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CONDUÇÃO SOB O EFEITO DO ÁLCOOL
DIREITO DE REGRESSO DA SEGURADORA
NEXO DE CAUSALIDADE
Sumário
1 – Com a revisão do regime do seguro obrigatório de responsabilidade automóvel, realizada pelo DL n.º 291/07, de 21/08, caducou a jurisprudência uniformizadora do AcUJ n.º 6/02. 2 – Na actualidade, o direito de regresso da seguradora contra o condutor que conduza sob o efeito do álcool, passou a dispensar a prova da existência do nexo de causalidade entre esse facto ilícito e o acidente e passou a dispensar-se essa relação de causalidade à seguradora, bastando que se apure que na ocasião do embate o condutor apresentava taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida e que foi o responsável pelo acidente. 3 – Do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º do DL n.º 291/2007, de 21/08, decorre uma presunção iuris tantum do nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia e o acto de condução causador do acidente, incumbindo ao condutor segurado, quando demandado em acção de regresso, o ónus da sua ilisão. (Sumário do Relator
Texto Integral
Processo n.º 179/23.3T8STC.E1 Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal – Juízo Local de Competência Cível de Santiago do Cacém – J1 * Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora: * I – Relatório:
Na presente acção declarativa de condenação proposta por “(…), Seguros, SA” contra (…), o Réu veio interpor recurso da sentença proferida.
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A sociedade Autora pediu a condenação do Réu no pagamento de € 11.774,34, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral pagamento.
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A Autora estribou a sua pretensão no direito de regresso previsto na alínea c) do artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21/8, uma vez que o Réu, na qualidade de condutor, deu causa a um acidente e conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida.
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O Réu contestou, alegando que o embate ocorreu por culpa do condutor do (…).
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Foi proferido despacho saneador que delimitou o objecto do litigio e temas de prova.
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Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal a quo julgou procedente a acção, condenando o Réu a pagar à Autora a quantia de € 11.774,34, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento desde a data da citação, à taxa legal que decorre do artigo 559.º do Código Civil.
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O Recorrente não se conformou com a referida decisão e o articulado de recurso apresentou as seguintes conclusões:
«1º A sentença recorrida julgou procedente a ação intentada pela (…), Seguros, S.A., condenando o Recorrente ao pagamento de € 11.774,34, acrescido de juros de mora, com fundamento na alegada culpa exclusiva do Recorrente.
2º O objeto do litígio consistiu na determinação da culpa na produção do acidente e dos danos causados, bem como na verificação dos pressupostos do direito de regresso da seguradora.
3º A sentença desconsiderou factos essenciais para a correta apreciação da culpa, nomeadamente a eventual velocidade excessiva do veículo (…), a existência de vestígios de travagem, os limites de velocidade aplicáveis no local e a dinâmica concreta do embate.
4º O depoimento da testemunha (…), condutor do veículo automóvel com a matrícula (…), confirma a ausência de vestígios de travagem, o desconhecimento do limite de velocidade no local, a existência de condições de visibilidade condicionadas pela topografia da via (lomba) e a admissão de invasão da faixa do Réu, elementos que impedem a atribuição de culpa exclusiva ao Recorrente e impõem a reapreciação da dinâmica do acidente.
5º Estes factos, extraídos do depoimento da testemunha, reforçam a necessidade de reapreciação da matéria de facto e da eventual concorrência de culpas, devendo ser valorados a favor do Recorrente, em conformidade com o princípio in dubio pro reo.
6º O ónus da prova da culpa do Recorrente e da ausência de culpa do condutor do veículo automóvel com a matrícula (…) cabia à Recorrida, nos termos do artigo 342.º do Código Civil – prova que não logrou produzir –, não podendo a decisão ser fundada em presunções desfavoráveis ao Recorrente sem base factual suficiente.
7º A não apreciação da eventual concorrência de culpas, nomeadamente pela não valoração da velocidade do veículo (…) e da dinâmica do acidente, pode ter conduzido a uma errada aplicação do direito, devendo o tribunal de recurso reapreciar a matéria de facto e ponderar a eventual redução da responsabilidade do Recorrente.
