ESCRITURA DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
ACÇÃO DE JUSTIFICAÇÃO
TRATO SUCESSIVO
Sumário

1 – De acordo com o disposto no artigo 116.º, n.º 1, do Código do Registo Predial o adquirente que não disponha de documento para a prova do seu direito pode obter a primeira inscrição mediante escritura de justificação notarial ou decisão proferida no âmbito do processo de justificação previsto naquele diploma legal.
2 – A justificação, com recurso ao processo de justificação ou à escritura pública notarial, constitui, assim, um meio fácil e expedito de os interessados que detêm um direito mas não dispõem de título que formal e legalmente os habilite à obtenção do registo, conseguirem o estabelecimento do trato sucessivo nas modalidade de inscrição prévia e continuidade das inscrições.
3 – Todavia, a justificação, seja com base em processo ou com base em escritura pública, só é admissível se se verificar uma total ausência de qualquer situação controvertida.
4 – No caso, está provado, por falta de contestação, que o réu entende a autora explora áreas menores do que aquelas foram por ela indicadas na respetiva petição inicial. Tanto bastaria para considerar que a verificação da usucapião invocada pela autora, com as legais consequências, têm de ser apreciadas e decididas em sede de ação judicial, não sendo possível o recurso ao processo de justificação.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Apelação n.º 17/24.0T8GDL.E2
(2.ª Secção)

Relatora: Cristina Dá Mesquita
Adjuntas: Maria Emília dos Ramos Costa
Isabel Maria de Matos Peixoto Imaginário


Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
(…), autora na ação declarativa sob a forma de processo comum que moveu contra (…), interpôs recurso da decisão proferida pelo Juízo Local Cível de Grândola, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, o qual julgou verificadas as exceções dilatória de incompetência do tribunal em razão da matéria e de falta de interesse em agir e, consequentemente, absolveu o réu da instância.

A decisão sob recurso termina com o seguinte dispositivo:
«Assim, face a todos os argumentos invocados, consideramos que deve o Réu ser absolvido da instância, por força dos artigos 576.º, n.º 1 e 2 e 577.º, alíneas a) e b), todos do Código de Processo Civil, por considerarmos que o Tribunal é incompetente em razão da matéria, assim como não existe interesse em agir na presente ação, uma vez que a mesma poderia ser solucionada com recurso à Conservatória do Registo Civil, ao abrigo dos artigos 117.º-A e 117.º-B do Código do Registo Predial, com referência ao D/L n.º 273/2001, de 13 de outubro.»

Na ação a autora peticionou o seguinte:
i. A condenação do réu a reconhecer:
- Que da divisão dos prédios matricialmente inscritos sob os artigos (…) e (…), ambos da secção (…) da freguesia de (..), concelho de Grândola, sito em (…), com a composição referida no artigo 1º da petição inicial, descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob o n.º (…), freguesia de (…), resultaram os seguintes prédios distintos, autónomos e demarcados entre si:
- Parcelas A, num só: prédio sito em (…), composto de cultura arvense, dependência agrícola, sobreiros, montado de sobro ou sobreiral, pastagem artificial permanente e oliveiras;
- Parcelas B, num só: prédio sito em (…), composto de cultura arvense, uma habitação com a superfície coberta de 65 m2, sobreiros, montado de sobro ou sobreiral, pastagem artificial permanente e oliveiras.
ii. A condenação do réu a reconhecer a autora como única dona e legítima proprietária e possuidora das Parcelas A, num só prédio, referida na alínea anterior com a situação, composição, área e confrontações aí mencionadas, as quais foram adquiridas através do instituto da usucapião, retroagindo a posse à data do seu início em relação às citas parcelas, ou seja, há mais de 20 anos, motivo pelo qual as adquiriram por usucapião.
iii. Que seja declarado que o réu é o legítimo proprietário e possuidor das Parcelas B, num só prédio, referida na alínea A9 do petitório, com a situação, composição, área e confrontações aí mencionadas.
