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CONTRADITÓRIO
HONORÁRIOS DE SUCESSO
MANDATO FORENSE
MÁ FÉ
Sumário
I Não é nula a sentença que condena uma parte como litigante de má com fundamento diferente do que esteve na origem do pedido da outra parte nesse sentido, e que condena num valor indemnizatório equitativo relativo a despesas a que a má-fé do litigante tenha obrigado a parte contrária, incluindo os honorários, que a requerente não liquidou no pedido que fez. II Uma cláusula num acordo relativo ao pagamento de honorários a advogado que inclua a remuneração baseada no success fee, deve ser interpretada à luz dos critérios previstos nos art.ºs 236º e segs. do Código Civil. III Não litiga de má fé a Ré que concluiu a sua contestação pelo pedido de improcedência da ação, e, ao longo do processo, não se dispõe a pagar o valor que reconhece ser devido à Autora, na medida em que as partes estão em litígio quanto ao valor total em dívida a título de honorários, litígio esse que fez com que a Autora recorresse à propositura da ação.
Texto Integral
Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães: I RELATÓRIO.
EMP01... – SOCIEDADE DE ADVOGADOS, SP RL, titular do NIPC ...00 e sede em Avenida ...., ... ..., apresentou requerimento de injunção pedindo a condenação de EMP02..., S.A., titular do NIPC ...76 e sede em Avenida ..., Apartado ...40, ... ..., ..., no pagamento de € 30.815,45, acrescido de juros de mora vincendos e juros compulsórios.
Alega para o efeito que, a Requerente é uma sociedade de advogados, que presta serviços de consultoria jurídica e de advocacia, e a Requerida é uma sociedade comercial que se dedica à atividade de construção civil e obras públicas. No âmbito das suas atividades, Requerente e Requerida celebraram em janeiro de 2011 um contrato de prestação de serviços de consultoria jurídica e advocacia, em regime de avença. Em 31 de janeiro de 2023, a Requerente e a Requerida acordaram em pôr termo àquele contrato de prestação de serviços, tendo então definido as condições de retribuição do patrocínio judiciário prestado pela Requerente nos processos judiciais da Requerida ainda pendentes e identificados no Acordo. Em agosto de 2023, um dos processos judiciais constantes do Acordo terminou, tendo a decisão judicial transitado em julgado. A Requerente emitiu e enviou à Requerida, para pagamento, nos termos do Acordo celebrado entre as partes, a Nota de Honorários Final daquele processo e a correspondente fatura de Honorários (FATURA Nº ...62, de 05-09-2023, no valor líquido de € 29.756,70, com vencimento na mesma data).
Acontece que, e apesar de todas as diligências realizadas pela Requerente para receber o valor dos serviços prestados, a Requerida não procedeu, até à data de hoje, ao pagamento do valor da Fatura.
Apresenta o seguinte cálculo:
FATURA Nº ...62 no valor de 29.756,70 € + juros entre 06/09/2023 e 15/12/2023 (905,75 € (101 dias a 11,00%))
Mais refere que além dos juros de mora vencidos, deve a Requerida liquidar à Requerente os juros de mora vincendos, calculados à taxa legal, assim como os juros compulsórios.
Em sede de oposição, a Requerida contestou o valor faturado por não obedecer ao critério contratual definido pelas partes. Pede a improcedência da ação.
Remetidos os autos pelo Balcão Nacional de Injunções e distribuídos os mesmos, foi determinada a convolação dos autos em ação declarativa comum, face ao valor da causa.
A Requerente apresentou articulado visando responder a matéria de exceção, no qual veio também requerer a condenação da Requerida como litigante de má fé, em multa e em indemnização a seu favor A. no valor correspondente ao reembolso de todas as despesas suportadas com o processo, incluindo os honorários do mandatário.
A Requerida, para além de se manifestar pela inadmissibilidade da resposta, opôs-se à factualidade respeitante ao incidente relativo à litigância de má fé.
Foi proferido despacho que não admitiu o articulado na parte em que se reporta à matéria em causa nos autos, mas apenas na parte respeitante ao incidente, tal como a resposta ao mesmo por parte da Requerida.
*
Terminada sem êxito a conciliação das partes, foi dispensada a realização da audiência prévia e anunciada a intenção de conhecimento imediato da ação.
*
Foi fixado o valor de € 30.662,45 à ação.
Foi proferida sentença, precedida de saneamento do processo, que terminou com o seguinte dispositivo: “Por todo o exposto, decide este Tribunal julgar a ação procedente, e condenar a ré EMP02..., S.A., no pagamento à autora de €30.662,45 (trinta mil seiscentos e sessenta e dois euros e quarenta e cinco cêntimos), acrescido de juros de mora vencidos desde da data de apresentação do requerimento de injunção e vincendos até efetivos e integral pagamento, bem como de juros compulsórios à taxa de 5% ao ano, desde a data de trânsito em julgado da presente decisão.
Mais se condena a ré, como litigante de má fé, no pagamento de multa no valor de 2UC, bem como em indemnização à autora no valor de €2.000,00 (dois mil euros).”
Atribuiu também as custas à Requerida.
*
Inconformada, a Requerida (R.) apresentou recurso com alegações que terminam com as seguintes
-CONCLUSÕES-(que se reproduzem)
“1) Nulidade da Sentença por Excesso de Pronúncia dos Fundamentos da Litigância de Má-Fé
A. Na medida em que o Tribunal a quo condena a Apelante como litigante de má-fé por factos distintos dos alegados pela Apelada na formulação dessa pretensão, forçosamente se conclui que, nesta parte, a sentença enferma de vício de excesso de pronúncia.
B. De igual forma, a sentença recorrida enferma de excesso de pronúncia ao condenar a Apelante, como litigante de má-fé, no pagamento de uma compensação à Apelada, a qual não tem enquadramento no peticionado pela Apelada nos autos.
C. Nestes termos, é nula a sentença, na parte em que condena a Apelante como litigante de má-fé, em concreto por excesso de pronúncia, nos termos e para efeitos do disposto no art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC.
Acresce que,
2) Erro de Julgamento na interpretação e aplicação da Cláusula de Honorários de Sucesso
D. Considera a Apelante que a sentença recorrida se encontra eivada de erro de julgamento na interpretação da cláusula relativa à taxa de honorários de sucesso (“success fee”) acordada entre as partes.
E. Com efeito, ao contrário do juízo intelectivo formulado na douta sentença recorrida, a libertação da garantia bancária, não obstante integrar o pedido da ação objeto do processo n.º 2088/11.0BEBRG, não assume relevo para o cálculo de honorários de sucesso nos termos do referido acordo, em concreto por não consubstanciar um prejuízo evitado.
F. Desde logo, a libertação da garantia bancária no processo n.º 2088/11.0BEBRG constituiu uma consequência automática da procedência do pedido da autora (aqui Ré e Apelante) consubstanciado no exercício do direito de resolução do contrato celebrado com o Município ... (cfr. Docs. n.os 3 e 4, juntos com a oposição, e máxime pág. 31 da sentença do referido processo).
G. Por outro lado, em momento algum nesses autos foi discutido o acionamento da garantia bancária em apreço, nem foi deduzido pedido reconvencional nesse sentido, sendo que a existência desse pedido reconvencional, efetivamente, seria relevante para se concluir pela existência de um prejuízo evitado, e, dessa forma, justificar o direito que a Apelada se arroga nos presentes autos.
H. Acresce que, a literalidade do n.º 3 da Cláusula 2.ª do acordo existente entre as partes é clara e inequívoca, não deixando margem para dúvidas sob a ótica de um declaratário normal colocado nas circunstâncias concretas (art. 236.º do CC), quanto à existência de duas fórmulas de cálculo dos honorários do sucesso, e que as mesmas não são cumulativas para esse efeito, na medida em que apenas pode servir de base de incidência da taxa estipulada para esse cálculo ora a “vantagem obtida”, ora o “prejuízo evitado” do caso concreto – não essas duas realidades em simultâneo.
I. O juízo trilhado na douta sentença recorrida no sentido de considerar que a Apelante não contesta a afirmação da Apelada no sentido de que os honorários foram calculados da forma habitual encerra em si duas falácias essenciais, na medida em que, por um lado, tem como pressuposto uma afirmação falsa e não demonstrada nos autos, e que, por outro lado, desconsidera a posição judicial e extrajudicial da Apelante nesta matéria; ao que acresce o facto de a Apelante ter demonstrado que no processo ... não foi considerado pela Apelada o valor da Garantia Bancária como prejuízo evitado, ao contrário do que, de forma genérica e conclusiva, esta alega nos autos (Cfr. Doc. n.º 2, junto com o requerimento da Apelante de 23/09/2024 e Doc. n.º 4, junto com o requerimento da Autora-Apelada de 2/09/2024,).
