PEDIDO DE DEMOLIÇÃO DE IMÓVEL
REGISTO DA AÇÃO
Sumário

I - Não se pode confundir a atitude que o conservador há-de assumir perante um pedido formulado numa acção judicial ou perante um título de natureza judicial que seja apresentado na conservatória para ser registado, com a atitude que há-de assumir perante uma decisão judicial que se traduza num mandado especificamente dirigido a resolver a controvérsia suscitada pela sua anterior decisão, depois de corrido o processo próprio de impugnação.
II - A apreciação da viabilidade do pedido de registo e a decisão que sobre ele recaia não põe em crise a existência de qualquer decisão jurisdicional, nem implica subordinação de uma das entidades à outra, mas apenas o cumprimento das suas competências específicas.
III - O artigo 1.º do Código do Registo Predial tem que ser sujeito a uma interpretação sistemática, integrada nas restantes emanações da vontade normativa constantes do Código em que se integra.
IV - Da sua formulação genérica colhemos noção relativa às funções do registo que são, na sua economia, tornar conhecida do público a situação jurídica dos prédios e fazê-lo com a finalidade de criar segurança na constituição de relações jurídicas incidentes sobre tais bens.
V - Não extraímos, porém, quais os actos sujeitos a registo e quais as acções registáveis. Esse elemento só podemos obtê-lo a jusante, nos preceitos em que se precisa a vontade legislativa relativa a tal matéria - artigos 2.º e 3.º.
VI - São registáveis os factos enunciados no artigo 2.º e que são objecto de registo, por expressa indicação normativa enunciativa, taxativa, imperativa, e inafastável as acções que visem «o reconhecimento, a constituição, a modificação ou a extinção» de algum dos direitos referidos no art.º 2.º.
VII - O pedido de demolição de um imóvel urbano nos exactos termos como consta do registo é subsumível ao artigo 3.º, al. a) do Código de Registo Predial”.

Texto Integral

Recurso de Apelação - 3ª Secção

ECLI:PT:TRP:2025:168/25.3T8AVR.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório

O Ministério Público instaurou acção de impugnação de actos administrativos, cumulada com pedido de condenação à prática de acto legalmente devido, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, contra o Município ... e AA, onde concluiu pedindo:

- que sejam declarados ilegais e seja reconhecida a nulidade dos quatro actos administrativos impugnados, concretamente:

a) despacho de 15.03.2011, mediante o qual foi aprovado o projecto de arquitectura do processo de obras de construção n.º 12/2011;

b) despacho de 12.09.2011 mediante o qual foi aprovado o licenciamento para obras, no âmbito do mesmo processo 12/2011 e consequente alvará de obras de construção ...2/12, emitido em 07.09.2012;

c) despacho de 04.06.2013 mediante o qual foi aceite a comunicação prévia para obras de alteração ao projecto inicial, no âmbito do processo 26/2013;

d) despacho de 17.04.2014, mediante o qual foi concedida autorização de utilização para a obra, e consequente alvará de utilização 15/14, de 07.04.2014;

- que o réu seja condenado à prática de acto devido para reposição da legalidade urbanística, no caso, a demolição total do edificado (casa e muros) e reposição do terreno, nos prazos sugeridos.


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Por despacho datado de 27/03/2023, transitado em julgado em 20/04/2023, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro determinou que a acção atrás identificada, com o n.º ..., fosse inscrita no registo predial do imóvel ...34, da freguesia ..., concelho ..., por considerar que a mesma coloca em causa o direito a edificar a construção sob apreciação nos autos, bem como a sua utilização.


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Em 28/03/2023 o Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro remeteu ofício para a Conservatória do Registo Predial de Aveiro, a solicitar que a referida acção seja inscrita no registo predial do imóvel ...34, da freguesia ..., concelho ....


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Pela Ap. ...80 de 31/03/2023, foi anotado na ficha/descrição do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Sever do Vouga, com o n.º ...34, da freguesia ..., que foi instaurada acção em que se pede a nulidade dos actos de licenciamento da construção e demolição total do edificado (Processo nº ...-Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro).


