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PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTECÇÃO
PRINCÍPIO DA PRIVACIDADE
CERTIDÃO
Sumário
Sumário: (elaborado pela relatora) I. No art.º 88.º da LPCJP concretiza-se o princípio da privacidade consagrado no art. 4.º, al. b), do mesmo diploma, pelo que a eventual extração de certidões de um processo de promoção e protecção imporá, sempre, uma ponderação dos motivos invocados para justificação do pedido, sendo este apenas admissível, se subjacente ao requerimento estiver um interesse legítimo, tendo sempre presente a necessidade de proteção da reserva de intimidade da vida privada da criança e o interesse desta. II. Constitui desde logo indicador do indeferimento de tal pedido a circunstância de o Ministério Público se opor ao mesmo, entidade a quem compete legal e estatutariamente defender o interesse das crianças. III. Pretendendo o progenitor a certidão ou cópia de um depoimento prestado pela psicóloga ouvida nos autos de promoção e protecção, tendo em vista juntar o mesmo no âmbito de um processo crime em que o mesmo figura como denunciante e denunciada a progenitora, o deferimento da pretensão teria sempre como subjacente a impossibilidade de prestação desse mesmo depoimento no processo crime. Mantendo sempre o carácter reservado do depoimento prestado nos autos de promoção e proteção, sob pena de se subverter o que se pretende com tal acompanhamento psicológico e o grau de confiança e confidencialidade que se estabelece nesse âmbito. IV. Na verdade, por norma, só será permitido o acesso que se considere necessário e suficiente para assegurar o exercício dos direitos de contraditório legalmente prescritos, no âmbito de um processo cujo interesse e desiderato é a salvaguarda do interesse superior da criança, ao qual é inerente o carácter reservado do processo, enquanto princípio orientador da intervenção.
Texto Integral
Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório:
O Ministério Público, relativamente aos menores BB e CC, nascidos a ........2010, e a ........2014, respectivamente, intentou processo de proteção e promoção, a 15/07/2022.
Alegou, em síntese, que os menores são filhos de AA e DD, sendo que os menores residem com a mãe e com o pai, em regime de semanas alternadas. Sendo que os pais estão separados há cerca de 9 anos, e, as responsabilidades parentais encontram-se reguladas, em regime de guarda partilhada, por decisão proferida no âmbito do processo principal. Argumenta que os menores foram sinalizados à CPCJ de …, em Agosto de 2020, pelo progenitor, na medida em que a progenitora, segundo ele, tem hábitos de consumo de bebidas alcoólicas em excesso, e expõe a sua vida sexual aos menores. Mais refere que existe mau relacionamento entre os progenitores e consequente falta de comunicação entre eles, o que tem reflexos negativos na vida dos menores.
Com data de 5/08/2022, foi estabelecida a nível cautelar a seguinte medida: 1- Os pais assegurarão aos menores todos cuidados básicos, alimentação, higiene e alimentação, não permitindo que os mesmos estejam na companhia de quaisquer outras pessoas com os quais os mesmos não se sintam à vontade;
2- Os pais assegurarão os acompanhamentos clínicos, psicológicos e psiquiátricos que se revelarem necessários relativamente aos dois filhos;
3- Os pais comunicarão de imediato um ao outro qualquer situação relevante da vida dos filhos relativa à saúde física, mas também mental, bem como qualquer interação indesejada de que tomem conhecimento dos seus filhos com terceiros.
Este tipo de comunicação será também efectuada à Sra. Técnica gestora do processo.
4- Os pais não deverão, em momento algum, denegrir a imagem um do outro junto dos filhos;
5- Os pais deverão colaborar com os serviços intervenientes no âmbito do presente processo de promoção e proteção;
6- Os pais deverão comunicar aos autos qualquer situação que tenham conhecimento e que possa obstar às deslocações entre casas de qualquer um dos filhos;
7- A BB mantém-se a viver com o pai, devendo ser assegurado um contato semanal com a mãe em sítio público sem a companhia de terceiros, excetuando a possibilidade dos avós maternos;
8- Relativamente ao CC e uma vez que o mesmo agora se encontra de férias e é suposto no dia 15 de agosto, passar a gozar férias com a mãe, tal gozo de férias só deverá ocorrer após chegarem aos autos informação do processo crime já identificado e mediante despacho judicial a ser proferido com maior brevidade possível em face informação que advenha do processo crime.
9- A referida medida de promoção e proteção vigorará até ao inicio ao ano lectivo, porquanto existe informação relevante que importa aceder e com base nessa informação, fazer uma nova apreciação da situação em causa e aferir se a medida de apoio juntos dos pais, é ou não a adequada e se no caso de ser para manter, se depois será em relação a ambos os progenitores ou só relativamente a um deles.
Em 17/08/2022, tal medida provisória foi alterada no sentido de “(…) perante a robustez dos elementos probatórios referentes à relação de afecto entre o CC e a progenitora, a que se contrapõe a incipiência do juízo em que se possa escorar um perigo para a criança, nos termos expostos pelo progenitor, deve prevalecer o interesse do jovem na continuidade das relações de afecto de qualidade e significativas (que não se esgota na progenitora, mas também no agregado familiar materno), bem como o primado da continuidade das relações psicológicas profundas (art. 4.º, als. a) e g) da LPCJP).
Em face do exposto, decide-se determinar que o CC possa gozar o remanescente do período de férias com a progenitora, conforme anteriormente estipulado, até ao termo previsto e sem prorrogação.”
