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IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ESPECIFICAÇÃO
Sumário
Sumário: (elaborado pela relatora - artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil): «1. A referência nas alegações aos depoimentos das testemunhas e declarações de parte prestados em audiência, indicando apenas os períodos de tempo de cada depoimento e declaração, e mencionando, a título exemplificativo, “após o minuto 6:50”, sendo todos aqueles de duração superior a 30 minutos, não satisfaz o ónus legal de especificação referido no artigo 640/2-a) do CPC. 2. As palavras “concreto” e “exactidão” contidas nas alíneas do artigo 640 do CPC constituem os critérios para aferir do cumprimento do ónus a cargo do apelante. 3. Este ónus não se verifica quando o apelante não indica, com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso nem transcreve os excertos que considera relevantes.»
Texto Integral
Acordam os Juízes que compõem a 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório “Artipesca – Sociedade de Artigos de Pesca e Desporto, Lda”, ré nos presentes autos, interpôs recurso da decisão proferida em 10 de fevereiro de 2025 que julgou improcedente o incidente de falta de citação e considera a ré regulamente citada. No recurso apresentado a ré pretende também impugnar a decisão sobre a matéria de facto.
A recorrente termina as suas alegações, alinhando as seguintes conclusões: “I. A decisão do tribunal recorrido no que importa aos factos 2, 3, 4 e 5 não provados e 11 provado não foi correta e deve ser alterada, considerando-se criticamente os seguintes depoimentos: de …. e de …., realizados na audiência de 12 de Dezembro de 2024, e cujas gravações constam no Sistema de Suporte à Atividade dos Tribunais Judiciais com início às 14:49 e termo às 15:23, a primeira, e início às 15:23 e termo às 16:03, o segundo e de ….. que prestou o seu depoimento na sessão de 24 de Janeiro de 2025 gravado no Sistema de Suporte à Atividade dos Tribunais Judiciais com início às 15:42 e termo às 16:20 e, bem assim, a demais prova documental junta aos autos. II. Devendo-se alterar a matéria de facto nos seguintes termos: 1. O facto 2 não provado seja dado como não escrito e que o facto 11 provado passe a ter a seguinte redacção: “No interior da loja apenas encontravam-se três avisos postais: um datado de 19 de Fevereiro de 2024 (correspondente à primeira tentativa de citação), outro de 17 de Maio de 2024 (correspondente à notificação prevista no artigo 567º, n.º 2 do CPC) e um último datado de 14 de Junho de 2024 (correspondente à notificação da sentença)”. 2. O facto 3 não provado seja considerado provado e consequentemente acrescentado um facto 13 provado com a seguinte redacção: “A ré e o seu gerente nunca tiveram foi conhecimento de um envelope referente à citação para os presentes autos”. 3. O facto 4 não provado seja considerado provado e consequentemente acrescentado um facto 14 provado com a seguinte redacção: “Não foi deixada à disposição da sociedade ré, na morada da sede, um envelope contendo petição inicial e seus documentos e, bem assim, comunicando à ré que fica citado para a acção com indicação do presente douto Tribunal, seu juízo e secção e, ainda, o prazo dentro do qual pode oferecer a defesa, a necessidade de patrocínio judiciário e as cominações em que incorre no caso de revelia”. 4. O facto 5 não provado seja considerado provado e consequentemente acrescentado um facto 15 provado com a seguinte redacção: “Caso tenha sido depositada, alguém a subtraiu, impedindo o seu conhecimento pela ré”. III. Consequentemente deve ser verificada e declarada a nulidade da citação da ré, uma vez que é manifesto que a ausência absoluta da mesma prejudicou sua defesa, pois não teve conhecimento da ação de despejo e não pôde apresentar contestação, devendo-se anular todo o processado após a apresentação em Juízo da petição inicial e dando-se primeira oportunidade à ré para contestar a acção. IV. Assim, dando-se execução à norma dos Artigos 187º, a) 188º e), 191º, 196º e 200º todos do Código de Processo Civil e nas demais normas de direito que o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa com o seu douto suprimento queira suprir. Termos em que, Deve o presente recurso ser julgado procedente e revogada a sentença recorrida, substituindo-se a mesma por douto acórdão que julgue procedente e provada a arguição da nulidade da citação”.