Para os referidos desideratos a autora alegou, em síntese, o seguinte: a partir do segundo semestre de 1991, por testamento de (…), a autora e o réu receberam o legado, em comum e partes iguais, correspondente aos dois prédios inscritos matricial e respetivamente sob os artigos (…) e (…), da secção (…) da freguesia de (…), concelho de Grândola[1], estando ambos descritos na Conservatória do Registo Predial de Grândola, freguesia de (…), sob o n.º (…); as partes vêm utilizando, exclusivamente e de forma independente, uma parte específica de cada um dos supra mencionados prédios; com efeito, a partir de 1997, a autora passou a usufruir e a explorar exclusivamente a parcela identificada com a letra A do levantamento topográfico junto aos autos e o réu passou a usufruir e explorar exclusivamente a parcela identificada com a letra B do dito levantamento topográfico; a moradia do réu está implantada no artigo (…), secção (…); entre as parcelas identificadas no dito levantamento topográfico (A e B) existem marcos a delimitar cada uma delas; desde pelo menos 1997 que a autora e o réu têm e continuam a ter a convicção de que são os donos respetivamente das referidas parcelas, cada uma com a área e delimitação indicadas no levantamento topográfico; à vista e com o conhecimento de toda a gente, e sem a oposição de quem quer que fosse, a autora vem lavrando, semeando, plantando e colhendo os frutos da parcela A e o réu vem vivendo, lavrando, semeando, plantando e colhendo os frutos da parcela B, ambos limpando e cortando o mato, arbustos e árvores de cada uma das respetivas parcelas, de forma autónoma e independente, pagando cada um a respetiva parte relativamente aos trabalhos contratados a terceiros e recebendo, cada um, de terceiros o preço da respetiva exploração, o que fazem há mais de 20 anos e de forma consecutiva; recentemente, porém, o réu colocou em causa aquela divisão, alegando que a autora explora áreas menores do que aquelas que constam do referido levantamento topográfico; não existe obstáculo a que se declare a constituição do direito de propriedade da autora sobre a parcela A e se passe a considerar as parcelas A e B dois blocos de prédios distintos e autónomos, através de usucapião, ainda que ambos os prédios tenham, na totalidade, 12.275 hectares, sendo inferiores à respetiva área de cultura.

I.2.
As alegações da recorrente culminam com as seguintes conclusões:
«1- O presente recurso tem como objeto toda a matéria de facto e de direito do despacho de que se recorre.
2- Afirma o Tribunal a quo na sua sentença de 07.03.2025 que:
“…analisando toda a matéria factual, alegada na petição inicial, não há um único facto que mereça tutela jurisdicional ou que implique uma situação de carência jurídica”.
3- Mas há um facto que evidencia a carência de intervenção jurisdicional no caso sub iudice, apesar de se dever considerar a situação no seu todo e não apenas e só o(s) facto(s) alegado(s) – vide artigo 29º da petição inicial.
4- Com efeito, o Recorrido põe em causa a divisão que – antes da propositura da respetiva ação dos autos – se considerava pacífica e aceite conforme refletida no levantamento topográfico junto com a petição inicial dos autos – vide artigo 29º da petição inicial.
5- Pelo que é impossível resolver a situação por acordo das partes junto das Conservatórias do Registo Predial.
6- Sendo que o Recorrido, ao pôr em causa o respetivo fracionamento por considerar que a Recorrente explora efetivamente áreas inferiores às refletidas no levantamento topográfico e as que se podem atualmente verificar in loco, evidencia claramente a incerteza objetiva do interesse processual da Recorrente.
7- Que, além disso, é atual!
8- Acresce que o Recorrido não contestou a ação, pelo que deverá ser tido o facto alegado no referido artigo 29º da petição inicial dos autos como provada, nos termos do artigo 567.º, n.º 1, do CPC.
9- A Recorrente sabe que por acordo com o Réu não consegue resolver a presente questão submetida à apreciação do Tribunal a quo, que é patente que pelo que se alegou no supra mencionado artigo 29º da petição inicial, quer pela inércia do Réu nos presentes autos.
10- Pelo que existe litígio suficiente e evidente nos autos para justificar o interesse processual da ora Recorrente.
11- Neste sentido está o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 30.05.2023, Relator Arlindo Oliveira, consultável em www.dgsi.pt:
12- Acresce que, no Acórdão de 25.01.2024, Proc. n.º 2709/22.9T8PTM.E1.S1, consultável em www.dgsi.pt, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu que:
“I. Para que se considere que o autor tem interesse processual numa acção em que pede a declaração da existência de certo direito é preciso que se conclua pela existência de uma incerteza objectiva e grave quanto à existência do direito.