J. Pelo exposto, errou o Tribunal a quo ao considerar que, ao abrigo do acordo existente entre as partes, poderia a Apelada somar à vantagem obtida pela Apelante com a procedência parcial da referida ação o pretenso prejuízo evitado com a libertação da garantia bancária, porquanto tal resultaria na violação dos termos do acordo subjacente ao mandato forense, conforme pugnado pela Apelada em sede extrajudicial e na sua oposição judicial.
K. Nesse sentido, a douta sentença viola o disposto no art. 236.º do Cód. Civil, assim como o disposto no art. 405.º do mesmo códice.
3) Erro de Julgamento na apreciação e aplicação do instituto da litigância de má-fé
L. Sem prejuízo de excesso de pronúncia invocado, e salvo o devido respeito, entende a Apelante que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao julgar procedente o pedido de condenação em litigância de má-fé, porquanto carece de fundamento a litigância de má-fé imputada à Apelante, atento que, em sede extrajudicial, a mesma envidou esforços no sentido de evitar o recurso à via judicial, tendo inclusive assumido o pagamento de um valor, considerando, igualmente, o “longo percurso” da relação existente entre as partes – conduta que apenas poderá ser qualificada como de boa-fé;
M. Destarte, e salvo o devido respeito por diversa opinião, tendo a Apelada optado por instaurar o presente processo injuntivo/judicial, e, concomitantemente, ignorado a proposta da Apelante no sentido de compor extrajudicialmente o litígio, frustrando integralmente as legítimas expetativas fundadas pela última à luz da boa-fé contratual, não se mostra juridicamente censurável, para efeitos de aplicação de sanção processual, a sua recusa no pagamento dos honorários in integrum.
N. A conduta processual da Apelante cingiu-se ao estritamente necessário para garantir a tutela dos seus interesses legalmente protegidos, pelo que, tal conduta não se poderá qualificar como litigância de má-fé, sob pena de violação do direito da defesa, enquanto corolário do princípio da tutela jurisdicional efetiva, consagrado nos artigos 3.º, n.º 3, e 4.º, do CPC, o art. 20.º da CRP
Sem prescindir,
O. E, caso assim não seja doutamente entendido, salvo o devido, sempre deverá ser objeto de redução o montante da “compensação” fixada pelo douto Tribunal a quo, a título de indemnização por litigância de má-fé, por o mesmo se mostrar manifestamente desproporcional, sendo certo que tal indemnização consubstancia uma dupla penalização da Apelante, na medida em que a mesma é condenada no pagamento de juros de mora sobre a totalidade do valor dos honorários peticionados, mesmo na parte que aceitou em sede extrajudicial.
P. Nestes termos, ao abrigo do princípio da proporcionalidade (art. 18.º da CRP), deverá ser revogada a sentença recorrida, na parte em que condena a Apelante no pagamento de indemnização à Apelada, por litigância de má-fé, ou, caso assim não seja doutamente entendido, ser substituída por outra decisão que determine um valor proporcional para esse efeito.
Q. Pelo supra expendido, a decisão recorrida violou, entre outros, os arts. 227.º, 236.º, n.º 1, 405.º e 762.º do Código Civil, bem como os arts. 542.º e 615.º, n.º 1, al. d) do CPC, e ainda o art. 18.º da CRP.
Assim,
R. Requer-se a este douto Tribunal ad quem, revogue a decisão recorrida, por se encontrar em manifesta contradição com a lei adjetiva e substantiva aplicável.”
Pede que o recurso seja julgado procedente, e, em consequência:
A) Seja declarada nula a sentença na parte em que condena a Apelante como litigante de má-fé, por vício de excesso de pronúncia.
Cumulativamente,
B) Seja a decisão recorrida revogada e substituída por outra que:
a. Absolva a Apelante do pagamento à Apelada dos honorários de sucesso calculados com base no valor da garantia bancária relativa ao processo n.º 2088/11.0BEBRG,
Cumulativamente,
b. Absolva a Apelante do pedido de condenação como litigante de má-fé;
e ainda, sem prescindir,
C) Seja a decisão recorrida revogada e substituída por outra que absolva a Apelante do pedido de indemnização a título de litigante de má-fé, ou, caso assim não se entenda, seja substituída por outra decisão que determine um valor proporcional para esse efeito.
*
A Requerente (A.) apresentou contra-alegações que terminam com as seguintes
-CONCLUSÕES-(que se reproduzem)
“1. A douta sentença “a quo” não está viciada de nulidade por excesso de pronúncia, na medida em que se limita a decidir sobre questões articuladas pelas partes e sobre o pedido formulado pela Recorrida contra a Recorrente como litigante de má-fé;
2. A decisão que liquida a indemnização por litigância de má-fé é proferida no uso de um poder discricionário do juiz, não estando por isso condicionada pelo pedido (cfr. artºs. 152º nº 4 e 543º nº 3 CPC);
3. O juiz “a quo”, ao determinar o conteúdo da indemnização a pagar à Recorrida a título de litigância de má-fé, exerceu o seu poder nos limites previstos no art.º 543º nº 3 CPC, não estando viciado de excesso de pronúncia;
4. O conceito de utilidade económica do processo para efeitos de cálculo de honorários a liquidar pela Recorrente à Recorrida, é idêntico ao que já estava consagrado no anterior contrato de prestação de serviços, celebrado entre as partes em 02/05/2011;
5. À luz do disposto na cláusula segunda do nº 2 do Acordo celebrado em 31-05-2023, conjugado com o disposto nos artºs. 105º nº 1 e 106º do Estatuto da Ordem dos Advogados, o prejuízo evitado com a liberação e devolução da garantia bancária prestada pela Recorrente na empreitada, deve integrar a base de cálculo da utilidade económica do processo para efeitos de honorários;
6. Neste tipo de acordos de fixação de honorários de patrocínio judiciário com base no “success fee” do processo, rege o princípio do valor do assunto confiado ao advogado ou a majoração em função do resultado obtido;
7. A conjugação disjuntiva “ou” utilizada na redação no nº 2 da cláusula segunda do Acordo celebrado entre as partes, é uma disjunção inclusiva ou copulativa, que explicita o conceito de utilidade económica do processo;
8. A liberação da caução bancária “first demand” prestada pela Recorrente no contrato de empreitada celebrado com o Município ..., não é uma consequência automática do pedido de resolução do contrato, mas é um pedido autónomo com utilidade económica própria, formulado expressamente na petição inicial da ação;
9. A Recorrente litigou com má-fé material e má-fé instrumental, procurando protelar o pagamento de um valor de honorários que anteriormente já tinha aceitado, e transgredindo no dever de cooperação, ao esconder factos e documentos essenciais à boa decisão da causa, fazendo um uso manifestamente reprovável do processo (cfr. art.º 542º nº 2 alíneas a), b), c) e d) CPC).
10. A liquidação do valor da indemnização por litigância de má-fé foi fixada pelo juíz “a quo” ao abrigo do poder discricionário conferido pelo nº 3 do art.º 543º CPC, pelo que o recurso sobre esta parte da decisão é irrecorrível (cfr. artºs 152º nº 4 e 630º nº 1 CPC);
11. Ainda que assim não se entenda, o valor da indemnização fixado pela sentença “a quo” foi determinado de forma adequada ao grau de gravidade da conduta ilícita e culposa da Recorrente e os demais factos apurados nos autos sobre o comportamento processual da Recorrente, de acordo com o disposto no art.º 543º CPC, não merecendo por isso qualquer censura.”
Pede que o recurso seja julgado totalmente improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
*
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo, o que foi confirmado por este Tribunal.
O Tribunal recorrido proferiu o seguinte despacho:
“No recurso interposto, vem a ré arguir a nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Civil.
Cumpre apreciar da mesma, nos termos do artigo 617.º, n.º 1 do referido diploma.
Prevê o referido normativo que é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento – denominando-se no primeiro caso omissão de pronúncia, e no segundo excesso de pronúncia.
