O cabeça de casal (ex-cônjuge), que deu de arrendamento um imóvel comum, enquanto administrador desse bem, deve cumprir anualmente a obrigação de prestar contas (artigo 2093.º do CC). O incumprimento de tal dever não constituirá, sem mais, uma sonegação de bens (nos termos do artigo 2096º do CC), devendo, antes, ser sindicado em ação própria – a ação de prestação de contas, nos termos do artigo 941.º do CPC.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I. RELATÓRIO
1. Os presentes autos de inventário iniciaram-se em 29.06.2011, correndo por apenso ao processo de divórcio no qual são interessados (e ex-cônjuges) AA e BB (exercendo este as funções de cabeça de casal), e destinam-se à partilha do património comum do dissolvido casal.
2. Após uma multiplicidade de atos na tramitação processual, realizou-se a conferência de interessados (em 17.09.2018), vindo a ser proferida sentença homologatória da partilha em 08.01.2019. Contra essa decisão foi interposto recurso pela interessada AA, tendo a apelação sido julgada parcialmente procedente (em 02.05.2019).
3. Em 28.03.2023, AA apresentou requerimento com o seguinte teor:
«a) Que, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1105º n.º 4 do CPC e 2096º do Código Civil, seja julgada como provada a alegação de sonegação de bens por parte do cabeça-de-casal BB, condenando-se o mesmo à perda do benefício do direito às rendas recebidas, conforme resultar provado, mas, ao menos, no período entre 01-10-2012 a 30-09-2022, na quantia liquida de metade, correspondente em abstracto ao seu direito, de € 72.000,00 (setenta e dois mil euros), e do que resultar provado no processo e acréscimo do tempo e valores de rendas;
b) Que se faça constar que a verba n.º 10 do Passivo se mostra actualmente paga ao BES, na totalidade da quantia indicada de € 57.389,79 (fazendo fé na declaração formal da ilustre mandatária do Banco).
c) Que se faça constar que o cabeça-de-casal é devedor da interessada AA, tendo esta o direito de compensar ao menos, a quantia de 72.000,00 (setenta e dois mil euros), que aquele deteve ilicitamente dos valores das rendas que recebeu e por perda do benefício, constante da alínea a);
d) Que se faça constar que o cabeça-de-casal é devedor, ao menos, da quantia de € 28.694,89 (vinte e oito mil seiscentos e noventa e quatro euros e oitenta e nove cêntimos), por ser dele a responsabilidade do pagamento de ao menos metade do valor do passivo antes existente ao BES, entretanto pago ao Banco, constante da alínea b).
e) Que o pagamento da divida comum do casal ao BES na quantia de € 57.389,79, foi feita ao longo do período de duração do contrato, com afectação parcial dos valores das rendas recebidas e no montante que se apurar, nesta data liquido de €72.000,00, que é quantia exclusivamente pertencer à aqui interessada, nos termos da alínea a).
Sem conceder mas à cautela, caso a prova se faça nesse sentido:
f) Que seja deduzido ao activo, como passivo comum, o valor do pagamento dos IMI, desde que comprovadamente liquidados e pagos, por constituir encargo do imóvel do acervo comum do casal.»
O cabeça de casal não deduziu oposição ao pedido de sonegação de bens, tendo juntado aos autos os elementos documentais solicitados pela interessada.
4. A primeira instância decidiu:
«Face ao exposto, julgo o presente incidente procedente e em consequência decretar a sonegação, pelo cabeça-de-casal, do valor das rendas no valor global de € 72.000,00 (setenta e dois mil euros) e, consequentemente, determinar a perda, em benefício da interessada, do direito daquele àquele valor (sem prejuízo do desconto a efetuar tendo em conta o apuramento do valor que terá sido afetado ao pagamento do passivo).
Fixo ao incidente o valor de € 72.000,00 (artigos 299º, n.º 4 e 304º, n.º 1 parte final do Código de Processo Civil.»
5. Contra essa decisão, o requerido interpôs recurso de apelação, no qual obteve sucesso, pois a segunda instância proferiu acórdão com o seguinte dispositivo:
«(…) acordam em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogar a decisão recorrida e absolver da instância (incidente de sonegação de bens) o interessado apelante BB.»
