EMBARGOS DE EXECUTADO
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
EXTENSÃO DO CASO JULGADO
EFICÁCIA
TERCEIRO
OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA
OBRIGAÇÃO INDIVISÍVEL
Sumário

I. A função positiva do caso julgado, designada por autoridade do caso julgado, tem a ver com a existência de prejudicialidade entre objectos processuais, tendo como limites os que decorrem dos próprios termos da decisão, como se depreende dos art.ºs 619.º e 621.º, ambos do CPC, e implica o acatamento da decisão proferida em acção anterior cujo objecto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objecto de uma acção posterior, obstando a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa.
II. A autoridade do caso julgado não requer a tríplice identidade de sujeitos, de pedidos e de causas de pedir, podendo estender-se a outros casos, designadamente quanto a questões que sejam o antecedente lógico necessário da parte dispositiva do julgado.
III. Relativamente à eficácia subjectiva do caso julgado, embora a regra geral seja a de que ele só produz efeitos em relação às partes, também se estende àqueles  que, não sendo partes, se encontrem legalmente abrangidos por via da sua eficácia directa ou reflexa, beneficiando do efeito favorável, como sucede, designadamente, nas situações de solidariedade entre devedores, de solidariedade entre credores e de pluralidade de credores de prestação indivisível, respetivamente nos termos dos artigos 522.º, 2.ª parte, 531.º, 2.ª parte, e 538.º, n.º 2, do CC.
IV. O caso julgado material formado com o trânsito em julgado de decisão anteriormente proferida numa acção tem eficácia relativamente à embargante que não teve nela intervenção quando se discute nos embargos de executado as mesmas questões já discutidas entre a exequente e o executado, por alegadas dívidas comuns e solidárias dos executados e embargantes, casados entre si.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça – 1.ª Secção[2]:



I. Relatório


AA.  e esposa BB.  deduziram embargos à execução para pagamento de quantia certa que lhes moveu Parvalorem S.A., invocando a inexistência de título e da obrigação exequenda, bem como o decidido no precedente processo n.º 91643/12…., com autoridade de caso julgado, quanto a não ter havido a disponibilização de fundos em que a exequente funda a sua pretensão na execução.


A exequente contestou, pugnando pela improcedência dos embargos.


Realizada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, onde se determinou a extinção da execução apenas quanto ao primeiro embargante, com fundamento na autoridade do caso julgado da sentença proferida no aludido processo n.º ……, que correra termos (só) contra o mesmo.


Inconformadas, apelaram a exequente e a embargante BB. , pugnando, respectivamente, pela inexistência e pela extensão a ela própria da autoridade do caso julgado formado no precedente processo.


O Tribunal da Relação, por unanimidade e com idêntica fundamentação, considerando verificar-se a autoridade do caso julgado apenas nos termos decididos, julgou improcedentes ambas as apelações e confirmou o despacho saneador recorrido.


Ainda não conformadas, ambas as apelantes recorreram para este Tribunal: a exequente Parvalorem interpôs recurso de revista dita normal, por considerar que não se verificam os requisitos do caso julgado, na sua função positiva, quanto ao embargante AA., e, subsidiariamente, revista excepcional; enquanto a BB. interpôs apenas recurso de revista excepcional.

Neste tipo de revista, invocaram ambas contradição com outros acórdãos da Relação de Coimbra (um) e do STJ (três), bem como o disposto no art.º 672.º, n.º 1, al. c), do CPC.


Já neste Supremo Tribunal, o Relator, no despacho liminar, não admitiu a revista normal interposta pela exequente por não ser caso de violação do caso julgado, porquanto tinha havido aceitação dos efeitos da autoridade do caso julgado emergente de anterior decisão (quanto ao embargante AA.), e, depois de verificar os pressupostos gerais da admissibilidade do recurso de revista excepcional interposto por ambas as recorrentes, ordenou a remessa dos autos à Formação para apreciação do requisito específico por elas invocado.


A Formação, por douto acórdão de 10/11/2020, não admitiu a revista excepcional interposta pela Parvalorem, S.A., e admitiu excepcionalmente a revista interposta pela embargante BB.


São as seguintes as conclusões deste recurso, na parte aqui relevante (ainda que repetitivas e misturadas com a questão da admissibilidade, já ultrapassada):

“1. O presente recurso vem interposto do Acórdão do TRIBUNAL DA RELAÇÃO …. datado de dia 28 de maio de 2020, no qual o douto Tribunal julgou improcedente o recurso apresentado pela ora Recorrente, julgando assim improcedente a exceção dilatória da autoridade de caso julgado deduzida e, consequentemente, ordenando a prossecução da ação executiva contra esta.

2. Como veremos, este aresto, para além de colidir com a linha jurisprudencial maioritária, provoca uma grave injustiça, “dando o ouro ao bandido”.

3. De facto, caso esta decisão transite em julgado (o que não se concebe!), a ora Recorrente poder-se-á ver forçada a fazer pagamentos à Recorrida por conta de um direito de crédito (avultadíssimo!) que já foi decidido não existir no âmbito de um outro processo judicial transitado em julgado.

4. Com efeito, a existência do alegado direito de crédito da Exequente, ora Recorrida, no pagamento, por parte dos Executados (i.e., da aqui Recorrente e do seu cônjuge, na qualidade de contrapartes e devedores solidários), da quantia que lhes terá sido pretensamente disponibilizada na conta bancária n.º 600………., previamente aberta ao abrigo do Contrato de Abertura de Crédito datado de ……2006 e aditado a ……2008 (“Contrato de Abertura de Crédito”), foi já julgada/apreciada na ação que correu termos sob o Processo n.º 91643/12…. no Tribunal Judicial da Comarca…., Secção Central Cível…., Juiz 1 (“Processo n.º 91643/12…..”), e que veio a ser julgada totalmente improcedente, por não provada, tendo o ali Réu AA.  – cônjuge da aqui Recorrente – sido absolvido da integralidade do pedido (importando recordar que a aqui recorrida e ali Autora instaurou a referida ação apenas contra o cônjuge marido, razão pela qual a aqui Recorrente não foi também ali absolvida).