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Por despacho proferido em 17/06/2024, a Sr.ª Conservadora de Registos recusou o registo da referida acção, por ter considerado que a mesma não está sujeita a registo, mas que «por uma questão de segurança do comércio jurídico, e porque na sequência dessa decisão pode resultar a demolição da construção, deve ser publicitada esta ação através de uma anotação à descrição».


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Em 01/07/2024 o Ministério Público interpôs recurso hierárquico do acto de recusa, o qual foi indeferido pela Sr.ª Directora do Departamento de Gestão e Apoio Técnico Jurídico aos Serviços do “Instituto dos Registos e do Notariado”, em regime de substituição, por decisão proferida em 16/12/2024, com o fundamento de que não está sujeita a registo a acção administrativa cujos pedidos consistam na declaração de nulidade de actos administrativos relativos ao licenciamento camarário de obras de construção, e na condenação à demolição total do edificado, por não resultar da respectiva procedência qualquer dos efeitos previstos na alínea a), do nº 1 do artigo 3º do Código de Registo Predial.


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Não se conformando com a decisão assim proferida, o Ministério Público apresentou impugnação judicial, invocando, em síntese, que:

- na petição inicial que deu lugar à acção administrativa n.º ..., que corre termos pelo Tribunal Administrativo de Aveiro, foi deduzido pedido de condenação do réu à prática de acto devido para reposição da legalidade urbanística, traduzido na demolição total do edificado (casa e muros) que se mostra implantado no prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Sever do Vouga, sob o n.º ...34/20091207;

- por despacho proferido em 27/03/2023, dirigido à Conservatória do Registo Predial de Aveiro, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro determinou que, estando em causa o direito a edificar a construção sob apreciação nos autos, bem como a sua utilização, a acção estava sujeita a registo;

- tal despacho veio a tornar-se definitivo e, nessa medida, o acto de recusa de registo é ilegal, por aplicação do disposto no artigo 158º do CPTA, na medida em que viola decisão judicial com força de caso julgado material;

- a demolição consiste na intangível realidade do seu desaparecimento “ad eternum” do mundo físico e, naturalmente, da extinção do direito de propriedade que sobre a mesma recaía;

- o perecimento do edificado conduz à extinção do direito de propriedade respectivo, não se tratando, assim, de uma mera alteração de elementos de identificação de um prédio;

- o registo da acção assegura, desde logo, a exequibilidade da decisão final em relação a terceiros ou erga omnes, como decorre do artigo 263.º, n.º 3 do Código de Processo Civil;

- o registo predial destina-se a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, como emerge do artigo 1º do Código de Registo Predial, e decorre claramente do artigo 132.º, n.º 3, do DL 80/2015, de 14 de Maio a necessidade de registo da acção;

- importa assegurar que um terceiro não venha a adquirir aquilo que entre o descrito no registo e a realidade física, se mostre antagónico na sua existência.

Termina pedindo que seja declarado anulado o acto de recusa do registo em causa e que se ordene os registos requeridos, ao abrigo e em conformidade com a determinação judicial proferida na acção nº ..., do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro.


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Admitido o recurso, foram os autos com vista ao Ministério Público que exerce funções junto deste Juízo Local Cível, que emitiu parecer no sentido de dar por reproduzidos os argumentos esgrimidos pelo impugnante.


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Por sentença datada de 24/03/2025 foi decidido julgar totalmente improcedente o presente recurso de impugnação judicial interposto pelo Ministério Público que exerce funções junto do Tribunal Administrativo de Aveiro e, em conformidade, manter o acto de recusa do registo da acção administrativa identificada nos factos provados.


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Não se conformando com a decisão proferida, o Ministério Público veio interpor recurso de apelação, em cujas alegações conclui da seguinte forma:

I.Por força alterações introduzidas no Código do Registo Predial pelo Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de Julho, passou a ocorrer, para além da obrigatoriedade do registo das acções que tenham por fim, principal ou acessório, o reconhecimento, a constituição, a modificação ou a extinção do direito de propriedade (cfr. artigo 8.º-A. n.º l, al. b), art.º 3º, nº 1, al. a) e art.º 2.º, n.º 1 als. a), v) e z) do CRP), a regra da sua oficiosidade (cfr. artigo 8.º-B, n.º 3, al. a) do CRP) competindo deste modo ao Tribunal neste âmbito, mesmo sem impulso dos sujeitos processuais, decidir se a ação está sujeita registo, e, assim o entendendo, determiná-lo.