6. Contra esse acórdão, a autora interpôs recurso de revista, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
«A. A douta sentença proferida na 1ª Instância fixou ao incidente, aqui em apreciação, o valor de €72.000,00 (setenta e dois mil euros) – cfr. artigos 299º n.º 4 e 304º n.º 1 parte final do Código do Processo Civil, por ser esse o valor global das rendas ocultadas pelo cabeça-de-casal, que considerou terem sido sonegadas durante o período de dez anos.
B. O cabeça-de-casal, ao apresentar recurso de apelação, não procedeu ao pagamento da taxa de justiça que era devida, sendo, pois, manifesto que a liquidação da taxa de justiça deveria ter sido feita nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Regulamento das Custas Processuais e não, como fez, ao abrigo do n.º 1 do mesmo artigo, já que aquela é a norma especial aplicável aos recursos.
C. Não havendo convite à correção da omissão, nem tendo existido o pagamento voluntario da quantia devida, o douto Tribunal a quo deveria ter aplicado a norma do artigo 642º do Código do Processo Civil, por referência ao artigo 6º n.º 2 do RCP e determinado o desentranhamento da alegação apresentada pela parte faltosa.
D. Ao ter admitido o recurso o douto Tribunal a quo violou das normas do artigo 642º n.º 2 do Código do Processo Civil, por referência ao artigo 6º n.º 2 do RCP, que constitui fundamento da Revista, nos termos da alínea b) do artigo 674º do Código do Processo Civil.
E. Por outro lado, o douto Tribunal da Relação de Lisboa incorreu em erro ao tratar o incidente de sonegação de bens como se o que tivesse em causa fosse uma mera ação/incidente de prestação de contas, desconsiderando a gravidade e o caráter doloso da conduta do cabeça-de-casal, BB.
F. Está comprovado documentalmente que o cabeça-de-casal ocultou, de forma dolosa e intencional, prolongada no tempo (cerca de dez anos), valores referentes às rendas de imóvel comum, realizando contratos, emitindo recibos e recebendo quantias como se fossem exclusivamente suas.
G. A conduta do cabeça-de-casal ultrapassa claramente os limites de simples falha ou omissão na prestação de contas, configurando verdadeira sonegação fraudulenta de bens comuns.
H. O douto Tribunal de primeira instância reconheceu corretamente a sonegação praticada pelo cabeça-de-casal, destacando que sua atuação foi dolosa e prejudicial aos direitos patrimoniais de AA, aqui recorrente. Por isso, torna-se necessário restabelecer, integralmente, a douta sentença da primeira instância
I. A douta decisão da Relação de Lisboa, ao remeter para mera prestação de contas, ignora o dolo, a má-fé e o prejuízo intencional causado pelo cabeça-de-casal à recorrente, tendo violado a norma do n.º 4 do artigo 2096º do Código Civil, assim como a norma do n.º 1 do artigo 2096º do Código do Processo Civil.
J. A violação da lei substantiva por erro na interpretação da norma e, bem assim, a errada aplicação da lei de processo, constituem, nos termos das alíneas a) e b), do n.º 1 do artigo 674º do Código do Processo Civil, fundamentos de Revista.
Ante o exposto, requer-se a esse Venerado Supremo Tribunal de Justiça:
a) O conhecimento e provimento do presente recurso, para que seja reformado o douto acórdão da Relação de Lisboa, reconhecendo que o incidente de sonegação de bens comuns é o meio processualmente adequado à apreciação da ilicitude e do caráter culposo da conduta do cabeça-de-casal, que oculta rendimentos provindos de bem comum.
b) A confirmação da sentença proferida em 1ª instância, que, fundamentada na lei substantiva do Código Civil (art. 2096º) e do Código de Processo Civil (art. 1105 n.º 4), reconheceu a prática de ocultação fraudulenta dos rendimentos por parte do cabeça-de-casal;
c) A condenação da parte recorrida ao pagamento das custas processuais e demais cominações legais.»
Cabe apreciar.
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II. FUNDAMENTOS
1. Admissibilidade e objeto do recurso
O acórdão recorrido revogou a sentença, que havia condenado o interessado-requerido, e absolveu-o da instância, pondo, assim, fim a este incidente de sonegação de bens, pelo que a revista é admissível nos termos do artigo 671.º, n.º 1, segunda parte, do CPC.