II. Existe incerteza objectiva e grave para o efeito de se considerar que existe interesse processual quando, sendo o direito que o autor se arroga um direito do tipo cuja aquisição é controvertida na jurisprudência, o recurso à acção é susceptível de proporcionar ao autor manifesta utilidade prática.”
13- Fundamentando que:
Deve dizer-se que, confirmem-se ou não, em concreto, a insegurança e o receio ou mesmo a relutância referidas, elas não são de estranhar num caso como o dos autos. Por mais que estas justificações sirvam, justamente, para permitir ao titular de um imóvel ou outro bem sujeito a registo que não disponha de título comprovativo o seu direito, obter a primeira inscrição de aquisição do bem a seu favor no registo predial, o facto é que o direito de propriedade em causa adquirido por usucapião incide sobre parcela resultante de divisão de prédio rústico com uma área inferior à unidade de cultura – numa palavra: é um direito cuja existência é controversa.
(…)
Em conclusão, a incerteza que está na origem da propositura da acção, na parte relativa aos pedidos do direito de propriedade invocado pelos autores, apresenta as características de objectividade e de gravidade exigíveis para que se configure interesse processual, devendo concluir-se que eles são titulares de um interesse sério e atendível, que justificava o seu recurso à acção na parte em que pedem a declaração da existência do direito de propriedade.
(…)
o que importa é tão-só a aptidão do meio jurisdicional para a satisfação do interesse do autor. E não há dúvida de que isso se verifica”.
14- Sentido, este, que foi devidamente alegado pela Autora em 30.04.2024, aquando da oportunidade de se pronunciar sobre manifestação do Tribunal a quo considerar vir a declarar-se incompetente em função da matéria nos autos – vide Requerimento da Autora de 30.04.2024, com a Ref.ª 48770940.
15- Numa situação semelhante à dos autos, a Relação de Coimbra, no seu Acórdão de 30.05.2023, Proc. n.º 1797/22.2T8CTB.C1, consultável em www.dgsi.pt, decidiu que:
I – Numa ação, não contestada, em que, para além do mais, foi pedida a condenação do réu a reconhecer a constituição e existência de um prédio como autónomo e distinto, dividido e demarcado, bem como o direito de propriedade dos autores sobre tal prédio, abstendo-se aquele da prática de atos que perturbem ou impeçam o exercício desse direito, com fundamento em compra verbal de uma parcela de terreno ao réu, cuja escritura de compra e venda nunca foi realizada por o vendedor nunca ter procedido à desanexação de tal parcela, em cuja posse os autores se encontram desde 1996, assim tendo adquirido o domínio por via de usucapião, é de ter por verificado o pressuposto do interesse em agir.
2. – No caso, a inação do réu, em não permitir que os autores possam regularizar a situação, é suficiente para que lhes seja reconhecido o direito de recorrer a juízo, a fim de obterem o reconhecimento do direito a que se arrogam, não se lhes podendo impor, apenas e só, o recurso ao processo de justificação, previsto no CRP, ou à escritura de justificação notarial”.
16- Por outro lado, no nosso entendimento, a correspondente ação dos autos até poderá ser considerada como condenatória, atento o respetivo pedido deduzido na alínea B), que implica necessariamente o efeito erga omnes, com a consequente abstenção da prática de atos que perturbem ou impeçam o exercício do respetivo direito por parte do Réu – que se arroga no direito de exercer atos de posse em parte da área que a Autora considera sua.
17- Pelo que, não poderá proceder o entendimento da inexistência de litígio que o Tribunal a quo quer fazer valer nos autos, no sentido de julgar verificada a exceção de falta de interesse processual.
18- Certo é que será muito grave a ora Recorrente não poder resolver o seu problema jurídico, seja com a intervenção do Tribunal, seja através da Conservatória (atenta também a recusa e/ou inércia do Réu em resolver o assunto extrajudicialmente).
19- Configurando, tal situação, uma verdadeira denegação de justiça e uma violação do princípio constitucional do acesso ao Direito e da Tutela Jurisdicional Efetiva, consagrada no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
20- Pelo exposto o Tribunal a quo, na sentença recorrida, violou a o disposto no artigo 278.º, n.º 1, alíneas a) e e), do CPC, bem como o disposto e consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
21- Quanto à invocada exceção de incompetência do Tribunal, concretizando o que se alegou supra, os prédios rústicos melhor identificados no artigo 1º da petição inicial dos autos têm, no total e cada um deles, menos de 48 hectares quadrados – que é a unidade de cultura da zona onde se situam (sub-região do Alentejo Litoral NUT III) – v. Anexo II da Portaria 19/2019, de 15 janeiro.