Com data de 15/11/2022, foi obtido e homologado o seguinte acordo: “aplicação a favor da menor BB da medida de promoção e proteção de apoio junto dos pais, na pessoa do pai, com intervenção de CAFAP, para supervisão das visitas semanais à mãe, em horários e moldes a definir pelo próprio CAFAP, pelo período de 6 (seis) meses, prevista pelos arts. 35.º, n.º 1, al. a) e 39.º, da LPCJP.”.
E a 28/11/2022, foi acordado em relação ao menor que:” medida de promoção e proteção de apoio junto dos pais, na pessoa do pai, com seguinte regime de convívios, pelo período de 6 (seis) meses, prevista pelos arts. 35.º, n.º 1, al. a), e 39.º, ambos da LPCJP.
-o menor CC estará com a mãe, em fins-de-semana alternados, indo a mãe para o efeito buscá-lo à sexta-feira à escola no final das actividades lectivas e entregara-o no mesmo local, na segunda-feira, no início das actividades lectivas.
-para além disso, o menor CC estará com a mãe à quarta-feira, indo a mãe para o efeito buscá-lo à escola no final das actividades lectivas e entrega-o no dia seguinte, no mesmo local, no início das actividades lectivas.
-o presente regime de convívios inicia-se no próximo dia 9 Dezembro.
-a mãe autoriza que o pai viaje com os menores para Moçambique e África do Sul, no período compreendido entre os dias 25 de Dezembro de 2022 a 6 de janeiro de 2023.”
Com data de 1/08/2023, decidiu-se “determina-se a revisão da medida de promoção e proteção, a qual se manterá por ora nos termos predefinidos, passando a partir do dia 21 de setembro, a vigorar na modalidade de preservação familiar, sugerindo-se aos pais a possibilidade de frequência de terapia familiar”.
A 7/10/2024, foi proferido o seguinte despacho:”1. Aplicar, em relação à jovem BB, a Medida de Promoção e Proteção de Apoio Junto dos Pais, na pessoa da Mãe, pelo período de 6 (seis) meses;
2. Prorrogar, em relação ao menor CC, a Medida de Promoção e Proteção de Apoio Junto dos Pais, na pessoa do Pai, pelo período de 6 (seis) meses;
3. Determinar que a BB e o CC beneficiem de acompanhamento psicológico, com periodicidade quinzenal, devendo a EMAT diligenciar pela execução desta medida;
4. Determinar que os progenitores frequentem sessões de terapia familiar, devendo a EMAT diligenciar pela sua marcação e posterior notificação aos progenitores.
5. Mais se determina que os progenitores cumpram as seguintes obrigações:
Garantir que não ocorrem interrupções na relação entre a BB e o CC;
Tratarem-se com respeito e urbanidade, valorizando mutuamente o papel um do outro, permitindo que os filhos exprimam de forma livre o afecto que têm por ambos;
Garantir que os menores são assíduos e pontuais na escola;
Garantir a sua deslocação às consultas de psicologia;
Garantir que o regime de visitas estipulado a favor dos filhos é cumprido.”.
Com data de 28/10/2024, veio o progenitor juntar requerimento do seguinte teor: “Vem requerer a emissão de cópia, em CD ou email ...) da gravação do depoimento prestado nos presentes autos, à Senhora psicóloga clínica, Dr.ª EE.
O referido depoimento destina-se a ser junto aos autos do processo nº 283/22.5JDLSB, que corre termos no Juízo de Instrução Criminal de Cascais – Juiz 2, em que o requerente a progenitora é Arguida, por crimes praticados contra a menor BB,
Encontrando-se o debate instrutório agendado para o dia 19.11.2024.”.
Com data de 29/10/2024, foi tal despacho indeferido nos seguintes termos: “Indefere-se o requerido, atenta a natureza reservada do processo de promoção e proteção –art. 88.º da LPCJP.”
Tal despacho foi notificado a 30/10/2024 ao progenitor.
Com a mesma data, veio justificar o seu pedido e dizer que pretende recorrer de tal despacho e pede ainda “A revogação do despacho que indeferiu a passagem de cópia da gravação das declarações prestadas pela Testemunha, atenta a sua manifesta ilegalidade.”.
A 20/11/2024, veio de novo o progenitor requerer “que se digne revogar o despacho que indeferiu, sem qualquer referência ao interesse público da realização da justiça e à defesa do superior interesse da criança, e sem qualquer consideração sobre a circunstância de estar em causa a reserva da intimidade da menor BB, a entrega de cópia da gravação do depoimento da Sr.ª Psicóloga, Dr.ª EE.”.