8º A sentença recorrida padece, assim, de erro na apreciação da prova, de falta de fundamentação quanto a factos essenciais e de errada aplicação do direito, devendo ser revogada, com as legais consequências.
9º Deve, em consequência, ser o Recorrente absolvido do pedido, ou, subsidiariamente, ser reduzida a sua responsabilidade por efeito da concorrência de culpas.
Nestes termos, e nos mais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a sentença recorrida, com as legais consequências».
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Houve lugar a resposta, tendo o apelado pugnado pela improcedência do recurso.
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Admitido o recurso, foram observados os vistos legais.
* II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação de:
a) erro na apreciação da matéria de facto.
b) erro de direito, na dimensão da improcedência do direito de regresso.
* III – Da factualidade: 3.1 – Matéria de facto provada:
Com relevo para a justa decisão da causa resultaram provados os seguintes factos:
A) A Autora exerce devidamente autorizada a indústria de seguros.
B) No âmbito da sua actividade, celebrou através da sua marca (…), com (…), um contrato de seguro do ramo automóvel, através da apólice n.º (…), pela circulação do veículo com a matrícula (…), em responsabilidade civil, dentro dos limites legais.
C) No dia 25/02/2020, pelas 16H45M, na EN 262, ao Km 78,200, ocorreu um acidente de viação que envolveu a viatura com a matrícula (…), conduzida pelo seu proprietário e ora Réu (…), e a viatura com a matrícula (…) conduzida pelo seu proprietário, (…).
D) O Réu foi submetido ao teste de álcool, tendo acusado, pelo menos, 0,656 g/l, correspondente à TAS de 0,73 g/l registada, deduzido o valor de erro máximo admissível.
E) O acidente ocorreu quando o condutor do (…), ao chegar ao cruzamento entre (…)-(…)-(…), a viatura (…), conduzida pelo Réu não parou no sinal de stop [B2], aí existente.
F) E, por via disso, pese embora o condutor do (…) ter tentado fugir para a sua esquerda, não conseguiu evitar a colisão.
G) Em resultado deste acidente, compareceram no local as autoridades policiais, que elaboraram o auto de ocorrência, que se encontra junto e se dá por integralmente reproduzido.
H) Fruto deste acidente, o (…) foi sujeito a uma peritagem que concluiu que para a sua reparação, foi estimada a quantia de € 19.698,17.
I) Sendo que esta estimativa de danos, foi feita sem desmontagem, pois quando concretizada, são detectados danos ocultos que oneram, ainda mais, o valor a sua reparação.
J) Foi o (…) considerado “Perda Parcial/Perda Total”, por aplicação da legislação em vigor.
K) Foi o (…) posto à licitação no mercado de salvados, tendo sido apresentada a melhor proposta no valor de € 2.510,00.
L) Conforme resulta da carta anexa, o valor a indemnizar pela ora Autor ao lesado era de € 10.490,00.
M) Valor que após negociações com (…), o proprietário do (…), ficou assente nos € 10.740,00.
N) Na sequência do acidente de viação dos autos, (…) teve outros danos.
O) Sendo que em termos de paralisação, foi paga a quantia de € 237,52.
P) Pelos óculos danificados, a quantia de € 796,52, após a entrega da factura simplificada.
Q) O estado do tempo era seco, o céu estava limpo e existia boa visibilidade diurna.
R) Os veículos embateram frontalmente, com incidência nas laterais esquerdas de ambos os veículos. * 3.2 – Matéria de facto não provada:
Com interesse para a decisão da causa, não se provou que:
1) Foi o condutor do veículo (…) que invadiu a faixa esquerda da via de rodagem, onde circulava o veículo (…).
2) Fê-lo em função da velocidade excessiva.
3) O ponto de colisão ocorreu a 22,30 metros da intercepção de vias e em plena estrada nacional.