22- Os prédios em causa são de sequeiro e floresta, pelo respetivo tipo de flora, mas também pela exploração efetiva que, quer a ora Recorrente, quer o Réu fazem em cada um deles, dado que não existe sistema de rega ou de aproveitamento de águas em qualquer um dos prédios – e por maioria de razão, em qualquer das parcelas que se pretendem autonomizar.
23- Neste sentido, estão os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 17.12.2015, Relator Tomé Gomes e da Relação de Coimbra de 07.02.2017 – Proc. n.º 133/04.4TBRSD.C1, ambos consultáveis em www.dgsi.pt
24- A lei proíbe o fracionamento dos prédios inferiores à respetiva unidade de cultura, sancionando tal fracionamento com a nulidade – vide n.º 1 do artigo 1376.º e n.º 1 do artigo 1379.º, ambos do Código Civil.
25- E na prática, nos tempos mais recentes em Portugal, os(as) Senhores(as) Notários(as) e Conservadores(as) recusam-se a lavrar os correspondentes títulos aquisitivos e/ou a registá-los, respetivamente, porque há divergência na Jurisprudência portuguesa quanto à admissão, ou não, de aquisição por usucapião de direitos de propriedade sobre parcelas de prédios inferiores à unidade de cultura que, consequentemente, declara nulas as respetivas
escrituras, com reflexo nos respetivos registos.
26- Pelo que, não é possível regularizar a situação através da Conservatória do Registo Predial.
27- Neste tipo de situações, o meio mais viável, mas sobretudo o que é praticamente possível para o efeito, é o meio judicial.
28- Neste sentido estão os Acórdãos da Relação de Lisboa de 11.05.1999; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/10/2004; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/05/2019; Acórdão da Relação de Guimarães de 20.02.2020; Acórdão da Relação de Guimarães de 16.09.2021; Acórdão da Relação do Porto de 04.05.2022, todos consultáveis em www.dgsi.pt.
29- Em especial os Acórdãos da Relação de Coimbra de 21.02.2017, Proc. n.º 110/15.0T8CLB.C1 e de 30.05.2023, Proc. n.º 1797/22.2T8CTB.C1, consultável em www.dgsi.pt:
30- Sendo também essa a solução que se vê nos Tribunais de primeira instância, conforme se pode verificar pelo Despacho Saneador numa situação totalmente idêntica à dos presentes autos – vide despacho saneador do Juízo Local de Abrantes – Tribunal Judicial da Comarca de Santarém junto com o requerimento de 30.04.2025 com a Ref.ª 48770940.
31- Não deve haver soluções diferentes para situações semelhantes e “nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito” – vide artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil.
32- Pelo exposto, não se verifica qualquer exceção de incompetência do Tribunal a quo em razão da matéria, não podendo poderá o referido Tribunal abster-se de julgar o caso sub iudice.
33- Pois, será muito grave a ora Recorrente não poder resolver o seu problema jurídico, nem através do Tribunal, nem através da Conservatória (atenta também a recusa e/ou inércia do Réu em resolver o assunto extrajudicialmente).
34- Configurando, tal situação, uma verdadeira denegação de justiça e uma violação do princípio constitucional do acesso ao Direito e da Tutela Jurisdicional Efetiva, consagrada no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
35- Pelo exposto, andou mal o Tribunal a quo, quando proferiu a sentença recorrida, por ter violado o disposto nos artigo 8.º do Código Civil, o disposto no artigo 278.º, n.º 1, alínea a), do CPC, bem como o disposto e consagrado nos artigos 13.º, 20.º e 202.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
Nestes termos
Deve julgar-se o recurso procedente por verificação do interesse processual da Autora, ora Recorrente, nos autos, bem como a verificação da competência material do Tribunal a quo para a apreciação do caso sub iudice, revogando-se a sentença recorrida,
Consequentemente,
Deverão os autos prosseguir os seus ulteriores termos até final.»

I.3.
Não houve resposta às alegações de recurso.
