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PROVA PERICIAL
RECLAMAÇÃO
SEGUNDA PERÍCIA
Sumário
Sumário: (elaborado pela relatora) I. O critério de decisão sobre a indicação e produção de meios de prova é essencialmente o da própria parte, só podendo cercear-se a sua iniciativa em casos absolutamente limitados, designadamente os fundados na impertinência, desnecessidade ou irrelevância do meio de prova oferecido ou requerido (por si mesmo ou pela matéria de facto que com ele se visa demonstrar) ou na sua natureza meramente dilatória. II. São expedientes processuais completamente distintos e inconfundíveis a reclamação contra o relatório pericial e o pedido de realização de segunda perícia. A primeira pressupõe a existência de qualquer deficiência, obscuridade ou contradição no relatório, ou, ainda, falta de fundamentação devida das conclusões. A segunda perícia pressupõe que sejam alegadas fundadamente razões de discordância quanto ao juízo técnico do relatório, tem por objecto os mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir eventual inexactidão. III. Formulando o pedido de segunda perícia em termos alternativos à reclamação, deferida esta, não há lugar à segunda perícia com base nesse mesmo pedido, tanto mais que assenta em pressupostos diferenciados.
Texto Integral
Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório:
Rainbowdetail – Investimentos e Consultoria, S.A. intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra AA e BB, todos identificados nos autos, pedindo a condenação dos RR.: a) a reconhecer a Autora como única e legítima proprietária do prédio urbano designado por Lote …, correspondente a terreno para construção, com a área de 690,10 m2, sito em Localização 1, freguesia de União das freguesias de Sintra (S. Maria e S. Miguel, S. Martinho e S. Pedro), Município de Sintra, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o n.º .... e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo .... daquela freguesia; b) à desocupação e consequente restituição da parcela de terreno com a área de 150,59 m2 localizada no limite poente do Lote … supra melhor identificado e dela retirar todos os materiais e construções que lá tenham implantado, bem como a repor o terreno no estado em que se encontrava à data da ocupação em causa; c) a pagar, a título de sanção pecuniária compulsória, o montante de 100,00 € por cada dia de atraso na entrega da referida parcela de terreno com a área de 150,59 m2 localizada no limite poente do Lote … supra melhor identificado, a partir da data de notificação da sentença condenatória; d) ao pagamento de indemnização que cubra os prejuízos decorrentes da ocupação ilegítima da propriedade da Autora desde o momento da sua aquisição até à presente data no valor de 241.535,00€. bem como no restante valor a liquidar relativamente à data da sua restituição natural; e) Caso a restituição natural não seja possível ou não venha a ser realizada no prazo de 30 dias após a data de notificação da sentença de condenação dos Réus, estes deverão ser condenados no pagamento da quantia de 2.967.430,00€ como devida pela perda de potencialidade urbanística da propriedade da Autora devido à ocupação ilegal, tudo com as legais consequências.
No âmbito do seu articulado inicial pede desde logo, além do mais, a realização de prova pericial, indicando o objecto por referencia aos artigos do seu petitório, bem como o perito.
Os RR. contestaram, pugnando pela improcedência dada a procedência da excepção peremptória de usucapião sobre tal parcela de terreno.
Depois de vicissitudes processuais, foi no âmbito do saneador fixado o objecto do litígio e indicados os temas de prova nos seguintes termos:
A. Da ocupação infundada, pelos Réus, da parcela de terreno reclamada nos autos pela Autora.
B. Das operações urbanísticas e construções efectuadas no lote de terreno titulado pela Autora que violaram o limite poente do seu lote ….
C. Da má fé dos Réus por saberem que a ocupação da faixa de terreno reclamada pela Autora é ilegítima e violadora do direito de propriedade da Autora.
D. Da impossibilidade de a Autora proceder a operações urbanísticas por causa desta conduta dos Réus.
E. Do valor comercial dos terrenos urbanos sem construção na área do Município de Sintra; e, assim, do valor comercial do terreno da Autora objecto dos autos.
F. Da capacidade e da viabilidade construtiva no/do lote de terreno da Autora.
G. Das alterações em obra à Licença de Loteamento da Localização 1, aquando dos processos de construção, com as consequentes incorreções na implantação dos lotes, que tiveram por efeito, a alteração à configuração dos lotes, ocorrida duas décadas antes da aquisição do lote, pelos ora Réus.