Com data de 18/11/2024, veio o progenitor recorrer do despacho de 29/10/2024, concluindo que:
«a) A decisão recorrida é nula, por falta de fundamentação, ao indeferir, com fundamento na natureza reservada do processo de promoção e protecção, a entrega de cópia da gravação das declarações prestadas pela Senhora Psicóloga Dr.ª EE, que afirmou que as denúncias efectuadas pela menor BB, relativamente à mãe, lhe foram também a ela relatadas, várias vezes, tendo razões para, atenta a sua experiência e formação profissional, as considerar credíveis.
b) Tal decisão, põe inclusivamente em causa o superior interesse da menor ao impedir a prova da prática, sobre a mesma, de um crime ( Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, 10-11-2022, Processo 1840/22.5T8PRD-H.P1) .
c) Não sendo portanto a natureza secreta dos processos de promoção e protecção absoluta , deve o Tribunal autorizar a consulta dos aludidos processos e a extracção de certidões, quando tal junção se destine a demonstrar a prática de crimes, pela progenitora, contra a menor objecto desse processo protectivo.
d) O processo de promoção e protecção não serve para dar cobertura à conduta de uma mãe que terá, alegadamente – de acordo com as denúncias feitas pela própria menor - mantido relações sexuais com vários indivíduos na presença da filha, introduzido a filha a práticas sexuais em que são usados preservativos com sabor, “elucidando-a”, relatado à filha as relações sexuais que manteve com estranhos em casas de banho públicas, que lhe bateu para a obrigar a falar com os seus namorados, e isto só para elencar as denúncias mais perturbadoras.
e) Um despacho assim, só não surpreende quem considerar normal que, após a BB ter fugido de casa do pai por este lhe ter tirado o telefone, a conselho da Polícia Judiciária, após ter detectado que a mesma estava a combinar um encontro com um indivíduo que estava já referenciado por aliciar sexualmente menores, depois de a progenitora ter permitido à menor ir, acompanhada apenas por amigas da mesma idade, para o Algarve, onde foi filmada a beber álcool, já posteriormente à aplicação de uma suspensão disciplinar escolar por fumar e beber álcool dentro da escola em período de aulas, o que a progenitora sabia e omitiu ao pai, acumulando, desde a saída de casa do pai, sucessivas e inexplicadas faltas e negativas a oito das nove disciplinas neste ano lectivo, e depois de a Progenitora se ter deslocado, na companhia da filha e da avó materna, a casa do pai, onde foram filmados a injuriar e agredir o ora Requerente… Tenha o Tribunal determinado que a BB fica à “guarda” (!!!) da mãe e separada dos três irmãos, de 9 anos, dois anos, e de dois meses de idade!...
f) Não sendo portanto a natureza secreta dos processos indicados em I, absoluta , e sem prejuízo de só «por motivos ponderosos e nas condições e com os limites a fixar na decisão, pode o Tribunal ( titular dos respectivos processos ), a requerimento de quem prove interesse legítimo, ouvido o Ministério Público, se não for o requerente, autorizar a consulta dos aludidos processos e a extracção de certidões – e no caso, a obtenção de cópia da gravação do depoimento de uma psicóloga para junção ao processo-crime, em fase de instrução -, esta imposição constitucional em confronto com o direito à reserva privada justifica a prevalência do interesse público da realização da justiça e da defesa do superior interesse da criança.
g) De resto, aliás, o n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa estabelece que a lei pode restringir os direitos liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições «limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos», em estrito cumprimento do princípio da proporcionalidade, sendo absolutamente evidente para qualquer pessoa lúcida e esclarecida que, no caso concreto e sub judice, o invocado (sem mais) princípio da reserva da intimidade da vida privada, protegido no artigo 26.º, n.º 1, da CRP, cede, nos termos do nº2,
h) Sendo materialmente inconstitucional a interpretação conferida ao artigo 88.º da LPCJP, da qual resulte a limitação de entrega de cópia de documentos, certidões e outros elementos do processo, por violação do princípio da proporcionalidade, do superior interesse na realização da justiça, ínsito ao princípio do Estado de Direito, e em concreto, do disposto no art.º 26.º, n.º 1, da CRP e cilindrando, igualmente, o disposto no art.º 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e o direito ao processo justo e equitativo.
Termos em que deverá o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro, que determine a entrega das referidas cópias, ou ao mandatário, para junção ao indicado processo-crime, ou em alternativa, a junção ao aludido processo, oficiosamente, de tal gravação.».
O Ministério Público, notificado das alegações do ora recorrente, vem contra alegar, pugnando pela negação do provimento da apelação, nos termos seguintes: (…) O recorrente invoca, além do mais, que o despacho recorrido, proferido pelo tribunal a quo, é nulo por falta de fundamentação.
Da discussão
O Ministério Público entende, a este propósito, que bem andou o tribunal a quo, quando indeferiu a pretensão do ora requerente, sendo bastante a fundamentação do carácter secreto do processo de promoção e protecção, para esse efeito, e não tendo sido invocado qualquer motivo legítimo, atentos os interesses que importa acautelar.
Da articulação do regime previsto no art.º 88.º da LPCJP, em concretização do princípio da privacidade consagrado no art. 4.º, al. b), do mesmo diploma, com o regime legal previsto nos art.ºs 165.º e 170.º do CPCivil, e com o disposto nos art.ºs 16.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.º 1, e 26.º, todos da CRP, poderá, na verdade, resultar afastado o entendimento da inadmissibilidade legal, de passagem de certidões do processo.
Mas, a extração de certidões imporá sempre, uma ponderação dos motivos invocados para justificação do pedido de passagem de certidão, sendo essa passagem apenas admissível, se subjacente ao requerimento estiver um interesse legítimo, e sempre, na medida do estritamente necessário para salvaguardar tal interesse, tendo sempre presente a necessidade de proteção da reserva de intimidade da vida privada da criança. In casu, o que acontece é que por um lado, estão em causa declarações prestadas por uma menor perante psicóloga, situação que, conjugada ao carácter sigiloso do processo de promoção e protecção, consubstancia, a nosso ver, uma duplicidade na imposição de sigilo, e por outro lado, ao requerimento formulado pelo ora recorrente, no sobredito processo de promoção e protecção, não subjaz qualquer interesse legítimo, que este tenha invocado e seja atendível, ao ponto de justificar o afastamento do legal regime de sigilo.
