição da recorrente (cf. página 17 do requerimento de recurso).
Outra das causas de nulidade da sentença ocorre quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (art. 615º, n.º1, al. c), do CPC).
A nulidade em referência abrange as situações em que ocorre incompatibilidade entre os fundamentos de direito e a decisão, isto é, quando a fundamentação indica sentido que contradiz o resultado, o que se distingue de eventual erro de julgamento, em que se decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que impõe uma solução jurídica diferente.
O vício mencionado demanda um erro de raciocínio lógico, em que a decisão corresponde a um resultado contrário ao que os seus fundamentos de direito impõem (cf., no mesmo sentido, a título de exemplo o Ac. STJ de 14-04-2021, processo n.º 3167/17.5T8LSB.L1.S1, acessível em dgsi.pt. Veja-se, também: Geraldes, Pimenta e Pires de Sousa, CPC Anotado, Vol. I, 3ª ed., 2024, Livraria Almedina, p. 793, nota 11; Lebre de Freitas, Montalvão Machado, Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 670).
O vício verifica-se quando exista contradição entre o raciocínio expresso pelo juiz na fundamentação da decisão, mas já não quando “o antagonismo interceda entre o elenco de factos provados propriamente ditos e a decisão, já que, sendo aqueles factos o terreno de apreciação do caso à luz do direito aplicável, qualquer incompatibilidade entre a sua significância jurídica e a apreciação efetiva que o juiz faça deles envolve erro de julgamento” (ac. desta Secção de 20-06-2024, processo n.º 11433/21.9T8LSB.L1).
A sentença será obscura quando contenha algum segmento cujo sentido seja ininteligível, indecifrável, e ambígua se alguma parte permita interpretações diferentes, assim comprometendo a sua inteligibilidade (cf., no mesmo sentido, a título de exemplo o Ac. STJ de 09-03-2022, processo n.º 4345/12.9TCLRS-A.L1.S1, acessível em dgsi.pt. Veja-se, também, Geraldes, Pimenta e Pires de Sousa, obra citada, p. 793, nota 11).
Revertendo ao caso dos autos, constata-se que a sentença recorrida evidencia coerência entre os fundamentos que expõe e o dispositivo, mostrando-se este a decorrência lógica jurídica daqueles.
Na verdade, ao invés do defendido pela recorrente, não se vê como os aludidos fundamentos, que se reconduzem à insuficiência dos factos vertidos na escritura de justificação para legitimarem a aquisição, pela ré, do direito de propriedade sobre as fracções autónomas em referência nos autos, e existência de decisões judiciais que comprometerem essa aquisição, possam conduzir a outra solução jurídica que não a procedência da acção e a consequente declaração de ineficácia da escritura pública de justificação nela identificada.
Por outro lado, a coerência referida não se mostra comprometida pela alegada omissão de apreciação da posição da recorrente sobre o litígio, incluído sobre a matéria de facto por si alegada, ao contrário do por si defendido, considerando que, na decisão impugnada, se assume que tal posição não coloca em causa a fundamentação adoptada.
Por outro lado, a sentença recorrida não contém qualquer segmento que se mostre ininteligível, indecifrável, nem que aponte para sentidos diferentes, sendo, igualmente seguro, que a ausência de conhecimento expresso da posição da recorrente sobre o litígio não afecta a sua perceptibilidade, ao invés do defendido pela mesma.
Conclui-se, face ao referido, que a decisão impugnada não padece da nulidade prevista no art. 615º, n.º1, al. c), do CPC, arguida pelo recorrente.
*
5.
- Da nulidade prevista no art. 615º, n.º1, al. d), do CPC.
Passando ao conhecimento da terceira questão acima enunciada, que consiste em saber se a sentença recorrida é nula por omissão de pronúncia.
Nas conclusões 12 e ss., a recorrente invoca que a decisão recorrida é nula por não se pronunciar sobre a matéria de facto que alegou em sede de contestação nos pontos 14 a 19 e sobre a posição que aí assume sobre o litígio (cf. páginas 20 e 21).
Outra das causas de nulidade da sentença encontra-se prevista no art. 615º, n.º1, al. d), parte final, do CPC, e reconduz-se aos denominados omissão de pronúncia e excesso de pronúncia.