II. Tal decisão, em nossa modesta opinião não pode ter apenas efeito de julgado dentro do processo, como entende o Tribunal recorrido, sob pena de, assim sucedendo como no caso presente, por recusa do Sr. Conservador e inação eventual dos demais sujeitos processuais. nenhuma tutela jurisdicional efectiva ocorre e postergado se encontra o determinado para acautelar a finalidade normativa ínsita do registo predial, que nos termos do art.º 1º do CRP visa «dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário»;

III. Bem assim, ver frustrada a exequibilidade da decisão final em relação a terceiros ou “erga omnes” tal como decorre do art.º 263.º, n.º 3, do CPC.

IV. Ora, tendo o despacho judicial que ordenou o registo da ação transitado em julgado a 20/04/2023, semelhante recusa subsequente é ela ilegal porque violadora do disposto no artº 158.º do CPTA, do qual claramente decorre:

“1- As decisões dos tribunais administrativos são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer autoridades administrativas;

2- A prevalência das decisões dos tribunais administrativos sobre as das autoridades administrativas implica a nulidade de qualquer ato administrativo que desrespeite uma decisão judicial e faz incorrer os seus autores em responsabilidade civil, criminal e disciplinar, nos termos previstos no artigo seguinte.”

V. Também do ponto de vista material, estando em causa na ação administrativa pedido formulado pelo Autor, de completa demolição de todo o edificado correspondendo a um prédio urbano (como tal assim constante do registo), composto por casa de rés do chão, área coberta de 100m2, e muros, tal ação está sujeita a registo;

VI. Pois decorre expressamente do disposto no art.º 2º do CRP, que estão sujeitos a registo,

“a) Os factos jurídicos que determinam a modificação dos direitos de propriedade …;

v) Quaisquer outras restrições ou direito de propriedade …;

z) Os factos jurídicos que importam a extinção de direitos …

VII. Bem assim, do artº 3º, al. a) do CRP. que estão sujeitas a registo as "As ações que tenham por fim, principal ou acessório, o reconhecimento, a constituição, a modificação ou a extinção de algum dos direitos referidos no artigo anterior …”

VIII. Ao ter decidido o douto Tribunal recorrido da forma como o fez, violou os normativos supra elencados, pois a intangibilidade material e dominial do direito de propriedade deixa sequer de existir na eventual procedência da ação administrativa, não ocorrendo nesta vertente qualquer alteração apenas dos elementos de identificação correspondentes.

IX. No dizer aliás do douto AC. do STJ de 12/01/2012. disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6

“1. Devido à especial eficácia dos direitos reais perante terceiros, torna-se necessário dar publicidade aos mesmos, existindo para tal, no caso dos prédios rústicos e urbanos, o registo predial.

2.Tal publicidade, a cargo do registo predial, é uma publicidade jurídica, no sentido de que garante a legalidade da situação jurídica que dá a conhecer.

Face à fé pública do registo, deve o mesmo estar em conformidade com a situação jurídica substantiva do imóvel, permitindo conhecê-la.”

X. Decorre igualmente do n.º 3 do artº 132º do DL 80/2015, de 14 de Maio (RJIGT), já referido aliás no requerimento formulado pelo MP para registo da acção, que "As ordens de embargo e de demolição são objeto de registo na conservatória de registo predial competente, mediante comunicação do presidente da câmara municipal ou da comissão de coordenação e desenvolvimento regional, procedendo-se oficiosamente aos necessários averbamentos”.