O objeto central da revista é, assim, o de saber se o acórdão recorrido fez a correta aplicação da lei processual ao decretar a extinção da instância.
2. A factualidade assente
A primeira instância, com base na circunstância de o requerido não ter contestado o incidente em causa, bem como em prova documental, deu como provados os seguintes factos:
«1. O presente processo iniciou-se em 29-06-2011 a requerimento do cabeça-de-casal, que a 6 de Setembro do mesmo ano prestou compromisso de honra e declarações de cabeça-de-casal.
2. Por requerimento de .....76 datado de 04-10-2011, o nomeado cabeça-de-casal apresentou no processo a sua “relação de bens”, onde fez constar diversos bens imóveis, móveis e quatro verbas de passivo.
3. Não tendo feito constar da mesma qualquer direito de crédito ou rendas recebidas.
4. A última versão da “relação de bens” sido apresentada por requerimento de referência .....14, datado de 12-10-2019.
5. Da mesma consta agora, além de 8 verbas relativas a bens imóveis, uma verba de móveis (recheio da moradia da verba 1) e uma verba de passivo (verba n. 10), segundo a descrição constante da mesma por “dívida ao BES, que no dia 22 de agosto de 2011 é da importância total de € 57.389,79, decorrente de empréstimos destinados à aquisição do imóvel identificado na verba n.º 1 e à realização de obras nesse mesmo imóvel”.
6. Por requerimento datado de 02-06-2022 a aqui interessada veio ao processo informar que havia tomado conhecimento, naquela altura, de que o prédio da verba n.º 1 se encontrava arrendado desde há vários anos e que as rendas eram pagas diretamente ao cabeça-de-casal, sem que o mesmo o fizesse constar do processo.
7. Perante a postura de inacção mantida pelo cabeça-de-casal, a interessada, por requerimento de referência ......04, datado de 02-11-2022, requereu que o mesmo fosse notificado para vir aos autos informar das quantias recebidas a título de rendas, apresentando os contratos de arrendamento e os recibos emitidos, com informação das datas de inicio e/ou eventuais cessões e renovações de contrato.
8. Na mesma altura, requereu ainda que fosse oficiado o Serviço de Finanças do Funchal para vir ao processo informar se o prédio em causa tinha ou não declaração de registo de contrato de arrendamento.
9. Tendo este departamento publico informado, por ofício de 09-03-2023, que “consultado o sistema informático, verifica-se que foi registado um contrato de arrendamento com o artigo ..17 da freguesia de São Gonçalo, com data de início a 01-10-2012 inserido via internet, com a renda mensal de € 600,00 e foi cessado em 30-09-2022.”
10. Facto desconhecido, até então.
11. Perante a situação incontornável, despoletada pelos despachos que ordenaram as diligências, o cabeça-de-casal, por requerimento de referência .....88, datado de 17-03-2023 veio apresentar um contrato denominado de “contrato de arrendamento para habitação com prazo certo”, com data de 1 de Outubro de 2012 e diversas declarações de rendimentos prediais, tendo concluído por um pedido de alteração à relação de bens, com a consequente “eliminação da dívida hipotecária [verba n.º 10 da RB datada de 12-10-2019] e adicionado uma verba, sem numeração, onde consta “8.123,87€ a título de compensação devida ao cabeça-de-casal por pagamento, com bens próprios, do remanescente da divida hipotecária.
12. Do contrato de arrendamento antes referido, assinado exclusivamente por “BB” consta, nomeadamente, o seguinte: “que o primeiro contraente é proprietário e legitimo possuidor do prédio urbano localizado na Rua 1, freguesia de São Gonçalo, concelho do Funchal, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..17º” – cláusula primeiro;
13. Que “Pelo presente contrato, o primeiro contraente dá de arrendamento à segunda contraente (…) – cláusula segunda;
14. Que “A renda mensal acordada pelo contraentes é de € 600,00 (seiscentos euros) ”… tendo a primeira renda sido paga com a assinatura do contrato e prestada caução na quantia de € 600,00 devendo as rendas sucessivas ser “… pagas pela segunda contraente através de transferência bancária para a conta aberta no Banco Espirito Santo, com o NIB .... .... ........... 23” – cláusula sexta.