O primeiro vício mencionado, invocado pela autora neste recurso, verifica-se quando ocorre a ausência de posição ou decisão do Tribunal sobre questões cujo conhecimento a lei impõe.
Tais questões são aquelas que as partes submetem à apreciação do Tribunal e as que sejam de conhecimento oficioso.
As “Questões” referidas são “todas as pretensões processuais formuladas pelas partes que requerem decisão do juiz, bem como os pressupostos processuais de ordem geral e os pressupostos específicos de qualquer acto (processual) especial, quando realmente debatidos entre as partes” (Antunes Varela, RLJ, Ano 122.º, pág. 112), sendo que não podem confundir-se “as questões que os litigantes submetem à apreciação e decisão do tribunal com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os pressupostos em que a parte funda a sua posição na questão” (José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Coimbra Editora, Limitada, pág. 143).”
Importa, assim, distinguir entre questões a apreciar e razões ou argumentos apresentados pelas partes para defesa da solução que defendem para cada questão a resolver. "São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão" (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, V Volume, Coimbra Editora, p. 143).
As questões postas, a resolver, "suscitadas pelas partes só podem ser devidamente individualizadas quando se souber não só quem põe a questão (sujeitos), qual o objeto dela (pedido), mas também qual o fundamento ou razão do pedido apresentado (causa de pedir)" (Alberto dos Reis, op. cit., pág. 54). Logo, "as "questões" a apreciar reportam-se aos assuntos juridicamente relevantes, pontos essenciais de facto ou direito em que as partes fundamentam as suas pretensões" (Ac. do STJ, de 16-04-2013, processo n.º 2449/08.1TBFAF.G1.S1, acessível em dgsi.pt) e não se confundem com considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes (a estes não tem o Tribunal que dar resposta ou individualizada, mas apenas aos que diretamente contendam com a substanciação da causa de pedir e do pedido).
O vício em referência respeita, pois, aos limites da decisão, tal como definidos no art. 608º, n.º2, do CPC: o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
É certo que a sentença recorrida não se refere à matéria de facto alegada pela recorrente nos artigos 14 a 19 da contestação.
Não obstante o referido, afere-se da leitura da decisão que, face à factualidade nela dada como demonstrada e à argumentação jurídica aí assumida, que o conhecimento da factualidade alegada pela recorrente em sede de contestação se mostra prejudicado por ser inútil, com o argumento de que a mesma não coloca em causa tal argumentação, tendo-se, por isso, dispensado a realização de audiência final, com produção de prova.
Por outro lado, ao invés do defendido pela recorrente, a decisão recorrida pronuncia-se sobre a posição pela mesma assumida em sede de oposição, no sentido de não merecer acolhimento.
Face ao exposto, entende-se que a decisão impugnada não padece da nulidade de omissão de pronúncia prevista no art. 615º, n.º1, al. c), do CPC, arguida pelo recorrente.
*
6.
Passando ao conhecimento da quarta questão acima referida, atinente a saber se a sentença recorrida padece de algum vício por preterição do princípio do contraditório e, por via disso, constitui uma decisão surpresa.
A recorrente, nas conclusões 30 e ss., invoca que a decisão recorrida viola o princípio do contraditório, constituindo uma decisão-surpresa, sem, contudo, especificar os termos em que tal violação se concretiza, nem mesmo em sede de alegações (cf. páginas 24 a 27), o que importa, desde logo, a improcedência de tal argumentação.
De todo o modo, sempre se dirá que resulta do art. 3º, n.º3, do CPC, que, ao longo de todo o processo, deve observar-se e fazer-se cumprir, o princípio do contraditório, não sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidirem-se questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
O preceito em referência consagra o princípio do contraditório e, na sua decorrência, a proibição das decisões surpresa.
Como refere Miguel Teixeira de Sousa (CPC Online, acessível no blog do IPPC) em anotação ao art. 3º, n.º3, do CPC, o princípio do contraditório, sendo um dos corolários do processo equitativo, importa duas garantias ou direitos: o direito de resposta de uma parte perante a outra parte, posto que qualquer das partes tem o direito de se pronunciar sobre as alegações da parte contrária; o direito à audição prévia da parte perante o tribunal, sendo que este, em momento prévio à decisão, deve ouvir sempre as partes, o que importa a proibição da emissão de decisões que afectem quem antes não dispôs da possibilidade de se pronunciar em relação à matéria sobre que tal decisão versa.