12. Nos presentes autos, discute-se a seguinte questão essencial: saber se a exceção da autoridade do caso julgado deduzida pela ora Recorrente - que poderá extinguir o alegado (mas inexistente) direito de crédito da ora Recorrida - se estende à Recorrente que não foi parte no Processo n.º 91643/12……..

13. Por outras palavras: se a identidade subjetiva é um requisito essencial e obrigatório para a aplicação da exceção da autoridade do caso julgado ou se, ao invés, tal instituto poderá ser “aplicado” a terceiros que, não fazendo parte da ação, podem vir a beneficiar do efeito favorável daquele caso julgado na medida em que trata de uma obrigação solidária.

14. O Acórdão Fundamento que a Recorrente apresenta encontra-se em contradição com o Acórdão Recorrido, quanto ao sentido e alcance a dar à exceção da autoridade de caso julgado e quanto à interpretação dos requisitos da mesma, em concreto, a interpretação que é dada à exigência de identidade dos sujeitos e à extensão da aplicação daquele instituto a situações de solidariedade entre devedores.

15. Em traços gerais, o Acórdão Recorrido, proferido pelo TRIBUNAL DA RELAÇÃO ….. (assim como a decisão do TRIBUNAL DE 1.ª INSTÂNCIA), considera que existe identidade entre os pedidos e a causa de pedir desta ação e a do Processo n.º 91643/12…...

16. Contudo, foi entendido que não se verifica a identidade subjetiva (de verificação obrigatória para aplicação deste instituto) - porquanto a Recorrente não foi parte do Processo n.º 91643/12….. - e que, por essa razão, não estamos perante uma situação de verificação da exceção da autoridade de caso julgado que conduziria à absolvição da Recorrente da instância,

17. Afirmando, ainda, que a eficácia do caso julgado se pode aplicar – excecionalmente – a terceiros nos casos previstos por Lei, sendo que nessas situações não estão abrangidas as obrigações solidárias, como é o caso da obrigação discutida nos autos principais de execução.

18. Tanto o TRIBUNAL DE 1.ª INSTÂNCIA como o TRIBUNAL DA RELAÇÃO ……, fizeram uma errada interpretação e aplicação da regra da autoridade do caso julgado, prevista no artigo 619.º, n.º 1 do CPC, no que respeita à aqui Recorrente, pois não só estamos perante uma dívida (devedora) solidária – e, como bem refere o Acórdão Fundamento, “o devedor solidário aproveitará o caso julgado favorável constituído em relação a um seu condevedor” – como o objeto dos presentes autos se insere no objeto do Processo n.º 91643/12…., já decidido por Decisão transitada em julgado.

19. Este entendimento do Acórdão Recorrido encontra-se, porém, frontalmente em contradição com diversos acórdãos do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, destacando-se, para os devidos efeitos, o seguinte Acórdão do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA proferido em 28 de março de 2019, no âmbito do processo n.º 6659/08.3TBCSC.L1.S1 (“Acórdão Fundamento”):

“V. A autoridade do caso julgado não depende de verificação integral da tríplice identidade prescrita no artigo 581.º do CPC, mormente no plano do pedido e da causa de pedir. Já no respeitante à identidade de sujeitos, esse efeito de caso julgado só vinculará quem tenha sido parte na respetiva ação ou quem, não sendo parte, se encontre legalmente abrangido por via da sua eficácia direta ou reflexa, consoante os casos.

VI. Assim, quem não for parte na ação poderá, todavia, beneficiar do efeito favorável daquele caso julgado em conformidade com a lei, como sucede nas situação de solidariedade entre devedores, de solidariedade entre credores e de pluralidade de credores de prestação indivisível, respetivamente nos termos dos artigo 522.º, 2.ª parte, 531.º, 2.ª parte, e 538.º, n.º 2, do CC.

VII. Verificada a autoridade do caso julgado de uma decisão de mérito que seja incompatível com o objeto a decidir posteriormente noutra ação, o seu alcance não pode deixar de se repercutir no próprio mérito desta, importando, nessa medida, a sua improcedência com a consequente absolvição do réu do pedido.” (…).

20. Efetivamente, e sempre salvo o devido respeito, que é muito, verifica-se uma clivagem jurisprudencial clara quanto à interpretação e aplicação dos conceitos legais da autoridade de caso julgado, tal como consagrados nos artigos 580.º e 581.º do CPC, nomeadamente quanto a um devedor solidário (a Recorrente) poder vir a aproveitar o caso julgado favorável constituído em relação a um seu condevedor (que, ainda para mais, é o seu marido!) nos termos do artigo 522.º, 2.ª parte do CC.

21. Por esse motivo é possível asseverar que, analisados ambos os Acórdãos (o Recorrido e o Fundamento), constata-se que um idêntico núcleo factual é julgado, com base na mesma regra de direito, em sentido diametralmente oposto num e no outro.

22. Por douto Despacho Saneador proferido a 17 de fevereiro de 2019, pronunciou-se o TRIBUNAL DE 1.ª INSTÂNCIA sobre a exceção dilatória da autoridade de caso julgado deduzida pela Recorrente e pelo seu marido, o (ex) Co-Executado/Embargante AA. , julgando-a parcialmente procedente e, em consequência, determinando a extinção da ação (apenas) quanto ao Executado Marido e a prossecução da mesma quanto à aqui Recorrente.

23. Para o efeito, o TRIBUNAL DE 1.ª INSTÂNCIA entendeu que a questão principal que constituiu o cerne dos presentes autos – apurar a existência do direito da Exequente, ora Recorrida, no pagamento, por parte dos Executados, da quantia que lhes terá sido pretensamente disponibilizada na conta bancária n.º 600………, previamente aberta ao abrigo do Contrato de Abertura de Crédito – tinha sido já julgada/apreciada na ação que correu termos sob o Processo n.º 91643/12……., e que veio a ser considerada totalmente improcedente, por não provada, tendo o ali Réu AA.  sido absolvido da integralidade do pedido.

24. Sucede que, e argumentando que, não existindo uma (completa e integral) identidade de partes nas duas ações – por a Recorrente não ter intervindo no referido Processo n.º 91643/12…….. (recorde-se que a aqui Recorrida apenas instaurou aquela ação contra o Executado Marido, apesar da alegada obrigação ser solidária – tanto que os autos principais executivos foram instaurados contra ambos, marido e mulher) –, a exceção dilatória de autoridade de caso julgado não se podia verificar quanto a esta.