A recorrida/autora …. apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
Alinha as seguintes conclusões: “1ª- O presente recurso de apelação carece de fundamento sério, mostrando-se doutamente elaborada e sabiamente fundamentada a douta sentença recorrida; 2ª- Desde logo, a Recorrente não observou o ónus de alegação e conclusão, impostos pelo Art.640º do CPC, o que leva à rejeição imediata do presente recurso quanto à impugnação da matéria de facto; 3ª- Pois, nas alegações apresentadas, é feita, apenas, uma breve síntese dos depoimentos prestados, nomeadamente do depoimento de parte do gerente da Ré, Sr….., do depoimento da testemunha …., e do depoimento da testemunha ….., o carteiro; 4ª- Contudo, estabelece o Art.640º nº1 do CPC que o recorrente deve obrigatoriamente, sob pena de rejeição, especificar quer os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados quer ainda os concretos meios probatórios que impunham uma decisão diversa da recorrida sobre os pontos da matéria de facto impugnados; 5ª- E, no seu nº2, o referido preceito impõe que, quando haja gravação dos meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas, o recorrente tem obrigatoriamente que indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; 6ª- Analisada a motivação do recurso apresentada pelos Recorrentes, constata-se que não foi dado cumprimento ao preceituado no aludido Art.640º do CPC; 7ª- Não tendo sido indicadas com exactidão, como se impunha, as passagens da gravação em que se funda o recurso interposto, conforme preceitua o art.640º nº 2 al. a) do CPC, nem são feitas transcrições dos enxertos considerados relevantes; 8ª- Nada mais é alegado pela Recorrente que imponha um sentido diverso relativamente aos pontos que entende terem sido incorretamente julgados, para além de pretender que os depoimentos de ….. e de …., sejam apreciados de um modo diferente ao efectuado pela M.Mª Juíza “a quo”; 9ª- Não há, assim, suporte factual, para qualquer alteração à matéria de facto, conforme o requerido pela Recorrente, pelo que deve ser rejeitado o recurso interposto quanto à reapreciação da matéria de facto; SEM PRESCINDIR 10ª- De todo o modo, mesmo que se entenda não haver lugar à rejeição do presente recurso quanto à reapreciação da matéria de facto, este nunca poderá ser procedente por carecer de fundamento sério, devendo manter-se in totum a douta sentença ora em crise; 11ª- A Recorrente faz uma apreciação geral de quase toda a prova, fazendo dela a sua interpretação e tira a conclusão de que os factos por si impugnados devem ser dados como provados, na forma que aponta; 12ª- Mais concretamente, a Recorrente limita-se a valorizar positivamente o depoimento testemunhal da testemunha por si arrolada e o depoimento de parte do seu gerente, de acordo com a interpretação que faz dos factos, sem mais!; 13ª- E, faz tábua rasa da análise e apreciação criteriosa e correta feita pela M.Mª Juíza “a quo”, na fundamentação da sua decisão, quanto à falta de credibilidade e à parcialidade dos depoimentos prestados quer da testemunha ….. quer do depoimento de parte do gerente da Ré/Recorrente; 14ª- Com efeito, entendeu-se e bem, na douta sentença ora em crise, que os depoimentos daquela testemunha e do gerente da Ré/Recorrente estavam “comprometidos”, “…atento o manifesto interesse na causa, bem como a improbabilidade da versão dos factos que apresentam, pelo que se revelaram insuficientes, confrontados com a demais prova produzida, para comprovar a matéria alegada sob os nºs 2 a 5, que, assim, resultou como não provada.”; 15ª- Como resulta da sentença ora em crise, a convicção do Tribunal alicerçou-se na análise crítica e conjugada da prova testemunhal e da prova documental produzida nos autos; 16ª- E, a pretensão da Recorrente ao pretender alterar a matéria factual, põe em causa o princípio da imediação que não pode ser ignorado, principalmente na relação entre o julgador e as testemunhas!; 17ª- O depoimento da testemunha …., que faz a distribuição do correio na zona em questão, foi considerado pela M.Mª Juíza a quo, como “isento e objectivo, convencendo o Tribunal.”; 18ª- Tendo ficado efectivamente demonstrada a concretização do depósito da carta de citação, tal