É esta segunda modalidade que a ré releva, arguindo que o Tribunal levou a cabo a condenação por litigância de má fé, por fundamentos diversos dos que haviam sido invocados pela autora.
O Tribunal entende que não se verifica porém a nulidade apontada, conquanto a litigância de má fé havia já sido suscitada pela autora, e se trata de instituto de conhecimento oficioso – sendo que, tendo já a questão sido suscitada pela contraparte, nada impedia o Tribunal de conhecer da mesma, ainda que por fundamentos diversos.
Sem prejuízo do entendimento final do Venerando Tribunal da Relação, entende-se assim que inexiste a nulidade apontada, mantendo-se a decisão.”
*
Após os vistos legais, cumpre decidir.
***
II QUESTÕES A DECIDIR.
Decorre da conjugação do disposto nos art.ºs 608º, n.º 2, 609º, n.º 1, 635º, n.º 4, e 639º do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que resultem dos autos.
Impõe-se, por isso, no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir:
-se a sentença é nula, por excesso de pronúncia no que respeita ao incidente de litigância de má fé, por se ter afastado da causa de pedir e do pedido apresentado pela A.;
-se não é devido qualquer valor a título de honorários de sucesso calculados com base no valor da garantia bancária relativa ao processo n.º 2088/11.0BEBRG;
-se deve ser revogada a condenação da recorrente como litigante de má fé;
-na negativa, se deve ser revogada a condenação em indemnização á parte contrária, e, na negativa, se o valor deve ser alterado (diminuído).
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III FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
O Tribunal recorrido assentou na seguinte matéria:
“1. FACTOS PROVADOS
Com fundamento no acordo das partes e na prova documental junta aos autos, julgam-se provados os seguintes factos (excluída matéria irrelevante, conclusiva, ou alegações de teor jurídico):
1) A autora é uma sociedade de advogados, que presta serviços de consultoria jurídica e de advocacia.
2) A ré é uma sociedade comercial que se dedica à atividade de construção civil e obras públicas.
3) No âmbito das suas atividades, autora e ré celebraram em janeiro de 2011 um contrato de prestação de serviços de consultoria jurídica e advocacia, em regime de avença.
4) Nos termos do referido acordo, a ré obrigava-se ao pagamento de uma retribuição mensal de €750,00, acrescida de IVA à taxa legal.
5) Mais acrescia à retribuição mensal uma taxa intitulada “success fee”, nos termos da cláusula segunda, n.º 3 do referido acordo, que comportava a seguinte redação:
“Em acréscimo à retribuição mensal prevista no n.º 1 desta cláusula, a EMP03... obriga-se a pagar à EMP04... uma componente de “success fee”, que será de valor correspondente a 2% sobre a utilidade económica resultante dos processos contencioso, judiciais ou arbitrais patrocinados pela EMP04..., considerando-se tal utilidade como a vantagem obtida ou o prejuízo evitado, no final do processo.”
6) Em 31/01/2023, a autora e ré acordaram em pôr termo àquele contrato de prestação de serviços, tendo então definido as condições de retribuição do patrocínio judiciário prestado pela autora nos processos judiciais da ré ainda pendentes e identificados no acordo.
7) A cláusula segunda, n.º 2 do referido acordo tinha a seguinte redação:
“As condições de retribuição do patrocínio judiciário prestado pela Primeira Outorgante nos processos judiciais identificados no número anterior são fixadas através da liquidação de Honorários de sucesso – 2% (dois por cento) calculado sobre o valor recebido ou sobre o prejuízo evitado, liquidados na data de eventual acordo ou trânsito em julgado da decisão judicial”.
8) Entre os referidos processos, incluía-se o processo n.º 2088/11.0BEBRG, que correu termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, e que opunha a ré, na qualidade de autora e representada pela aqui autora, contra o Município ..., ali réu.
9) Por sentença datada de 05/11/2021, a referida ação foi julgada parcialmente procedente, por sentença junta com a oposição como doc. 3 e cujo teor integralmente se reproduz, condenando-se o ali réu nos seguintes termos:
10) Após interposição de recurso, a sentença em causa foi parcialmente revogada pelo Tribunal Central Administrativo Norte, junto como doc. 4 com a oposição e cujo teor integralmente se reproduz, nos seguintes termos:
11) As partes trocaram as comunicações de correio eletrónico juntas como doc. 5 da oposição e com o requerimento datado de 02/09/2024, cujo teor integralmente se reproduz.
12) A ré aceitou admitiu o pagamento de €22.003,26, alegando que não deveria ser incluída na base de cálculo da “success fee” o valor da garantia bancária libertada nos termos da decisão referida em 9).
13) A autora respondeu entendendo que o valor em dívida, incluindo tal garantia, correspondia a €24.192,44, a que acresceria IVA à taxa legal, no total de €29.756,70, emitindo a FATURA Nº ...62 em 05/09/2023 por tal valor, com vencimento imediato.
14) Até à data, a ré não liquidou qualquer valor em dívida.
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2. FACTOS NÃO PROVADOS
Inexistem, com relevância para a causa, quaisquer factos não provados.”
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IV MÉRITO DO RECURSO.
NULIDADE DE SENTENÇA.
Dispõe o art.º 615º, nº 1, C.P.C. que é nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
As nulidades da sentença são vícios formais e intrínsecos de tal peça processual e encontram-se taxativamente previstos no normativo legal supra citado.
Os referidos vícios, designados como error in procedendo, respeitam unicamente à estrutura ou aos limites da sentença.
O vício da sentença decorrente da omissão de pronúncia relaciona-se com o dispositivo do art.º 608º do C.P.C., designadamente, com o seu n.º 2, que estabelece as questões que devem ser conhecidas na sentença/acórdão.
Da conjugação das normas decorre que a nulidade da decisão com fundamento na omissão de pronúncia apenas se verifica quando uma questão que devia ser conhecida nessa peça processual não teve aí qualquer tratamento, apreciação ou decisão, sem que a sua resolução tenha sido prejudicada pela solução, eventualmente, dada a outras (cfr. Ac. desta Relação de 5/4/2018, proferido no processo n.º 681/15.0T8VRL.G1, consultável em em www.dgsi.pt, fonte de todos os que se citarão sem indicação de outra).
Porém questões não são factos, argumentos ou considerações. A questão a decidir está intimamente ligada ao pedido da providência e à respetiva causa de pedir. Relevam, de um modo geral, as pretensões deduzidas e os elementos integradores do pedido e da causa de pedir.
Dúvidas não há, porém, que o tribunal só pode apreciar questões que lhe forem suscitadas pelas partes (salvo as que forem de conhecimento oficioso) sob pena de, assim não sendo, cometer a nulidade no segmento inverso, ou seja, conhece de questões que não foram suscitadas, cometendo excesso de pronúncia.
No nosso processo civil vigora o princípio da coincidência entre o teor da sentença e o objeto do litígio (a pretensão formulada pelo autor que se identifica pela providência concretamente solicitada pelo mesmo e pelo direito que será objeto de tutela). Por outro lado, às partes cabe alegar os factos essenciais que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas (salvo as situações do art.º 5º, n.ºs 2 e 3, do C.P.C.) -tal entronca ainda no princípio do dispositivo –art.ºs 3º, n.º 1, e 5º, n.º 1, C.P.C..
Nesse sentido, o Tribunal tem de conhecer de “todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer” (Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, 2º, 2ª edição, pág. 704).
Como diz Miguel Teixeira de Sousa (“Estudos sobre o Novo Processo Civil”, pág. 362), adaptando para os artigos atuais correspondentes, “um limite máximo ao conhecimento do tribunal é estabelecido pela proibição de apreciação de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se forem de conhecimento oficioso (art. 660°, n° 2, 2.ª parte), e pela impossibilidade de condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido (art. 661°, n.° 1). A violação deste limite determina a nulidade da sentença por excesso de pronúncia (art. 668°, n° 1, al. d) 2.ª parte) ou por conhecimento de um pedido diferente do formulado (art. 668°, n° 1, al. e)”. No que respeita ao pedido, enquanto conclusão lógica do alegado na petição e manifestação da tutela jurídica que o autor pretende alcançar com a demanda, é, pois, de grande importância o modo como se mostra formulado, por, como se viu, o juiz não dever deixar de proferir decisão que se contenha nos estritos limites em que foi delineado pelo autor.