Assim, entendemos que o despacho do tribunal a quo, não padece de qualquer vício, e acautela o superior interesse da menor, ao preservar o sigilo inerente às declarações da referida psicóloga, pelo que deverá manter-se, nos seus exactos termos.“.
Com data de 27/11/2024, foi proferido o seguinte despacho: Por ser legal e tempestivo, admito o recurso interposto pelo progenitor, para o Tribunal da Relação de Lisboa. O recurso é de apelação, sobe em separado e tem efeito meramente devolutivo (art. 644.º, nº 2, h), 645.º, nº 2, e 647.º do C. de Processo Civil.
O recurso deu entrada neste Tribunal a 22/09/2025.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
* Questões a decidir:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Importa assim, saber se, no caso concreto:
- Se é considerar nula a decisão, por falta de fundamentação, que indeferiu a gravação do depoimento prestado nos presentes autos pela psicóloga clínica;
- Se é deferir o pretendido com fundamento na violação do princípio da proporcionalidade e do superior interesse na realização da justiça.
*
II. Fundamentação:
Os factos a ter em conta são os actos processuais referidos no relatório que antecede, cujo teor se reproduz.
*
III. O Direito:
Na análise do recurso importará apreciar a nulidade do despacho convocada em sede de recurso, dizendo o recorrente que o despacho objecto de recurso será nulo por ausência de fundamentação.
A nulidade em razão da falta de fundamentação de facto e de direito está relacionada com o comando que impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que considera e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes. A fundamentação deficiente, medíocre ou errada, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. A fundamentação e a sua exigência ocorre igualmente em relação aos despachos, e a sua ausência também se repercute na sua eventual nulidade, face à remissão do artº 613º nº 3, para o disposto no artº 615º nº 1 alínea b).
Na realidade, não basta que o juiz decida a questão posta; é indispensável, do ponto de vista do convencimento das partes, do exercício fundado do seu direito ao recurso sobre a mesma decisão (de facto e de direito) e do ponto de vista do tribunal superior a quem compete a reapreciação da decisão proferida e do seu mérito, conhecerem-se das razões de facto e de direito que apoiam o veredicto do juiz (cf. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, pág. 139).
Neste sentido, a fundamentação da decisão deve ser expressa, clara, suficiente e congruente, permitindo, por um lado, que o destinatário perceba as razões de facto e de direito que lhe subjazem, em função de critérios lógicos, objectivos e racionais, proscrevendo, pois, a resolução arbitrária ou caprichosa, e por outro, que seja possível o seu controle pelos Tribunais que a têm de apreciar, em função do recurso interposto (por todos, Ac. do STJ de 24.11.2015, Processo n.º 125/14.5FYLSB, acessível em www.dgsi.pt.).
Todavia, ao nível da fundamentação de facto e de direito da sentença, para que ocorra esta nulidade “não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”(Antunes Varela, Manual de Processo Civil, pág. 687).
Assim, tendo por base o que defendia Alberto dos Reis (in obra e loc. cit.), a propósito da especificação dos fundamentos de facto e de direito na decisão, que importa proceder-se à distinção cuidadosa entre a “falta absoluta de motivação, da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.”.
É certo que face ao comando constitucional (art. 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa), no qual é imposto um dever geral de fundamentação das decisões judiciais, previsto especificamente no artº 154º do C. P. Civil, também a fundamentação de facto ou de direito gravemente insuficiente, isto é, em termos tais que não permitam ao respectivo destinatário a percepção das razões de facto e de direito da decisão judicial, deve ser equiparada à falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e, consequentemente, determinar a nulidade do acto decisório.
Em suma, a falta de fundamentação da decisão ocorre quando é ininteligível o seu discurso decisório, por ausência total de explicação da razão de se decidir de determinada maneira, o que não ocorre quando a ratio decidendi consta de forma percetível da decisão recorrida.
Porém, no caso concreto haverá que considerar, por um lado, a singeleza da solicitação ao Tribunal, por outro lado, saber se o despacho contém ausência de fundamentação que o fira de nulidade.
Na verdade, o dever de fundamentação de um despacho não reveste a mesma complexidade e grau de exigência que o de uma sentença. Pois, o direito a um processo justo e equitativo, consagrado no artigo 20º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, implica que se conciliem o princípio da fundamentação das decisões judiciais com o princípio da economia e celeridade processuais, que pressupõe decisões em tempo útil, sobretudo num quadro em que não existe maior complexidade, nem esta esteja evidenciada pelo requerimento do que se pretende do Tribunal.
A lei assegura aos particulares a possibilidade de impugnar uma decisão, submetendo-a à consideração de um tribunal superior. “Mas para que a parte lesada com a decisão que considera injusta a possa impugnar com verdadeiro conhecimento de causa, torna-se de elementar conveniência saber quais os fundamentos (…) em que o julgador a baseou.”. – cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2.ª Edição, págs. 688 e 689.