25. Não se conformando com a decisão do TRIBUNAL DE 1.ª INSTÂNCIA a ora Recorrente apresentou as suas alegações de Recurso para o TRIBUNAL DA RELAÇÃO ……. em março de 2019.

26. O douto Tribunal a quo proferiu o Acórdão Recorrido no dia 28 de maio de 2020, onde considerou o recurso da ora Recorrente improcedente, mantendo a decisão recorrida!

27. Para o efeito, o Tribunal a quo considerou, em suma, o seguinte:

 A autoridade de caso julgado implica o acatamento de uma decisão proferida em ação anterior cujo objeto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objeto de uma ação posterior, obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa;

 Que no instituto da autoridade de caso julgado, por razões de certeza e segurança jurídica, não se exige a tríplice identidade prevista no artigo 581.º do CPC, isto é, não se exige a identidade do pedido e da causa de pedir, exigindo-se apenas a verificação da identidade subjetiva (identidade das partes);

 Que inexistindo identidade subjetiva – único requisito obrigatório para aplicação da figura da autoridade de caso julgado – não se pode verificar quanto à aqui Recorrente esta exceção, que importaria a absolvição da instância; e,

 Que a eficácia relativa do caso julgado apenas se pode impor a terceiros nos casos especialmente previstos na Lei, e nessas situações não estão abrangidas as obrigações solidárias.

28. Acontece que, salvo o devido respeito pela Decisão dos doutos Tribunais a quo, a Recorrente não pode concordar com a mesma, razão pela qual se interpõe o presente recurso de revista excecional nos termos já aduzidos.

29. Efetivamente, e ao contrário da interpretação dada pelos dois Tribunais, a autoridade de caso julgado está relacionada com a existência de relações entre ações, já não de identidade jurídica (própria da exceção de caso julgado), mas de prejudicialidade entre ações, de tal ordem que julgada, em termos definitivos, uma certa questão em ação que correu termos entre determinadas partes, a decisão sobre essa questão se impõe necessariamente em todas as ações que venham a correr termos, ainda que incidindo sobre partes diferentes, pois não se exige a tríplice identidade a que alude o artigo 581.º CPC.

30. Como demonstrado ao longo destas Alegações, tanto no Processo 91643/12……como nos presentes autos executivos o que está em causa é: o mesmo Contrato de Abertura de Crédito (celebrado em ……2006 e aditado a …….2008); aferir da efetiva disponibilização aos Executados, ao abrigo desse Contrato, dos mesmos montantes de capital; aferir se essas quantias de capital foram disponibilizadas na mesma conta bancária (conta com o n.º 600……., titulada por ambos os Executados); e aferir se essas quantias de capital foram utilizadas pelos Executados – caso em que, então, sobre estes recairia a obrigação de restituição de tais quantias de capital e respetivos juros (parte dos quais é peticionada nestes autos executivos contra a Recorrente e o seu marido e a outra parte foi peticionada no Processo n.º 91643/12……. apenas contra o Executado Marido).

31. Ora, no âmbito do Processo n.º 91643/12……. foi já decidido que não existe qualquer direito de crédito da Recorrida sobre o Executado Marido (e, por conseguinte, também não pode existir sobre a Recorrente), por conta do Contrato de Abertura de Crédito datado de ……..de 2006 e aditado a …….de 2008 (também subjacente aos presentes autos), pois não se logrou provar a disponibilização dos valores (peticionados ao abrigo do Contrato de Abertura de Crédito) na conta n.º 600.... (também subjacente aos presentes autos) e, não existindo mais vias de recurso, estas Decisões Judiciais cristalizaram-se!

32. De facto, se não resultou provado que as quantias foram disponibilizadas ao (ex) Executado Marido, na conta n.º 600 .... – titulada pelo (ex) Executado Marido e pela sua mulher, a aqui Recorrente – certo também será, por maioria de razão e até senso comum, que as mesmas quantias (alegadamente devidas ao abrigo do mesmo Contrato de Abertura de Crédito) não foram disponibilizadas à sua mulher, a Recorrente, para a mesma conta bancária!!!!

33. Ora, considerando que a questão nuclear dos presentes autos já foi alvo de análise e ponderação – com Decisões transitadas em julgado – com confirmação de Tribunal Superior –, a autoridade do caso julgado, obsta a que a relação jurídica ali definida venha a ser novamente contemplada e decidida nos presentes autos, pese embora a Recorrente não tenha sido Parte no Processo n.º 91643/12………, pois a um devedor solidário aproveitar-se-á o caso julgado favorável constituído em relação a um seu condevedor.

34. O efeito da autoridade do caso julgado material do reconhecimento da inexistência de qualquer direito de crédito da Recorrida - por conta do Contrato de Abertura de Crédito (celebrado em …….2006 e aditado a ………2008) - decorrente da decisão proferida no Processo 91643/12…….., vincula não só o Executado Marido como a Recorrente, na medida em que tal reconhecimento lhe é favorável na perspetiva da pretensão contra ela deduzida na presente causa pela mesma Exequente!

35. Do douto Acórdão do TRIBUNAL DA RELAÇÃO……. datado de 28 de maio de 2020 de que ora se recorre, resulta claro o entendimento do Tribunal a quo de que não se verifica a exceção dilatória de autoridade de caso julgado contra a Recorrente apenas porque esta não foi parte no referido Processo n.º 91643/12…….., acrescido do facto de que um devedor solidário não beneficia da extensão da autoridade do caso julgado a seu favor

36. Ora, e salvo o devido respeito, que é muito, não podemos concordar nem tão pouco aceitar a interpretação dada pelo douto Tribunal a quo, que não dá como verificada a exceção inominada de autoridade de caso julgado também contra a Recorrente, apenas e tão só por não se verificar a total identidade subjetiva entre as duas ações.

37. Como é sabido, a atribuição da força de caso julgado às decisões vinculativas proferidas nos Tribunais é uma exigência do nosso ordenamento jurídico que decorre da necessidade de segurança jurídica, elemento essencial a qualquer ordenamento num Estado de Direito, assim como da boa administração da Justiça, da funcionalidade dos Tribunais e da salvaguarda da paz social!