XI. Pelo que se nos afigura antagónico uma simples ordem administrativa de demolição de um edificado ser objecto de registo e já não uma ação judicial apta ao mesmo desiderato cautelar, sendo certo que, em obediência às regras de interpretação que decorrem do nº 1 do art.º 9º do Código Civil, as leis devem também interpretar-se umas pelas outras, pois a ordem jurídica forma um sistema e a norma deve ser tomada como parte de um todo, parte do sistema, sendo que o intérprete deverá também presumir que o legislador ao determinar a oficiosidade do registo da ação, soube exprimir o seu pensamento em termos adequados à etiologia respectiva (cfr. n.º 3 do art.º 9º do CC),


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Não foram apresentadas contra-alegações.


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Colhidos que se mostram os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.


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2. Factos a atender

Foram tidos em consideração os seguintes factos:

1. No dia 23/09/2022 o Ministério Público instaurou acção de impugnação de actos administrativos, cumulada com pedido de condenação à prática de acto legalmente devido, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, contra o Município ... e AA, peticionando:

- que sejam declarados ilegais e seja reconhecida a nulidade dos quatro actos administrativos impugnados, concretamente:

a) despacho de 15.03.2011, mediante o qual foi aprovado o projecto de arquitectura do processo de obras de construção n.º 12/2011;

b) despacho de 12.09.2011 mediante o qual foi aprovado o licenciamento para obras, no âmbito do mesmo processo 12/2011 e consequente alvará de obras de construção ...2/12, emitido em 07.09.2012;

c) despacho de 04.06.2013 mediante o qual foi aceite a comunicação prévia para obras de alteração ao projecto inicial, no âmbito do processo 26/2013;

d) despacho de 17.04.2014, mediante o qual foi concedida autorização de utilização para a obra, e consequente alvará de utilização 15/14, de 07.04.2014;

e) que o réu seja condenado à prática de acto devido para reposição da legalidade urbanística, no caso, a demolição total do edificado (casa e muros) e reposição do terreno, nos prazos sugeridos.

2. Por despacho datado de 27/03/2023, transitado em julgado em 20/04/2023, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro determinou que a acção identificada em 1., com o n.º ..., fosse inscrita no registo predial do imóvel ...34, da freguesia ..., concelho ..., por considerar que a mesma coloca em causa o direito a edificar a construção sob apreciação nos autos, bem como a sua utilização.

3. Em 28/03/2023 o Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro remeteu ofício para a Conservatória do Registo Predial de Aveiro, a solicitar que a acção identificada em 1. seja inscrita no registo predial do imóvel ...34, da freguesia ..., concelho ....

4. Pela Ap. ...80 de 2023/03/31, foi anotado na ficha/descrição do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Sever do Vouga, com o n.º ...34, da freguesia ..., que foi instaurada acção em que se pede a nulidade dos actos de licenciamento da construção e demolição total do edificado (Processo nº ...-Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro).

5. Por despacho proferido em 17/06/2024, a Sr.ª Conservadora de Registos recusou o registo da acção identificada em 1., por ter considerado que a mesma não está sujeita a registo, mas que «por uma questão de segurança do comércio jurídico, e porque na sequência dessa decisão pode resultar a demolição da construção, deve ser publicitada esta ação através de uma anotação à descrição».

6. Em 01/07/2024 o Ministério Público interpôs recurso hierárquico do acto de recusa, o qual foi indeferido pela Sr.ª Directora do Departamento de Gestão e Apoio Técnico Jurídico aos Serviços do “Instituto dos Registos e do Notariado”, em regime de substituição, por decisão proferida em 16/12/2024, com o fundamento de que não está sujeita a registo a acção administrativa cujos pedidos consistam na declaração de nulidade de actos administrativos relativos ao licenciamento camarário de obras de construção, e na condenação à demolição total do edificado, por não resultar da respectiva procedência qualquer dos efeitos previstos na alínea a), do nº 1 do artigo 3º do Código de Registo Predial.

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3. Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar:

Das conclusões formuladas pelo recorrente as quais delimitam o objecto do recurso, tem-se que as questões a resolver prendem-se com saber:

- Da amplitude da força da decisão judicial;

- Da verificação dos pressupostos para o registo da acção.