O cumprimento deste dever de fundamentação é, assim «(…) indispensável, do ponto de vista do convencimento das partes, do exercício fundado do seu direito ao recurso sobre a mesma decisão (de facto e de direito) e do ponto de vista do tribunal superior a quem compete a reapreciação da decisão proferida e do seu mérito, conhecerem-se das razões de facto e de direito que apoiam o veredicto do juiz. (…)» - cfr. Ac. do TRG de 02-11-2017, proc. 42/14.9TBMDB.G1. In casu , o requerimento atravessado nos autos e que determinou o despacho objecto de recurso, é do seguinte teor: “Vem requerer a emissão de cópia, em CD ou email ...) da gravação do depoimento prestado nos presentes autos, à Senhora psicóloga clínica, Dr.ª EE.
O referido depoimento destina-se a ser junto aos autos do processo nº 283/22.5JDLSB, que corre termos no Juízo de Instrução Criminal de Cascais – Juiz 2, em que o requerente a progenitora é Arguida, por crimes praticados contra a menor BB,
Encontrando-se o debate instrutório agendado para o dia 19.11.2024.”.
E foi perante tal requerimento que foi proferido o seguinte despacho: “Indefere-se o requerido, atenta a natureza reservada do processo de promoção e proteção –art. 88.º da LPCJP.”.
Não se verifica a arguida nulidade por falta de fundamentação: apreende-se suficientemente do despacho recorrido a razão pela qual foi indeferido o requerimento de passagem de certidão, tendo sido invocada a disposição legal fundamento da decisão proferida e as razões do indeferimento, e tendo a parte compreendido o fundamento do indeferimento, em moldes de o poder contestar através do recurso interposto. Não se enquadra nesta nulidade a arguida falta de “análise comparativa dos direitos em confronto”. Quando muito, tal ‘falta’ poderia configurar uma fundamentação deficiente da decisão, passível de integrar um erro de julgamento, mas nunca a sua nulidade. Aliás, o despacho incide sobre o requerimento do recorrente que nada alude sobre eventuais interesses ou direitos em conflito, factos que apenas surgem em requerimentos posteriores e neste recurso.
Manifestamente o despacho é claro e preciso, convocando o preceito aplicável, em tudo compreensível para o recorrente, em moldes de o poder contestar através do recurso interposto, sem necessidade de maior extensão ou explicação, pois o Tribunal entendeu que não seria passível de extracção de cópia os actos contidos no processo de promoção e protecção, face à natureza de tais autos.
Não se verifica, assim, a nulidade apontada.
Resta aferir do mérito do recurso, considerando o requerido e o despacho que incide sobre o mesmo, o único objecto de recurso.
Únicos argumentos que possam ser considerados válidos no sentido de pôr em causa a decisão sob recurso são os contidos nas conclusões b), c), f), g) e h) quanto à convocação das normas constitucionais.
Com efeito, face ao constante das alíneas d) e e) o recorrente alude a decisões e alegados comportamentos da progenitora e/ou da menor, sem que tal se prenda com a matéria a discutir neste recurso, nada relevando para o mesmo.
No mais, assenta o seu pedido na alegada circunstância de a cópia das declarações prestadas nestes autos pela psicóloga que acompanha a sua filha BB, actualmente com quinze anos, se destinarem a serem juntas no processo crime, onde, no dizer do próprio, denunciou crimes praticados contra a menor pela progenitora. Assim, entende que tais cópias são relevantes nesse processo crime pelo alegado facto de “as denúncias efectuadas pela menor BB, relativamente à mãe, lhe foram também a ela relatadas, várias vezes, tendo razões para, atenta a sua experiência e formação profissional, as considerar credíveis”. Invoca nesse pedido o superior interesse da menor “ao impedir a prova da prática, sobre a mesma, de um crime”. Convoca o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10-11-2022, proferido no Processo 1840/22.5T8PRD-H.P1 .
Solicita assim, que deve ser deferida a “extracção de certidões, quando tal junção se destine a demonstrar a prática de crimes, pela progenitora, contra a menor objecto desse processo protectivo”. Mais alude que deve ser concedida a gravação, dado o interesse legítimo para junção ao processo-crime, em fase de instrução, por imposição constitucional, pois o direito à reserva privada deve ceder perante o interesse público da realização da justiça e da defesa do superior interesse da criança. Por fim, defende que a interpretação conferida ao artigo 88.º da LPCJP, da qual resulte a limitação de entrega de cópia de documentos, certidões e outros elementos do processo, como inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, do superior interesse na realização da justiça, ínsito ao princípio do Estado de Direito, e em concreto, do disposto no art.º 26.º, n.º 1, da CRP e cilindrando, igualmente, o disposto no art.º 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e o direito ao processo justo e equitativo.
Como deixámos referido supra, o Ministério Público pugnou pela improcedência do recurso, ou seja, manifestando a sua posição como sendo de chancelar o indeferimento, pelo que a decisão de indeferimento estará também a coberto da posição assumida por quem legal e estatutariamene defende o interesse das crianças. Pois não há que olvidar que a intervenção do Ministério Público no presente processo é efectuada como promotor dos direitos das crianças e dos jovens, legitimidade que lhe é conferida pelo artigo 1º do Estatuto do Ministério Público e pelo artigo 72º da LPCJP.