Nessa perspectiva, se o Tribunal conhecer de uma matéria de facto ou de direito alegada por uma das partes sem previamente ter sido concedida à parte contrária a possibilidade de exercer o contraditório, a decisão é passível de anulação.
Por outro lado, no que respeita ao conceito de decisão surpresa, o mesmo integra as decisões que adoptem solução para uma questão que não tenha sido configurada pela parte e que esta, actuando com uma diligência normal, não tinha a obrigação de prever.
Como assumido no acórdão do STJ de 19-01-2023, processo n.º 15910/21.3T8PRT-P1.S1 (acessível no site dgsi.pt), a decisão surpresa não se confunde com a suposição que as partes possam ter ou com a expectativa que possam ter criado quanto à decisão, de facto ou de direito, do Tribunal.
Seguindo o mesmo aresto, entende-se que “O que se pretende com a proibição da decisão-surpresa é que o juiz não enverede por uma solução que os sujeitos processuais não abordaram e não quiseram submeter a juízo, surgindo a decisão de forma absolutamente inopinada e distanciada do condicionalismo factual e jurídico vertido na acção pelas partes.”
Ora, da tramitação dos autos, constata-se que a ré dispôs da faculdade de se pronunciar sobre o alegado pelo autor na petição inicial, designadamente, sobre a relevância para a solução do litígio das decisões judiciais referidas em tal peça, quer na contestação, quer em sede de alegações apresentadas oralmente na audiência prévia realizada a 04-02-2025.
Por outro lado, a sentença recorrida perfilhou solução jurídica idêntica à defendida na petição inicial, em relação à qual a ré teve a oportunidade de se pronunciar.
Do que se acaba de referir resulta que a ré, ao longo do processo, discutiu a questão apreciada na sentença recorrida.
A fundamentação jurídica assumida na decisão recorrida, enquadra-se no âmbito de previsibilidade acessível às partes, face à natureza da questão em causa e à argumentação que o autor apresentou no processo.
Entende-se, pois, ao invés do defendido pela ré, que a decisão recorrida não configura uma decisão surpresa e, por isso, não viola o princípio do contraditório consagrado no art. 3º, n.º3, do CPC, nem, com tal fundamento, padece de algum vício.
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6.
Passando ao conhecimento da quinta questão acima enunciada, que se reconduz a saber se a decisão recorrida viola o disposto no art. 1308º do CC e, em caso positivo, respectivas consequências.
A presente acção tem por objecto a impugnação da escritura de justificação notarial outorgada a 17-05-2022, na qual a ré declara ser dona e legítima titular do direito de propriedade sobre as fracções autónomas identificadas no ponto 1 da matéria de facto provada por usucapião.
A justificação em referência nos autos está prevista no art. 116º, n.º1, do Código do Registo Predial e no art. 89º do Código do Notariado e consiste num expediente técnico simplificado, um processo anormal de titulação, um meio de se obter a primeira inscrição registral de um prédio que alguém afirma ser seu, obtendo um novo título que tem a sua razão de ser no princípio do trato sucessivo (cf. acórdão do TRG de 23-02-2023, processo n.º 541/22.9T8PTL.B.G1, acessível em dgsi.pt).
Como a escritura de justificação notarial não tem as garantias necessárias de correspondência com a realidade e é susceptível de ser utilizada de modo fraudulento, no art. 101º, n.º1, do Código do Notariado, prevê-se a faculdade de impugnação do facto justificado, constitutivo do direito de propriedade de que o justificante se arroga, mediante procedimento judicial, nos seguintes termos: “Se algum interessado impugnar em juízo o facto justificado deve requerer simultaneamente ao tribunal a imediata comunicação ao notário da pendência da acção.”
A acção de impugnação de justificação notarial é uma acção declarativa de simples apreciação negativa (art. 10º, n.º 1, 2, 3, al. a), do CPC), posto que tem por finalidade obter a declaração de inexistência do direito de propriedade invocado na escritura. Por isso e por força do disposto no art. 343º, n.º 1, do CC, recai sobre o réu nessa acção o ónus da prova dos factos constitutivos do direito que se arroga.