A nulidade da sentença por condenação além do pedido e em objeto diverso do pedido resultará da violação ou desrespeito pelo princípio contido no n.º 1 do art.º 609º do C.P.C., de acordo com o qual a sentença não pode exceder os limites quantitativos e qualitativos do pedido.
Conforme Ac. do STJ de 7/4/2016, relatado por Lopes do Rego (cfr. também o de 12/5/2016, relatado por Orlando Afonso):
“1. O que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exacta caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, sendo lícito ao tribunal, alterando ou corrigindo tal coloração jurídica, convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, sem que tal represente o julgamento de objecto diverso do peticionado.
2. Assim, é lícito ao tribunal, através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribuir ao A., por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter; mas já não será processualmente admissível atribuir-lhe, sob a capa de tal reconfiguração da materialidade do pedido, bens ou direitos substancialmente diversos do que o A. procurava obter através da pretensão que efectivamente, na sua estratégia processual, curou de formular.”
Importa não confundir “questões” com matéria de facto. A sentença é nula se não apreciou uma questão suscitada nos autos ou se apreciou uma questão de que não podia tomar conhecimento. Mas a sentença já não padece do vício da nulidade se tomou em consideração um facto de que não poderia tomar conhecimento nos termos do art.º 5º, n.ºs 1 e 2, do CPC, ou se, ao invés, não considerou provado nem não provado um facto de que deveria tomar conhecimento nos termos dessa mesma norma. Esta situação enquadra-se antes no erro de julgamento.
Neste sentido Ac. do STJ, de 23/3/2017 (relator Tomé Gomes):
“I - O não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e 2, do CPC, não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC.
II. Tais situações reconduzem-se antes a erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável aos acórdãos dos tribunais superiores por via dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC.
III. O mesmo se deve entender nos casos em que o tribunal considere meios de prova de que lhe não era lícito socorrer-se ou não atenda a meios de prova apresentados ou produzidos, admissíveis necessários e pertinentes. Qualquer dessas eventualidades não se traduz em excesso ou omissão de pronúncia que impliquem a nulidade da sentença, mas, quando muito, em erro de julgamento a considerar em sede de apreciação de mérito.”
A recorrente refere que a sentença é nula por excesso de pronúncia, invocando a alínea d) reproduzida.
Sustenta a sua posição em duas circunstâncias:
- a condenação como litigante de má fé ancora-se em factos que não foram os invocados pela A./recorrida para o efeito, a saber: a A. invocou o desacordo entre as partes, omissão de factos e omissão de documentos relevantes, o Tribunal considerou que a recorrente reconheceu que o valor era devido e aceitou o mesmo em parte, fazendo uso reprovável do processo;
*
A recorrente invoca o art.º 3º do C.P.C. e os seus n.ºs 3 e 4, que respeitam ao princípio do contraditório (consagrando a disposição constitucional do art.º 20º, n.º 4). Porém, a recorrente não discute que lhe foi dada a oportunidade de se pronunciar quanto ao incidente, o que discute é a alteração da causa de pedir alegada pela A./recorrida e a condenação em algo diferente do que foi pedido (o que também pode remeter para a eventual nulidade por condenação em objeto diverso prevista no mesmo artigo já citado, na sua alínea e), última parte, o que, a verificar-se, e suscitada que está a nulidade de sentença, permitiria a este Tribunal a convolação ao abrigo do art.º 5º, n.º 3, C.P.C.).
Resulta claro do supra exposto que a consideração de diferente base factual nunca afeta a decisão de nulidade, enquadrando-se antes a situação no pretenso erro de julgamento.
Em acréscimo, e desde já numa primeira adaptação/aproximação do que ficou dito para a concreta apreciação de um incidente de litigância de má fé, diremos que o Tribunal cumpre o contraditório ao permitir à parte que vai a final ser condenada a sua pronuncia quanto a essa possibilidade - e cumpriu no caso, face à apresentação pela aqui recorrente da resposta ao articulado onde a recorrida levantou o incidente; noutra vertente desse princípio, pode questionar-se se tem de lhe apresentar prévia e circunstanciadamente a fundamentação fática e o valor que em concreto vai arbitrar.
Acresce a possibilidade de o Tribunal suscitar oficiosamente este incidente (art.º 542º, n.º 1, C.P.C.), e, nesse caso, acrescentamos já que, no que respeita ao valor a atribuir, deve para o efeito cumprir o contraditório, permitindo à parte contrária pedir indemnização (vigorando neste item o princípio do pedido) e à parte a quem se imputa a conduta pronunciar-se sobre tal.
Isto posto, e novamente numa adequação dos conceitos e princípios a este incidente, temos por líquido que, se o Tribunal pode oficiosamente imputar a uma parte uma conduta violadora dos deveres de boa fé processual, desde que advirta a parte dessa sua intenção, então também pode, suscitada a questão pela parte contrária, enveredar por outro fundamento fáctico que não o alegado.
Podia colocar-se então, mais concretamente, se estaremos perante uma decisão surpresa, uma vez que à recorrente não foi previamente dado a conhecer factos concretos que sustentaram a sua condenação – cfr. art.º 3º, n.º 3, C.P.C..
No Ac. desta Relação de 19/4/2018, proferida no processo n.º 75/08.4TBFAF.G1, analisou-se o princípio do contraditório, pelo que, numa abordagem sumária, destacamos que o princípio do contraditório previsto no art.º 3º, do C.P.C., a par de outros que constituem pilares do nosso ordenamento processual, tem duas vertentes:
-inter partes, e decorrência do princípio da igualdade previsto no art.º 4º do C.P.C., garantindo a possibilidade de cada parte se pronunciar sempre sobre os elementos trazidos ao Tribunal pela outra parte, ou condutas processuais, em cada momento e que podem fundamentar a decisão; esta é a vertente tradicional do direito ao contraditório, traduzida nos nºs. 1, 2 e 4, do art.º 3º, sendo o juiz fiscal do seu cumprimento (n.º 3);
-entre as partes e o Tribunal, sendo de observar pelo juiz ao longo de todo o processo, conforme dispõe o art.º 3º no n.º 3, e correspondendo a uma conceção ampla do princípio, e que no fundo emana do direito constitucional de direito de acesso à justiça num sistema equitativo e participado –art.º 20º, n.º 4, Constituição da República Portuguesa; deve ser cumprido como ato prévio de qualquer decisão a tomar no processo, seja de direito (mesmo de conhecimento oficioso), seja de facto, salvo casos de manifesta desnecessidade; é o seu cumprimento que evita a “decisão surpresa” na medida em que, além do mais, permite à parte que antevê que vai ser proferida uma decisão que lhe é desfavorável, argumentar, tentando convencer o Tribunal da bondade da sua posição.
“As decisões surpresa”, proibidas como decorre do exposto, têm o seu maior campo de expressão nas questões de conhecimento oficioso, designadamente quando não foram suscitadas pela parte contrária.
Cabe ao intérprete e ao aplicador da lei definir caso a caso se pode dispensar a observância desse princípio, face à cláusula de “manifesta desnecessidade (…)”.
A violação desse princípio (ou a sua inobservância) configura uma nulidade processual sempre que tal omissão seja suscetível de influir no exame ou na decisão da causa, sendo consequentemente nula a decisão quando à parte não foi dada possibilidade de se pronunciar sobre os factos e respetivo enquadramento jurídico –cfr. art.ºs. 195º, 197º, n.º 1, e 199º, n.º 1, todos do C.P.C..
Esta nulidade, muito embora processual, quando a decisão-surpresa está coberta por decisão judicial, pode ser invocada e conhecida em sede de recurso.
E, como se disse no Ac. desta Relação de 6/2/2020 (processo n.º 1002/19.9T8VNF-A.G1), com eliminação das notas de rodapé: “A jurisprudência constitucional tem por assente que do ‘conteúdo do direito de defesa e do princípio do contraditório resulta prima facie que cada uma das partes deve poder exercer uma influência efetiva no desenvolvimento do processo, devendo ter a possibilidade, não só de apresentar as razões de facto e de direito que sustentam a sua posição antes de o tribunal decidir questões que lhes digam respeito, mas também de deduzir as suas razões, oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e tomar posição sobre o resultado de umas e outras’, adoptando, pois, um ‘entendimento amplo do contraditório, entendido «como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão» (Lebre de Freitas, Introdução ao processo civil: conceito e princípios gerais. Coimbra, Coimbra Editora, 1996, p. 96.)’. Exigência postulada pelo princípio do processo justo e equitativo (art. 20º da CRP), o princípio do contraditório possui conteúdo multifacetado: traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar as provas da outra parte e pronunciar-se sobre o valor e resultado desses provas, tem ínsito o reconhecimento do direito da parte à sua audição antes de ser tomada qualquer decisão, além do direito a conhecer todas as condutas assumidas pela contraparte e a tomar posição sobre elas.”