38. Efetivamente, in casu não existe esta tríplice identidade, pois não obstante a causa de pedir ser a mesma nos dois processos (tal com reconhece a Recorrida) e o pedido proceder do mesmo Contrato de Abertura de Crédito, os sujeitos não são totalmente coincidentes, já que a Recorrente não fez parte do Processo n.º 91643/12…. (por decisão da Recorrida, que até hoje não se compreende, mas que não pode obstar, por isso, à aplicação da autoridade do caso julgado).

39. Contudo, a autoridade de caso julgado de sentença transitada pode atuar independentemente de tais requisitos, desde que o objeto seja o mesmo.

40. Isto é, “ainda que não se verifique o concurso de requisitos para que exista a exceção de caso julgado, pode estar em causa o prestígio dos Tribunais ou a certeza / segurança das decisões judiciais se uma decisão, mesmo que proferida em outro processo com outras partes, vier dispor em sentido diverso sobre o mesmo objeto da decisão anterior transitada em julgado abalando assim a autoridade desta” – cfr. ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA de 21.03.2013 (…).

41. Assim sendo, e salvo melhor opinião, fica ultrapassada a limitação que impediu os Tribunais a quo de julgar procedente a exceção da autoridade do caso julgado também contra a ora Recorrente, já que nada obsta à extinção da presente execução também contra a Recorrente, à semelhança da extinção da ação quanto ao seu marido, o (ex) Executado AA. !

42. Com efeito, e sempre salvo o devido respeito, dúvidas não existem quanto à identidade das duas ações e ao facto por demais evidente de que o objeto da primeira ação já julgada (Processo n.º 916432/12……) se inserir no objeto da segunda ação (i.e., a dos presentes autos), o que obsta a que a relação e a situação jurídicas definidas pela primeira Decisão não possam ser contrariadas pela segunda, independente da identidade de sujeitos.

43. Esta situação agrava-se, quando sabemos que se tratam de devedores solidários (ambos assinaram os mesmos contratos e ambos são titulares da conta bancária em questão), marido e mulher, casados no regime de comunhão de adquiridos.

44. E, como refere (e bem!), o Acórdão Fundamento:

“Assim, quem não for parte na ação poderá, todavia, beneficiar do efeito favorável daquele caso julgado em conformidade com a lei, como sucede na situação de solidariedade entre devedores, de solidariedade entre credores e de pluralidade de credores de prestação indivisível, respetivamente nos termos dos artigo 522.º, 2.ª parte, 531.º, 2.ª parte, e 538.º, n.º 2, do CC.

45. Com efeito, ao devedor solidário aproveitará o caso julgado favorável constituído em relação a um seu condevedor com fundamento não respeitante pessoalmente a este (art.º 522.º, 2.ª parte, do CC), como também aproveitará ao credor solidário o caso julgado favorável a um seu co-credor, sem prejuízo das exceções pessoais que o devedor tenha o direito de invocar em relação a cada um deles (art.º 531.º, 2.ª parte, do CC).” (…)

46. Caso assim não fosse, de forma por demais flagrante, pôr-se-ia em causa a segurança jurídica, ao se facultar à Exequente/Recorrida a possibilidade de vir a valer-se de um direito contra a Recorrente que já lhe foi negado no Processo n.º 916432/12……., por Decisão transitada em julgado após reapreciação (de facto e de direito) pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, e unicamente por este ter sido instaurado apenas contra o seu marido (por mera opção da Exequente/Recorrida).

47. Em face de todo o exposto, e de tudo o mais que resulta destes autos, impõe-se concluir estarmos perante um caso manifesto em que opera, na totalidade, a autoridade de caso julgado, inclusive quanto à Recorrente, não obstante não ter sido parte (i.e., co-Ré em conjunto com o seu marido) no Processo n.º 916432/12……..

48. Com efeito, atento o consagrado no Acórdão Fundamento, dever-se-á concluir que o instituto da autoridade de caso julgado, por razões de certeza e segurança jurídica, não exige a tríplice identidade prevista no artigo 581.º do CPC, não se exigindo a identidade do pedido, da causa de pedir e nem das partes, mormente quando estamos perante obrigações solidárias – caso em que se pode impor a terceiros.

49. Assim, mal andou o Tribunal a quo, ao ter feito uma errada interpretação e aplicação da regra da autoridade do caso julgado, prevista no artigo 619.º, n.º 1 do CPC, no que respeita à aqui Recorrente – em manifesta contradição com o Acórdão Fundamento –, porquanto o objeto dos presentes autos insere-se no objeto do Processo n.º 91643/12……, já julgado por Decisão transitada em julgado, sendo a Recorrente uma (suposta) co-devedora solidária com o Executado Marido, termos em que a exceção da autoridade do caso julgado também deverá produzir os seus efeitos quanto à mesma.

Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente Recurso de Revista Excecional ser admitido e considerado procedente por provado e, por sua vez, ser revogado o Acórdão Recorrido, que deve ser substituído por outro que considere procedente a exceção da autoridade do caso julgado invocada pela ora Recorrente.

POIS SÓ ASSIM SE FARÁ A COSTUMADA JUSTIÇA!”


A recorrida contra-alegou pugnando pela confirmação do acórdão impugnado.

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto pela embargante BB.  e admitido pela Formação nos termos supra referidos.

Tendo em conta o acórdão que o admitiu e as conclusões do recurso, a única questão que importa dirimir consiste em saber se a sentença proferida na acção n.º 91643/12….. tem força de caso julgado relativamente à embargante BB.  nos presentes embargos de executado, não obstante não ter sido demandada naquele processo, mas tão somente o seu marido AA., aqui também embargante, ou dito de outra forma, saber da extensão à embargante da eficácia do caso julgado formado por aquela sentença.

           

II. Fundamentação

1. De facto


  As instâncias consideraram provados os seguintes factos:

A) Por sentença transitada em julgado, proferida no processo n.º 91643/12……, em que é A. “Parvalorem, S.A.” e Réu AA.  foi a acção deduzida julgada totalmente improcedente.