H. Da compra do lote 80 pelos ora Réu, para aí residirem em família, nos precisos termos em que este ora se encontra e nos precisos termos em que se encontra há mais de 20 anos, mais concretamente, desde outubro de 2002.
I. Da convicção dos Réus e dos anteriores proprietários do lote 80, de que eram donos deste lote tal como se encontra e se encontrava implantado.
J. Da posse do lote 80, pelos Réus e pelos seus antecessores na titularidade da propriedade sobre o lote, à vista de todos, sem oposição de ninguém e na convicção de que não prejudicam ninguém.
Depois de pedidos de esclarecimento à Autora, quer quanto ao tipo de peritagem, quer quanto ao seu objecto, por fim, veio a Autora indicar que pretende perícia colegial e indicar os seguintes quesitos:
1º A parcela de terreno reivindicada está integrada em que prédio(s) e qual a área total do(s) mesmo(s)?
2º Nas proximidades dos limites da parcela de terreno estão construídos edifícios?
3º Quais as áreas e tipo de ocupação dos referidos edifícios?
4º O prédio da Autora e de terreno reivindicada são servidos nas proximidades por acessos rodoviários pavimentados, redes de distribuição de água, de saneamento, de energia eléctrica, de telefone e rede de recolha de resíduos sólidos?
5º Qual a data de construção das vias públicas e das infra-estruturas existentes na zona onde se situa o prédio em causa?
6º Quais os parâmetros e índices urbanísticos aprovados para os lotes de terreno sitos na zona e proximidades da parcela de terreno reivindicada, nomeadamente, áreas totais de implantação e construção, tipos de construções, sua altura total, número de pisos e fins?
7º Qual o custo provável por m2 da construção que seria possível erigir no lote de terreno
da Autora, incluindo, nomeadamente, encargos com projectos, financiamentos, infra-estruturas necessárias, matérias-primas e mão-de-obra? E qual o valor de mercado por m2 da mesma construção?
8º Atentas as respostas aos quesitos anteriores, qual o valor real de mercado do lote de terreno da Autora, considerando as suas capacidades edificativas?
9º A proximidade do prédio da Autora, onde foi ocupada a parcela reivindicada, relativamente ao prédio dos Réus torna impossível o seu integral aproveitamento urbanístico, dada a incompatibilidade desse tipo de ocupação com os respectivos condicionamentos legais e administrativos previstos para a localização do prédio da Autora?
10º Qual o valor das depreciações, encargos e prejuízos verificados nas partes não ocupadas do prédio da Autora?
Notificada a parte contrária nos termos e para os efeitos do artº 476º do Código de Processo Civil, veio a mesma dizer que a matéria dos quesitos 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º propostos pela A. não carecem de ser objecto de prova perícia e que os quesitos 1º e 10º que “estes quesitos deverão ser subtraídos ao objecto da perícia, por estarem redigidos de forma tendenciosa, não contribuindo por isso para a boa decisão do mérito da causa.”.
Sobre o objecto da perícia foi proferido o seguinte despacho: “Determina-se a realização de perícia colegial com vista à resposta às questões de facto colocadas pela Autora no seu requerimento de 31-5-2023 (com excepção para as questões aí colocadas em 2º a 6º, considerando que devem estar em causa concretas questões de facto; e, bem assim, quando sejam necessários conhecimentos especiais dos peritos, o que não é o caso das questões aqui excepcionadas; e mais se considerando, quanto à questão colocada em 10º, que essa questão se coloca partindo da hipótese de que a parcela objecto do litígio dos autos pertence ao prédio da Autora) - art. 476º, nº 2, do Código de Processo Civil.”
A A. veio recorrer de tal despacho, recurso esse que não foi admitido, e objecto de reclamação veio a ser proferia decisão, a 4/4/2024, que determinou a inclusão, no objecto da perícia, da matéria constante dos pontos 3º, 6º e 10º, do requerimento da Autora.
Junto o relatório pericial veio a Autora “ao abrigo do disposto no artigo 485.º, n.º 2 do CPC, expor e requerer, além de pedido de esclarecimentos, o seguinte:
“38º. Face ao exposto, o Exmos. Senhores Peritos devem fundamentar devidamente as suas respostas aos quesitos aqui invocados, indicando discriminada e congruentemente as razões de facto em que se basearam para emitir tal juízo conclusivo, bem como indicando e comprovando os meios técnicos que lhe terá permitido tais conclusões (artigo 485.º, n.º 3 do CPC), prescindo das referidas interpretações jurídicas, bem como da aplicação de normas legais.