Nessa perspectiva, na aludida acção, não está em causa a validade do acto jurídico – a escritura de justificação. O que se discute nessa acção é antes o direito de propriedade que está subjacente a tal acto, ou seja, o direito de propriedade sobre o bem que o justificante declarou na escritura ser titular, tendo por substracto os factos aí invocados.
Atentando no caso dos autos, o que se discute nos mesmos é se a ré é titular do direito de propriedade sobre as fracções identificadas no ponto 1 da matéria de facto provada.
Na petição inicial, alega-se, além do mais, para sustento da procedência da acção, a sentença proferida no processo n.º 20 249/17.6T8LSB (por lapso refere-se o processo n.º 22538/18.3T8LSB, atenta a identificação do documento n.º 22 como o respeitante à decisão em causa), designadamente o segmento da sua fundamentação onde se reconhece que a ré é proprietária das fracções supra referidas, e o seu trânsito em julgado (cf. arts. 12º a 18º do articulado em referência).
Na sentença recorrida não se aprecia a argumentação referida, antes se optou pela valoração de factualidade tida como demonstrada nos autos por força de ter sido dada como provada em decisões judiciais proferidas noutros processos, por via da autoridade de caso julgado, e comportamento processual da ré nesses processos no sentido do comprometimento da aquisição, por parte da ré, do direito de propriedade sobre as fracções referidas no ponto 1 do acervo provado com fundamento nos factos declarados na escritura de justificação impugnada.
Ressalvando, sempre, o devido respeito, não se perfilha o entendimento assumido na decisão impugnada, pelos motivos que abaixo se expõem.
Importa reter que, com o trânsito da sentença em julgado, produz-se o caso julgado, como decorre do art. 619º, n.º1, do CPC, que contém a noção de caso julgado material.
Em tal preceito diz-se que, “transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 582º (...)”
Pelo instituto referido visa-se evitar que uma mesma acção seja instaurada várias vezes, obstando a que sobre uma mesma situação recaiam decisões contraditórias.
Está, assim, em causa um meio de garantir a boa administração da justiça, funcionalidade dos tribunais e salvaguarda da paz social, o que só é possível alcançar se sobre os litígios recaírem decisões definitivas. Sem esta protecção, a função jurisdicional seria meramente consultiva; as opiniões – resoluções, na verdade – dos juízes e dos tribunais, não seriam obrigatórias, já que podiam ser provocadas e repetidas de acordo com a vontade dos interessados. Em especial as sentenças, produto mais relevante do poder judicial, deixariam de sujeitar as partes; a sua execução seria sempre provisória; a segurança do tráfico entre os homens ficaria terrivelmente ameaçada. Não está, portanto, em causa a ideia de que a decisão transitada em julgado é expressão da verdade dos factos, mas a segurança jurídica.
A referida força obrigatória da sentença desdobra-se num duplo sentido: no da proibição de repetição da mesma pretensão ou questão, por via da excepção dilatória do caso julgado, prevista nos arts. 577º, al. i), 580º e 581º do CPC, que pode ser sintetizada através do brocardo non bis in idem; no da vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior, a que corresponde o brocardo judicata pro veritate habetur, cujo suporte normativo se alcança no n.º 2 do art. 580 do CPC.
Na perspectiva referida, o caso julgado não tem apenas relevância negativa. Como a Doutrina [Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 305; Castro Mendes, Limites Objetivos do Caso Julgado em Processo Civil, Lisboa: Ática, 1968, p. 162; Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2.ª ed., Lisboa: Lex, 1997, p. 576, e O Objeto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ, 325, p. 167, Antunes Varela / Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, p. 703, nota 1; Mariana França Gouveia, A Causa de Pedir na Ação Declarativa, Coimbra: Almedina, 2004, p. 394; Lebre de Freitas / Montalvão Machado / Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, II, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 325 – 326; Rui Pinto, “Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias”, Julgar Online, disponível em https://julgar.pt/excecao-e-autoridade-de-caso-julgado-algumas-notas-provisorias/; Lebre de Freitas, “Um polvo chamado autoridade do caso julgado”, ROA, ano 79, n.os 3-4 (jul.-dez. 2019), pp. 691-722] e a Jurisprudência [a título de exemplo, vejam-se os acórdãos do STJ de 30-04-2019, processo n.º 4435/18.4T8MAI.S1, de 14-09-2022, processo n.º 24558/19.1T8LSB.L1.S1, de 02-03-2023, processo n.º 6055/18.4T8ALM.L1.S1, de 12-04-2023, processo n.º 979/21.9T8VFR.P1.S1, de 30-05-2023, processo n.º 3358/20.1T8BRG.G1.S1, e de 04-07-2023, processo n.º 142/15.8T8CBC-C.G1.S1, acessíveis em dgsi.pt] referem, o caso julgado material pode funcionar como excepção, com a referida relevância negativa, ou como autoridade, caso em que a sua relevância é positiva.