B) Foi decidido que não obstante se ter provado que o “BPN IFI” cedeu créditos ao “BPN, S.A.” e este cedeu à autora, tendo ambas as cedências ocorrido em …/12/2010, aí se englobando os créditos peticionados, não se provou que o BPN IFI disponibilizou ao réu as quantias constantes dos contratos a que se aludem nos pontos 1 e 2 [€ 1.148.000,00 e € 1.2225.000,00] não se provou que a amortização dos juros efetuada com o aumento de capital, eram juros efetivamente devidos pelo réu por ter beneficiado do capital constante do contrato de 2006 e que, consequentemente, tais quantias foram de facto usufruídas pelo réu, razão pela qual, improcede, necessariamente, o direito da autora no pagamento, por parte do réu, da quantia de € 204.278,53, referente a juros debitados bem como juros devedores igualmente debitados na referida conta à ordem titulada pelo réu e pela sua esposa, no período de .../12/2008 a ..../12/2009, ficando preterida a questão do direito da autora à cobrança de juros sobre os referidos juros peticionados.

C) O teor dos pontos 1. e 2. dos factos provados, a que se alude na sentença é o seguinte:

1 – No dia …..2006, o “BPN, IFI” celebrou com o réu e a esposa BB. um contrato mediante o qual se obrigou a disponibilizar ao réu e esposa a quantia de € 1.148.000,00, devendo tal quantia ser restituída àquela entidade mediante o acordo celebrado entre ambos.

2 – O limite do crédito foi aumentado para € 1.225.000,00 por contrato celebrado a …..2008.

D) Nos autos executivos a relação jurídica subjacente ao requerido é o mesmo contrato a que se alude supra, na referenciada acção declarativa.

2. De direito

A resposta à questão, enunciada supra, fixada pela formação, convoca a problemática da eficácia do caso julgado material formado com o trânsito em julgado da decisão anteriormente proferida numa acção em que não teve intervenção a embargante, ora recorrente, esposa do embargante AA. , relativamente ao qual foi reconhecido, por decisão transitada em julgado que se verificava essa figura, quer na função negativa, quer na positiva.

Como é sabido, o caso julgado material radica nos art.ºs 619.º, n.º 1, e 621.º, ambos do CPC, dispondo o primeiro que “Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º”; e o segundo que “A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (…).

Manuel de Andrade fornece-nos a seguinte noção de caso julgado material [3]:

“Consiste em a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais (e até a quaisquer outras autoridades) – quando lhes seja submetida a mesma relação, quer a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão), quer a título prejudicial (acção destinada a fazer valer outro efeito dessa relação). Todos têm que acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão.”

Para o mesmo Autor[4], o instituto do caso julgado assenta em dois fundamentos:

a) – o prestígio dos tribunais, que ficaria altamente comprometido “se a mesma situação concreta, uma vez definida por eles em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente”;   

b) – e, mais importante, uma razão de certeza ou segurança jurídica, já que sem a força do caso julgado se cairia “numa situação de instabilidade jurídica (…) fonte perene de injustiças e paralisadora de todas as iniciativas”.

Explica lucidamente o mesmo Autor:

“O caso julgado material não assenta numa ficção ou presunção absoluta de verdade (…), por força da qual (…) a sentença (…) transforme o falso em verdadeiro. Trata-se antes de que, por uma fundamental exigência de segurança, a lei atribui força vinculativa infrangível ao acto de vontade do juiz, que definiu em dados termos certa relação jurídica, e portanto os bens (materiais ou morais) nela co-envolvidos. Este caso fica para sempre julgado. Fica assente qual seja, quanto a ele, a vontade concreta da lei (Chiovenda). O bem reconhecido ou negado pela pronuntiatio judicis torna-se incontestável.

Vê-se portanto que a finalidade do processo não é apenas a justiça – a realização do direito objectivo ou a actuação dos direitos subjectivos privados correspondentes. É também a segurança – a paz social (Schönke)”.

No que respeita à eficácia do caso julgado material, desde há muito, quer a doutrina[5] quer a jurisprudência[6] têm distinguido duas vertentes:

a) – uma função negativa, reconduzida a excepção de caso julgado, consistente no impedimento de que as questões alcançadas pelo caso julgado se possam voltar a suscitar, entre as mesmas partes, em acção futura; 

b) – uma função positiva, designada por autoridade do caso julgado, através da qual a solução nele compreendida se torna vinculativa no quadro de outros casos a ser decididos no mesmo ou em outros tribunais.

Quanto à função negativa ou excepção de caso julgado, é unânime o entendimento de que, para tanto, têm de se verificar a tríplice identidade estabelecida no artigo 581.º do CPC: a identidade de sujeitos; a identidade de pedido e a identidade de causa de pedir.

Já quanto à autoridade de caso julgado, existem divergências. Para alguns, entre os quais Alberto dos Reis, a função negativa (excepção de caso julgado) e a função positiva (autoridade de caso julgado) são duas faces da mesma moeda, estando uma e outra sujeitas àquela tríplice identidade[7]. Segundo outra linha de entendimento, incluindo a maioria da jurisprudência, a autoridade do caso julgado não requer aquela tríplice identidade, podendo estender-se a outros casos, designadamente quanto a questões que sejam antecedente lógico necessário da parte dispositiva do julgado[8].

Todavia, quanto à identidade objectiva, segundo Castro Mendes[9]:

“(…) se não é preciso entre os dois processos identidade de objecto (pois justamente se pressupõe que a questão que foi num thema decidendum seja no outro questão de outra índole, maxime fundamental), é preciso que a questão decidida se renove no segundo processo em termos idênticos”.

 Para aquele Autor, constitui problema delicado a “relevância do caso julgado em processo civil posterior, quando nesse processo a questão sobre a qual o caso julgado se formou desempenha a função de questão fundamental ou mesmo de questão secundária ou instrumental, não de thema decidendum.”[10]

Apesar disso, considera[11] que:

“Base jurídica para afirmarmos que, havendo caso julgado e levantando-se num processo civil seguinte inter easdem personas a questão sobre a qual este recaiu, mas levantando-se como questão fundamental ou instrumental e não como thema decidendum (não sendo, pois, de usar a excepção de caso julgado), o juiz do processo novo está vinculado à decisão anterior, é apenas o artigo 671.º n.º 1[12], na medida em que fala de força obrigatória fora do processo, sem restrição, e ainda a ponderação das consequências a que essa falta de vinculação conduziria.”

