HABEAS CORPUS
MEDIDAS DE COAÇÃO
OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
PRISÃO PREVENTIVA
PRISÃO ILEGAL
INDEFERIMENTO
Sumário


I - As medidas de coação são provisórias por natureza, valendo exclusivamente no âmbito do processo em que foram determinadas. Quando uma autoridade judiciária, em novo processo iniciado por força da existência de novos factos típicos criminalmente relevantes, aplica uma medida de coação, não revê a medida de coação a que o arguido foi anteriormente submetido (apenas um tribunal superior o poderia fazer, em sede de recurso), limitando-se a definir a situação coativa no âmbito do novo processo.
II - Ocorrendo uma agravação das exigências preventivas, a situação pessoal do arguido pode sofrer alteração, suposto serem incompatíveis as medidas fixadas num e no outro daqueles processos e mais gravosas as que ex novo houverem de ser-lhe aplicadas. Já a inversa não é verdadeira, não podendo as medidas de coação mais recentemente impostas conduzir a um desagravamento da situação pessoal do arguido em outro processo em que lhe tenham sido impostas medidas de coação.
III - Sendo compatíveis, as medidas impostas nos dois processos poderão coexistir. Sendo incompatíveis, subsistirá (em execução) a mais gravosa.
IV - A imposição de medidas de coação diversas das anteriormente aplicadas por outro juiz e a que o arguido esteja sujeito não traduz invasão da esfera funcional do juiz que anteriormente fixou medidas de coação.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I – RELATÓRIO:

AA, melhor identificado nos autos, atualmente sujeito à medida de coação de prisão preventiva à ordem do processo nº 99/25.7S9LSB-A, veio requerer providência de habeas corpus mediante requerimento subscrito pelo seu mandatário, que tem o seguinte teor (transcrição – itálico nosso):

1.º - O arguido encontrava-se - à data em que foi inquirido pelo Mº JIC - sob o regime de residência fixa vigiada por meios eletrónicos (OPH/VE) no âmbito do processo 642/24.9SDLSB a correr seus legais e precisos termos pelo Juiz Central Criminal de Lisboa – Juiz 23.

2.º - E assim há mais de um ano.

3.º - Por douto despacho judicial – ainda não transitado -reconhecendo a existência de indícios do crime de resistência e coacção sobre funcionário por banda do peticionante, foi-lhe determinada a aplicação (bem como a execução imediata) da mais grave das medidas de coacção, ou seja, a prisão preventiva.

5.º - Não relevando para o decidido a situação coactiva prévia em que o peticionante se encontrava (OPHC/VE).

6.º - A qual havia sido determinada, há basto tempo, no âmbito do mencionado processo 642/24.9SDLSB (Juiz Central 23 de Lisboa).

7.º - Salvo o devido respeito por entendimento diferente, o peticionante não pode ver a sua situação coactiva abrangida simultaneamente por duas medidas de coacção, uma de residência fixa com vigilância electrónica, também chamada de prisão domiciliária e outra de prisão preventiva.

8.º - Em nossa modesta opinião, apenas o M.º Juiz titular dos autos à ordem do qual se encontrava o peticionante sujeito à medida de residência fixa com vigilância electrónica teria competência funcional para agravar essa mesma medida.

9.º - Porque só no caso de considerar que os factos ocorridos com o peticionante configurariam incidente ou incumprimento de relevo susceptível de agravar essa mesma medida coactiva, (OPHC/VE) poderia modificar ou agravar essa mesma medida

10.º - Pelo que o despacho do M.º JIC de Lisboa proferido em 6 do corrente encontra-se ferido de ilegalidade.

11.º - Tornando ilegal a prisão do peticionante.

12.º - Uma vez que o M.º JIC não tinha competência funcional para “retirar” o arguido da medida de coacção que outro M.º Juiz lhe havia anteriormente aplicado no âmbito de outros autos, colocando-o num regime mais severo e totalmente isento de liberdade (prisão preventiva).

13.º - O douto despacho – e salvo o devido respeito, que é muito e bem devido - proferido pelo M.º JIC confundiu aplicação de medida de coacção de prisão preventiva com execução dessa mesma medida.