Esta violação, configurando nulidade processual integrável nos art.ºs 195º e segs. do C.P.C., a qual, não sendo de conhecimento oficioso, é suscetível de ser invocada por via de recurso da decisão que lhe dá cobertura, quanto mais não fosse, porque implica o excesso de pronúncia (cfr. o desenvolvimento dessa matéria na decisão sumária da presente relatora de 27/12/2021, processo n.º 5329/19.1T8VNF-B.G1).
Ora, no caso em apreço, os fundamentos fácticos não são novidade para a recorrente, são os que constam do processo (não tendo de constar necessariamente dos factos, já que está em causa a conduta processual, o que melhor se entenderá infra) desde o seu início. E, por isso, a recorrente teve oportunidade de os contrariar desde o início do processo. A condenação baseou-se no cerne do litígio, do que, na perspetiva do juiz de 1ª instância, resulta dos autos (dos articulados) que dividiu as partes.
Nessa perspetiva não se pode aqui falar de uma delimitação feita por uma causa de pedir, tão pouco que tal seja inultrapassável, ou ainda que no caso concreto o Tribunal a quo se baseou em factos imbuídos da característica da novidade. Também os fundamentos legais do instituto são conhecidos dos litigantes.
Relativamente à diferença entre o que foi pedido a título indemnizatório – reembolso de todas as despesas – e o objeto da condenação – indemnização fixada no valor de € 2.000,00 -, temos de atender ao disposto no art.º 543º, seus n.ºs 1, 2 e 3, C.P.C., que, desde logo, distingue dois tipos de indemnização:
a) No reembolso das despesas a que a má-fé do litigante tenha obrigado a parte contrária, incluindo os honorários dos mandatários ou técnicos;
b) No reembolso dessas despesas e na satisfação dos restantes prejuízos sofridos pela parte contrária como consequência direta ou indireta da má-fé.
E, de acordo com o n.º 2, o juiz opta pela indemnização que julgue mais adequada à conduta do litigante de má-fé, fixando-a sempre em quantia certa, sendo que, porém (n.º 3), se não houver elementos para se fixar logo na sentença a importância da indemnização, são ouvidas as partes e fixa-se depois, com prudente arbítrio, o que parecer razoável, podendo reduzir-se aos justos limites as verbas de despesas e de honorários apresentadas pela parte.
Concretizando, face às ditas alíneas a) e b), temos a modalidade simples, limitada ao reembolso de despesas “diretamente relacionadas com a conduta maliciosa do litigante” (António Santos Abrantes Geraldes, “Temas Judiciários, vol. I, 1998, pág. 335); ou a modalidade agravada, que faz acrescer ao reembolso dessas despesas a satisfação dos restantes prejuízos sofridos pela parte contrária como consequência direta ou indireta da má-fé, prejuízos que podem abranger danos emergentes, lucros cessantes e danos de natureza não patrimonial (pág. 336). A fixação desta indemnização deve ser feita de acordo com critérios de adequação do valor à conduta do litigante de má-fé; de prudente arbítrio e de razoabilidade, que exprimem um juízo de equidade, podendo nomeadamente reduzir-se o valor das despesas e de honorários aos justos limites quando os exceder (designadamente, por desproporção em relação ao grau do ilícito, ao grau da culpa, aos interesses da ação).
Conclui o mesmo autor que “O critério a utilizar pelo juiz na escolha da forma de ressarcimento mais ajustada ao caso concreto deve partir da apreciação da gravidade do comportamento processual, de maneira que, para condutas dolosas, se justifica, em princípio, a segunda opção, reservando-se a primeira para a litigância negligente, embora com gravidade. A própria lei, para este efeito, limita o juiz a ponderar a gravidade da conduta do litigante, sendo indiferente, para o caso, a condição económica das partes, os efeitos da litigância, a natureza ou o valor da ação. (…) A lei não deixou de conferir ao juiz o poder de cercear pretensões objectivamente injustas ou desproporcionadas, de maneira que, independentemente do montante das despesas e de honorários efectivamente realizados pela contraparte, pode o juiz reduzir o montante a imputar ao litigante de má fé quando, porventura, da transposição integral da matéria de facto para a decisão resultar um quantitativo manifestamente exagerado face à natureza ou ao valor da acção e face à gravidade do dolo ou da culpa.”
Ora, analisada a decisão proferida nesta parte, o Tribunal a quo condenou a recorrente numa indemnização simples, tal como equacionada no pedido, mas que logo liquidou em 2.000,00, com base, diz-se na mesma, em juízos de equidade. Assim sendo, não foi além do pedido (que não estava liquidado), nem condenou em objeto diverso. Situação diferente e a ponderar noutra sede que não a da nulidade de sentença, é se podia ter procedido à liquidação do valor devido sem ter ouvido as partes (ao que o artigo já citado dá resposta).
Pelo exposto, está afastado o excesso de pronúncia, nomeadamente por efeito de violação do princípio do contraditório, e a condenação em objeto diverso, pelo que improcede a suscitada nulidade da sentença, por via de qualquer das alíneas em causa.
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IV MÉRITO DO RECURSO.
DECISÃO DE DIREITO.
O que está em causa nestes autos é a interpretação e aplicação da cláusula do acordado entre as partes do seguinte teor: “As condições de retribuição do patrocínio judiciário prestado pela Primeira Outorgante nos processos judiciais identificados no número anterior são fixadas através da liquidação de Honorários de sucesso – 2% (dois por cento) calculado sobre o valor recebido ou sobre o prejuízo evitado, liquidados na data de eventual acordo ou trânsito em julgado da decisão judicial”. Concretamente impõe-se saber se a sua aplicação no âmbito do resultado obtido na ação em que a recorrente foi parte, patrocinada pela recorrida, traduz-se num valor de honorários de € 2.189,18 (2% sobre o montante de € 109.449,05), a que acresce IVA, no total de € 2.692,69.
Este valor de € 109.449,05 corresponde ao valor de uma garantia bancária prestada pela recorrente ao Município ..., e que este foi condenado a restituir nos termos do proc. n.º 2088/11.0BEBRG, processo que correu entre essas partes, patrocinado pela recorrida, e abrangido por aquela cláusula resultante de acordo que pôs fim ao contrato de prestação de serviços na modalidade de avença entre recorrente e recorrida. Na verdade, consta do dispositivo da sentença aí proferida a condenação do Município a devolver à aqui recorrente a garantia bancária naquele valor. A questão a resolver é se tal implica que, por essa via, estamos perante um valor recebido ou um prejuízo evitado. Ou se, pelo contrário e como pretende a recorrente, não está verificada a condição de acionamento da cláusula porque no processo n.º 2088/11.0BERB não foi imputado à ré (aqui recorrente) qualquer incumprimento, não foi invocado qualquer direito de crédito sobre a mesma e nunca foi manifestado pelo Município ... qualquer intenção de proceder ao acionamento da garantia, e, ainda, não existiu pedido reconvencional formulado pelo Município ... para se fazer pagar através do acionamento da garantia (e só da procedência desta eventual reconvenção é que poderia advir um prejuízo para a ré/recorrente). Por outro lado, argumenta a recorrente, o cálculo dos honorários de sucesso tem por base a utilidade económica do processo, considerando como tal o prejuízo evitado ou a vantagem económica do processo, não sendo essas duas realidades cumulativas.
A declaração negocial valerá de acordo com a vontade real do declarante, se esta for conhecida do declaratário –cfr. art.º 236.º, n.º 2 do Código Civil;
Não o sendo, valerá com o sentido que possa ser deduzido por um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele (teoria da impressão do destinatário) – cfr. art.º 236.º nº1 do Código Civil;
Nos negócios formais, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto – cfr. art.º 238.º, n.º 1 do Código Civil; para que possa valer, o sentido atribuído pelo declaratário normal deverá estar expresso, ainda que de forma imperfeita, no próprio texto do documento que corporiza a garantia prestada;
O sentido sem correspondência mínima no texto poderá ainda valer se traduzir a vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem e essa validade – cfr. art.º 238.º, n.º 2 do Código Civil.