Como refere Miguel Teixeira de Sousa (O Objeto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ, n.º 325, p. 168), os efeitos do caso julgado material projectam-se em processos ulteriores necessariamente como autoridade do caso julgado material, em que o conteúdo da decisão anterior constitui uma vinculação à decisão de distinto objecto posterior, ou como excepção de caso julgado, em que a existência da decisão anterior constitui um impedimento à decisão de idêntico objeto posterior.
A questão da autoridade do caso julgado material (para a economia da presente decisão, não releva a questão da excepção dilatória de caso julgado) respeita, sobretudo, à extensão da auctoritas rei iudicatae à solução das questões prejudiciais, assim denominadas as relativas a relações jurídicas distintas da deduzida em juízo pelo autor, mas de cuja existência ou inexistência dependa logicamente o teor da decisão do pedido, sobre as quais não ocorre decisão, mas simples cognitio.
Como se refere, designadamente, no acórdão do STJ de 12-01-2021, processo n.º 2030/11.8TBFLG.P1.S1 (acessível em https://jurisprudencia.pt/acordao/198429/), louvando-se no aresto aí citado, “a força do caso julgado material abrange, para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado”.
Seguindo o ensinamento de Miguel Teixeira de Sousa (Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pp. 578-579) “Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão”.
Por outro lado, como se refere no acórdão do STJ de 19-09-2024, processo n.º 3042/21.9T8PRT.S2 (acessível em dgsi.pt), os juízos probatórios positivos ou negativos que constituem a denominada “decisão de facto” não revestem a natureza de decisão definidora de efeitos jurídicos, embora relevem como limites objectivos do caso julgado material nos termos do art. 621º do CPC, pelo que “sobre eles não se forma qualquer efeito de caso julgado autónomo, mormente que lhes confira, enquanto factos provados ou não provados, autoridade de caso julgado no âmbito de outro processo”.
Diverge-se, por isso, da decisão impugnada, no que tange à matéria de facto nela dada como provada constante dos pontos 5 a 10, 11 e 12, supra, com fundamento nos juízos probatórios formulados na sentença proferida no processo n.º 20249/17.6T8LSB.
O funcionamento do referido efeito positivo do caso julgado, prescindindo embora da identidade dos elementos objetivos – aliás, em rigor, tem como pressuposto que essa identidade não existe, pois caso contrário ocorreria o efeito negativo –, não prescinde da identidade dos elementos subjetivos. Assim, tal efeito apenas se pode admitir perante quem tenha sido parte – num sentido jurídico – na acção em que foi produzida a sentença ou, não o tendo sido, se encontra abrangido por via da sua eficácia directa ou reflexa.
Face ao supra referido, importa, perante duas acções com diferentes pedidos – e que, por isso, escapam à excepção do caso julgado –, apurar-se das relações existentes entre os respetivos objectos.
Entende-se, geralmente, que apenas uma relação de prejudicialidade entre tais objectos permitirá afirmar que o decidido a propósito de um – o prejudicial – se impõe no julgamento do outro – o dependente –, como corolário da proibição de decisões contraditórias.
Tal relação de prejudicialidade tanto pode ocorrer no domínio da mesma relação jurídica julgada com valor de caso julgado, como no domínio de uma relação jurídica conexa com ela, conforme ensina Rui Pinto (Excepção e autoridade de caso julgado – Revista Julgar, Novembro de 2018, p. 38, acessível em http://julgar.pt/excecao-e-autoridade-de-caso-julgado-algumas-notas-provisorias/).
Tenha-se em atenção que não estão em causa os enunciados de facto considerados na acção prejudicial, mas antes o julgamento da relação jurídica que eles constituem. É esse julgamento que se impõe na acção dependente.