como consta da menção aposta no aviso de recepção; 19ª- Quer o depoimento de parte do gerente da Recorrente quer o depoimento da testemunha …. foram considerados parciais e não credíveis, em confronto com os documentos juntos aos autos e ao depoimento da testemunha ….; 20ª- Os dois depoimentos estão sintonizados no sentido de afirmarem factos que os depoentes sabem ser falsos, nomeadamente quando tentam fazer crer que a loja apenas foi fechada, após o embargo administrativo e por causa desse mesmo embargo; 21ª- Inexiste, assim, qualquer tipo de prova nos autos, para que possa ser alterada, como pretende a Recorrente, a matéria factual dada como provada e, ainda, para alterar os factos não provados para provados e aditar novos factos!; 22ª- Do exposto resulta que deverá ser rejeitado e/ou julgado improcedente o recurso interposto pela Recorrente, mantendo-se in totum a douta sentença recorrida”.
Admitido o recurso e colhidos os vistos cumpre decidir.
II. Questões a decidir:
Sabendo que o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a apreciar, no caso concreto, consistem:
- Na reapreciação da matéria de facto.
- Na apreciação do mérito da ação.
III – Fundamentação de Facto.
Em sede de sentença, fixou o tribunal a quo, a seguinte Factualidade: “A - Factos provados Com relevância para a decisão da causa, encontram-se provados os seguintes factos: 1. O imóvel locado, sito na Travessa ….., Lisboa, corresponde à sede da ré, na qual a mesma tinha instalado um estabelecimento comercial de artigos de pesca. 2. Em 16.02.2024 foi enviada carta para citação da ré, para a morada da sede, a qual não foi entregue com a informação de que “Não atendeu”, tendo sido deixado um aviso para levantamento nos correios. 3. A ré não procedeu ao seu levantamento no prazo para o efeito, pelo que a carta veio devolvida com a menção “Objecto não reclamado”. 4. Em 04.03.2024, foi enviada uma segunda carta para citação para a sede da Ré, remetida ao abrigo do disposto no artigo 246º do CPC, a qual foi depositada no receptáculo postal domiciliário existente. 5. Tendo sido devolvido ao Tribunal o aviso de recepção com a anotação efectuada pelo carteiro …., em 05.03.2024, às 12h18: “Na impossibilidade de Entrega depositei no Receptáculo Postal Domiciliário da morada indicada a CITAÇÃO a ela referente.” 6. O estabelecimento da ré foi encerrado pela Edilidade Lisboeta na sequência da falta de obras de manutenção. 7. Em face do mau estado de conservação do imóvel locado, a ré iniciou a realização de obras no mesmo. 8. Tais obras foram objecto de embargo municipal. 9. Desde essa altura, não se encontra qualquer funcionário na loja, nem os sócios-gerentes da ré se deslocaram à mesma. 10. No dia 17 de Julho de 2024, após contacto da Il. Mandatária da autora, o gerente ….. deslocou-se ao locado. 11. No interior da loja encontravam-se três avisos postais: um datado de 19 de Fevereiro de 2024 (correspondente à primeira tentativa de citação), outro de 17 de Maio de 2024 (correspondente à notificação prevista no artigo 567º, n.º 2 do CPC)) e um último datado de 14 de Junho de 2024 (correspondente à notificação da sentença). 12. A loja fica situada no coração do …., junto à afamada “Rua ….”, local de muita passagem, sobretudo à noite e de muita folia e exagero no consumo de bebidas alcoólicas. * B - Factos não provados Com relevância para a decisão da causa, não se provaram os seguintes factos: 1. O imóvel locado não dispõe de receptáculo. 2. No dia 17 de Julho de 2024, quando se deslocou ao locado, o gerente da ré apenas encontrou os avisos identificados em 11) dos factos provados. 3. A ré e o seu gerente nunca tiveram foi conhecimento de um envelope referente à citação para os presentes autos. 4. Não foi deixada à disposição da sociedade ré, na morada da sede, um envelope contendo petição inicial e seus documentos e, bem assim, comunicando à ré que fica citado para a acção com indicação do presente douto Tribunal, seus juízo e secção e, ainda, o prazo dentro do qual pode oferecer a defesa, a necessidade de patrocínio judiciário e as cominações em que incorre no caso de revelia. 5. Caso tenha sido depositada, alguém a subtraiu, impedindo o seu conhecimento pela ré.