O art.º 236.º, n.º 1 do Código Civil, consagra a teoria da impressão do destinatário ao recorrer ao sentido deduzido por “um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário…”, ou seja, o que uma pessoa de diligência, sageza e razoabilidade médias a quem se dirige a declaração negocial e que se encontrasse na mesma situação que aquela a quem foi em concreto efetuada a declaração poderia depreender da declaração negocial.
Nessa busca do sentido e alcance decisivo da declaração deve atender- se a todos os coeficientes ou elementos que um declaratário normalmente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário, teria tomado em conta, devendo ainda ser considerados os interesses em jogo, a finalidade prosseguida pelo declarante, as negociações prévias, as precedentes relações negociais entre as partes, os hábitos dos declarantes, sendo mesmo de considerar também os modos de conduta por que durante ou posteriormente se prestou observância e deu execução ao declarado (Mota Pinto, “Teoria Geral do Direito Civil”, págs. 448 e 449 da 2ª edição). De facto, nesta averiguação, é também relevante a posição assumida pelas partes na execução do negócio. Esta não pode, na verdade, deixar de, razoavelmente, corresponder ao que as partes entendem ser os seus direitos e as vinculações que para uma delas emergem do negócio (Carvalho Fernandes, “Teoria Geral do Direito Civil”, Volume II, Universidade Católica Portuguesa, 3ª edição, 2001, pág. 417.
A regra ou doutrina da impressão do destinatário tem natureza essencialmente objetivista. Porém, a lei conjuga subjetivismo e objetivismo quando se afasta daquele resultado os sentidos que o declaratário não podia razoavelmente esperar; e quando impõe que a declaração vale com o sentido da vontade do declarante se a mesma era conhecida do declaratário.
Estando-se em presença de um contrato, e sinalagmático – com direitos e obrigações recíprocas para ambos os contraentes - há que atender às declarações de ambas as partes porque ambas são declarante e declaratário.
Assim o intérprete deve, relativamente a ambos os contraentes, tentar definir a posição em que se encontram perante a declaração da contraparte, e colocar um declaratário ideal (normal) na posição de declaratário real (cfr. Ac. desta Relação de 22/10/2020, processo n.º 1162/16.0T8PVZ.G1), uma vez que não há consenso entre ambos quanto à sua vontade real.
Conforme Miguel Teixeira de Sousa – “Apontamento Sobre a Decisão de Non Liquet na Interpretação dos Negócios Jurídicos”, em O Direito, ano 122, IV, pág. 281-, e Ferrer Correia – “Erro e Interpretação na Teoria do Negócio Jurídico”, Coimbra, 1985, págs. 188 e segs- o preceito, que consagrou a teoria expressa por Larenz segundo a qual as declarações de vontade, em princípio, valem com o sentido que as partes lhe quiseram atribuir (vontade real das partes), encontra o seu campo privilegiado de aplicação em todos aqueles casos em que essa vontade não for conhecida ou se declarante e declaratário entenderem a declaração em sentidos diversos (destaque nosso), valendo, nestas situações, o sentido que o declaratário normal poderia julgar conforme às reais intenções do declarante, excepto se este não tinha o dever de considerá-lo acessível à compreensão da outra parte.
Por outras palavras, o intérprete deve começar por averiguar se o declaratário conhecia a vontade real do declarante, o sentido que o mesmo pretendeu exprimir através da declaração. “Conhecendo-a, é de acordo com a vontade comum das partes que o negócio vale, quer a declaração seja ambígua, quer o seu sentido (objectivo) seja inequivocamente contrário ao sentido que as partes lhe atribuíram” – cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Volume I, pág. 224). Consagra-se a regra falsa demonstratio non nocet.
Só quando o declaratário não conheça a vontade real do declarante é que o sentido decisivo da declaração negocial será aquele que seja apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante, a não ser que este, razoavelmente, não pudesse contar com tal sentido (mesmos autores e obra, agora na pág. 223).
Desenvolvendo esta matéria, podemos ver o Ac. desta Relação de 9/11/2023 (processo n.º 637/22.7T8BRG.G1), sobre a qual não nos iremos debruçar mais especificamente uma vez que a recorrente não colocou em causa a (correta) aplicação do preceito, apenas discutindo o resultado a que conduziu.
Ora, pela sua assertividade, cremos que à apreciação feita pelo Tribunal recorrido pouco se pode acrescentar.
E porque nos revemos nos argumentos, os que consideramos válidos, que rebatem a tese da recorrente, passamos a reproduzir esses trechos da sentença, sem prejuízo de o completarmos com algum ponto que se nos afigura relevante. Diz-se na decisão recorrida: “Nos termos do Decreto-Lei n.º 59/99 de 02 de março [entretanto revogado e substituído pelo Código dos Contratos Públicos, mas sendo o regime aplicado no âmbito dos autos n.º 2088/11.0BERB, conforme se extrai da respetiva sentença], o adjudicatário, em sede de empreitada de obras pública, estava obrigado à prestação de uma caução com vista a garantir “o exato e pontual cumprimento das obrigações que assume com a celebração do contrato de empreitada e eventuais contratos adicionais.”, conforme dita o artigo 112.º, n.º 1 do referido diploma legal. Tal caução pode ser prestada por diversos meios à escolha do adjudicatário, inclusive, como se afigura ter sido o caso, por via de garantia bancária, nos termos do artigo 114.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 59/99. A garantia bancária autónoma representa uma garantia das obrigações atípica, utilizada com frequência no comércio jurídico e que envolve uma ordem de pagamento, integrada num contrato tripartido – o mandante solicita a um banco que proceda a um pagamento a um terceiro em caso de incumprimento da sua obrigação, visando a garantia não tanto assegurar o cumprimento do contrato, mas antes garantir ao beneficiário que, independentemente do incumprimento do mandante, será sempre ressarcido dos valores em falta (cfr. MENEZES CORDEIRO, Manuel de Direito Bancário, 4.ª ed., p. 2010, pp. 762-765). Dos elementos dos autos, não resulta matéria factual suficiente para concluir qual o tipo de garantia bancária em causa; pese embora nas comunicações entre as partes seja referida uma garantia “on first demand” (modalidade de garantia bancária mediante a qual o banco paga ao beneficiário à primeira solicitação, sem aferir do cumprimento ou do incumprimento – cfr. autor e ob. cit.), não resulta claro da sentença proferida qual foi a modalidade acordada. No caso de se tratar de uma garantia bancária on first demand, a procedência ou improcedência da ação de pouco relevaria prima facie, posto que o Município ... poderia sempre, a qualquer altura, exigir do banco o pagamento da garantia – sendo assim de todo o interesse da ré em que a mesma fosse restituída. Não se afigura assim correto afirmar que a restituição da garantia fosse um efeito seguro e automático da declaração, pelo Tribunal Administrativo, de resolução do contrato – se assim o fosse, não vislumbra o Tribunal porque razão é que a autora incluiria tal pedido na petição inicial, e porque razão é que o Tribunal Administrativo condenaria a ré na restituição da garantia. Mais, também se extrai das comunicações trocadas entre as partes alguma preocupação e urgência da parte dos representantes da ré em ver a garantia bancária restituída, demonstrando-se que sempre visualizariam a sua manutenção na posse do Município ... com alguma apreensão – ou seja, mesmo que até à data o Município pudesse eventualmente nunca ter demonstrado intenção de acionar a garantia, nada assegura que não o fizesse de futuro, e pelos termos dos autos dir-se-ia que a ré também tinha esta noção. Por último, não é correto à ré afirmar que nunca esteve em causa o incumprimento das suas obrigações no âmbito do processo n.º 2088/11.0BERB; um dos factos dados como não provados na sentença ali proferida prende-se com um alegado erro no pavimento colocado no âmbito da empreitada celebrada entre a ré e o Município ..., e esta falta de prova foi objeto de impugnação (ainda que sem sucesso) pelo mesmo Município no âmbito do recurso suscitado junto do Tribunal Central Administrativo Norte. A circunstância de o Município não ter deduzido reconvenção no âmbito do processo n.º 2088/11.0BERB tem-se por irrelevante, já que a reconvenção não é obrigatória; tal não resulta do artigo 83.º-A do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, o qual apenas prevê a admissibilidade de reconvenção em sede de contencioso administrativo, nem resulta do artigo 266.º do Código de Processo Civil, o qual prevê, no seu n.