15. O cabeça de casal fez suas todas as quantias que recebeu a título de rendas.
16. O facto de não ser dono do prédio não o coibiu de proceder às declarações onde fez constar como seu “rendimento predial” a totalidade das rendas recebidas.
17. O que foi feito, sucessivamente, durante dez anos consecutivos.
18. Durante este período recebeu, ao menos, a quantia de € 72.000,00 (setenta e dois mil euros) (10 anos x 12 meses x 600,00/mês).
19. O cabeça-de-casal nunca prestou contas do dinheiro que recebeu de rendas.
20. Durante todo este tempo omitiu que a moradia, bem comum, se encontrava arrendada.
21. E que as rendas lhe eram pagas.
22. O cabeça-de-casal sabia que as quantias recebidas não lhe pertenciam em exclusivo e que estava obrigado a fazer constar esses direitos de créditos nas declarações que prestou sob compromisso de honra no processo.
23. Nem mesmo quando teve oportunidade de as corrigir mais tarde se as fez constar das relações de bens corrigidas.
24. Porque manteve o propósito de esconder o facto que havia recebido esse dinheiro, que ilicitamente sabia não lhe pertencer em exclusivo.
25. Ao mesmo tempo que mantinha como passivo o valor de uma dívida ao BES que bem sabia ser insubsistente.»
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3. O direito aplicável
3.1. O acórdão recorrido absolveu da instância, neste incidente de sonegação de bens, o interessado-requerido (e também cabeça de casal) BB, por ter entendido não ser este o meio processual próprio para tramitar as pretensões formuladas pela interessada requerente, devendo esta lançar mão da ação de prestação de contas (art.º 941.º e seguintes do CPC).
A recorrente vem pedir, nas suas alegações de revista, “que seja reformado o douto acórdão da Relação de Lisboa”.
Embora a “reforma” da sentença (ou do acórdão) seja dirigida ao tribunal que proferiu a decisão em causa, como dispõe o artigo 616.º do CPC, compreende-se que, ao dirigir as suas alegações ao STJ, o que a recorrente pretenderá será a revogação do acórdão do TRL, pelo que, nos termos do artigo 193.º, n.º 3 do CPC, se corrige oficiosamente esse erro de qualificação processual, sendo, portanto, os presentes autos tramitados nos termos próprios do recurso de revista.
3.2. Antes do conhecimento do objeto do recurso, cabe notar que a recorrente vem alegar que o recorrido, enquanto apelante, não liquidou o montante correto da taxa de justiça respeitante a esse recurso, tendo procedido à liquidação de um montante inferir ao devido, e que, apesar de não ter sido notificado pelo tribunal para proceder ao pagamento do montante correto, as alegações da apelação deveriam ter sido desentranhadas, nos termos do artigo 642.º do CPC.
A alegação da recorrente respeita ao controlo de requisitos de admissibilidade do recurso de apelação, o que não cabe, obviamente, nos fundamentos do recurso de revista, na interpretação conjugada do artigo 671.º, n.º 1 e 674.º do CPC. Sempre se poderá afirmar, em termos puramente laterais, que se a agora recorrente pretendia suscitar tal questão devia tê-lo feito no âmbito do recurso de apelação (pois era a esse recurso que respeitava a referida taxa de justiça), e não, obviamente, no âmbito do recurso de revista.
3.3. O acórdão recorrido fundamentou a decisão de absolvição da instância nos termos que, em síntese, se extratam:
«No caso dos autos, constata-se que a interessada apresentou reclamação contra a relação de bens junta aos autos em 4/10/2011 e que apenas veio a invocar a sonegação de bens em 28/3/23 (ref. citius ......73), o que, atendendo à possibilidade de reclamação tardia, poderia considerar-se tempestivo.
Porém, entendemos que a questão em discussão não constitui fundamento para o incidente de sonegação de bens (cujos pressupostos, de todo o modo, não resultariam verificados in casu, por não se poder falar de uma omissão de uma declaração a que o cabeça de casal estivesse obrigado, nem de uma conduta dolosa do mesmo), devendo antes ser apreciada e decidida em sede de processo de prestação de contas.
Senão, vejamos.