IV. Da reapreciação da matéria de facto.
4.1. Admissibilidade do recurso da impugnação da matéria de facto
O actual Código de Processo Civil introduziu um duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, sujeitando a sua admissão aos requisitos previstos pelo art.º 640º do Código de Processo Civil.
Embora tal reapreciação tenha alcançado contornos mais abrangentes, não pretendeu o Legislador que se procedesse, no Tribunal Superior, a um novo Julgamento, com a repetição da prova já produzida nem com o mesmo limitar de alguma forma o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção acerca de cada facto controvertido.
Apesar de se garantir um duplo grau de jurisdição, tal deve ser enquadrado com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no art.º 607º, n.º 5 do Código de Processo Civil, sendo certo que decorrendo a produção de prova perante o juiz de 1ª instância, este beneficia dos princípios da oralidade e da mediação, a que o Tribunal de recurso não pode já recorrer.
Para que a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada convicção, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos ou com outros factos que deu como assentes.
Posto isto, para que o Tribunal Superior assim se possa pronunciar sobre a prova produzida e reapreciar e decidir sobre a matéria de facto, sem que tal acarrete na verdade todo um novo julgamento e repetição da prova produzida, impõe-se à parte que assim pretende recorrer que cumpra determinados requisitos, previstos no citado art.º 640º do Código de Processo Civil: “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto 1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. 3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”
Como sintetiza Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª Ed., págs. 197 e 198, o recorrente deve:
- Indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com a enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
- Especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
- Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considera oportunos (sublinhado nosso);
- O recorrente pode sugerir à Relação a renovação da produção de certos meios de prova, nos termos do artigo 662º, n.º 2, a), ou mesmo a produção de novos meios de prova nas situações referidas na alínea b);
- O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente.
Concomitantemente, o recurso deve ser rejeitado, total ou parcialmente, sempre que se verifique alguma das seguintes situações:
- Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto, conf. art.º 635º, n.º 4 e 641º, n.º 2, b);
- Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados – art.º 640º, n.º 1, a);
- Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados;
- Falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda (sublinhado nosso);
- Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.
Finalmente, a inobservância destes requisitos leva à rejeição (total ou parcial) do recurso para reapreciação de matéria de facto sem possibilidade de aperfeiçoamento (como defendido por Abrantes Geraldes, ob. cit., pg. 199).
A lei de processo é, assim, clara na exigência de que o recorrente, além de individualizar, com a precisão exigível, os pontos de facto que reputa de julgados em erro, relacione cada um desses concretos pontos de facto que entende terem sido incorrectamente julgados com cada um dos meios de prova e com cada passagem relevante dos meios de prova gravados ou com a transcrição que, eventualmente, tenha feito das passagens relevantes dos meios de prova objecto do registo sonoro (Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, cit., pág. 197).