O recurso foi recebido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2 e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, ambos do CPC).

II.2.
A questão a dirimir consiste em avaliar se houve erro de julgamento de direito.

II.3.
Apreciação do objeto do recurso
No presente recurso está em causa a decisão do tribunal recorrido que julgou verificadas as exceções dilatórias de incompetência do tribunal em razão da matéria e de falta de interesse em agir e, em conformidade, absolveu o réu da instância.
O tribunal a quo considerou que a petição inicial não evidencia qualquer situação de litigância, qualquer situação de incerteza jurídica, aduzindo que embora no artigo 27º do seu articulado a autora alegue que o seu irmão colocou em causa a divisão dos prédios acima referidos, «não alega nenhum comportamento determinante da parte deste que coloque em causa o direito de propriedade daquela», pelo que concluiu que a autora não tem interesse em agir. E, daí, o julgador a quo partiu para uma outra conclusão: dada a ausência de querela ou conflito, e a manifesta simplicidade da causa, a competência para o reconhecimento do direito de propriedade encontra-se atribuída ao conservador do registo com base nos artigos 117.º-A e 117.º-B, do Código do Registo Predial.
Vejamos.
O “interesse em agir” consiste na indispensabilidade de o autor recorrer a juízo para a satisfação da sua pretensão. Dito de outro modo, o autor só tem interesse em agir quando não dispõe de qualquer outros meios (extrajudiciais) de realizar a sua pretensão. E isso acontece, ou porque tais meios não existem, de facto, ou porque, existindo, o autor os utilizou e esgotou sem sucesso[2].
A lei não se refere expressamente a esta figura enquanto pressuposto processual, o que, porém, não obsta a o mesmo seja tratado e considerado como tal, embora inominado, visando evitar ações inúteis. Neste sentido, escreveu-se no sumário do ac. STJ de 19-12-201 que «I. O nosso direito adjetivo civil não contempla o interesse em agir como exceção dilatória típica e, nesta medida, o conceito tem sido tema doutrinal e jurisprudencial, sendo geralmente considerado exceção dilatória inominada de conhecimento oficioso. II - O interesse em agir assume-se como uma relação entre necessidade e adequação. De necessidade porque, para a solução do conflito é imprescindível a atuação jurisdicional, e adequação porquanto o caminho a seguir deve corrigir a lesão perpetrada ao autor tal como ele a configura».
No caso, os efeitos prático-jurídicos que a autora pretende obter por via da presente ação são os seguintes:
i. o reconhecimento/declaração de que os prédios rústicos matricialmente inscritos sob os artigos (…) e (…), ambos da secção (…) da freguesia de (…), concelho de Grândola, sitos em (…), e ambos descritos na Conservatória do Registo Predial de Grândola, freguesia de (…), sob a ficha n.º (…) encontram-se materialmente divididos em duas parcelas autónomas e distintas, devidamente demarcadas entre si, designadas por parcelas A e B no levantamento topográfico que juntou aos autos;
ii. que se reconheça que a autora adquiriu o direito de propriedade, por usucapião, sobre a parcela A, com a situação, composição, área e confrontações que refere, a qual consiste num prédio sito em (…), composto de cultura arvense, dependência agrícola, sobreiros, montado de sobro ou sobreiral, pastagem artificial permanente e oliveiras, e que o réu adquiriu, também por usucapião, o direito de propriedade sobre a parcela B, com a situação, composição, área e confrontações que refere, a qual consiste num prédio sito em (…), a qual consiste num prédio sito em (…), composto de cultura arvense, uma habitação com a superfície coberta de 65 m2, sobreiros, montado de sobro ou sobreiral, pastagem artificial permanente e oliveiras; e
iii. a condenação do réu a reconhecê-la como dona e legítima possuidora da referida parcela A.