39º. Ademais, solicita-se aos Exmos. Senhores Peritos que se pronunciem apenas sobre o que consta dos quesitos, sem mais, pelo que todos os comentários ou opiniões que não sejam respostas objectivas às questões em causa não devem ser consideradas.
40º. Caso as reclamações aqui presentes não sejam, ou não possam ser, atendidas, a Autora reserva-se desde já no direito de requerer uma segunda perícia, por considerar que é necessária para o apuramento da verdade e correcção da inexactidão dos resultados da
primeira perícia nos termos expostos supra terá por objecto a averiguação dos mesmos
factos sobre que incidiu a primeira e por finalidade a correcção da eventual inexactidão dos resultados desta 3 (vd. artigo 487.º e seguintes do CPC).
41º. A Autora requer desde já a presença dos Exmos. Senhores Peritos na audiência final para prestar esclarecimentos verbais sobre o teor do seu relatório e respostas aos quesitos, nos termos do artigo 486.º, n.º 1 do CPC. Nestes termos requer- se a V. Exa que se digne: a) Ordenar aos Exmos. Senhores Peritos para completarem, esclarecerem e fundamentarem as respostas aos quesitos e relatório apresentados, nos termos expostos supra (cf. artigo 485.º do CPC); b) Ordenar a comparência dos Exmos. Senhores Peritos na audiência final, para prestar os esclarecimentos necessários (cf. art. 486.º do CPC). ou, caso assim não se entenda; c) Ordenar a realização de segunda perícia para apuramento da verdade e correcção da inexactidão dos resultados da primeira perícia (cf. artigo 487.º do CPC), com as legais consequências.”
Sobre tal requerimento recaiu o seguinte despacho: “Requerimento de cada uma das partes de 4-11-2024 (que não mereceu oposição da contraparte): Vai deferido o requerido. Notifiquem-se os senhores peritos para que completem, fundamentem e esclareçam em conformidade com o requerido art. 485º, nº 3, do Código de Processo Civil. Defere-se à comparência dos senhores peritos em audiência final conforme requerido pela Autora. Findas, que se mostrem, as diligências referentes a esta perícia, apreciar-se-á o requerimento de realização de segunda perícia formulado pela Autora, neste seu requerimento de 4-11-2024.”.
Foi junto aos autos, a 13 de janeiro de 2025, o relatório dos Srs. Peritos que incidiu sobre o pedido de esclarecimentos.
Notificadas as partes, ambas requereram a presença dos Srs. Peritos em julgamento.
O julgamento teve início a 8 de Maio de 2025, com continuação 13 de maio e a 20 de Maio deste ano. Os esclarecimentos aos peritos foram feitos na sessão que decorreu no dia 8 de Maio de 2025. Tendo tido lugar, nas demais sessões, as declarações de parte e inquirição de testemunhas.
Na acta de audiência final, datada de 20/05/2025, pelo mandatário da Autora foi referido que “se encontra a aguardar despacho sobre o requerimento entrado em 04-11-2024, na sequência do despacho proferido em 3-12-2024”. De seguida foi proferido o seguinte despacho: ”Por ter sido agora colocada a questão relativamente à realização de uma segunda perícia por parte da autora no seu requerimento de 04-11-2024, exara-se que não há que ordenar a realização de segunda perícia pois que esta, nesse requerimento de 4-11-2024, foi requerida apenas para o caso de não se deferir ao anteriormente requerido pela Autora nesse mesmo requerimento (als. a) e b)): ordenar que os senhores peritos prestassem esclarecimentos e fundamentassem respostas nos termos do art. 485º, do C.P.Civil; e ordenar a comparência dos senhores peritos em audiência final para prestar esclarecimentos nos termos do art. 486º, do C.P.Civil. Assim, como o Tribunal deferiu a estes pontos do requerimento; e porque a requerida segunda perícia estava condicionada ao não deferimento desses pontos, verifica-se que não há que ordenar a segunda perícia aí referida.”