Porque se formulou a exigência da especificação, exacta, pelo recorrente dos factos e das provas, que no seu ver, foram mal avaliadas, e das passagens da gravação em que funda a impugnação? Para que o recorrido e o tribunal ad quem, que há-de julgar o recurso, fiquem habilitados a conhecer nitidamente, as provas e os troços ou os segmentos da prova pessoal registada susceptíveis de inculcar o error in iudicando que o recorrente assaca à decisão da questão de facto. A parte contrária necessita de o saber para exercer o seu direito ao contraditório e porque lhe incumbe, na resposta ao recurso, indicar as provas e os depoimentos gravados – e a sua precisa localização no registo fonográfico - que infirmem as conclusões do recorrente; o tribunal ad quem, que disponha de poderes de controlo da decisão da matéria de facto, carece de o saber para poder reapreciar, com segurança e reflexão, o julgamento cuja exactidão se impugna (art.º 640.º n.º 2, b) do CPC).
E a exigência de que a indicação das passagens do registo sonoro que, segundo o impugnante, tornam patente o erro na avaliação ou na apreciação das provas produzida oralmente seja exacta, precisa, específica, visa, nitidamente – sobretudo nos casos de depoimentos particularmente extensos – permitir, tanto à parte contrária, como ao Tribunal ad quem – uma audição, fácil e célere, das passagens do registo sonoro em que se funda a impugnação, de modo a avaliar, de forma ágil, se os troços do registo apontados pelo recorrente são ou não adequados a inculcar o erro de julgamento que invoca, sem prejuízo, todavia, da actuação, pelo tribunal ad quem dos seus poderes de investigação oficiosa, portanto, da faculdade de proceder à audição de quaisquer outros segmentos do registo, do mesmo ou de outros depoimentos.
De harmonia com jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça, há, no entanto, que operar, no ónus da impugnação da matéria de facto que vincula o apelante, um distinguo entre um ónus primário ou fundamental – referido à indicação dos pontos que o recorrente reputa de mal julgados, aos meios de prova que impõem decisão diversa e à decisão que deve ser proferida sobre as questões de factos impugnadas - e um ónus secundário – que tem por objecto a indicação exacta das passagens do registo sonoro da prova. Dito de outro modo: o ónus primário tem por objecto a delimitação do objeto e a fundamentação concludente da impugnação (artigo 640/1 do CPC); o ónus secundário respeita à facilitação do acesso aos meios de prova objecto do registo sonoro, relevantes para a apreciação da impugnação deduzida (artigo 640/2 do CPC).
O ónus primário de delimitação do objeto e de fundamentação concludente da impugnação comporta três dimensões:
- em primeiro lugar, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que reputa de julgados em erro, enunciando-os na motivação do recurso e, de forma sintética, nas conclusões (a exigência da inclusão ou especificação, nas conclusões do recurso, e não apenas no corpo da alegação, dos pontos ou enunciados de facto impugnados com fundamento no erro sobre provas, constitui entendimento jurisprudencial e doutrinal: Acs. do STJ de 30.03.2022 (330/14), 09.06.21 (10300/18), 27.04.2023 (4696/15), 16.11.2023 (203/18), 08.02.24 (7146/20), 30.11.2023 (7146/20) e 04.07.2023 (1727/07); Abrantes Geraldes, “Recursos em Processo Civil”, cit., pág. 197, José Lebre de Freitas/Armindo Ribeiro Mendes/Isabel Alexandre, “CPC Anotado”, Vol. 3.º, Almedina, 2022, 3.ª edição, pág. 95 e Rui Pinto, “Manual do Recurso Civil”, AAFDL, 2020, pág. 301) (sublinhado nosso);