E observa[13] que:

“O respeito pelo caso julgado posto em causa num processo posterior, não como questão central, mas como questão fundamental, ou instrumental, representa uma conquista da ciência processual que vem já dos tempos de Roma. Não nos parece estar em causa no direito português. Só nos parece inconveniente que o seu fundamento seja apenas o vago e genérico art.º 671.º n.º 1.

A vinculação do juiz ao caso julgado quando a questão respectiva seja levantada como fundamental ou instrumental baseia-se, evidentemente, na função positiva do caso julgado. De iure condito, a excepção de caso julgado, quando peremptória nos termos do art.º 496.º, alínea a), desenvolve igualmente a função positiva do caso julgado.”[14]

Também Lebre de Freitas e outros[15] consideram que:

“(…) a autoridade do caso julgado tem (…) o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito (…). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida.”

“Em suma, a autoridade do caso julgado implica o acatamento de uma decisão proferida em acção anterior cujo objecto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objecto de uma acção posterior, obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa”[16]

Para tal efeito, embora, em regra, o caso julgado não se estenda aos fundamentos de facto e de direito, tem-se entendido,…, que “a força do caso julgado material abrange, para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado.”[17]

Nas palavras de Teixeira de Sousa ali citado[18]:

“Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão”.

Relativamente à eficácia subjectiva do caso julgado, embora a regra geral seja a de que ele só produz efeitos em relação às partes, a verdade é que se estende àqueles  que, não sendo partes, se encontrem legalmente abrangidos por via da sua eficácia directa ou reflexa, consoantes os casos.

É o que sucede, designadamente, nas situações de solidariedade entre devedores, de solidariedade entre credores e de pluralidade de credores de prestação indivisível, respetivamente nos termos dos artigos 522.º, 2.ª parte, 531.º, 2.ª parte, e 538.º, n.º 2, do CC.

Nesses casos, quem não for parte na acção pode beneficiar do efeito favorável do caso julgado, não sendo repetível o objecto da acção já definitivamente julgada[19].

Dito isto, vejamos o caso dos autos.

No acórdão recorrido, foi negada a extensão à embargante BB.  da eficácia do caso julgado verificado relativamente ao seu marido - o embargante AA.  -, por ter sido demandado na acção declarativa n.º 91643/12….., que foi julgada improcedente por falta de prova da disponibilização pela ali autora e aqui embargada ao ali réu e aqui embargante das quantias de 1.148.000,00  € e  77.000,00 € e do consequente uso e fruição de tais quantias por parte deste, o que também se discute nos presentes embargos. Por isso, havendo identidade de sujeitos entre aquela acção declarativa e os presentes embargos de executado, no que àquele embargante respeita, foi reconhecida a autoridade do caso julgado, o que faz com que a decisão proferida naquela acção e os respectivos fundamentos se imponham  nos embargos de executado, com os consequentes reflexos na execução. Nesta parte, vista a não admissão da revista excepcional interposta pela Parvalorem, S.A., a decisão recorrida transitou em julgado, pelo que se lhe deve obediência, por força do caso julgado material formado (art.ºs 619.º, n.º 1 e 621.º já citados).

O que está, agora, em causa é, somente, como já se referiu, a extensão da eficácia do caso julgado assim formado à embargante BB. , pois foi, apenas nessa parte, que foi admitida a revista excepcional por si interposta.

Relativamente a ela, o acórdão recorrido negou tal extensão da eficácia, porque “não foi parte na referida acção” (a acção declarativa n.º 91643/12…..), inexistindo aqui “a identidade subjectiva que é requisito daquela figura, por força da eficácia relativa do caso julgado”, muito embora também afirmasse, de forma algo contraditória, que este “apenas pode ser imposto a terceiros nos casos especialmente previstos na lei”, aí incluindo as obrigações solidárias.

Com o devido respeito por tal douto entendimento, afigura-se-nos que erradamente.

Com efeito, estando em causa o incumprimento de um contrato de mútuo celebrado com os embargantes, as dívidas daí decorrentes são da responsabilidade de ambos os cônjuges, ali mutuários [art.ºs 1142.º e 1691.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Civil]. Tais dívidas, nos regimes de comunhão, têm “a natureza jurídica de dívidas comuns, enquanto constituem um encargo do património comum (…) e assumem a natureza jurídica de dívidas plurais solidárias, quando por insuficiência do património comum, passam a constituir um encargo de bens próprios de qualquer dos cônjuges”.[20]

Isso mesmo resulta do título executivo e do requerimento inicial da execução, como se depreende e é referido no acórdão recorrido ao escrever:

“… Na execução de que os presentes embargos são dependência, o título executivo é um contrato de mútuo celebrado entre o BPN IFI e os embargantes em … .12.06, pela quantia de € 1.148.000,00, a qual veio a ser aumentada para € 1.225.000,00 em … .01.08 – tendo esses créditos posteriormente sido cedidos ao BPN, SA e por este à autora.

No requerimento inicial da execução, a exequente alegou que disponibilizou na conta à ordem titulada pelos embargantes as quantias de € 1.225.000,00 e de € 77.000,00.”

Como já referimos, nas situações de solidariedade entre devedores, o devedor que não tenha sido parte na acção precedente onde foi proferida a decisão pode beneficiar do efeito do caso julgado constituído em relação a um seu condevedor com fundamento não respeitante pessoalmente a este, nos termos do art.º 522.º, 2.ª parte, do Código Civil, o qual dispõe:

O caso julgado entre o credor e um dos devedores não é oponível aos restantes devedores, mas pode ser oposto por estes, desde que não se baseie em fundamento que respeite pessoalmente àquele devedor”.

Se a decisão obtida for favorável, como foi, pode ser invocada pelos outros condevedores contra o credor, desde que diga respeito a factos com relevância comum e não a fundamentos pessoais que respeitem apenas ao devedor (o que não foi o caso). “O objetivo desta solução terá sido o de evitar que o credor incomode sucessivamente cada um dos devedores, obrigando os tribunais a apreciar várias vezes aquilo que poderia ter sido apreciado em uma só (cfr. Vaz Serra, 1957, 186)”[21].