4) O limite de velocidade no local do embate é de 50 Km/hora.
5) Perante a entrada do veículo (…) conduzido pelo Réu, o condutor do veículo (…) não procedeu a qualquer travagem, optando por guinar à esquerda, embatendo assim no veículo que ao momento do embate circulava já na sua faixa de rodagem em sentido contrário.
* IV – Fundamentação: 4.1 – Do erro de facto:
Só à Relação compete, em princípio, modificar a decisão sobre a matéria de facto, podendo alterar as respostas aos pontos da base instrutória, a partir da prova testemunhal extractada nos autos e dos demais elementos que sirvam de base à respectiva decisão, desde que dos mesmos constem todos os dados probatórios, necessários e suficientes, para o efeito, dentro do quadro normativo e através do exercício dos poderes conferidos pelo artigo 662.º do Código de Processo Civil.
Em face disso, a questão crucial é a de apurar se a decisão do Tribunal de primeira instância que deu como provados certos factos (e como não demonstrados outros) pode ser alterada nesta sede – ou, noutra formulação, é tarefa do Tribunal da Relação apurar se essa decisão fáctica está viciada em erro de avaliação ou foi produzida com algum meio de prova ilícito e, se assim for, actuar em conformidade com os poderes que lhe estão confiados.
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A discordância de facto assenta basicamente na eventual velocidade excessiva do veículo (…), na (não) existência de vestígios de travagem, nos limites de velocidade aplicáveis no local e na dinâmica concreta do embate.
Em abono desta tese, a parte recorrente salienta que o auto de notícia não faz menção ao limite de velocidade admitido para o local do acidente e à questão da existência de vestígios de travagem, chamando ainda à colação em termos genéricos e remissivos a questão da ausência de confissão do Réu quanto à não paragem no sinal Stop e as declarações do condutor do veículo segurado na Autora que, no entendimento do recorrente, apontam para a concorrência de culpas na produção do acidente.
*
A parte contrária sustenta que as alíneas E) e F), Q) e R) dos factos provados e os pontos de 1) a 5) dos factos não provados suportam a decisão tomada e reflectem a prova testemunhal e documental colhida em audiência.
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Após ter feito menção às declarações do militar da GNR e da testemunha (…) e à documentação presente nos autos, o Tribunal a quo resolveu a contradição existentes entre as teses envolvidas, dando guarida à descrição fáctica apresentada pela Autora.
E, para tanto, a Mma. Juíza de Direito socorreu-se do seguinte argumentário: «Das fotografias juntas pelo sr. Militar e que constam do email de 31-10-2024 há um elemento que nos parece absolutamente seguro: o embate ocorreu na zona de intersecção, o que resulta claramente da fotografia n.º 1 e 2 se atentamos no traçado existente na faixa de rodagem e nas imagens do local do embate expostas. Deste modo, conjugando a sinalética existente e o sinal de Stop existente, confirmado quer pelo militar da GNR depoente quer por (…), o embate ocorreu na intersecção do cruzamento, onde o Réu tinha um sinal de Stop que não observou. Atente-se que tal conclusão é compatível com as declarações que o próprio prestou perante a GNR no dia do embate: com efeito é o próprio Réu a declarar que “avistou o carro ao longe que apenas colidiu com ele porque seguia em excesso de velocidade” (sic), sendo que acrescentamos nós, e “embora eu o tenha visto resolvi não observar o Stop e avançar”. Existem apenas mais duas questões suscitadas em audiência para resolver quanto à dinâmica do acidente. A primeira respeita à alegada velocidade imprimida no (…): o respectivo condutor (…) referiu que vinha com particular cuidado por ser uma zona de acidentes. E mais nenhuma prova foi feita. Contudo e independentemente desta, a verdade é que o sinal de Stop implicava para o Réu a obrigação de paragem e cedência de passagem, seja a veículos que circulam lentamente ou mais depressa. A todos. Por isso, não nos parece que a alegada velocidade, ainda que se viesse a demonstrar, o que não sucedeu, tivesse a virtualidade de alterar a avaliação da situação. A segunda questão e por ventura mais relevante, a de determinar em que faixa se deu o embate: mais do que as posições finais dos veículos, uma vez que sabemos que por via do embate não raras vezes existe a deslocação dos mesmos, vamos atender ao grosso dos destroços evidenciada na última fotografia junta a 31-10-2024: tendo por referência esta, mas igualmente o depoimento do militar (…), parece-nos que o embate ocorreu no meio das duas faixas de rodagem, a puxar para a faixa da esquerda, ou seja, no sentido contrário ao da circulação do (…) e no sentido de circulação que o (…) ia adoptar. E é com base neste facto (e imagem) que o Réu sustenta ter sido embatido quando já havia terminado a manobra que o entroncamento impunha. Ora, o condutor do (…) declarou, não apenas no julgamento, mas logo no local conforme resulta da participação de acidente, que vendo o (…) entrar e achando que o mesmo ia parar, encetou uma manobra de evasão, fugindo para a esquerda. E para nós, é esta manobra que justifica o ponto de embate».