- em segundo lugar deve especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou objecto do registo sonoro que determinam, para cada um factos que alega terem sido mal julgados, uma decisão diversa daquela que foi encontrada pelo decisor da 1.ª instância (de harmonia com o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 12/2023- DR- 220/2023, Série I, de 2023-11-14 - nos termos da al, c) do n.º 1 do art.º 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações. Contudo, no que concerne aos ónus de indicação da decisão que se pretende sindicar, o mesmo AUJ esclarece que estes não detêm «…uma mera natureza formal, na medida que se mostram ajustadas, garantindo a adequada inteligibilidade e objeto do recurso, facultando à contraparte a possibilidade do exercício do contraditório”, pois «da articulação dos vários elementos interpretativos, com cabimento na letra da lei, resulta que em termos de ónus a cumprir pelo recorrente quando pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, sempre terá de ser alegada e levada para as conclusões, a indicação dos concretos pontos facto que considera incorretamente julgados, na definição do objeto do recurso»
Concluiu esse AUJ que “…decorre do art.º 640, n.º1, que sobre o impugnante impende o dever de especificar, obrigatoriamente, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera julgados de modo incorreto, os concretos meios de probatórios constantes do processo, de registo ou de gravação nele realizado, que imponham decisão diversa da recorrida, bem como aludir a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Tais exigências, traduzidas num ónus tripartido sobre o recorrente, estribam-se nos princípios da cooperação, adequação, ónus de alegação e boa-fé processuais, garantindo a seriedade do recurso, num efetivo segundo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, necessariamente avaliado de modo rigoroso, mas sem deixar de ter em vista a adequada proporcionalidade e razoabilidade, de modo a que não seja sacrificado um direito das partes em função de um rigorismo formal, desconsiderando aspetos substanciais das alegações, numa prevalência da formalidade sobre a substância que se pretende arredada)”;
- por último, deve indicar, na motivação, a decisão que, no seu ver, numa avaliação prudencial das provas, deve, em substituição, ser proferida sobre os factos impugnados.
Relativamente ao ónus secundário, este respeita à facilitação do acesso aos meios de prova objecto do registo sonoro, relevantes para a apreciação da impugnação deduzida (artigo 640/2 do CPC).
Este também é o entendimento plasmado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9/6/2021, Proc. n.º 10300/18.8T8SNT.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt e onde pode ler-se: “Tal como se fez dogmática na jurisprudência do STJ, “é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação (…); e [em referência ao art. 640º, 2] um ónus secundário – tendente, não tanto a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida” [V. Ac. De 20/10/2015, processo n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, Rel. Lopes do Rego, in www.dgsi.pt. Mais recentes: Acs. de 21/3/2019, processo n.º 3683/16.6T8CBR.C1.S2, Rel. Rosa Tching, e de 17/12/2019, processo n.º 363/07.7TVPRT-D.P2.S1, Rel. Maria da Graça Trigo, in www.dgsi.pt.]. Estes ónus assumem-se verdadeiramente como “garantia de um julgamento equitativo das questões de facto e da legitimidade da decisão que sobre elas venha a recair, com observância dos princípios do contraditório e do tratamento igual das partes. Por outro lado, o legislador terá sido cauteloso em não permitir a utilização abusiva ou facilitação do mecanismo- remédio de impugnação da decisão de facto. Aliás, mal se perceberia que o impugnante atacasse a decisão de facto sem ter bem presente cada um dos enunciados probatórios e os meios de prova utilizados ou a utilizar na sua fundamentação cirúrgica. Daí a cominação severa da sua imediata rejeição” [Atenta a jurisprudência abundante do STJ sobre este regime, v., com este ênfase, o Ac. de 17/3/2016, Processo n.º 124/12.1TBMTJ.L1.S1, Rel. Tomé Gomes, in www.dgsi.pt,].
O critério relevante para aferir da observância ou inobservância de qualquer destes ónus, deve ser um critério adequado à função, em conformidade com os princípios regulativos da proporcionalidade e da razoabilidade (Acs. do STJ de 07.12.2023 (2037/16) e 11.09.2019 (42/18)).