Importa, ainda, ter em atenção que não é conveniente adoptar um critério rígido sobre os limites do caso julgado quanto às questões prejudiciais. Como refere Miguel Teixeira de Sousa (“Preclusão e caso julgado”, RFDUL, LVIII, 2017/1, pp. 149-175), “[a] realidade é mais multifacetada do que aquela que é compaginável com a redução da aplicação da proibição de contradição às situações de prejudicialidade de um objecto perante um outro objecto”, daí que a proibição de contradição também possa actuar quando se trate, simplesmente, de evitar que o caso julgado seja contrariado por uma decisão posterior, ou seja, “quando o que importa é obstar a uma nova pronúncia do tribunal contraditória com a anterior.”
Ponderando o exposto, entende-se verificada a identidade de sujeitos, posto que os, aqui, autor e ré figuraram como partes, em igual posição, no processo n.º 20249/17.6T8LSB, cuja sentença transitou em julgado.
Na decisão acabada de mencionar, em sede de fundamentação, refere-se, expressamente, que a autora é proprietária das nove fracções autónomas objecto da escritura pública de justificação impugnada nestes autos, referidas no ponto 1 do acervo provado (cf. página 29 da sentença cuja cópia constitui o documento n.º 22 junto com a petição inicial), como pressuposto lógico-jurídico do deferimento dos pedidos de restituição de tais fracções e de indemnização pela privação do seu uso aí deduzidos pelo autor.
Como acima se referiu, o que se discute nestes autos é saber se a ré é titular do direito de propriedade sobre as fracções identificadas no ponto 1 da matéria de facto provada, com fundamento na factualidade declarada na escritura pública impugnada, que não se mostra subsequente ao encerramento da discussão na acção n.º 20249/17.6T8LSB, momento que corresponde ao limite temporal do efeito de autoridade de caso julgado (art. 588º, n.º1, do CPC).
A apreciação realizada na sentença proferida no processo n.º 20249/17.6T8LSB, no sentido de reconhecer o direito de propriedade sobre as aludidas fracções a favor do autor, colide frontalmente com a questão a conhecer na presente acção: se os bens pertencem, em exclusivo, ao autor não podem pertencer à ré.
Por força do efeito positivo de caso julgado, tal apreciação impõe-se na presente acção, vinculando o Tribunal a assumir o entendimento nela perfilhado para apreciação da questão a conhecer.
Assim, reconhecendo-se que o autor é titular do direito de propriedade sobre as fracções objecto da escritura pública de justificação impugnada, forçoso se mostra concluir que a ré não é titular de tal direito, não se mostrando o mesmo, por isso, violado e pela procedência da presente acção, ainda que com argumentação diversa da adoptada na sentença impugnada.
*
7.
Passando ao conhecimento da sexta questão acima referida, que se reconduz a saber se ocorre fundamento para a revogação da sentença recorrida no segmento respeitante à condenação da ré, ora recorrente, como litigante de má-fé.
A sentença recorrida sustenta a condenação referida no art. 542º, n.º2, al. a), do CPC, e em a ré:
a. Sabendo que os factos que estiveram subjacentes à escritura de justificação eram falsos porque dois tribunais judiciais já assim o tinham declarado em duas decisões distintas, continuou a sustentá-los na contestação;
b. Sabendo que o que alega na contestação é algo que já foi decidido em sentido contrário por sentenças judiciais, afirma na lide um direito que sabe inexistir por não ter fundamento.
A ré discorda, alegando que se limitou a exercer a sua defesa na lide.
Dispõe o art. 542º, n.º1 e 2 do CPC, que:
“1 - Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2 - Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.”
No instituto da litigância de má-fé está em causa o sancionamento de comportamentos contrários ao princípio da boa-fé processual, genericamente consagrado, no seu sentido objetivo, no art. 8º do CPC.
Nas várias alíneas do referido n.º 2 estão descritas condutas que as partes se devem abster de praticar no decurso do processo pois delas podem resultar prejuízos para o decurso da relação processual cujo sucesso, com a obtenção de uma decisão justa e em prazo razoável, pressupõe um espírito de cooperação intersubjetiva e consentâneo com o dever de verdade.