Inconformada veio a Autora recorrer, formulando as seguintes conclusões:
«1.ª O despacho recorrido enferma de erros de julgamento, em frontal violação do disposto nos artigos 7.º, 8.º e 547.º do CPC, pelo que deverá ser revogado e, em consequência, ser ordenada a realização da segunda perícia objecto do requerimento de 04.11.2024 da Recorrente. V. supra n.ºs 1 e 19;
2.ª O despacho de indeferimento de segunda perícia ora recorrido é nulo por falta de fundamentação de facto e de direito que justifique a decisão, e, ainda, por não resultar do
despacho qualquer pronúncia sobre a realização de uma segunda perícia, atendendo a que o requerimento que contém o seu pedido está validamente fundamentado e é pertinente, como acima foi analisado, recaindo assim um dever de apreciar o mesmo (artigo 615º, n.º 1, alíneas c) e d) do CPC).. V. supra n.ºs 20 a 31;
3.ª A prolação do despacho recorrido consubstancia uma decisão surpresa e tal determina a prática de irregularidade que, podendo influir no exame ou na decisão da causa artigo 195.º do CPC -, se transmuta ou converte em nulidade processual, dado ter sido omitida a prática de um acto ou formalidade legalmente prescrita na vertente de prolação de decisão-surpresa, pelo que se impõe a sua anulação.. V. supra n.ºs 32 a 39;
4.ª Sempre poderá o Tribunal revogar o despacho recorrido, proferindo em substituição uma decisão que admita a realização da segunda perícia ou, subsidiariamente, determine nova apreciação do requerimento da Recorrente com adequada fundamentação, ao abrigo do artigo 487.º, n.º 2 CPC V. supra n.ºs 40 a 47.”.
Não se encontram juntas contra alegações.
Admitido o recurso neste tribunal e colhidos os vistos, cumpre decidir.
* Questões a decidir:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Importa assim, saber se, no caso concreto:
- A decisão de indeferimento da segunda perícia é nula por ausência de fundamentação ou por constituir uma decisão surpresa;
- O despacho viola o disposto nos artigos 7.º, 8.º e 547.º do CPC, pelo que deverá ser revogado e, em consequência, ser ordenada a realização da segunda perícia.
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II. Fundamentação:
Os elementos fácticos relevantes para a decisão são os constantes do relatório que antecede, quanto às ocorrências processuais pertinentes, e que se dão por reproduzidas.
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III. O Direito: Da nulidade do despacho por falta de fundamentaçãoe constituir uma decisão “surpresa”
A recorrente Autora aponta, desde logo, à decisão objecto de recurso a sua nulidade, quer por falta de fundamentação, quer ainda por entender que a mesma consubstancia uma decisão surpresa, porém, sem considerar a nulidade do artº 615º nº 1 alínea d), a par da alínea b) convocada quanto à primeira nulidade, veio dizer que “tal determina a prática de irregularidade que, podendo influir no exame ou na decisão da causa artigo 195.º do CPC -, se transmuta ou converte em nulidade processual, dado ter sido omitida a prática de um acto ou formalidade legalmente prescrita”.
Em primeiro lugar, caso entendesse que se verificava a nulidade ou irregularidade apontada por remissão para o artº 195º do Código de Processo Civil, deveria a Autora ter suscitado a mesma nos dez dias seguintes à prolação de tal decisão e junto do Tribunal a quo – cf. artº 199º do CPC. Pelo que tendo tal acto sido praticado a 20 de Maio deste ano, a invocação de tal nulidade apenas em sede de recurso, intentado a 4/06/2025 determinaria a sua extemporaneidade. Acresce que das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se.
Além disso, e caso se considere que a nulidade é do artº 615º nº 1 alínea d) do Código de Processo Civil, a mesma não se verifica, pois, o despacho foi proferido após o requerimento da Autora nesse sentido, e segundo a própria já enunciado aquando do pedido de esclarecimentos aos peritos, reiterado em sede de terceira sessão de julgamento, após a produção de prova. Manifestamente inexiste “decisão surpresa” ou a nulidade assacada ao despacho, sendo a questão da subsidiariedade de tal requerimento, bem como todas as questões que se suscitam, apreciadas em sede de mérito do recurso.
No que concerne à nulidade alegadamente por ausência de fundamentação igualmente convocada em sede de recurso, antecipando, a mesma também não ocorre. Pois, a nulidade em razão da falta de fundamentação de facto e de direito está relacionada com o comando que impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que considera e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes. A fundamentação deficiente, medíocre ou errada, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. A fundamentação e a sua exigência ocorre igualmente em relação aos despachos, e a sua ausência também se repercute na sua eventual nulidade, face à remissão do artº 613º nº 3, para o disposto no artº 615º nº 1 alínea b).