O requisito da adequação à função salienta que os ónus da impugnação da decisão da decisão da matéria de facto visam garantir uma adequada intelegibilidade do fim e do objeto do recurso e, em consequência, facultar à contraparte uma possibilidade de um contraditório esclarecido e ao tribunal uma apreciação conscienciosa; os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade respeitam à relação entre a gravidade da conduta processual do recorrente e a severidade das consequências que a lei associa ao não cumprimento, ou ao cumprimento defeituoso, daquele ónus: essa consequência deve ser adequada, proporcional e razoável à gravidade daquele incumprimento. Importa, contudo, notar que a apreciação do não cumprimento do ónus processual em discussão, de harmonia com estes parâmetros, pressupõe o cumprimento, ainda que mínimo, desse ónus; na hipótese contrária, não que há convocar, como critério de decisão, qualquer desses parâmetros (Ac. do STJ de 19.03.2024 (150/19)).
Por último, importa reter que, de harmonia com uma jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça, que merece a concordância da doutrina, a rejeição do recurso, no segmento relativo à impugnação da decisão da matéria de facto da 1.ª instância, não tem de ser precedida de prévio despacho de convite do impugnante ao suprimento ou aperfeiçoamento da sua alegação (Acs. do STJ de 08.09.2021 (5404/11), 15.09.2022 (556/19), 06.02.2024 (18321/21) e 23.01.2024 (2605/20); José Lebre de Freitas/Armindo Ribeiro Mendes, CPC Anotado, Vol. 3.º, cit., pág. 95, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, cit., pág. 199 e Rui Pinto, Manual do Recurso Civil, cit., pág. 304. De harmonia com a jurisprudência constitucional, dela não se retira que o despacho de aperfeiçoamento seja uma exigência constitucional, dado que tal equivaleria, no fundo à concessão de um novo prazo para recorrer que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso: Ac. do TC n.º 259/02 (101/02)).
De todo o modo, esta impugnação não pode deixar de ser relacionada com o ónus de formulação de conclusões, cominado, em caso de incumprimento, com o indeferimento do recurso.
Tendo presentes tais regras e pressupostos orientadores e exigíveis, para que ao Tribunal da Relação seja lícito alterar a decisão do Tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto, e tal como bem nota Abrantes Geraldes (in “ Recursos em Processo Civil, Novo Regime”, 2010, pg. 152), dir-se-á que o legislador (“maxime” com as alterações introduzidas na lei adjectiva aquando da publicação do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24/8) veio introduzir mais rigor no modo como deve ser apresentado o recurso de impugnação da matéria de facto, com a indicação exacta dos trechos da gravação, com referência ao que tenha ficado assinalado na acta.
Postas estas breves considerações, há que verificar se logrou a recorrente cumprir a sua obrigação processual.
Comecemos desde logo por enfatizar duas palavras repetidas nas alíneas do artigo 640 do CPC: “concretos” e “exatidão”.
Ora, lendo as alegações de recurso da recorrente logo se constata que as mesmas estão longe de cumprir o ónus de alegação previsto na referida disposição legal: a recorrente insurge-se contra a decisão da matéria de facto, concretiza quais os factos que no seu entender mereceriam diferente resposta, mas não indica, com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso nem transcreve os excertos que considera relevantes (é manifesto que a recorrente não cumpre este ónus, quando refere, de modo singelo, e a título meramente exemplificativo, “o depoimento está gravado no Sistema de Suporte à Atividade dos Tribunais Judiciais com início às 15:42 e termo às 16:20” (…) e “ “após o minuto 6:50”, sem concretizar nem transcrever, em depoimentos que ultrapassam, todos eles, os 30 minutos de duração, qual o excerto ou excertos dos depoimentos que relevam para a sua pretensão.
De igual deficiência padece a referência genérica à prova documental- “bem assim, a demais prova documental junta aos autos”- feita pela recorrente que não concretiza qual ou quais os documentos a que o Tribunal deve atender para alterar a decisão da matéria de facto.