No que tange à norma constante da alínea a) do art. 542º, n.º2, do CPC, convocada na decisão recorrida, impõe às partes um dever de cuidado por ocasião da propositura da acção ou da dedução da oposição, para que a máquina judiciária estadual não seja colocada em causa desnecessariamente.
Por outro lado, não basta que uma das partes leve a cabo um comportamento subsumível a uma das alíneas. Para que exista má-fé, exige-se um elemento de ordem subjetiva sem o qual o comportamento da parte não pode ser tido como típico e, consequentemente, como ilícito. Trata-se do dolo e da culpa grave a que alude o proémio do n.º 2.
Tal exigência, que se aproxima do modelo do ilícito penal, justifica-se como forma de salvaguardar a margem de liberdade que o processo necessariamente pressupõe, sob pena de se restringirem de forma excessiva os direitos processuais de acção ou de defesa que assistem às partes.
O elemento subjetivo mencionado deve ser considerado não apenas ao nível da culpa, mas também em sede de tipicidade, pelo que apenas se verificará um ilícito típico quando se possa concluir que o comportamento enquadrável numa das alíneas foi praticado com dolo ou negligência grave. Na falta deste elemento, a conduta não poderá sequer ser considerada ilícita e o sujeito não poderá ser considerado como litigante de má-fé.
Nesse sentido, escreve Paula Costa e Silva (Responsabilidade por Conduta Processual – Litigância de Má-Fé e Tipos Especiais, p. 382) que “a integração de elementos subjetivos no tipo de ilícito pode apontar para uma certa indistinção face à culpa. É nesta que, tradicionalmente, se valora a actuação do agente para se determinar se, atendendo à sua colocação ou ao modo como actua, merece a concreta sanção que a lei ordena para a sua conduta típica e ilícita.” A autora explica, na sequência, que, não obstante, “também numa importação da dogmática penal, os elementos subjetivos relevarão na tipicidade para que se determine se um comportamento, atendendo a estes elementos, se pode considerar típico. No momento da culpa dar-se-á, novamente, relevância a estes elementos, mas agora para a determinação do modo como influenciam o conteúdo concreto das situações jurídicas que a conduta típica e ilícita desencadeia, quer isto dizer, o tipo de culpa relevará na determinação do conteúdo concreto da obrigação de indemnizar.”
A propósito dos elementos subjetivos, importa notar que, na versão original do CPC de 1961, o legislador processual aproximava a má-fé ao dolo. Com a reforma levada a cabo pelo DL n.º 329-A/95, de 12.12, o elemento subjetivo da litigância de má-fé foi ampliado à culpa grave, que aponta para que se esteja perante uma noção ética de boa-fé subjetiva, considerando de má-fé não apenas a conduta daquele que conhece o erro em que incorre, mas também a daquele que o desconhece por não ter cumprido com os deveres de cuidado que lhe eram impostos. Como refere Marta Alexandra Frias Borges (Algumas Reflexões em Matéria de Litigância de Má-Fé, Coimbra: UC, 2014, p. 43), “esta eticização da má-fé processual não se afigura total, na medida em que se não compadece com qualquer desrespeito por esses deveres de cuidado, independentemente do grau de culpa. Pelo contrário, apenas estaremos perante má-fé processual quando se tenham desrespeitado os mais elementares deveres de cuidado e de prudência, actuando de forma gravemente negligente, isto é, com culpa grave. Pelo que só a culpa grave será capaz de eliminar a boa-fé subjetiva em que se presume estar aquele que objetivamente preenche alguma das alíneas do art. 542º, nº2.”
Os termos em que é feita, nas alíneas do n.º 2 do art. 542, a descrição das condutas processualmente reprováveis permite integrar a má-fé processual numa de duas modalidades: substancial ou instrumental, consoante respeite ao próprio fundo da causa, ou apenas ao comportamento processual especificamente assumido pelo litigante.
Haverá má-fé substancial quando a parte formule pedido ou oposição manifestamente infundados ou quando infrinja o dever de verdade (art. 542º, n.º2, als. a) e b)); haverá má-fé instrumental quando a parte, independentemente da razão que possa ter quanto ao mérito da causa, infrinja o dever de cooperação ou faça um uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais (art. 542º, n.º2, als. c) e d)).