É certo que face ao comando constitucional (art. 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa), no qual é imposto um dever geral de fundamentação das decisões judiciais, previsto especificamente no artº 154º do C. P. Civil, também a fundamentação de facto ou de direito gravemente insuficiente, isto é, em termos tais que não permitam ao respectivo destinatário a percepção das razões de facto e de direito da decisão judicial, deve ser equiparada à falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e, consequentemente, determinar a nulidade do acto decisório.
Em suma, a falta de fundamentação da decisão ocorre quando é ininteligível o seu discurso decisório, por ausência total de explicação da razão de se decidir de determinada maneira, o que não ocorre quando a ratio decidendi consta de forma percetível da decisão recorrida.
Porém, no caso concreto haverá que considerar, por um lado, a singeleza da solicitação do Tribunal, por outro lado, saber se o despacho contém ausência de fundamentação que o fira de nulidade.
Na verdade, o dever de fundamentação de um despacho não reveste a mesma complexidade e grau de exigência que o de uma sentença. Pois, o direito a um processo justo e equitativo, consagrado no artigo 20º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, implica que se conciliem o princípio da fundamentação das decisões judiciais com o princípio da economia e celeridade processuais, que pressupõe decisões em tempo útil, sobretudo num quadro em que não existe maior complexidade, nem esta esteja evidenciada pelo requerimento do que se pretende do Tribunal.
A lei assegura aos particulares a possibilidade de impugnar uma decisão, submetendo-a à consideração de um tribunal superior. “Mas para que a parte lesada com a decisão que considera injusta a possa impugnar com verdadeiro conhecimento de causa, torna-se de elementar conveniência saber quais os fundamentos (…) em que o julgador a baseou.”. – cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2.ª Edição, págs. 688 e 689.
O cumprimento deste dever de fundamentação é, assim «(…) indispensável, do ponto de vista do convencimento das partes, do exercício fundado do seu direito ao recurso sobre a mesma decisão (de facto e de direito) e do ponto de vista do tribunal superior a quem compete a reapreciação da decisão proferida e do seu mérito, conhecerem-se das razões de facto e de direito que apoiam o veredicto do juiz. (…)» - cfr. Ac. do TRG de 02-11-2017, proc. 42/14.9TBMDB.G1. In casu, o requerimento atravessado nos autos e que determinou o despacho objecto de recurso, remete para o já junto, e o despacho encontra-se devidamente fundamentado quanto aos motivos do indeferimento.
Com efeito, na terceira sessão de julgamento o iluste mandatário da Autora invocou que “se encontra a aguardar despacho sobre o requerimento entrado em 04-11-2024, na sequência do despacho proferido em 3-12-2024”. De seguida foi proferido o seguinte despacho: ”Por ter sido agora colocada a questão relativamente à realização de uma segunda perícia por parte da autora no seu requerimento de 04-11-2024, exara-se que não há que ordenar a realização de segunda perícia pois que esta, nesse requerimento de 4-11-2024, foi requerida apenas para o caso de não se deferir ao anteriormente requerido pela Autora nesse mesmo requerimento (als. a) e b)): ordenar que os senhores peritos prestassem esclarecimentos e fundamentassem respostas nos termos do art. 485º, do C.P.Civil; e ordenar a comparência dos senhores peritos em audiência final para prestar esclarecimentos nos termos do art. 486º, do C.P.Civil. Assim, como o Tribunal deferiu a estes pontos do requerimento; e porque a requerida segunda perícia estava condicionada ao não deferimento desses pontos, verifica-se que não há que ordenar a segunda perícia aí referida.”
Donde, o despacho é claro e preciso, em tudo compreensível para o recorrente, em moldes de o poder contestar através do recurso interposto, sem necessidade de maior extensão ou explicação. Não se verifica, assim, a nulidade apontada.
Quanto ao mérito do recurso, entende a recorrente que o despacho viola o disposto nos artigos 7.º, 8.º e 547.º do CPC, pelo que deverá ser revogado e, em consequência, ser ordenada a realização da segunda perícia.