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Diz a exposição de motivos da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho [Novo Código de Processo Civil] que «se cuidou de reforçar os poderes da 2ª instância em sede de reapreciação da matéria de facto impugnada. Para além de manter os poderes cassatórios – que lhe permitem anular a decisão recorrida, se esta não se encontrar devidamente fundamentada ou se mostrar que é insuficiente, obscura ou contraditória –, são substancialmente incrementados os poderes e deveres que lhe são conferidos quando procede à reapreciação da matéria de facto, com vista a permitir-lhe alcançar a verdade material».
Porém, este reforço de poderes e deveres não é unidireccional. Na verdade, a lei ao mesmo tempo impõe novas regras das condições de exercício do direito de recurso. Assim, os recorrentes têm agora o dever de modelar a peça de interposição de recurso com a seguinte estrutura: (i) especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, (ii) indicar os concretos meios probatórios constantes do processo que impõem decisão diferente, (iii) adiantar qual deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas e (iv) mencionar com exactidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso.
Actualmente, nos termos do n.º 1 do artigo 640.º[1] do Código de Processo Civil, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Pese embora a circunstância de o recurso da decisão de facto não tenha seguido completa e criteriosamente os procedimentos de impugnação exigidos por lei, face à aba larga que parte da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça passou a adoptar relativamente a esta matéria, o Tribunal ad quem procedeu à audição do suporte magnetofónico gravado e à análise da documentação disponibilizada nos autos.
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Neste particular, é para nós evidente que a avaliação factual impressa na decisão recorrida se mostra acertada.
A testemunha (…) afirmou de forma convicta e convincente que, ao chegar ao cruzamento, o condutor da outra viatura «apresenta-se pela direita, mas com um sinal de Stop» vindo de (…), «tinha obrigação de parar e não parou» e «eu pura e simplesmente não consegui evitar o embate», «é uma estrada que conheço, que utilizo com muita frequência», «pessoalmente vou com algum cuidado», porque é um sítio referenciado como perigoso, «ia com o máximo de cuidado». Mais confidenciou que aquele local é referenciado como uma zona de acidente e que, inclusivamente, o sabe por motivos profissionais, circunstância que o leva a adoptar uma condução prudente.
Estas declarações conjugadas com o testemunho tomado ao militar que tomou conta da ocorrência e com as fotografias do local viabilizam a opção tomada na sentença recorrida, permitindo alcançar qual foi o local provável do acidente e a trajectória de ambos os veículos. Do conjunto da prova produzida resulta ainda a certeza sobre a não paragem no sinal de Stop por parte do Réu e, bem assim, a ausência de qualquer evidência sobre a existência de um quadro de excesso de velocidade por parte do outro interveniente no acidente.