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4. Conhecendo do mérito do recurso

4.1 Da amplitude da força da decisão judicial


O artigo 3.º, n.º 1, do Código do Registo Predial, sujeita a registo determinadas acções judiciais, designadamente as que tenham por fim, principal ou acessório, o reconhecimento, a constituição, a modificação ou a extinção de algum dos direitos referidos no artigo 2.º - alínea a).
Por força das alterações introduzidas no Código do Registo Predial pelo Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de Julho, passou a ocorrer, para além da obrigatoriedade do registo das acções que tenham por fim, principal ou acessório, o reconhecimento, a constituição, a modificação ou a extinção do direito de propriedade (cfr. artigo 8.º-A, n.º 1, al. b), artigo 3.º, n.º 1, al. a) e artigo 2.º, n.º 1, als. a), v) e z) do CRP), a regra da sua oficiosidade (cfr. artigo 8.º-B, n.º 3, al. a), do CRP), competindo, deste modo ao Tribunal neste âmbito, mesmo sem impulso processual, decidir se a ação está sujeita a registo ou não, e, assim o entendendo, determiná-lo.
Com o registo de tais acções pretende-se, como ensina Antunes Varela[1] “dar conhecimento a terceiros de que determinada coisa está a ser objecto de um litígio e adverti-los de que devem abster-se de adquirir sobre ela direitos incompatíveis com o invocado pelo autor, sob pena de terem de suportar os efeitos da decisão que a tal respeito venha a ser proferida, mesmo que não intervenham no processo”, constituindo, assim, “um instrumento de publicidade que gera a cognoscibilidade sobre uma eventual causa de nulidade, anulação, resolução, rescisão (...) de um facto inscrito ou susceptível de ser inscrito”, ao mesmo tempo que permite, cautelarmente, “assegurar a exequibilidade da sentença que venha a julgar procedente a lide, nas mesmas condições em que o seria caso fosse proferida na data da propositura da acção”[2].
Cumprida esta explicitação preliminar e passando a considerar mais incisivamente o problema concreto posto nos autos, cumpre mencionar que o nosso sistema registral se encontra construído sob a égide do princípio da legalidade - artigo 68.º do Código de Registo Predial -, nos termos do qual, “a viabilidade do pedido de registo deve ser apreciada em face das disposições legais aplicáveis, dos documentos apresentados e dos registos anteriores, verificando especialmente a identidade do prédio, a legitimidade dos interessados, a regularidade formal dos títulos e a validade dos actos dispositivos nele contidos”, o que pressupõe, para o seu cabal cumprimento, o desenrolar de uma complexa função qualificadora direccionada a “comprovar a legalidade de forma e de fundo dos documentos apresentados, tanto por si sós, como relacionando-os com os eventuais obstáculos que o registo possa opor ao assento pretendido”[3], sendo consabido, no que concerne especificamente ao registo de acções que “a viabilidade do pedido de registo não deixa de implicar também (...) toda uma problemática que vai desde a exaustiva demanda sobre a registabilidade da acção titulada nos articulados apresentados, até à verificação casuística, em face aliás da situação tabular existente à data da apresentação do pedido do registo qualificando, das regras técnicas de observância necessária à prossecução dos objectivos da segurança do comércio jurídico (pressupostos processuais do registo ou requisitos de acesso ao registo)”[4].
É dentro desse quadro impositivo que se recorta funcionalmente a intervenção do conservador como primeiro garante da “defesa da legalidade tabular” sobre o qual se faz recair, assim, um autêntico dever de aferição, em concreto, do cumprimento dos pressupostos legais de registabilidade perante os pedidos que lhe são apresentados.
Como é óbvio, o juízo de qualificação do conservador não é insindicável, podendo a questão tabular em causa ser objecto de sindicância hierárquica ou contenciosa.
E, no que concerne especificamente ao controlo jurisdicional aberto por via do recurso contencioso da decisão do conservador, bem se compreenderá que a decisão que o tribunal venha a proferir na sequência desse processo tenha a força vinculativa própria das decisões jurisdicionais quanto à matéria registal em causa, a implicar o cumprimento de um dever de obediência ao julgado.
No entanto, não se pode é “confundir a atitude que o conservador há-de assumir perante um pedido formulado numa acção judicial ou perante um título de natureza judicial que seja apresentado na conservatória para ser registado, com a atitude que o conservador há-de assumir perante uma decisão judicial que se traduza num mandado especificamente dirigido a resolver a controvérsia suscitada pela sua anterior decisão, depois de corrido o processo próprio de impugnação”[5], pelo simples facto de, na primeira situação, não existir acto jurisdicional que, tendo como destinatário o conservador, ordene ou imponha a realização de determinado acto de registo.
De resto, tendo presente tal diferença, bem se veria que a apreciação da viabilidade do pedido de registo e a decisão que sobre ele recaia não põe em crise a existência de qualquer decisão jurisdicional nem implica “subordinação de uma das entidades à outra, mas apenas o cumprimento das suas competências específicas”[6].
Projectando esta realidade no caso dos autos, perante a inexistência de um título judicial próprio a impor, como res judicata, a realização do registo e atenta a legitimidade da pronúncia do conservador sobre a legalidade dos pedidos que lhe são dirigidos, ainda que formulado oficiosamente pelo Tribunal, soçobra o primeiro fundamento de recurso.
Resta, portanto, concluir que a recusa de registo de uma acção cujo pedido haja sido determinado oficiosamente pelo Tribunal, ao abrigo do artigo 8.º-B, n.º 3, alínea a), do Código de Registo Predial, por força das alterações introduzidas no Código do Registo Predial pelo Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de Julho, não compromete, sequer, as exigências de sentido firmadas na norma do artigo 205.º, n.º 2, da Constituição.