Acresce que o requerente, em momento algum, juntou cópia dos autos que alega como fundamento do pedido de cópia/certidão, não podendo o Tribunal percepcionar a que se reportam e a que se destinam em concreto as cópias. Outrossim, em nada releva trazer à colação o Acórdão apontado no âmbito do seu recurso, pois neste não se visava obter certidões ou cópias dos autos de proteção ou promoção, mas sim juntar a esses autos prova relativa à informação do estado de saúde da progenitora, afirmando-se que esta é importante para a decisão a proferir, devendo prevalecer o interesse público da realização da justiça e da defesa do superior interesse da criança em detrimento do direito à reserva da vida privada da progenitora. Aliás, o Acórdão proferido no proc. nº 1840/22.5T8PRD-H.P1, reafirma a posição que subjaz à decisão recorrida, ou seja assegurar o sigilo da prova aí produzida, ao sumariar que: «(…)VII. No confronto dos direitos constitucionalmente protegidos em presença, afigura-se-nos, que no caso concreto, deverá prevalecer o interesse público da realização da justiça e da defesa do superior interesse da criança, porquanto não só o direito à reserva privada da progenitora admite restrição constitucional, como a mesma visa salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido, sendo apta e adequada para o efeito pretendido porque se destina apenas a proteger o superior interesse da criança e nem sequer põe em causa o conteúdo essencial de direito à reserva da vida privada da progenitora, que continuará salvaguardado, tanto mais que estamos perante um processo de promoção e proteção de natureza sigilosa e carácter reservado, nos termos definidos no artigo 88.º, da LPCJP. VIII - Assim, a documentação clínica em apreço, que se reputa essencial a possibilitar uma completa avaliação médico-legal do estado de saúde da Apelante, determinante para apurar da sua capacidade para o pleno exercício, por si só, das responsabilidades parentais relativamente à criança que este processo visa proteger, deve permanecer nos autos para aquele indicado fim que, em concreto, prevalece sobre o direito à reserva da vida privada da progenitora.» (sublinhado nosso).
Por outro lado, nada alude o recorrente, nem tal constitui fundamento do requerimento apresentado, que a psicóloga em causa esteja impedida ou se tenha recusado a depor em tal processo crime, ou sequer que a menor, frise-se, com quinze anos, não possa ser ouvida nesses autos. Pois sempre no âmbito do inquérito ou instrução e estando em causa alegados crimes perpetrados contra crianças, haverá um dever acrescido de investigação, nomeadamente pelo próprio Ministério Público, o qual sendo uno, nestes autos manifestou a sua posição como de concordância com a impossibilidade de obter cópias de um depoimento prestado nos autos de promoção e protecção, o que indicia a ausência de fundamento para que tais cópias sirvam os fins propalados pelo recorrente.
Tal seria determinante, por si só, para a improcedência da apelação. Porém, quer a interpretação do artº 88º da LPCJP, quer a postura do recorrente que transparece quer do ocorrido nos autos, mas em concreto do requerimento, recurso e insistência do recorrente posterior ao mesmo, leva-nos a tecer ainda outras considerações jurídicas.
Manifestamente o processo judicial de promoção e protecção não é um processo de partes, mas sim um processo que tem por objecto a promoção dos direitos e a protecção das crianças e dos jovens em perigo, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral – cf. artigo 1.º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo. Donde, não é o direito dos progenitores que o norteia, mas, sim, o superior interesse da criança ou do jovem, pelo que nunca poderá ter na sua base ou assentar na impressão ou indicação efectuada por um dos progenitores em relação ao outro, sendo o comportamento dos progenitores em relação aos filhos o que determina as decisões a tomar, mas nesta relação não será de todo alheio o comportamento tido entre os progenitores entre si.
Como transparece dos autos em todas as medidas tomadas ou reiteradas nestes autos acentuou-se a necessidade de os pais terem como dever não denegrir a imagem um do outro junto dos filhos, passando a partir, do dia 21 de setembro, a vigorar a modalidade de preservação familiar, sugerindo-se ainda aos pais a possibilidade de frequência de terapia familiar. Terapia essa que foi estabelecida na decisão proferida a 7/10/2024, bem como, além do mais, estabelecer como obrigação os progenitores tratarem-se com respeito e urbanidade, valorizando mutuamente o papel um do outro, permitindo que os filhos exprimam de forma livre o afecto que têm por ambos.
A existência de um processo crime, que alegadamente serve de fundamento ao pedido em causa nos autos, em que surge como denunciante o progenitor e denunciada a progenitora, sem que aquele tenha surgido por iniciativa do Ministério Público, já nos leva a considerar que não foram cumpridos os propósitos a que ficaram obrigados.
Mas e que dizer do que resulta do preceito convocado pela decisão da 1ª instância e sua eventual inconstitucionalide?
No caso dos autos estamos perante um processo ao qual se aplica a Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP), aprovada pela Lei n.º 147/99, de 1 de setembro (alterada pela Lei n.º 31/2003, de 22 de agosto, pela Lei n.º 142/2015, de 8 de setembro; pela Lei n.º 23/2017, de 23 de maio e pela Lei n.º 26/2018, de 5 de julho). Tal diploma visa e tem por objecto a promoção dos direitos e a proteção das crianças e dos jovens em perigo, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral (art. 1.º), legitimando-se a intervenção (das comissões de proteção de crianças e jovens e dos tribunais – art. 6.º) nas situações em que os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento da criança ou do jovem, ou quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo – art. 3.º, n.º 1.
No art. 4.º são elencados os princípios orientadores da intervenção, sendo o primeiro – al. a) – o interesse superior da criança e do jovem – a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança (…), nomeadamente à continuidade de relações de afeto de qualidade e significativas, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto.
Logo, em seguida, na al. b), é indicado como princípio orientador da intervenção a Privacidade – a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem deve ser efectuada no respeito pela intimidade, direito à imagem e reserva da sua vida privada.