Por maioria de razão, será nos regimes de comunhão, onde, como se disse, as dívidas assumem a natureza de dívidas comuns, constituindo um encargo do património comum, e a natureza jurídica de dívidas plurais solidárias, quando por insuficiência do património comum, passam a constituir um encargo de bens próprios de qualquer dos cônjuges.

Assim, quer por força da responsabilidade que assumiram como mutuários, quer da responsabilidade decorrente do regime de comunhão do casamento,  sendo a decisão da acção n.º 91643/12….. favorável à condevedora, ora embargante/recorrente, e respeitando a factos com relevância comum à parte no litígio inicial, o embargante AA. , pode aquela opor à credora o caso julgado formado relativamente a este.

Note-se que é, precisamente, a mesma questão suscitada na acção e nos embargos, com relevância para ambos os embargantes, como se depreende do acórdão recorrido, embora referindo-se só ao embargante AA. , nomeadamente do seguinte:

“… Na acção declarativa n.º 91643/12……, a ali autora e ora embargante (terá querido escrever-se “embargada”) pediu a condenação do réu no pagamento da quantia de € 204.278,53, correspondente aos juros relativos ao período de ... .12.08 a ... .12.09, vencidos sobre as aludidas quantias de € 1.148.000,00 e de € 77.000,00, com fundamento no “descoberto em conta”.

Ora, na referida acção declarativa, não logrou a ali autora e aqui embargante (certamente queria escrever-se “embargada”) provar que disponibilizou ao embargado (teriam querido escrever “embargante”) AA.  as aludidas quantias de € 1.148.000,00 e de € 77.000,00.

Porém, não é a falta de prova daquela factualidade que releva para efeitos de verificação da autoridade do caso julgado.

(…) o que tem relevância foi o que se escreveu na fundamentação jurídica da sentença proferida na acção declarativa:

“Não obstante se ter provado que o “BPN IFI” cedeu créditos ao “BPN, S.A.” e este cedeu à autora, tendo ambas as cedências ocorrido em 23/12/10, aí se englobando os créditos peticionados, não se provou que o BPN IFI disponibilizou ao réu as quantias constantes dos contratos a que se aludem nos pontos 1 e 2 [€ 1.148.000,00 e € 1.225.000,00] não se provou que a amortização dos juros efetuada com o aumento de capital, eram juros efetivamente devidos pelo réu por ter beneficiado do capital constante do contrato de 2006 e que, consequentemente, tais quantias foram de facto usufruídas pelo réu, razão pela qual, improcede, necessariamente, o direito da autora no pagamento, por parte do réu, da quantia de € 204.278,53, referente a juros debitados bem como juros devedores igualmente debitados na referida conta à ordem titulada pelo réu e pela sua esposa, no período de .../12/08 a .../12/09, ficando preterida a questão do direito da autora à cobrança de juros sobre os referidos juros peticionados.”.

Dali decorre que o fundamento da improcedência da acção declarativa foi a falta de prova da disponibilização pela ali autora e aqui embargada ao ali réu e aqui embargante AA.  das quantias de € 1.148.000,00 e € 77.000,00 e da consequente uso e fruição de tais quantias por para deste.

Ora, nos presentes embargos de executado, discute-se precisamente a disponibilização e o consequente uso e fruição de tais quantias por parte do embargante AA. .


Permitir que, nos presentes embargos de executado, se discutisse novamente a disponibilização das quantias acima indicadas ao embargante AA.  quando já existe uma decisão transitada em julgado que afirma que não se provou que tais quantias tenham sido disponibilizadas seria pôr em causa a certeza e a segurança jurídicas que constituem a razão de ser quer da excepção do caso julgado quer da figura da autoridade do caso julgado.”

Todavia, ao contrário do afirmado no acórdão recorrido, o efeito da autoridade do caso julgado material da improcedência da acção declarativa n.º 91643/12….., por falta de prova da disponibilização pela ali autora e aqui embargada ao ali réu e aqui embargante AA.  das quantias de € 1.148.000,00 e € 77.000,00 e do consequente uso e fruição de tais quantias por parte deste, aproveita à embargante BB. , na medida em que a decisão nela proferida lhe é favorável, versa sobre o mesmo contrato de mútuo cujo incumprimento é invocado pela exequente, do qual deriva responsabilidade comum ou solidária com o condevedor, também embargante, relativamente a quem foi reconhecido o caso julgado.

Como bem refere a recorrente, nos embargos de executado, está em causa a mesma questão já decidida por decisão transitada em julgado, proferida na acção n.º 91643/12….., a saber: “o mesmo Contrato de Abertura de Crédito (celebrado em ... .12.2006 e aditado a ... .01.2008); aferir da efetiva disponibilização aos Executados, ao abrigo desse Contrato, dos mesmos montantes de capital; aferir se essas quantias de capital foram disponibilizadas na mesma conta bancária (conta com o n.º 600...., titulada por ambos os Executados); e aferir se essas quantias de capital foram utilizadas pelos Executados – caso em que, então, sobre estes recairia a obrigação de restituição de tais quantias de capital e respetivos juros”.

Tendo sido decidido que não existe qualquer direito de crédito da exequente, ora recorrida, sobre o executado, marido da aqui recorrente/embargante, na sequência do invocado contrato de mútuo e abertura de crédito, por não lograr provar que disponibilizou os valores que pediu na conta n.º 600… (também subjacente aos presentes autos), titulada por ambos os embargantes, seria, no mínimo ilógico, admitir a repetição de prova sobre a existência do mesmo crédito e violar-se-iam os fundamentos subjacentes ao caso julgado material, na sua vertente positiva, do prestígio dos tribunais e da certeza ou segurança jurídicas.

 Temos assim como certo que o efeito da autoridade do caso julgado material da decisão de improcedência da aludida acção declarativa, nos termos em que foi julgada, não só se mostra vinculativo para a ora exequente/embargada perante o embargante AA.  como ainda aproveita favoravelmente à embargante BB. , como se deixou dito.