Questão diferente consiste em apurar se o registo em causa não deveria, efectivamente, ter sido determinado.

4.2. Da verificação dos pressupostos para o registo da acção

Prescreve o artigo 1.º do Código do Registo Predial que “O registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário.”

Acrescenta a alínea a), do n.º 1, do artigo 2.º, do referido diploma que “Estão sujeitos a registo: Os factos jurídicos que determinem a constituição, o reconhecimento, a aquisição ou a modificação dos direitos de propriedade, (…)”

Por sua vez, prescreve o artigo 3.º que: “1. Estão igualmente sujeitos a registo: a)As ações que tenham por fim, principal ou acessório, o reconhecimento, a constituição, a modificação ou a extinção de algum dos direitos referidos no artigo anterior, bem como as ações de impugnação pauliana; (...)”

Da formulação genérica do n.º 1 extraímos noção relativa às funções do registo que são, na sua economia, tornar conhecida do público (daí «dar publicidade») a situação jurídica dos prédios e fazê-lo com a finalidade de criar segurança na constituição de relações jurídicas incidentes sobre tais bens.

Não extraímos já, seguramente, quais os actos sujeitos a registo e quais as acções registáveis. Esse elemento só podemos obtê-lo a jusante, quando se precisa a vontade legislativa nos seguintes preceitos citados.

Temos, assim, que são registáveis os factos enunciados no artigo 2.º e que são objecto de registo, por expressa indicação legal enunciativa, taxativa, imperativa, e inafastável, as acções que visem «o reconhecimento, a constituição, a modificação ou a extinção» de algum dos direitos referidos no art. 2.º (bem como as ações de impugnação pauliana).

Reportando-nos ao caso vertente, afigura-se-nos, em sintonia com o Apelante, que a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo de Aveiro, a solicitar o registo da acção, já condensa do ponto de vista jurídico a necessidade e cabimento legal do registo da acção, considerando o pedido traduzido na completa demolição de todo o edificado, e reposição do solo sujeito à condicionante de proibição de quaisquer edificações em área de albufeira.

Assim, conforme bem salienta o Apelante, a demolição que se pretende desde logo completa de toda a casa/prédio urbano, traduz-se na intangível realidade do seu desaparecimento “ad eternum”, do mundo físico, e, naturalmente, do mundo jurídico, pois a descrição não pode permanecer com prédio urbano demolido, pois tal direito extingue-se, na verdade, “in totum”, sendo que do ponto de vista do registo não se verifica assim evidente apenas uma alteração dos elementos de identificação.

Não se trata, pois, como se afigura notório, fáctica e juridicamente, na demolição completa, de uma mera alteração de elementos de identificação de um prédio, mas sim do seu desaparecimento, do mundo de facto e da realidade jurídica patrimonial reflexa.