Dispõe-se ainda sob os nºs 1, 3, 4 e 5 do art. 88º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, com a epígrafe “Carácter reservado do processo”, o seguinte: “1 – O processo de promoção e proteção é de carácter reservado. 3 – Os pais, o representante legal e as pessoas que detenham a guarda de facto podem consultar o processo pessoalmente ou através de advogado. 4 – A criança ou jovem podem consultar o processo através do seu advogado ou pessoalmente se o juiz ou o presidente da comissão o autorizar, atendendo à sua maturidade, capacidade de compreensão e natureza dos factos. 5 – Pode ainda consultar o processo, directamente ou através de advogado, quem manifeste interesse legítimo, quando autorizado e nas condições estabelecidas em despacho do presidente da comissão de proteção ou do juiz, conforme o caso.”
O carácter reservado do processo de promoção e proteção previsto naquele preceito traduz uma manifestação do princípio da privacidade previsto sob a alínea b) do art. 4º daquele mesmo diploma, e mostra-se em linha com a previsão do artigo 16.º da Convenção sobre os Direitos da Criança adoptada pela Assembleia Geral nas Nações Unidas em 20 de novembro de 1989, onde se prevê, sob o seu nº1, que “nenhuma criança pode ser sujeita a intromissões arbitrárias ou ilegais na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou correspondência, nem a ofensas ilegais à sua honra e reputação” e, sob o seu nº2, que “a criança tem direito à proteção da lei contra tais intromissões ou ofensas”. Convenção aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 20/90, publicada no DR nº 211/90, Série I, de 12/9/1990 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 49/90, de 12/9.
Prevendo a lei em norma própria o carácter reservado do processo e, em vista de o assegurar, que o acesso ao mesmo se faça pela sua consulta, tem sido inclusive entendido pela jurisprudência que a mera consulta estará confinada ao acesso físico do processo na própria secretaria judicial. Invocando-se inclusive que a assim não ser, e permitindo-se a sua consulta via sistema informático (“Citius”) ou a sua consulta fora do tribunal, facilmente dele poderiam ser tiradas cópias ou fotografias e risco da sua divulgação, assim comprometendo aquele carácter reservado (neste sentido, vide os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 12/1/2020- proc. nº487/08.3TMLSB.L1-7, de 26/9/2024, proc. nº1585/23.9T8TVD-I.L1-2, bem como da Relação do Porto, de 11/12/2024, proc. nº668/21.4T8MCN-G.P1, e ainda o Acórdão do STJ de 23/2/2021, proferido no proc. nº2335/06.0TMPRT-D.P1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Tal posição foi igualmente assumida no Acórdão da Relação do Porto, proferida no proc. nº 2335/06.0TMPRT-D.P1.S1, com data de 23/02/2021 ( publicada no mesmo endereço), ao concluir-se que: I. O carácter reservado do processo de promoção e protecção apenas permite a consulta do processo físico, na secretaria do tribunal onde se encontre, às pessoas e nos termos previstos no art.º 88.º da LPCJP. II. Enquanto norma especial, esta norma não é afastada por outra disposição geral ou comum, nomeadamente pelo art.º 164.º, n.º 2, al. a), do CPC e art.º 27.º, n.º 1, al. a), da Portaria n.º 280/13, de 26 de Agosto. III. Não tem direito à consulta electrónica do processo de promoção e protecço o mandatário/patrono dos pais do menor.
Donde, se a mera consulta informática estará arredada dada a interpretação do preceito em análise, evidente se torna que não colherá o que é ainda mais evidente no afastamento ou violação do carácter sigiloso – a emissão de cópia, em CD ou email da gravação do depoimento nos termos pretendidos.
Com efeito, o recorrente não vem pôr em causa que não conhece tal depoimento, ou que sobre o mesmo não pode pronunciar-se, evidenciado sim que sabe o seu teor, pois a eventual inconstitucionalidade só se poderia equacionar face à existência de violação do contraditório legal e constitucionalmente assegurado no caso de “efectiva restrição ou ablação do direito a conhecer os elementos relevantes do processo, com a inerente impossibilidade de influenciar a decisão ou apresentar uma posição fundamentada sobre os mesmos” (neste sentido e tendo por base a análise do nº3 daquele art. 88º da LPCJP se dá conta no Acórdão do Tribunal Constitucional nº62/2017, proferido a 14/2/2017 no proc. nº605/2016).
No que concerne especificamente à extracção de cópias ou passagem de certidão nos termos pretendidos, há que considerar que há quem defenda que, face ao regime especial consagrado no art. 88.º da LPCJP, está excluída no âmbito do processo de promoção e proteção a possibilidade de obtenção de certidões do processo, dado que apenas se prevê e regula as condições de acesso ao processo, nada se estipulando quanto à obtenção de certidões do mesmo. Tal é a posição assumida por Tomé d’Almeida Ramião ( in, Lei de proteção de crianças e jovens em perigo: anotada e comentada, Quid Juris, Lisboa, 2017, pp. 201) ao referir que “(…) este artigo apenas permite o acesso e consulta ao processo, não à possibilidade de se extraírem certidões de peças processuais, pelo que não é legalmente possível àqueles que o podem consultar obter qualquer certidão ou cópias de actos processuais.”. Também neste sentido, Comentário à Lei de proteção de Crianças e Jovens em Perigo, da Procuradoria Geral Regional do Porto, Almedina – 2020, anotação ao art. 88.º, pág. 409.