Estas fontes probatórias permitiram apurar os dados relevantes da dinâmica do acidente, não existindo qualquer prova que infirmasse o juízo prudencial da Primeira Instância. Isto é, não existem outros meios de prova com idoneidade para modificar a decisão de facto.
Quanto ao eventual adicionamento das outras matérias alegadamente omitidas, os Tribunais Superiores entendem que os recursos sobre a impugnação da matéria de facto têm sempre carácter ou natureza instrumental, devendo as questões submetidas à apreciação poder repercutir-se, de forma útil e efectiva, na decisão a proferir pelo Tribunal ad quem, de modo alterar ou modificar, no todo ou em parte, a solução jurídica que se obteve no caso concreto. De outro modo, no plano formal, não haverá interesse processual em promover a revisão dos factos controvertidos[2].
A terminar, o princípio in dubio pro reo tem aplicação em sede de jurisdição criminal e no âmbito do direito civil valem as regras de distribuição do ónus da prova nos termos consagrados nos artigos 342.º e 343.º do Código Civil, com referência aos artigos 411.º, 413.º e 414.º do Código de Processo Civil – no entanto, como já se referiu, a questão foi solucionada através de ponderada reflexão e análise crítica sobre a prova recolhida, tendo o julgador obtido convicção plena, subtraída a qualquer dúvida razoável, pela verificação dos factos imputados ao infractor rodoviário.
Não há qualquer modificação a introduzir na decisão de facto, seja a pedido do recorrente nos termos em que o fez, seja a título oficioso. Deste modo, a decisão de facto mostra-se assim consolidada e é com base nesses factos que será realizada subsequentemente a subsunção ao direito.
* 4.2 – Do erro de direito:
Menezes Cordeiro entende que o direito de regresso pode ser encarado como uma sanção civil de natureza reparadora, que tem como escopo primordial tornar indemne um contratante ou lesado, caso este vise obter o reembolso total ou parcial de uma obrigação que satisfez ou como meio de defesa dos condevedores numa relação jurídica de co-solidariedade passiva[3].
Sobre a natureza do direito de regresso, pronunciam-se, entre muitos outros, Vaz Serra[4], Antunes Varela[5], Almeida Costa[6], Menezes Leitão[7], Jorge Ribeiro de Faria[8], Brandão Proença[9], Filipe Albuquerque Matos[10] e Ana Afonso[11].
A direito de regresso – conquanto a relação entre seguradora e lesante em acidente de viação não se reconduza a uma perfeita relação de solidariedade passiva – refere-se expressamente o legislador no regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, para a hipótese de alcoolemia do condutor, na esteira do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º do DL n.º 291/2007, de 21/08[12].
Albuquerque de Matos contesta a qualificação do direito como de regresso, uma vez que, por virtude da celebração do contrato do contrato de seguro obrigatório, o tomador de seguro transferiu a sua responsabilidade para a seguradora, não podendo por isso afirmar-se que seguradora e tomador de seguro estão adstritos à realização da mesma prestação[13].
Ainda que no plano teórico pareça mais ajustado o enquadramento da situação na categoria da sub-rogação, a realidade jurídica em discussão assume, assim, ex vi legis, a configuração denominativa de direito de regresso.
Neste particular, a alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º do DL n.º 291/2007, de 21/8, prescreve que: «1 – Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso:
(…)
c) Contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos».
Este é o direito que o companhia de seguros pretende fazer valer nos autos e cuja procedência supõe a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos:
- que o condutor haja dado causa ao acidente;
- que conduza com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida.
De acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 81.º[14] do Código da Estrada, considera-se sob a influência de álcool o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l ou que, após exame realizado nos termos previstos no presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico.
A lei presume, assim, iuris et de iure, que um condutor que apresente uma TAS igual ou superior a 0,5 g/l está sob a influência do álcool. E, face à taxa alcoolemia apurada em concreto, foi cometida uma contra-ordenação grave nos termos provisionados na alínea l) do n.º 1 do artigo 145.º do Código da Estrada[15].