Verificada que está a autoridade do caso julgado material constituído pela decisão proferida na acção declarativa n.º 91643/12…… e a extensão da sua eficácia à embargante BB. , o recurso de revista excepcional por esta interposto e admitido terá de proceder, com a consequente procedência dos embargos de executado por si deduzidos e a inerente extinção da execução.

Destarte, deve ser revogado o acórdão recorrido, na parte aqui apreciada, bem como a sentença que confirmou, também nessa parte.


            Sumário:

1. A função positiva do caso julgado, designada por autoridade do caso julgado, tem a ver com a existência de prejudicialidade entre objectos processuais, tendo como limites os que decorrem dos próprios termos da decisão, como se depreende dos art.ºs 619.º e 621.º, ambos do CPC, e implica o acatamento da decisão proferida em acção anterior cujo objecto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objecto de uma acção posterior, obstando a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa.

2. A autoridade do caso julgado não requer a tríplice identidade de sujeitos, de pedidos e de causas de pedir, podendo estender-se a outros casos, designadamente quanto a questões que sejam o antecedente lógico necessário da parte dispositiva do julgado.

3. Relativamente à eficácia subjectiva do caso julgado, embora a regra geral seja a de que ele só produz efeitos em relação às partes, também se estende àqueles  que, não sendo partes, se encontrem legalmente abrangidos por via da sua eficácia directa ou reflexa, beneficiando do efeito favorável, como sucede, designadamente, nas situações de solidariedade entre devedores, de solidariedade entre credores e de pluralidade de credores de prestação indivisível, respetivamente nos termos dos artigos 522.º, 2.ª parte, 531.º, 2.ª parte, e 538.º, n.º 2, do CC.

4. O caso julgado material formado com o trânsito em julgado de decisão anteriormente proferida numa acção tem eficácia relativamente à embargante que não teve nela intervenção quando se discute nos embargos de executado as mesmas questões já discutidas entre a exequente e o executado, por alegadas dívidas comuns e solidárias dos executados e embargantes, casados entre si.


III. Decisão

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em conceder a revista e, em consequência, revogar o acórdão recorrido, bem como a decisão da 1.ª instância que confirmou, na parte relativa à embargante BB. , com a consequente extinção da execução quanto a ela.


*

Custas pela embargada/recorrida.


*

Lisboa, 12 de Janeiro de 2021

Nos termos do art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem voto de conformidade dos Ex.mos Juízes Conselheiros Adjuntos que não podem assinar.


Fernando Augusto Samões (Relator que assina digitalmente)

Maria João Vaz Tomé (1.ª Adjunta)

António José Moura de Magalhães (2.º Adjunto)


___________

[1] Do Tribunal Judicial da Comarca do ... – Juízo de Execução de ... – Juiz 2.
[2] Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Juíza Conselheira Dr.ª Maria João Vaz Tomé
2.º Adjunto: Juiz Conselheiro Dr. António Magalhães
[3] In Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 305.
[4] Ob. cit. págs. 306-307.
[5]  Vide, entre outros, Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, págs. 38-39; Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág. 572; Lebre de Freitas e outros, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, Coimbra Editora, 2.ª Edição, 2008, p. 354 e na mesma obra, 2.º volume, Almedina, 3.ª edição, 2017, págs. 599 e 600.
[6] Cfr., nomeadamente, os nossos acórdãos de 9/4/2019, processo n.º 4148/16.1T8BRG.G1.S1, de 4 de Julho de 2019, processo n.º 252/14.9T8GRD-G.C1.S1 e de 24/10/2019, processo n.º 5629/17.5T8GMR.G1.S2, disponível em www.dgsi.pt, reproduzindo parte do acórdão do STJ de 30/3/2017, proferido no processo n.º 1375/06.3TBSTR.E1.S1, que aqui voltamos a transcrever no que se pensa relevar para o presente caso, e, ainda, o acórdão de 28/3/2019, processo n.º 6659/08.3TBCSC.L1.S1, estes dois últimos relatados pelo Conselheiro Tomé Gomes, disponíveis em www.dgsi.pt, sendo este o que serviu como fundamento na admissão do recurso de revista excepcional.
[7] In Código de Processo Civil anotado, Vol. III, Coimbra Editora, 3.ª Edição, 1981, págs. 92-93.
[8] Vide, entre outros, os seguintes acórdãos do STJ: de 13/12/2007, relatado pelo Juiz Cons. Nuno Cameira no processo n.º 07A3739; de 06/3/2008, relatado pelo Juiz Cons. Oliveira Rocha, no processo n.º 08B402; de 23/11/2011, relatado pelo Juiz Cons. Pereira da Silva no processo n.º 644/08.2TBVFR.P1.S1, acessíveis na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj –; o acórdão do STJ de 21/3/2013, processo n.º 3210/07.6TCLRS.L1.S1, disponível naquele sítio e o acórdão de 22 de Outubro de 2013, por mim relatado, proferido no processo n.º 272/12.8TBMGD.P1, disponível no mesmo sítio da internet e publicado na CJ, ano XXXVIII, tomo IV, págs. 199-202 e, ainda, os indicados na nota de rodapé n.º 7.
[9] In Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, págs. 43-44.
[10] Ob. cit. pág. 50.
[11] Ob. cit. pág. 51.
[12] A que corresponde o actual art.º 619.º, n.º 1, de igual teor, sem alterações, a não ser de remissão.
[13] Ob. cit. pág. 52.
[14] Com a Revisão do CPC de 95/96, o caso julgado deixou de figurar como excepção peremptória, sendo incluído no elenco das excepções dilatórias.
[15] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, p. 354, e na mesma obra, 2.º volume, 3.ª edição, pág. 599.
[16] Citado acórdão deste Tribunal de 28/3/2019.
[17] No sentido exposto, vide, a título de exemplo, o acórdão do STJ, de 20/06/2012, relatado pelo Juiz Cons. Sampaio Gomes, no processo 241/07.0TLSB.L1.S1, acessível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.
[18]  In Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pp. 578-579.
[19] Neste sentido, entre outros, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3.ª edição, pág. 593 e o citado acórdão deste Tribunal de 28/3/2019.
[20] Braga da Cruz, citado por Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume IV, 2.ª edição revista e actualizada, 1992, pág. 327.
[21] Ana Afonso, in Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, pág. 447).