º 1, que o réu pode em reconvenção deduzir pedidos contra o autor. I.e., a circunstância de o Município não arguir qualquer contra-pedido contra a ali autora e aqui ré não impedia aquela entidade de, se assim o entendesse, em ação autónoma, vir alegar e provar o incumprimento – e até de acionar a garantia bancária, se se mantivesse na sua posse. O contrato de avença celebrado entre autora e ré, bem como o acordo de liquidação, devem ser interpretados e integrados à luz dos artigos 236.º e seguintes do Código Civil, considerando sempre a boa fé como critério último integrador da vontade das partes – artigo 239.º do Código Civil. Afigura-se ao Tribunal que, quando em ambos os contratos se refere “prejuízo evitado”, tal expressão não se pode cingir ao prejuízo evitado naquele processo em concreto, sob pena de um benefício inadmissível de uma das partes, em violação do artigo 237.º do Código Civil. Com efeito, é certo que, mesmo que a ré não obtivesse ganho de causa no âmbito n.º 2088/11.0BERB, não seria de imediato condenada no pagamento de qualquer quantia ao Município, na medida em que este não deduziu reconvenção; mas o facto é que foi alegado um incumprimento da ré, e mesmo que a garantia bancária não fosse on first demand, caso tal incumprimento fosse demonstrado, sempre existiria um risco de a garantia bancária ser acionada. E na leitura dos acordos à luz da boa fé não deve deixar de se atender ao comportamento das partes – mormente, a circunstância de a ré ter demonstrado interesse na restituição da garantia bancária, e ainda a circunstância de a questão de existir ou não um prejuízo nunca ter sido suscitada até à presente ação. Na verdade, a ré apenas suscitou, junto da autora, a questão que se prende com o segundo argumento levantado, que era a de segundo o acordo firmado entre as partes apenas serem devidos “honorários de sucesso” com fundamento ou na vantagem obtida, ou no prejuízo evitado: a ré nunca antes colocou em questão se existiria ou não um prejuízo evitado com a restituição da garantia – antes se demonstrando pelo seu comportamento que assim o considerou. Deste modo, o Tribunal considera que é legítima a interpretação da autora de que, no cálculo dos “honorários de sucesso”, se deve considerar o valor da garantia bancária restituída. O segundo argumento da ré prende-se com a circunstância de, nos termos do acordado entre as partes, não serem cumulativas as duas “realidades”. Entende-se que a ré quererá significar que, no acordo de liquidação celebrado entre as partes, referido em 6) e 7), os “honorários de sucesso” são descritos como correspondendo ao prejuízo evitado ou à vantagem obtida. Cumpre, porém e novamente, analisar o acordo das partes à luz das regras de interpretação dos negócios jurídicos já definidos, considerando não só o acordo de liquidação mas também o contrato de avença originalmente celebrado entre as partes. Afigura-se que, daquele primeiro contrato, os honorários de sucesso são definidos como correspondendo a 2% da utilidade económica do processo, que depois o contrato exemplifica com parcelas como “prejuízo evitado” ou “vantagem obtida”. Considerando depois o término da relação contratual de avença entre as partes e o fim do contrato de mandato forense, o Tribunal é de entender que o acordo de liquidação utiliza a expressão “honorários de sucesso”, no que se afigura ser uma remissão para o que até então tinha sido a relação contratual entre as partes – mais não se tratando o segmento seguinte da cláusula de uma explicitação do que já era, no fundo, um acordo firmado entre as partes. Denota-se que, nas comunicações trocadas, a autora chama a atenção para a circunstância de que os honorários foram calculados da forma habitual no âmbito das relações entre autora e ré, exemplificando com uma ação em particular, e sem que a ré conteste tal afirmação. Conclui o Tribunal assim que, no âmbito da leitura das declarações de ambas as partes, integradas à luz da boa fé nos termos dos artigos 239.º e 762.º, n.º 2 do Código Civil, considerando os comportamentos e atitudes exarados nas comunicações trocadas e nas práticas anteriores no âmbito da relação do contrato de avença, é de integrar o valor da garantia bancária restituída na base de cálculo da “taxa de sucesso” ou “honorários de sucesso” da autora, i.e., como parte da remuneração variável do advogado.”
Em abono desta tese diremos ainda que a recorrente, nas suas alegações, ao invés de a rebater, reforça-a, ao dizer que “…a libertação da garantia bancária constitui um efeito automático da resolução do contrato, a qual foi salvaguardada no pedido da ação relativa ao processo n.º 2088/11.0BEBRG, de forma a evitar a concretização de uma conduta ilegal e/ou abusiva por parte do Município ..., e justamente o acionamento da garantia bancária após a resolução do contrato.”.
De facto, que na sentença proferida pelo Tribunal Administrativo (e nomeadamente na parte destacada nas alegações de recurso) diz-se que a aqui recorrente tem direito à devolução, não se fala em devolução automática.
Evitar um prejuízo, do ponto de vista de um critério de utilidade económica (tal como obter uma vantagem), não se resume a evitar (ou conseguir) uma condenação (designadamente em quantia certa). Restringindo a questão à fase judicial, da procedência de ações de simples apreciação, constitutivas, em que está em causa a condenação em entrega de coisa ou uma prestação de facto, também resulta uma vantagem económica ou o afastamento de um prejuízo, ainda que hipotético (e não apenas o inevitável); a cláusula de success fee não se limitará ao primeiro caso, abrange também estes. Aqui o prejuízo hipotético (que se evita) seria derivado de um eventual acionamento, ainda que abusivo ou ilegal, da garantia bancária; com a condenação na sua restituição obsta-se a essa possibilidade.
Quer isto dizer que o apelo ao conceito de utilidade económica, expresso no anterior acordo que vigorava entre as partes, e sendo apenas aquelas expressões concretização desta, é perfeitamente consentâneo com as regras interpretativas vigentes e citadas.
Desse modo, também resulta lógico considerar que as duas circunstâncias previstas podem ser situações cumulativas, como foram no processo que dá origem à fatura aqui parcialmente em causa, não obstando a essa interpretação o elemento literal, como faz nota a recorrida nas suas contra-alegações.
Por outro lado, a maior ou menor rapidez com que a recorrente recupera a garantia bancária e pode ficar liberada da mesma perante o banco que a prestou, é um fator com relevo económico –cfr. valor da comissão devida ao banco enquanto se mantiver a garantia.
Assim sendo, ainda que se ignore o argumento usado na decisão recorrida relativo ao facto de em situações anteriores a recorrente não ter colocado em causa aquele critério, e que a recorrente aqui contesta, continuam a valer todos os outros e a ser suficientes para fundamentação da decisão.
Mostra-se por isso correta a interpretação feita da cláusula relativa ao success fee, face às regras dos art.ºs 236º e segs. do Código Civil.
Isto posto, improcedem os argumentos recursivos tendentes a afastar a decisão recorrida sobre o litígio entre as partes.
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Insurge-se também a recorrente relativamente à sua condenação como litigante de má fé.
O art.º 542º do C.P.C. concretiza as situações de má-fé material -dedução de pedido ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, e a alteração da verdade dos factos ou a omissão de factos relevantes para a decisão da causa- e de má-fé instrumental -omissão grave do dever de cooperação, uso manifestamente reprovável do processo, ou dos meios processuais, para conseguir um fim ilegal, para entorpecer a ação da justiça, ou para impedir a descoberta da verdade, ou para protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão (cfr. Acórdão da Rel. de Lisboa de 16/12/2021, proferida no processo n.º 12367/19.2T8LSB.L2-2).
Do art.º 542º do C.P.C. retira-se que é sancionável a título de má-fé, não só a lide dolosa, mas também a lide temerária, quando as regras de conduta processual conformes com a boa-fé são violadas com culpa grave ou erro grosseiro. Na verdade, a litigância de má-fé só é censurável se, na dedução da sua pretensão, as partes não ignoravam a falta de fundamento dos factos alegados.
A condenação em indemnização por litigância de má-fé “Trata-se de uma especial forma de responsabilidade civil de base legal que emerge do incumprimento de deveres processuais erigidos pelo legislador como fomentadores de justa, célere e eficaz composição do litígio.” -António Santos Abrantes Geraldes, “Temas Judiciários, vol. I, 1998, já citado, pág. 336).