Logo, como bem se alude no referido Ac. do STJ de 23/02/2021, o regime do art. 88.º da LPCJP constitui um regime especial que, na parte aí expressamente regulada – ou seja, no que concerne ao acesso e consulta do processo de promoção e proteção – , afasta a aplicação do regime geral referente às limitações à publicidade do processo, na parte em que consagra soluções distintas – e mais restritivas – que as previstas no art. 164.º do Código de Processo Civil. Daí que no âmbito dos processos de promoção e proteção o acesso ao processo por parte dos pais se faça mediante a consulta pessoal, ou através de advogado, do processo na secretaria do tribunal (consulta física directa dos autos) e não por via da aplicação informática CITIUS, diferentemente do que sucede, designadamente, no âmbito dos processos com as limitações de acesso à publicidade previstas no art. 164.º do Cód. Proc. Civil.
Deste modo, só será permitido o acesso que se considere necessário e suficiente para assegurar o exercício dos direitos de contraditório legalmente prescritos, no âmbito de um processo cujo interesse e desiderato é a salvaguarda do interesse superior da criança, ao qual é inerente o carácter reservado do processo, enquanto princípios orientadores da intervenção consagrados nas als. a) e b) do art. 4.º da LPCJP.
Porém, na esteira do defendido no Acórdão da Relação do Porto, de 6 de junho de 2024, proferido no proc. nº5614/22.5T8MTS-E.P1 ( in www.dgsi.pt), “da articulação do regime especial previsto no art. 88.º da LPCJP, em concretização do princípio da privacidade consagrado no art. 4.º, al. b), do mesmo diploma (princípio orientador da intervenção que segue na linha do disposto no art. 16.º da Convenção sobre os Direitos da Criança ), com o regime legal previsto nos arts. 165.º e 170.º do Cód. Proc. Civil (aplicável subsidiariamente dada a natureza do processo como processo de jurisdição voluntária – art. 100.º da LPCJP e art. 549.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil) e com o disposto nos arts. 16.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.º 1, e 26.º, todos da Constituição da República Portuguesa (CRP) resulta afastado o entendimento da inadmissibilidade legal, tout court, de passagem de certidões do processo.”. Prosseguindo-se na mesma decisão: “O que se encontra excluída é a possibilidade de extração de certidões sem controlo judicial, impondo-se uma ponderação dos motivos invocados para justificar o pedido de passagem de certidão, sendo admissível a passagem de certidão se subjacente ao requerimento estiver um interesse ou direito legítimo, sempre e apenas na medida do estritamente necessário para salvaguardar tal interesse e tendo ainda sempre presente a necessidade de proteção da reserva de intimidade da vida privada da criança.”.
Tal decisão tem por base a posição defendida por Beatriz Marques Borges ( in Promoção e proteção de crianças e jovens em perigo: perspectivas futuras do modelo, Revista Julgar, n.º 24 – 2014, Coimbra Editora, págs. 179 e 180), quando afirma que «Inexiste, contudo, uma proibição absoluta de passagem de cópias ou certidões. Ocorrendo motivos justificados para aquela emissão o tribunal deverá proferir despacho determinando a mesma. Duas ordens de razão sustentam esta opção. A primeira, por comparação com o regime instituído no processo civil para a passagem de certidões nos processos de divórcio, impugnação ou estabelecimento da paternidade, por não existirem razões mais ponderosas para garantir a reserva daqueles processos, comparativamente com o processo protectivo. Por outro lado, se, também, no processo adoptivo, de natureza secreta, se encontra legalmente prevista a emissão de certidão não seria justificada essa não emissão em processos, tão só, de natureza reservada.».
No entanto, volvendo ao caso concreto, pretende o recorrente cópia de declarações prestadas pela psicóloga que acompanha a menor, invocando o depoimento prestado no processo de promoção e proteção, com os fins supra enunciados, depoimento onde no dizer do próprio recorrente se limita a depoente a relatar o que lhe foi transmitido pela menor. Ora, nunca estará em causa o interesse da menor, pois este será salvaguardado caso se mantenha apenas no processo em causa, onde devem ser tomadas as medidas necessárias, sob pena de se subverter o que se pretende com tal acompanhamento psicológico e o grau de confiança e confidencialidade que se estabelece nesse âmbito.
Nem pode o recorrente contrapor que tal viola o direito à acção consagrado no artº 20º da CRP, ou o princípio do Estado de Direito, pois em nada colide com o seu direito à acção a ausência de cópias de um depoimento prestado no processo de promoção e protecção, pois este será indirecto e mesmo que revestisse a qualidade de ser presencial, sempre caberá ao recorrente lançar mão da indicação da pessoa em causa como testemunha no processo crime, sem que se possa fazer valer de depoimentos prestados em processo de carácter reservado.
Deste modo, está devidamente consubstanciado o carácter reservado do depoimento prestado inexistindo fundamento para serem emitidas cópias, improcedendo, assim, a apelação.
Não estando em causa o disposto na alínea i) do artº 4º do RCP, as custas serão pelo recorrente – cf. artº 527º do Código de Processo Civil.
*
IV. Decisão:
Pelos fundamentos acima expostos, acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo progenitor e, consequentemente, mantem-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pelo recorrente.
Registe e notifique.
Lisboa, 9 de Outubro de 2025
Gabriela de Fátima Marques
António Santos
Vera Antunes