No corpo das suas alegações concretiza que face ao teor do requerimento de 4/11/2025, e o despacho que incidiu sobre o mesmo, entende que seria legitima a expectativa de vir a ser deferida a realização da segunda perícia. Dizendo que a decisão sob recurso é contraditória com o anterior despacho, violando o princípio da cooperação e da boa fé processuais dos artº 7º e 8º do Código de Processo Civil, frustrando-se a confiança legítima da Autora na condução do processo e que não permite o processo equitativo previsto no artigo 547.º do Código de Processo Civil.
Vejamos, então, se lhe assiste razão.
Destina-se a prova pericial a demonstrar a realidade dos factos alegados pelas partes – cf. Artº Artigo 341.º do Código Civil, com a singularidade de ter por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, não devam ser objecto de inspecção judicial (cf. Artigo 388.º do Código Civil) Logo, atribui-se a técnicos especializados a verificação / inspecção de factos não ao alcance directo e imediato do julgador, já que dependem de regras de experiência e de conhecimentos técnico-científicos que não fazem parte da cultura geral ou experiência comum que pode e deve presumir-se ser aquele possuidor.
Ora, como é sabido, de acordo com o artº 2º, nº 2, do Código de Processo Civil a todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde uma acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo. Tal reconhecimento pressupõe a demonstração, pelo respectivo titular, dos respectivos pressupostos de facto. Assenta em tal princípio o estabelecimento de regras do ónus da prova, através das quais o sistema repartiu, entre os vários intervenientes no conflito, o risco da não demonstração daqueles ou dos integrantes de excepções oponíveis (artºs 342º, e sgs, do Código Civil). Neles se compreende também o chamado ónus da contraprova (artº 346º, CC), emanação do princípio do contraditório, consagrado no artº 415º, CPC. Desses ónus resulta, sobretudo em relação à parte onerada com o dever de provar os factos, mas também quanto à que tem a possibilidade de os contraprovar e de, na produção dos respectivos meios exercer cabalmente o direito ao contraditório, que as limitações em tal domínio devem restringir-se ao mínimo fundamentalmente admissível e alicerçar-se em fortes e precisas razões materiais justificadas em vista do objectivo de realização da justiça mediante processo equitativo.
Importa referir que o critério de decisão sobre a indicação e produção de meios de prova é essencialmente o da própria parte, só podendo cercear-se a sua iniciativa em casos absolutamente limitados, designadamente os fundados na impertinência, desnecessidade ou irrelevância do meio de prova oferecido ou requerido (por si mesmo ou pela matéria de facto que com ele se visa demonstrar) ou na sua natureza meramente dilatória.
Nos autos foi deferida a produção de prova pericial requerida pela Autora.
Apresentado o relatório pelos Srs. Peritos, o mesmo foi objecto de reclamações nos termos do artº 485º do Código de Processo Civil.
É certo que a Autora no âmbito do requerimento de reclamação, veio ainda no seu artº 40º referir que: “Caso as reclamações aqui presentes não sejam, ou não possam ser, atendidas, a Autora reserva-se desde já no direito de requerer uma segunda perícia, por considerar que é necessária para o apuramento da verdade e correcção da inexactidão dos resultados da primeira perícia nos termos expostos supra terá por objecto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e por finalidade a correcção da eventual inexactidão dos resultados desta (vd. artigo 487.º e seguintes do CPC).”.
A par assim, do pedido no sentido de os Srs. Peritos completarem, esclarecerem e fundamentarem as respostas aos quesitos e relatório apresentados, formula ainda o pedido de comparência dos Senhores Peritos na audiência final, bem como “Ordenar a realização de segunda perícia para apuramento da verdade e correcção da inexactidão dos resultados da primeira perícia (cf. artigo 487.º do CPC), com as legais consequências.”
Sobre tal requerimento recaiu o seguinte despacho: “Requerimento de cada uma das partes de 4-11-2024 (que não mereceu oposição da contraparte): Vai deferido o requerido. Notifiquem-se os senhores peritos para que completem, fundamentem e esclareçam em conformidade com o requerido art. 485º, nº 3, do Código de Processo Civil. Defere-se à comparência dos senhores peritos em audiência final conforme requerido pela Autora. Findas, que se mostrem, as diligências referentes a esta perícia, apreciar-se-á o requerimento de realização de segunda perícia formulado pela Autora, neste seu requerimento de 4-11-2024.”.