Neste particular, com a revisão do regime do seguro obrigatório de responsabilidade automóvel, realizada pelo DL n.º 291/07, de 21/08, caducou a jurisprudência uniformizadora do AcUJ n.º 6/02[16][17]que fazia depender o direito de regresso da seguradora contra o condutor que conduzisse sob o efeito do álcool, da prova da existência de um nexo de causalidade entre esse facto ilícito e o acidente e passou a dispensar-se essa relação de causalidade, bastando que se apure que na ocasião do embate o condutor apresentava taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida, e que foi o responsável pelo acidente[18][19].
Nesta ordem de ideias, do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º do DL n.º 291/2007, de 21/08, decorre uma presunção iuris tantum do nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia ou a evidência de consumo de substância psicotrópica e o acto de condução causador do acidente, incumbindo ao condutor segurado, quando demandado em acção de regresso, o ónus da sua ilisão, ainda que não se mostre exigível que a influência da alcoolemia ou do consumo de substância psicotrópicas seja a causa exclusiva da conduta causadora do acidente, devendo essa influência ser ponderada, para tais efeitos, à luz dos princípios da proporcionalidade e da adequação[20].
Mafalda Miranda Barbosa sublinha que a seguradora cumprirá o seu ónus probatório ao provar a existência do acidente e a taxa de alcoolémia superior ao permitido por lei. A recondução da lesão dos direitos/interesses àquela esfera de risco assim edificada (por mediação da norma) traduz-se num juízo normativo a levar a cabo pelo próprio tribunal[21][22][23][24].
Aquela condução (com TAS superior à legalmente permitida) funcionará, assim, como uma condição ou pressuposto do direito de regresso, independentemente da sua relação causal com o acidente.
Todavia, ainda assim, para se verificar esse direito de regresso é necessário que se prove que esse consumo teve uma influência negativa na capacidade para o exercício da condução, a fim de excluir o reembolso quanto a situações em que a causa fundamental ou exclusiva da conduta causadora do acidente é imputável a outrem – seja ao próprio lesado, seja a terceiro – a caso de força maior ou fortuito ou a qualquer comportamento que exclua a culpa do tomador de seguro.
É certo que a condução sob influência do álcool, por si só, não implica necessariamente a eclosão de acidentes e a prova da sua contribuição para o cometimento das infracções que os geram não é um facto de percepção directa ou evidente. No entanto, lida a matéria de facto não subsistem dúvidas sobre essa responsabilidade do Réu na produção do acidente, como se constata a partir da leitura das alíneas E) e F), Q) e R) dos factos provados.
Neste espectro lógico-jurídico, existe a obrigação de proceder ao pagamento das verbas apuradas, a título de direito de regresso, acrescida de juros legais vencidos e dos juros legais vincendos contados desde a interpelação até efectivo e integral pagamento, confirmando-se assim a sentença recorrida.
* V – Sumário: (…)
* VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se confirmar a decisão recorrida.
Custas a cargo do Réu, atento o disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Notifique.
*
Processei e revi.
*
Évora, 18/09/2025
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
Maria Emília Melo e Castro
Cristina Maria Xavier Machado Dá Mesquita
__________________________________________________
[1] Artigo 640.º (Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto):
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.
[2] Acórdãos aqui relator do Tribunal da Relação de Évora datados de 30/01/2020, 08/10/2020, 30/06/2021, 15/12/2022, 06/02/2023 e 15/06/2023, entre outros disponibilizados em www.dgsi.pt.
[3] A. Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 1986, vol. II, págs. 244-246.
[4] Vaz Serra, Pluralidade de devedores ou credores, BMJ, n.º 69, 1957.
[5] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Almedina, Coimbra, pág. 638.
[6] Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5ª ed., Almedina, Coimbra, pág. 538.
[7] Luís Manuel Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, Almedina, Coimbra.
[8] Jorge Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, vol. II, Almedina, Coimbra, 2001.
[9] José Carlos Brandão Proença, Lições de cumprimento e não cumprimento das obrigações, Universidade Católica Editora, Porto, 2017.