As ações declarativas de simples apreciação são aquelas que visam obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto (artigo 10.º, n.º 3, alínea a), do CPC), sendo de simples apreciação positiva as primeiras e de simples apreciação negativa as segundas. O que justifica este tipo de ações é a necessidade de reagir contra uma situação de incerteza acerca da existência ou inexistência de um direito ou de um facto. Ensinava Anselmo de Castro[3] que a interposição de uma ação de mera apreciação requer um real interesse em agir, consubstanciado num estado de incerteza objetiva que possa comprometer o valor ou a negociabilidade da própria relação jurídica. Continua aquele autor dizendo que «este tipo de ações têm por fim obter unicamente a declaração de existência ou inexistência de um facto, mas não de qualquer facto; há-se ser um facto prejudicial de relações jurídicas já existentes ou de um facto que sirva de base a várias relações jurídicas concretas. Há-de tratar-se, portanto, de facto que esteja intimamente conexionado com certa relação jurídica e cuja incerteza se reflita desfavoravelmente sobre a relação sub specie». Também no acórdão do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.11.2010[4] escreveu-se que «Numa ação de simples apreciação, verifica-se o pressuposto do interesse em agir se o direito cuja existência ou inexistência se pretende que seja judicialmente declarada se encontrar numa situação de dúvida suscetível de causar prejuízos graves e objetivos ao seu titular»; mais recentemente, no acórdão do mesmo tribunal datado de 25.01.2024[5] escreveu-se que «Tem-se entendido que “não basta qualquer situação subjetiva de dúvida ou incerteza acerca da existência do direito ou do facto, para que haja interesse processual na ação”; é exigível “uma situação de incerteza objetivamente grave que justifique a intervenção judicial (exs. negação, ainda que só verbal, dum direito do autor). Em conclusão, só se pode dar por verificado o interesse processual quando haja uma incerteza objetiva e grave – objetiva porque resultante de factos ou circunstâncias exteriores e não de meras conjeturas ou especulações do autor e grave porque suscetível de conduzir a um prejuízo (material ou imaterial) visível e não insignificante dos interesses do autor».
Os pedidos formulados pela autora referidos supra em (i.) e (ii.) são próprios de uma ação de simples apreciação (positiva) e o pedido referido em (iii.) é próprio de uma ação de condenação.
Para o que ora releva, a autora alegou que «recentemente, o réu colocou em causa as referidas divisões, alegando que as delimitações e divisões que se podem verificar in loco e que constam do levantamento topográfico que se junta, não estariam corretas, dado que entende que a autora explora áreas menores do as que foram indicadas». Esta factualidade não se mostra já controvertida pois que o réu não contestou a ação. Ou seja, à data da propositura da ação, para o réu não era pacífico que a autora tivesse adquirido, por usucapião, a parcela A com a situação, composição, área e confrontações que são referidas na petição inicial. O que bastaria para reconhecer interesse de agir à autora, a qual não dispõe de um título que lhe permita registar aquela concreta parcela em causa em seu nome; com efeito, a autora não dispõe de qualquer documento que comprove aquisição, por ela, daquela parcela, a qual resultou de uma divisão material dos dois prédios rústicos supra identificados e está provado, por falta de contestação, que o réu entende que a autora explora áreas menores do que aquelas foram por ela indicadas na respetiva petição inicial.
Donde se conclui existir interesse em agir da autora.
O julgador a quo entendeu, ainda, que compete ao conservador registar situações de reconhecimento de direito de propriedade que «não envolvam qualquer tipo de querela», invocado o disposto nos artigos 117.º-A e 117.º -B, do Código de Registo Predial, pelo que, na senda do que decidiu quanto à (in)verificação do pressuposto processual (inominado) de interesse em agir, julgou-se materialmente incompetente para julgar a causa.
De acordo com o disposto no artigo 116.º, n.º 1, do Código do Registo Predial o adquirente que não disponha de documento para a prova do seu direito pode obter a primeira inscrição mediante escritura de justificação notarial ou decisão proferida no âmbito do processo de justificação previsto naquele diploma legal.
A justificação, com recurso ao processo de justificação ou à escritura pública notarial, constitui, assim, um meio fácil e expedito de os interessados que detêm um direito mas não dispõem de título que formal e legalmente os habilite à obtenção do registo, conseguirem o estabelecimento do trato sucessivo nas modalidade de inscrição prévia e continuidade das inscrições.
O D/L n.º 273/2001, de 13 de outubro determinou que a partir de 1 de janeiro de 2002 – data em que entrou em vigor –, o processo de justificação, nos termos e para os efeitos do artigo 116.º do Código do Registo Predial, passasse para as conservatórias, sendo decidido pelos conservadores. Aquele diploma legal, na prossecução de uma estratégia de desjudicialização de matérias que não consubstanciam verdadeiro litígio, procedeu à transferência de competências dos tribunais para os conservadores de registo em processos de caráter eminentemente registral[6].