Apresentado o relatório relativo às reclamações a Autora juntou requerimento em que pede que os Srs. Peritos compareçam em julgamento, mas em momento algum solicita segunda perícia, pelo que ao contrário do primeiro pedido que reitera, nada diz sobre a necessidade de nova perícia.
Ora, não obstante o teor do despacho de que se socorre a recorrente, para assacar à decisão a violação dos deveres de cooperação e de boa fé processuais, ou até da existência ou não de um processo equitativo, olvida o comportamento processual que decorre da sua actuação. Com efeito, ao invés de ter requerido e reiterado o pedido de segunda perícia perante tais esclarecimentos ou complementos, nada disse, mas não se coibiu de repetir o pedido de comparência dos peritos e apresentar requerimento em que se debruça sobre tais esclarecimentos, em resposta. Aliás, aguardou a produção da prova em audiência de julgamento, para, na 3ª sessão de julgamento, ouvidos que foram os peritos, declarações de parte e produzida prova testemunhal, vir invocar o pedido que havia formulado após o pedido de esclarecimentos/aclarações/fundamentação do relatório pericial junto. Socorrendo-se de um despacho que nada decide quanto a esta segunda perícia, sem que o mesmo signifique qualquer deferimento tácito, significando apenas que ao invés do seu indeferimento, se entendeu dar a possibilidade de tal poder ser equacionado, diga-se, primeiramente pelas partes, mas sem prejuízo da eventual indagação oficiosa, caso os esclarecimentos/aclarações não fossem efectuados.
Outrossim, é manifesto que no requerimento onde formula tal pedido de segunda perícia a Autora o faz em termos alternativos, pois na parte da motivação de tal possibilidade, resulta claramente tal alternância no artº 40º, onde a Autora refere : “Caso as reclamações aqui presentes não sejam, ou não possam ser, atendidas, a Autora reserva-se desde já no direito de requerer uma segunda perícia, por considerar que é necessária para o apuramento da verdade e correcção da inexactidão dos resultados da primeira perícia nos termos expostos supra terá por objecto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e por finalidade a correcção da eventual inexactidão dos resultados desta 3 (vd. artigo 487.º e seguintes do CPC).”(sublinhado nosso).
É certo que em termos de solicitações o faz em termos cumulativos. Porém, importa ter presente que são expedientes processuais completamente distintos e inconfundíveis a reclamação contra o relatório pericial e o pedido de realização de segunda perícia. A reclamação está prevista no artº 485º, CPC, e pressupõe a existência de qualquer deficiência, obscuridade ou contradição no relatório, ou, ainda, falta de fundamentação devida das conclusões. A segunda perícia vem referida no artº 487º e sgs. e pressupõe que sejam alegadas fundadamente razões de discordância quanto ao relatório, tem por objecto os mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir eventual inexactidão.
No caso dos autos manifestamente a Autora na sua motivação condicionou a realização da segunda perícia à ausência de prestação dos esclarecimentos nos termos em que os formulou. No entanto, notificada que foi do relatório junto pelos Srs. Peritos que tinham por objecto tais esclarecimentos, nada requereu.
Como foi abordado pela Relatora destes autos no Acórdão proferido a 20/05/2021, no Processo n.º2708/18.5T8CSC-A.L1(não publicado), acerca de tal temática: “A lei ao consagrar a possibilidade de realização de segunda perícia teve em vista possibilitar a dissipação de dúvidas sérias que decorram da primeira perícia, essencialmente para que as mesmas não subsistam na percepção dos factos com relevância para a decisão de mérito. Logo, a segunda perícia pressupõe que sejam invocadas razões de discordância quanto ao juízo técnico da primeira perícia e visa corrigir inexactidões nos resultados a que a primeira perícia chegou.
Dispõe, ainda, o artigo 487.º do C.P.C. quanto à realização da segunda perícia o seguinte: “1 - Qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de 10 dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado. 2 - O tribunal pode ordenar oficiosamente e a todo o tempo a realização de segunda perícia, desde que a julgue necessária ao apuramento da verdade. 3 - A segunda perícia tem por objecto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexactidão dos resultados desta.”