Como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra, Almedina, 2019, p. 457), “só a parte vencida pode incorrer em má-fé substancial, mas ambas as partes podem actuar com má-fé instrumental, podendo portanto o vencedor da acção ser condenado como litigante de má-fé.”
Para preenchimento da previsão contida no art. 542º, n.º2, al. a), do CPC, basta que à parte seja exigível o conhecimento da falta de fundamento da pretensão ou oposição que deduziu no processo, cabendo-lhe apurar se a mesma era concretamente fundamentada, no plano de facto e de direito: “a parte pratica um acto desconforme e provocador de um dano num bem juridicamente protegido porque, antes de agir, devia ter observado os deveres de indagação que sobre ela impendiam; o desconhecimento quanto à falta de fundamentação é-lhe imputável, sendo censurável” (Paula Costa e Silva, obra citada, p. 394), relevando a negligência consciente bem como a inconsciente.
O parâmetro de aferição do dever de diligência da parte consubstancia-se nos seguintes termos: “a generalidade das pessoas ou todas as pessoas, pertencentes à categoria social e intelectual da parte real, colocadas naquela situação em concreto, ter-se-iam abstido de litigar, uma vez que, cumprindo os seus deveres de indagação, teriam concluído não terem, quer a pretensão, quer a defesa, fundamento. Só um sujeito extraordinariamente desleixado age como agiu a parte” (Paula Costa e Silva, obra citada, p. 394).
Aqui chegados, atentando no caso dos autos, constata-se, como referido na sentença recorrida, que a ré, em sede de contestação, afirmou os factos declarados na escritura pública de justificação impugnada e que, por via deles, adquiriu o direito de propriedade sobre as fracções autónomas referidas em tal acto, assim colocando em causa a pretensão da autora na lide.
Ocorre que, como acima se referiu, na data da apresentação da contestação, a questão da titularidade do direito de propriedade sobre as aludidas fracções já havia sido decidida no processo n.º 20249/17.6T8LSB, por sentença transitada em julgado, no sentido de que tal direito era titulado pela autora, o que a ré bem sabia, quer porque foi parte neste processo, quer porque tal foi invocado na petição inicial, com junção de cópia da aludida decisão, que constitui o documento n.º 22 junto com tal articulado.
O efeito de caso julgado da decisão mencionada, nos termos acima expostos, designadamente, a vinculação das partes do processo em que a mesma foi proferida e o dever do seu acatamento, patenteia-se à generalidade dos cidadãos, colocados na situação da ré, não se vendo motivo para que tal não tenha ocorrido quanto a esta.
Tendo a ré consciência do dever de acatamento da decisão mencionada, evidencia-se, também, que a mesma tinha conhecimento de que a oposição que deduzia no processo, no sentido de afirmar os factos declarados na escritura pública de justificação impugnada e que, por via deles, adquiriu o direito de propriedade sobre as fracções autónomas referidas em tal acto, era contrária à aludida decisão e, por isso, que tal oposição era contrária ao Ordenamento Jurídico e carecida de fundamento, não podendo deduzi-la nos autos.
Entende-se, pois, que a ré deduziu nos autos, na forma dolosa, oposição sem fundamento, constituindo tal actuação litigância de má-fé, nos termos do art. 542º, n.º2, al. a), do CPC, pelo que, por força do disposto no art. 542º, n.º1, do mesmo código, deve ser condenada em multa processual e em indemnização a favor da autora, tal como assumido na sentença recorrida.
A recorrente não coloca em causa a fixação dos valores atinentes à multa ou indenização em que foi condenada, não sendo tais questões, por isso, objecto do recurso.
Conclui-se, assim, pela resposta negativa à questão ora apreciada.
*
O recurso mostra-se integralmente improcedente.
*
8.
Considerando a improcedência da apelação, a ré recorrente deverá suportar as custas do recurso (art. 527º, n.º1 e 2 do CPC).
*
III.
Em face do exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõe o Colectivo desta 2ª Secção em julgar o recurso interposto pela ré improcedente e, em consequência, manter a sentença recorrida, proferida a 12-02-2025.
Custas do recurso pela ré /recorrente.
Notifique.
*
Lisboa, 09 de Outubro de 2025.
Os Juízes Desembargadores, Fernando Caetano Besteiro António Moreira Pedro Martins