Todavia, a justificação, seja com base em processo ou com base em escritura pública, só é admissível se se verificar uma total ausência de qualquer situação controvertida; dito de outra forma, a existência de qualquer dúvida quanto à real existência do direito por parte do justificante ou alguma indefinição ou litígio quanto ao prédio, inviabilizam o recurso à justificação, pois que a resolução de litígios cabe exclusivamente ao tribunais (artigo 202.º da Constituição da República).
Na doutrina, refere Menezes Leitão[7] que «A usucapião deve ser invocada através de escritura de justificação notarial, ou decisão proferida pelo conservador no processo especial de justificação previsto nos artigos 116.º e ss. do Código do Registo predial, sendo que, em caso de inexistência de litígio, não podem as partes sequer substituí-la por ação judicial. Esta fica, assim, reservada para as hipóteses de existir litígio em relação a essa situação (…)».
No caso concreto, a autora alega que adquiriu uma determinada parcela de terreno, com a localização, características e área que identifica, por usucapião.
O processo de justificação criado pelo D/L n.º 273/2001 permite efetivamente reconhecer a existência de um direito de propriedade adquirido por usucapião e a decisão que ali seja proferida permite servir de base à inscrição desse direito. Todavia, é pressuposto do recurso a tal processo a inexistência de litígio quanto ao direito de propriedade invocado e, in casu, está provado, por falta de contestação, que o réu entende a autora explora áreas menores do que aquelas foram por ela indicadas na respetiva petição inicial. Tanto bastaria para considerar que a verificação da usucapião invocada pela autora, com as legais consequências, têm de ser apreciadas e decididas em sede de ação judicial, não sendo possível o recurso ao processo de justificação como entendeu o julgador a quo.
Acresce que a apelante alega, também, que:
- «Os prédios rústicos melhor identificados no artigo 1º da petição inicial dos autos têm, no total e cada um deles, menos de 48 hectares quadrados – que é a unidade de cultura da zona onde se situam (sub-região do Alentejo Litoral NUT III) – vide Anexo II da Portaria 19/2019, de 15 de Janeiro»;
- «Os prédios em causa são de sequeiro e floresta, pelo respetivo tipo de flora, mas também pela exploração efetiva que, quer a ora Recorrente, quer o Réu fazem em cada um deles, dado que não existe sistema de rega ou de aproveitamento de águas em qualquer um dos prédios – e por maioria de razão, em qualquer das parcelas que se pretendem autonomizar»;
- «A lei proíbe o fracionamento dos prédios inferiores à respetiva unidade de cultura, sancionando tal fracionamento com a nulidade – vide n.º 1 do artigo 1376.º e n.º 1 do artigo 1379.º, ambos do Código Civil»,
- «Há divergência na Jurisprudência portuguesa quanto à admissão, ou não, de aquisição por usucapião de direitos de propriedade sobre parcelas de prédios inferiores à unidade de cultura que, consequentemente, declara nulas as respetivas escrituras, com reflexo nos respetivos registos»,
Concluindo, assim, que «não é possível regularizar a situação através da Conservatória do Registo Predial».
Ora, de facto, se da divisão de prédios resultar área inferior à da respetiva unidade de cultura, essa divisão material alegadamente operada nos prédios melhor identificados nos autos – e que constitui pressuposto do reconhecimento da aquisição por usucapião das parcelas dela resultantes – tem de ser validade pelo tribunal, sob pena de se permitir tornear obstáculos de ordem pública decorrentes, designadamente, do disposto no artigo 1376.º do Código Civil – neste sentido, entre outros, Ac. RC de 21.02.2017, processo n.º 110/15.0T8CLB.C1, consultável em www.dgsi.pt. Refere-se também no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.01.2024, citando vária jurisprudência, que o direito de propriedade adquirido por usucapião quando incide sobre parcela resultante de divisão de prédio rústico com uma área inferior à unidade de cultura é um direito «cuja existência é controversa», concluindo que a ação judicial é o meio apto para a satisfação do interesse do autor.
Atento todo o exposto, impõe-se a revogação da decisão, com o consequente prosseguimento dos autos, procedendo assim a apelação.