Com efeito, a realização da segunda perícia exige além do mais, a invocação das razões de discordância, com o objectivo de evitar segundas perícias dilatórias, exigindo-se á parte que concretize os pontos de facto que não foram suficientemente esclarecidos na primeira perícia, enunciando as razões por que entende que o resultado da perícia deveria ser diferente. Como aludem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa (in “Código de Processo Civil Anotado” vol. I pág. 546/547 )”(a) expressão “fundadamente” significa que as razões da dissonância têm de ser claramente explicitadas, não bastando a apresentação de um simples requerimento de segunda perícia ( cf. Ac do STJ de 25/11/2004 in CJ Tomo III, pág. 124). A parte tem de indicar os pontos de discordância (as inexactidões a corrigir) e justificar a possibilidade de uma distinta apreciação técnica.”.
Tal como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de novembro de 2004 ( in www.dgsi.pt/jstj) “(a) expressão adverbial "fundadamente", significa precisamente que as razões da dissonância tenham que ser claramente explicitadas, não bastando a apresentação de um simples requerimento de segunda perícia”, sendo que, como no mesmo Acórdão se esclarece, (t)rata-se no fundo de substanciar o requerimento com fundamentos sérios, que não uma solicitação de diligência com fins dilatórios ou de mera chicana processual. E isto porque a segunda perícia se destina, muito lógica e naturalmente, a corrigir ou suprir eventuais inexactidões ou deficiências de avaliação dos resultados a que chegou a primeira.”
Sobre esta interpretação importa ainda trazer à colação o Acórdão da Relação do Porto, de 27 de janeiro de 2020 ( in www.dgsi.pt), no qual se refere que: “Tal exigência de fundamentação imposta às partes que requeiram a segunda perícia decorre de duas ordens de razões: a primeira, de natureza processual, ou seja, impedir que seja utilizada como "mero expediente dilatório" ou "mera chicana processual"; a segunda, de natureza substantiva, apontar e precisar as razões da discordância com o resultado da primeira perícia, as quais não podem deixar de incidir sobre eventuais inexactidões, insuficiências ou contradições de que padeça a primeira perícia, atento o disposto no n.º 3 do art. 487º do Código de Processo Civil (cfr. Neste sentido Ac STJ, de 25-11-2004; da RP, de 23-11-2006 e de 07-10-2008; da RL, de 28-09-2006, todos disponíveis em www.dgsi.pt).”
Lebre de Freitas e Isabel Alexandre ( in Código de Processo Civil Anotado Vol. II, pág. 342 ) defendem ainda que “a segunda perícia não é uma instância de recurso, visando somente fornecer ao tribunal um novo elemento de prova quanto aos factos que foram objecto da 1ª, depois de apreciados tecnicamente por outros peritos”.
Donde, o que a lei teve em vista ao consagrar a possibilidade de realização de segunda perícia foi possibilitar a dissipação de dúvidas sérias que decorram da primeira perícia, por forma a que não subsistam na percepção dos factos com relevância para a decisão de mérito. A segunda perícia pressupõe que sejam invocadas razões de discordância quanto ao juízo técnico da primeira perícia e visa corrigir inexactidões nos resultados a que a primeira perícia chegou. E o objectivo a atingir com a exigência de fundamentação das razões de discordância é, desde logo, evitar segundas perícias dilatórias, exigindo-se, para tanto, à parte, que concretize os pontos de facto não suficientemente esclarecidos na primeira perícia, enunciando as razões por que entende que o resultado da perícia deveria ser diferente. A parte tem de indicar os pontos de discordância (as inexactidões a corrigir) e justificar a possibilidade de uma distinta apreciação técnica. Ou seja, a parte tem o dever de justificar o motivo por que pretende a realização da segunda perícia – quais as razões por que discorda da primeira -, competindo ao tribunal verificar se ela tem razão de ser – se existem inexactidões nos resultados da primeira que careçam de correcção.
No caso dos autos, a par da alternativa que do próprio requerimento resultava em termos de fundamentação, claramente não cumpria a Autora as exigências supra referidas, limitando-se, ao contrário do pedido de esclarecimentos ou exigência de fundamentação, a solicitar uma segunda perícia. Logo, a par de se considerar acertado o que determinou o indeferimento da segunda perícia, o que resulta ainda é que a autora não fundamentou tal pedido, o que também determinaria o seu indeferimento.
Improcede assim, a apelação.
*
IV. Decisão:
Pelo exposto, Acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela Autora e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pela apelante.
Registe e notifique.
Lisboa, 9 de Outubro de 2025
Gabriela de Fátima Marques
Anabela Calafate
Cláudia Barata