Como se colhe do requerimento em que invoca a sonegação de bens, a interessada AA alega que o cabeça de casal, BB, desde pelo menos 1/10/2012, celebrou um contrato de arrendamento do imóvel comum, o que omitiu à ex-cônjuge, e fez suas todas as quantias que recebeu a título de rendas (€72 000, correspondente a 10 anos x12 meses x €600/mês). Conclui a recorrida que o cabeça de casal sabia que as quantias recebidas não lhe pertenciam em exclusivo e que estava obrigado a fazer constar “esses direitos de crédito nas declarações que prestou”, não o tendo feito com o propósito de prejudicar a interessada AA.
Afigura-se-nos que o que está em causa não é a falta de relacionação de um bem comum do casal, mas antes os frutos/rendas resultantes da administração do imóvel que constitui a verba 1 da relação de bens, administração que compete ao cabeça de casal.
Como é sabido, cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges em consequência do divórcio, procede-se à partilha dos bens do casal, sendo que cada cônjuge receberá na partilha os bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo previamente o que dever a esse património (art. 1689º/1 do C.Civil).
E considerando que o divórcio produz efeitos patrimoniais que retrotraem à data da propositura da acção de divórcio (art. 1789º/1 do Código Civil), está o cabeça de casal, a quem compete a administração dos bens até à partilha (art.º 2080º Código Civil), sujeito à obrigação de prestar contas da sua administração anualmente, nos termos do art. 2093º do Código Civil.
Assim, competindo ao cabeça de casal a administração dos bens que integram o acervo patrimonial a partilhar, deve entender-se que foi no exercício dessas funções que o ora interessado/apelante, na pendência do inventário, deu de arrendamento o imóvel em questão (verba 1 da relação de bens), recebendo as respectivas rendas (cf. factos provados 12 a 14).
Como se disse, o cabeça de casal tem a obrigação de prestar contas (art.2093º do Código Civil), mas deverá fazê-lo em sede própria, ou seja, na competente acção de prestação de contas.
Dispõe o art 941º do Código de Processo Civil que:
“A ação de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.”
A acção de prestação de contas tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios (ou património comum) e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.
A obrigação de prestar contas decorre de uma obrigação de carácter mais geral – a obrigação de informação – consagrada no art. 573º do Código Civil, sendo a acção especial de prestação de contas uma das formas de exercício deste direito de informação cujo fim é o de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito
Por outra banda, a acção de prestação de contas não tem por fim determiner se a pessoa obrigada a prestá-las foi ou não diligente na administração; não visa a responsabilização do administrador por eventual má administração, nem a fixação de rendimentos que não foram obtidos por falta de diligência do obrigado. Apenas se pode discutir na acção de prestação de contas se existe ou não a correspectiva obrigação de prestar as contas e o valor ou a inscrição de receitas efectivas, e não de receitas virtuais. Caso pretenda averiguar da boa ou má administração da pessoa obrigada a prestar contas, o autor deve recorrer ao processo comum e não ao processo de prestação de contas (v. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, 2ª ed., vol II, pág. 409).
Em conclusão, a acção especial de prestação de contas configura-se como o meio processual adequado para que o ex-cônjuge, investido no cargo de cabeça de casal no âmbito do processo de inventário destinado à partilha do património comum, possa apresentar contas visando o apuramento das receitas obtidas com a administração dos bens comuns (v.g. arrendamento de imóvel), assim como das despesas efectuadas (…)
Flui do que vimos expondo que a prestação de contas por parte do ora cabeça de casal não poderá ser efectuada no âmbito do processo de inventário, mas sim em sede de acção especial de prestação de contas, que deverá correr por apenso ao inventário (art. 947º …)
Donde, o incidente de sonegação de bens não constitui a via processual adequada à prestação de contas do cabeça de casal/ora apelante.
Consequentemente, perante o vício processual verificado - erro na forma de processo (previsto no art. 193º do CPC; de conhecimento oficioso - art. 196º) - cuja sanação se mostra inviável, há lugar à absolvição da instância, nos termos dos art.s 278º/1 b) e 577º b) do Código de Processo Civil.
Procede, pois, o recurso, com a consequente revogação da decisão recorrida e substituição por decisão de absolvição da instância (incidente de sonegação de bens) do interessado/apelante BB.»