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Custas
As custas em sentido amplo abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (artigo 529.º, n.º 1, do CPC). A taxa de justiça corresponde ao montante devido pelo impulso processual de cada interveniente, sendo fixado nos termos do Regulamento das Custas Judiciais (artigo 529.º/2, do CPC). Donde, o impulso processual implicará o pagamento de uma taxa de justiça, salvo nos casos em que a parte se mostra isenta do seu pagamento ou beneficia de apoio judiciário.
De acordo com o disposto no artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, a responsabilidade pelo pagamento dos encargos e das custas de parte assenta no critério do vencimento ou decaimento na causa ou, não havendo vencimento, no critério do proveito processual (critério subsidiário). Assim, na instância recursiva as custas (em sentido amplo) ficam por conta do recorrido ou do recorrente, conforme o recurso obtenha, ou não, provimento; nos casos em que não haja vencedor nem vencido, não podendo, por isso, funcionar o critério do vencimento ou decaimento, rege o princípio (subsidiário) do proveito processual, de acordo com o qual pagará as custas do processo quem deste beneficiou.
E nos casos em que há um vencedor mas não há uma parte vencida porque a contraparte não deu causa ao recurso e não contra-alegou? Nestas situações não se pode recorrer ao princípio da causalidade, porquanto não se encontrando uma parte vencida, esta não pode ser condenada no pagamento das custas. Há, assim, que recorrer, julgamos nós, ao critério do proveito.
Revertendo ao caso em apreço, a apelante obteve ganho de causa relativamente à sua pretensão recursória, pois logrou obter a revogação do despacho recorrido; mas, a contraparte nos autos principais não deu causa ao recurso e não apresentou resposta ao recurso. Donde, não podendo atuar o critério da causalidade, há que fazer atuar o critério do proveito, ou seja, a responsabilidade pelo pagamento das custas é da apelante. Considerando, todavia, que na presente instância não houve lugar ao pagamento de encargos (porque não houve realização de quaisquer diligências), que não há custas de parte (porque a contraparte não apresentou resposta às alegações de recurso) e que a apelante já procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida pelo impulso processual, não é devido qualquer outro pagamento a título de custas pela apelante.

Sumário: (…)

III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogam a decisão recorrida, determinando o prosseguimento dos autos.
As custas são da responsabilidade da apelante, mas mais nenhum pagamento é devido a esse título porquanto aquela já procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida pelo impulso processual e nenhum pagamento é devido a título de custas de parte ou de encargos.

Notifique.
DN.
Évora, 18 de setembro de 2025
Cristina Dá Mesquita
Maria Emília Ramos Costa
Isabel Maria de Matos Peixoto Imaginário



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[1] O prédio inscrito sob o artigo (…) composto por dependência agrícola, habitações, sobreiros, montado de sobro, pastagem artificial permanente, cultura arvense e pinhal, com a área total de 93.750 m2, a confrontar de norte com os próprios (artigo …, secção …), a sul com (…), a nascente com (…), Lda., e poente com (…); o prédio inscrito sob o artigo (…), composto por cultura arvense, pinhal, oliveiras e sobreiros, a confrontar a norte com (…), Lda., a nascente com Banco (…), a poente com (…), Lda., e sul com os próprios artigo …, secção …).
[2] Paulo Pimenta, Processo Declarativo, 3.ª Edição, Almedina, pág. 98.
[3] Direito Processual Civil Declaratório, Volume II, Almedina. Coimbra, 1982, pág. 117.
[4] Processo n.º 33/08.9TBVNG.P1.S1, relatora Maria dos Prazeres Beleza, consultável em www.dgsi.pt.
[5] Processo n.º 2709/22.9T8PTM.E1.S1, relatora Catarina Serra, consultável em www.dgsi.pt.
[6] No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de julho de 2013, entre outros, refere-se que «Na ausência de subjacente litígio, com a entrada em vigor, em 01.01.2002, do D/L n.º 273/2001, de 13.10, a competência em razão da matéria, para o conhecimento de ações a que, anteriormente, correspondia o denominado “processo de justificação judicial”, passou a radicar, originariamente, nos conservadores do registo predial, que dela ficarão privados, em caso de ulterior dedução de oposição pelos interessados (artigo 117.º-H, n.º 2, do Código do Registo Predial)».
[7] Direitos Reais, 6.ª Edição, Almedina, pág. 211.