Ora, o direito de propriedade define-se conceptualmente pelos poderes que confere ao seu titular, abrangendo, como componentes, a liberdade de usar e fruir dos bens de que se é proprietário, a liberdade de os transmitir, o direito de não ser privado deles e, ainda, o direito de reaver os bens sobre os quais o mesmo direito se mantém.

De resto, o registo da acção, quando prioritário, assegura desde logo a exequibilidade da decisão final em relação a terceiros ou “erga omnes”, tal como decorre do artigo 263.º, n.º 3 do Código de Processo Civil.

Assim, não podemos acompanhar a decisão recorrida quando argumenta que a demolição de um imóvel urbano nos exactos termos como actualmente consta do registo, não é subsumível ao artigo 3.º, al. a) do Código de Registo Predial.

De resto, “o registo predial, cujo objecto são factos jurídicos, tem por escopo principal dar a conhecer aos interessados a situação jurídica do bem, garantindo a segurança e genuidade das relações jurídicas que sobre ele incidem, assegurando que, em regra, a pessoa que se encontra inscrita adquiriu validamente esse direito e com esse direito permanecerá para os seus futuros adquirentes[7]”.

Ou seja, importa que um terceiro não venha a adquirir aquilo que entre o descrito no registo e a realidade física se mostrem antagónicos na sua existência, sendo isso precisamente o que se pretende proteger e acautelar nos termos em que resulta expressamente do disposto no artigo 1.º do Código de Registo Predial.

Ora, neste âmbito, o Recorrente solicitou - ao nível de um pedido - não só a anulação de actos administrativos, bem como a demolição do prédio e muros existentes.

Assim, no caso vertente, como o pedido inclui a demolição de construções, isso afecta o conteúdo do direito de propriedade e, portanto, tem de ser registado como acção pendente.

A parte relativa à anulação de actos administrativos, por si só, não teria reflexo no registo predial.

No entanto, como a acção inclui também o pedido de demolição, esta componente torna o registo obrigatório, o que se mostra em conformidade com o entendimento de que o registo predial não acolhe uma noção de publicidade-notícia mas de publicidade relativa à ontologia do direito publicitado, pelo que se mostra relevante no caso em apreço, por tocar a essência dos direitos publicitados.

Registáveis são a construção e a demolição e a causa de pedir da acção administrativa toca-as, pelo que se justifica o registo da acção.

Concluímos, pois, que a decisão em crise não pode manter-se.

Impõe-se, por isso, o provimento da apelação.


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Sumariando em jeito de síntese conclusiva:

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5. Decisão

Pelos fundamentos acima expostos, acorda-se neste Tribunal da Relação dar provimento ao recurso de apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida, determinando-se o registo da acção.


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Sem custas.

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Notifique e comunique à respectiva Conservatória do Registo Predial.

Porto, 22 de Setembro de 2025

Relator: Paulo Dias da Silva

1.º Adjunto: Paulo Duarte Teixeira

2.º Adjunto: Manuela Machado

(a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas e por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)


_________________________
[1]Cf. Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 103.º, pg. 484.
[2]Cf. Mónica Jardim, “O registo de acções e decisões judiciais - Qualificação do registo e os poderes do conservador”, trabalho apresentado no I Encontro de Notários e Conservadores dos Países de Língua Portuguesa, realizado em Cabo Verde, entre 23 e 25 de Julho de 2007, publicado no volume LXXXIII do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
[3]Cf. Mónica Jardim, cit., pp. 2-3.  
[4]Cf. Silva Pereira, O princípio da legalidade, o registo das decisões finais e a força do caso julgado, p. 13, in http://www.fd.uc.pt/cenor/textos/DOC070314-004.pdf; e, em idêntico sentido, Mónica Jardim, cit., pp. 7-8).
[5]Cf. Mónica Jardim, cit., p. 17.
[6]Cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29 de Setembro de 2005, disponível em www.dgsi.pt.
[7]Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 05-05-2016, proferido no processo 5562/09.4TBVNG.P2.S1, disponível in www.dgsi.pt., citado pelo Apelante.