No caso em apreço a condenação em 1ª instância baseou-se na alínea d) do n.º 2 do art.º 542º do C.P.C., o que decorre da seguinte fundamentação jurídica: “(…) O que já se afigura menos admissível é a conduta da ré em recusar o pagamento de qualquer quantia, e de pedir, no final da sua oposição, a total improcedência da ação. É que, da leitura da mesma, bem como de todas as comunicações trocadas entre as partes, extrai-se de forma muito conclusiva e clara que a ré nunca recusou pagar à autora os seus honorários, e aceitou muito claramente o pagamento de pelo menos €22.003,20, que foi aliás calculado pela própria ré. Ou seja, a ré apenas discordou do valor global dos honorários devidos, que a autora liquidou antes nos referidos €24.192,44 – é da própria oposição que se extrai que é apenas esta diferença que a ré entende não ser devidos. O Tribunal não vislumbra assim nenhuma razão legítima, credível, fundada em boa fé, para a ré continuamente recusar o pagamento, pelo menos, da parcela que aceita dever à autora. Aliás, das comunicações trocadas entre as partes, denota-se que a ré aceitou até o pagamento da totalidade (ainda que vindo agora recusar pelo menos o valor dos “honorários de sucesso”), embora tenha pedido o protelamento do pagamento. Deste modo, o Tribunal não logra concluir por qualquer razão válida para a recusa ou demora da ré no pagamento, pelo menos, do valor que admitiu, já em dívida desde setembro de 2023, que não seja necessariamente o arrastar ou protelar ilegítimo de tal pagamento, utilizando indevidamente o processo judicial para esse efeito. Tal atitude merece do ordenamento judiciário censura e sancionamento que extravasam a condenação em juros de mora – mais considerando que foi dada à ré ampla oportunidade para pagar pelo menos o valor admitido, desde logo tendo pelo Tribunal sido designada tentativa de conciliação.”
Refere o Acórdão da Rel.de Lisboa supra citado a propósito dessa alínea o seguinte, na esteira de Paula Costa e Silva, “A Litigância de Má Fé”, pág. 416: “Uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais (…) O tipo da alínea d) não convive com a sua comissão com negligência, mesmo que esta seja grave. Esta conclusão impõe-se porque “(a) negligência não depende da finalidade, mas da violação de deveres de cuidado e é, portanto, um elemento inteiramente normativo”. Se o tipo do art. 456/2/d pressupõe a finalidade do agente, dirigida à obtenção de um concreto resultado, por referência ao qual é dirigido o uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais, a descrição típica é inconciliável com uma atuação negligente ( )”. “À semelhança do que sucede nos restantes tipos de ilícito descritos nas alíneas precedentes, também a alínea d) pressupõe a ocorrência de um determinado elemento subjetivo para que se verifique o tipo de ilícito nela descrito, o que se justifica pelo facto de a litigância de má-fé se não limitar a vedar a conduta abusiva, impondo antes multa e a obrigação de ressarcimento dos danos causados. Este elemento subjetivo sofre aqui, porém, uma agravação significativa, na medida em que a letra da lei se refere a uma atuação dirigida a um determinado fim específico, dando a entender a necessidade de uma verdadeira conduta intencional e, portanto, dolosa, não se bastando com a mera inobservância dos deveres de cuidado com negligência grosseira[28]. Culpa O instituto da litigância de má-fé visa, efetivamente, sancionar comportamentos contrários ao princípio da boa-fé processual embora exija que tais comportamentos sejam acompanhados por um específico animus da parte do agente. Ou seja, teremos litigância de má-fé apenas quando ao elemento objetivo traduzido nas diversas alíneas do art. 542º, nº 2, que concretizam um dever de honeste procedere, acresça um elemento de ordem subjetiva[29]. A presença do elemento subjetivo será então considerada não apenas ao nível da culpa, mas também em sede de tipicidade. Só quando o comportamento descrito nas diversas alíneas tenha sido praticado com dolo ou negligência grave, se poderá considerar que o sujeito processual praticou um ilícito típico. Se tal elemento subjetivo se ausentar, a conduta não poderá sequer ser considerada ilícita e o sujeito não poderá ser considerado como litigante de má-fé[30]. (…) O dolo, para efeitos de responsabilidade civil corresponde à intenção do agente de praticar o facto[33]. Relativamente ao dolo civil, não é essencial a intenção de causar um dano a outrem (animus nocendi), bastando a consciência do prejuízo, do carácter danoso do facto (o dolo genérico)[34]. Ora, também ao nível processual se não afigura necessária a intenção de prejudicar a contraparte, bastando-se o dolo processual com a consciência da falta de fundamento da sua pretensão ou do caráter dilatório dos atos processuais que pratica[35]”
Uma vez que a segunda parte da alínea, quando se refere ao protelamento, refere-se ao trânsito da decisão ou à sua exequibilidade (trata-se de atrasar o processo, e só indiretamente a pretensão que se visa tutelar pelo mesmo), apenas pode estar em causa a sua primeira parte: fazer do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, ou entorpecer a ação da justiça, o que remete desde logo para o dever de cooperação incito no art.º 7º do C.P.C..
Citando José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (“Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, pág. 457 da 3ª edição), o autor visa objetivo ilegal quando, por exemplo, quer atingir, com a ação, uma finalidade não tutelada por lei, em vez da correspondente à finalidade que lhe é própria; o autor ou o réu visa objetivo ilegal quando, também por exemplo, utiliza meios processuais, como a reclamação, o recurso, ou simples requerimentos, para fins ilícitos, designadamente invocando fundamentos inexistentes. (…) visa entorpecer a ação da justiça a parte que atua usando meios dilatórios, por exemplo, diligências que pede e das quais desiste, incidentes que suscita e a que não dá seguimento…; desvia a atenção do Tribunal dos factos essenciais para questões sem interesse.
Ora, no caso dos autos a recorrente não foi quem teve a iniciativa processual, é Requerida, pelo que não usou o processo para, ab initio, não pagar o que reconhece ser devido. A única censura que lhe pode ser apontada é o facto de ter concluído a sua contestação pelo pedido de improcedência da ação, e, ao longo do processo, não se ter disposto a pagar o valor que reconhece ser devido.
Com todo o respeito, essa conduta não integra a má fé processual.
Estando as partes em litígio quanto ao valor total em dívida a título de honorários, litígio que resulta desde logo da necessidade de propositura do procedimento pela A., não interfere com as démarches processuais o facto de não fazer um pagamento parcial, subsistindo o processo para dirimir o que divide as partes. A R./recorrente podia e devia ter sido mais clara na sua oposição, não concluindo nos termos em que o fez. Mas isso não tem na verdade qualquer efeito na medida em que está em causa uma fatura de um valor global (parcialmente contestado), e o reconhecimento de parte da dívida não conduziria a uma decisão parcial de mérito, até porque a decisão proferida nos autos ocorreu na fase do despacho saneador – art.º 595º, n.º 1, b), do C.P.C..
Procede por isso a pretensão da recorrente de ver revogada a sua condenação como litigante de má fé.
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Fica prejudicada a última questão, reportada ao modo de determinação e ao quantum indemnizatório.
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Deve, por isso, proceder parcialmente o presente recurso de apelação.
As custas do recurso são na proporção do decaimento das partes – art.º 527º, n.ºs. 1 e 2, C.P.C..
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VI DISPOSITIVO.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência, conceder provimento parcial à apelação e confirmar a sentença recorrida no que respeita à condenação da ré no pagamento à autora de €30.662,45 (trinta mil seiscentos e sessenta e dois euros e quarenta e cinco cêntimos), acrescido de juros de mora vencidos desde da data de apresentação do requerimento de injunção e vincendos até efetivos e integral pagamento, bem como de juros compulsórios à taxa de 5% ao ano, desde a data de trânsito em julgado da decisão, e revogar a decisão recorrida no que respeita à condenação da ré como litigante de má fé, no pagamento de multa no valor de 2UC, bem como em indemnização à autora no valor de €2.000,00 (dois mil euros).
Custas do recurso a cargo de ambas as partes na proporção do decaimento (art.º 527º, nºs. 1 e 2, C.P.C.).
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Guimarães, 25 de setembro de 2025.
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Os Juízes Desembargadores
Relatora: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1º Adjunto: João Peres Coelho
2º Adjunto: Gonçalo Oliveira Magalhães
(A presente peça processual tem assinaturas eletrónicas)