[10] Filipe Albuquerque Matos, O contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel – Alguns aspectos do seu regime jurídico, BFDUC, 2002, págs. 329-364.
[11] Ana Afonso, Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, págs. 449-451.
[12] Ana Afonso, Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, pág. 451.
[13] Filipe Albuquerque Matos, O contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel – Alguns aspectos do seu regime jurídico, BFDUC, 2002, págs. 348 e seguintes.
[14] Artigo 81.º (Condução sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas):
1 - É proibido conduzir sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas.
2 - Considera-se sob influência de álcool o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l ou que, após exame realizado nos termos previstos no presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico.
3 - Considera-se sob influência de álcool o condutor em regime probatório e o condutor de veículo de socorro ou de serviço urgente, de transporte coletivo de crianças e jovens até aos 16 anos, de táxi, de TVDE, de automóvel pesado de passageiros ou de mercadorias ou de transporte de mercadorias perigosas que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,2 g/l ou que, após exame realizado nos termos previstos no presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico.
4 - A conversão dos valores do teor de álcool no ar expirado (TAE) em teor de álcool no sangue (TAS) é baseada no princípio de que 1 mg de álcool por litro de ar expirado é equivalente a 2,3 g de álcool por litro de sangue.
5 - Considera-se sob influência de substâncias psicotrópicas o condutor que, após exame realizado nos termos do presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico ou pericial.
6 - Quem infringir o disposto no n.º 1 é sancionado com coima de:
a) (euro) 250 a (euro) 1250, se a taxa de álcool no sangue for igual ou superior a 0,5 g/l e inferior a 0,8 g/l;
b) (euro) 500 a (euro) 2500, se a taxa for igual ou superior a 0,8 g/l e inferior a 1,2 g/l ou, sendo impossível a quantificação daquela taxa, o condutor for considerado influenciado pelo álcool em relatório médico ou ainda se conduzir sob influência de substâncias psicotrópicas.
7 - Os limites de 0,5 g/l e 0,8 g/l referidos no número anterior são reduzidos para 0,2 g/l e 0,5 g/l, respetivamente, para os condutores em regime probatório, condutores de veículos de socorro ou de serviço urgente, de transportes coletivo de crianças e jovens até aos 16 anos, de táxis, de TVDE, de automóveis pesados de passageiros ou de mercadorias ou de transporte de mercadorias perigosas.
[15] Artigo 145.º (Contraordenações graves):
1 - No exercício da condução, consideram-se graves as seguintes contraordenações:
a) O trânsito de veículos em sentido oposto ao estabelecido;
b) O excesso de velocidade praticado fora das localidades superior a 30 km/h sobre os limites legalmente impostos, quando praticado pelo condutor de motociclo ou de automóvel ligeiro, ou superior a 20 km/h, quando praticado por condutor de outro veículo a motor;
c) O excesso de velocidade praticado dentro das localidades superior a 20 km/h sobre os limites legalmente impostos, quando praticado pelo condutor de motociclo ou de automóvel ligeiro, ou superior a 10 km/h, quando praticado por condutor de outro veículo a motor;
d) O excesso de velocidade superior a 20 km/h sobre os limites de velocidade estabelecidos para o condutor ou especialmente fixados para o veículo, sem prejuízo do estabelecido nas alíneas b) ou c);
e) O trânsito com velocidade excessiva para as características do veículo ou da via, para as condições atmosféricas ou de circulação, ou nos casos em que a velocidade deva ser especialmente moderada;
f) O desrespeito das regras e sinais relativos a distância entre veículos, cedência de passagem, ultrapassagem, mudança de direção ou de via de trânsito, inversão do sentido de marcha, início de marcha, posição de marcha, marcha atrás e atravessamento de passagem de nível;