3.4. Os bens que a requerente alega terem sido sonegados pelo requerido são rendas emergentes de um contrato de arrendamento, que teve por objeto um imóvel comum (correspondente à verba n.º 1), celebrado pelo requerido na sua qualidade de cabeça de casal.
Nos termos do artigo 1024.º do CC, a locação constitui, para o locador, um ato de administração ordinária. Logo, enquanto cabeça de casal, o requerido teria legitimidade para celebrar esse contrato.
Por outro lado, não se tratou de um ato oculto, pois como consta da factualidade provada (pontos n.º 8 e n.º 9), o Serviço de Finanças do Funchal informou: «(…) por ofício de 09-03-2023, que “consultado o sistema informático, verifica-se que foi registado um contrato de arrendamento com o artigo ..17 da freguesia de São Gonçalo, com data de início a 01-10-2012 inserido via internet, com a renda mensal de € 600,00 e foi cessado em 30-09-2022.”»
Acresce que, como consta do facto provado n.º 11, o cabeça-de-casal, em 17.03.2023, veio apresentar o referido contrato de arrendamento e diversas declarações de rendimentos prediais (tendo ainda formulado um pedido de alteração à relação de bens, com a consequente eliminação da dívida hipotecária).
Nestes termos, como se afirma no acórdão recorrido, o que está em causa (atento o teor do requerimento da interessada) não é, essencialmente, uma sonegação de bens comuns, mas sim um incumprimento da obrigação de prestar contas respeitantes aos rendimentos de um bem comum; obrigação que o cabeça de casal deve cumprir anualmente (artigo 2093.º do CC).
3.5. A interessada requerente, agora recorrente, não se limitou (no seu requerimento inicial) a alegar que se verificava a ocultação dolosa da existência de determinados bens que deveriam ser apresentados para partilha, ou seja, não se limitou a invocar a sonegação de bens (nos termos do artigo 2096.º do CC). Alegou ainda (e além do mais) a compensação do valor das rendas em falta com débitos seus [alínea c) do requerimento] bem como a imputação de parte dos valores que alega terem sido sonegados ao pagamento de uma dívida comum ao BES [alínea e) do requerimento], pedindo também [na alínea f)] que fosse deduzido ao ativo, como passivo comum, o valor do pagamento do IMI (respeitante ao imóvel administrado pelo requerido).
Face a tal petitório, bem se compreende que o acórdão recorrido tenha entendido que a ação adequada para fazer valer as pretensões da requerente era a ação de prestação de contas, e não o incidente de sonegação de bens, pois a pretensão da requerente não se esgota na alegação de que determinado bem foi dolosamente sonegado à partilha com a inerente perda do benefício do requerido (nos termos do artigo 2096º do CC).
Nos termos do artigo 941.º do CPC, a ação de prestação de contas tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.
3.5. É, assim, a ação de prestação de contas (a correr por apenso ao processo principal, nos termos do art.º 947.º do CPC) o meio próprio para acomodar os pedidos formulados pela requerente.
Nos termos do artigo 193.º, n.º 1 do CPC, o erro na forma de processo importa a anulação do processado que não possa ser aproveitado. É o que se verifica no caso concreto, atendendo a que o requerido, enquanto cabeça de casal e locador do imóvel em causa está, em primeiro lugar, obrigado a prestar contas sobre os rendimentos (e também os encargos) inerentes à administração do imóvel comum.
A primeira instância, desatendendo à especificidade da situação concreta, à qual corresponde uma ação própria, julgou o incidente da sonegação de bens como se de uma qualquer falta de apresentação de bens se tratasse, pelo que a natureza dessa tramitação não é compatível com o princípio do aproveitamento dos atos praticados, devendo, antes, ser anulado todo o processado, como entendeu o acórdão recorrido, nos termos do artigo 196.º do CPC (pois não está em causa uma simples possibilidade de alteração da qualificação do meio processual usado).
Como tal, a consequência dessa insanável inadequação processual terá de ser a absolvição da instância, nos termos dos artigos 278º, n.º 1, alínea b) e 577.º, alínea b) do CPC.
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DECISÃO: Pelo exposto, decide-se julgar a revista improcedente, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 23.09.2025
Maria Olinda Garcia (Relatora)
Ricardo Costa
Rosário Gonçalves