É manifesto que esta falta de exatidão na concretização das passagens da gravação em que se funda o recurso e a referência genérica a toda a prova documental junta ao processo não satisfaz o ónus legal de especificação: remete para o tribunal a tarefa de escolher as passagens relevantes de onde a recorrente pretende extrair as conclusões factuais desejadas; o tribunal de recurso não sabe com que documento ou documentos pretende a recorrente fundamentar a sua pretensão. Neste sentido cfr. Acordão da Relação de Évora de 9 de junho de 2022, disponível em www.dgsi.pt: “Não constitui impugnação do julgamento da matéria de facto nos termos legais a discordância com o julgado, quanto a factos provados e não provados, acompanhada da indicação também genérica e global de um acervo probatório disponível que deveria levar diferente julgamento”.
O que consta das alegações de recurso são referências e resumos a declarações e depoimentos prestados e não a transcrição da parte de cada um deles que, na perspetiva da recorrente, deveria motivar de modo diferente, os factos que impugnam e conduzir a uma alteração da resposta dada a cada um deles.
A falta de cumprimento deste ónus implica, sem possibilidade de aperfeiçoamento, a rejeição do recurso.
Em consequência, ao abrigo do disposto no artº 640º nºs. 1 e 2 do Código de Processo Civil rejeita-se o recurso na parte atinente à impugnação da decisão da matéria de facto por parte do apelante.
Não se podendo considerar como impugnada a decisão sobre a matéria de facto, só os factos considerados provados pela 1ª instância podem servir de fundamento à solução a dar ao litígio.
V. O mérito da ação
Da leitura da motivação do recurso e das respetivas conclusões decorre que todos os fundamentos invocados pela recorrente no que tange à discussão do mérito da causa pressupunham a alteração da decisão sobre matéria de facto.
Porém, tendo o elenco de factos provados e não provados permanecido inalterado, forçoso é considerar que não se verificou o pressuposto da pretendida revogação da decisão recorrida.
Com efeito, a jurisprudência tem entendido que nos casos em que a reapreciação do mérito da causa em recurso depende da alteração dos factos que o Tribunal a quo considerou provados e não provados, a rejeição ou improcedência da impugnação da decisão sobre matéria de facto determina a improcedência do recurso quanto ao mérito da causa, sem necessidade de reapreciação deste, por constituir questão cuja apreciação resultou prejudicada (art. 608.º, n.º 2, 2ª proposição, do CPC, ex vi do art. 663º, nº 2, do mesmo código). Neste mesmo sentido cfr., por todos, os acs:
- RG de 11-07-2017 (Maria João Matos), p. 5527/16.0T8GMR.G1;
- RG 02-11-2017 (Maria João Matos), p. 501/12.8TBCBC.G1;
- RE 28-06-2018 (Florbela Lança), p. 170/16.6T8MMN.E1;
- RL 28-05-2019 (Ana Rodrigues da Silva[9]), p. 97280/18.4YIPRT.L1-7;
- RL 10-09-2020 (Carlos Castelo Branco), p. 518/18.9T8AGH.L1-2;
- RL 05-11-2020 (Carlos Castelo Branco), p. 1812/19.7T8LSB.L1-2.
Mantendo-se inalterada a decisão sobre matéria de facto, não tendo o recorrente invocado quaisquer argumentos que permitam questionar, de facto e/ou de Direito os pressupostos em que assentou a decisão alcançada pelo Tribunal recorrido, e não se descortinando motivo ou fundamento para proferir decisão diversa, forçoso é concluir pela total improcedência do presente recurso.
VI. Decisão
Por todo o exposto, acordam os Juízes desta 8.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. Julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela ré e, em consequência, manter a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
Escrito e revisto pela Relatora.
Lisboa, 25 de setembro de 2025
Maria Teresa Lopes Catrola
Carla Matos
Teresa Sandiães