g) A paragem ou o estacionamento nas bermas das autoestradas ou vias equiparadas;
h) O desrespeito das regras de trânsito de automóveis pesados e de conjuntos de veículos, em autoestradas ou vias equiparadas;
i) A não cedência de passagem aos peões pelo condutor que mudou de direção dentro das localidades, bem como o desrespeito pelo trânsito dos mesmos nas passagens para o efeito assinaladas;
j) O trânsito de veículos sem utilização das luzes referidas no n.º 1 do artigo 61.º, nas condições previstas no mesmo número, bem como o trânsito de motociclos e de ciclomotores sem utilização das luzes de cruzamento;
l) A condução sob influência de álcool, quando a taxa de álcool no sangue for igual ou superior a 0,5 g/l e inferior a 0,8 g/l ou igual ou superior a 0,2 g/l e inferior a 0,5 g/l quando respeite a condutor em regime probatório, condutor de veículo de socorro ou de serviço urgente, de transporte coletivo de crianças e jovens até aos 16 anos, de táxi, de TVDE, de automóvel pesado de passageiros ou de mercadorias ou de transporte de mercadorias perigosas;
m) A não utilização do sinal de pré-sinalização de perigo e das luzes avisadoras de perigo;
n) A utilização, durante a marcha do veículo, de equipamento ou aparelho nos termos do n.º 1 do artigo 84.º;
o) A paragem e o estacionamento nas passagens assinaladas para a travessia de pões ou velocípedes;
p) O transporte de passageiros menores ou inimputáveis sem que estes façam uso dos acessórios de segurança obrigatórios;
q) A paragem e o estacionamento em lugar reservado a pessoa com deficiência condicionada na sua mobilidade, nos termos previstos no Decreto-Lei n.º 307/2003, de 10 de dezembro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 17/2011, de 27 de janeiro, por qualquer condutor que não esteja autorizado para tal.
2 - Considera-se igualmente contraordenação grave:
a) A circulação de veículo sem seguro de responsabilidade civil, caso em que é aplicável o disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 135.º, com os efeitos previstos e equiparados nos n.ºs 2 e 3 do artigo 147.º;
b) A circulação de veículos nos termos do n.º 6 do artigo 112.º.
[16] O acórdão de uniformização de jurisprudência tinha o seguinte conteúdo decisório: «a alínea c) do artigo 19.º do DL n.º 522/85, de 31-12, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente»..
[17] Efectivamente, o DL n.º 522/85, de 31/12 foi revogado e integralmente substituído pelo DL n.º 291/2007, de 21/08, que, transpôs para a ordenamento nacional a Diretiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11/05, relativa ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis.
[18] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/12/2020, pesquisável em www.dgsi.pt.
[19] A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça estabilizou no entendimento de que se prescinde da demonstração do nexo de causalidade entre a alcoolemia e o acidente, tal como resulta da análise dos acórdãos datados de 28/11/13, 21/01/14, 07/05/14, 09/10/14, 14/07/16, 07/02/17, 06/04/17, 10/12/2020, 03/11/2020 e 25/03/2021.
[20] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/03/2021, divulgado em www.dgsi.pt.
[21] Mafalda Miranda Barbosa, Cadernos de Direito Privado n.º 50, abril/junho 2015, págs. 22-45.
[22] Sobre o Tema pode ainda ser consultado: Brandão Proença, Direito de regresso no caso de seguro automóvel obrigatório: a taxa de alcoolémia superior ao legalmente permitido e o problema de ‘causalidade’, Cadernos de direito privado, n.º 50, Abril/Junho de 2015.
[23] E ainda Marisa Almeida Araújo, in O Direito de Regresso da Seguradora. Análise Crítica do Acórdão do Supremo Tribunal da Justiça n.º 11/2015, In Lusíada Revista de Direito, Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2015.
[24] Pedro Ribeiro e Silva, in “Regresso e Condução sob influência de Álcool na Actividade Seguradora”, III Congresso Nacional de Direitos dos Seguros, Almedina, assinala que «se trata de um risco não abrangido pelo contrato de seguro, é justo que ele venha a ser suportado pelo condutor etilizado e não pela seguradora».