14.º - Sabendo-se que existem casos em que apesar de se entender necessária a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, a mesma não poderá de imediato ser aplicada (devido a questões processuais conexas) dada a existência de outros processos crime.

15.º - Como o caso d um arguido já preso num EP (a cumprir pena de prisão) cometer algum crime e fôr ouvido em 1.º interrogatório judicial e se o M.º JIC em causa considerar que lhe deve ser aplicada a medida de coacção de prisão preventiva, deverá todavia de suspender a execução da mesma, até que o arguido termine essa mesma pena ou seja colocado em liberdade condicional.

16.º - Assim tendo decidido a 2.ª Secção Criminal do Ac. da Relação do Porto em Acórdão proferido a 23.02.2005 relatado pelo M.º Juiz Desembargador Agostinho Freitas 0540061 – in JTRP00037784 RP 200502230540061 .º - O que se transcreve, com a devida vénia:

I – O arguido que se encontre em cumprimento de pena de prisão, pode ser sujeito a interrogatório noutro processo, com vista à eventual aplicação de medida de coacção de prisão preventiva…

II – E o facto de se encontrar em cumprimento de pena de prisão não é obstáculo a que nesse outro processo lhe seja aplicada a prisão preventiva, cuja execução, porém, só se iniciará a partir do momento em que o arguido termine o cumprimento da pena u deva ser colocado em liberdade condicional”.

17.º - Ou seja, respeitando integralmente os princípio do juiz natural, da estabilidade da instância e da legalidade substantiva, não deveria um outro tribunal ou um outro juiz – pôr fim a uma medida de coacção, (OPHC/VE) anteriormente imposta judicialmente a um arguido.

18.º - No caso “subjuditio” resulta que ao ordenar (executando de imediato) a gravosa medida de prisão preventiva, o M.º JIC fez cessar sem motivo previsto na lei processual a anterior medida de coacção, (OPHC/VE)

19.º - Violando assim o disposto no art.º 214.º do CPP que regula as causas taxativas de cessação dessa medida que são as seguintes:

a) Arquivamento do Inquérito.

b) Prolação de despacho de não pronúncia.

c) Prolacção do despacho que rejeitar a acusação…

d) Com a sentença absolutória, mesmo que dela tenha sido interposto recurso, ou

e) Com o trânsito em julgado da sentença condenatória.

20.º - Ou seja, apesar de não se encontrar contemplado taxativamente na alínea a) do art.º 222.º do CPP (prisão ordenada por entidade incompetente), entende-se que “in casu” existirá uma incompetência funcional do M.º JIC ao fazer cessar sem apoio legal uma medida de coacção a que anteriormente o peticionante já se encontrava sujeito.

21.º - Não se devendo considerar em todo o caso e numa interpretação meramente literal o M.º Juiz em questão “entidade incompetente” o certo é que esta sua decisão não deriva “tout court” e inexoravelmente da aplicação da Lei Processual Penal, - ficando-nos dúvidas se a decisão em causa não terá ultrapassado, pelas invocadas e descritas razões os limites da actividade jurisdicional - quanto mais não seja pela consabida violação do disposto no já mencionado art.º 214.º do CPP “supra” citado. Mesmo sem colocar em questão o disposto no art.º 8.º do CPP.

22.º - E nessa conformidade sempre em nosso modesto entendimento – a presente Providência deverá proceder pela subsunção do caso em apreço ao disposto na alínea b) do art.º 222.º do CPP, pois que o sentido da Lei o não permite.

23.º - É que, os meros indícios probatórios trazidos a estes autos – mesmo passíveis de aplicação da mais gravosa das medidas de coacção ao peticionante – pelas razões “supra” aduzidas, não poderiam justificar – face ao comando da Lei Penal Adjectiva - uma subalternização ou até extinção, como se viu ilegal, de anterior medida de coacção aplicada ao peticionante no âmbito desse outro processo.

24.º - Medida esta que à face da Lei só poderia ser revogada – com execução de medida mais gravosa como a de prisão preventiva - pelo Juiz titular desse outros autos à ordem dos quais o peticionante se encontra a aguardar o desfecho de recurso, alias já admitido pela instância e cuja tramitação se opera ainda agora no Tribunal da Relação de Lisboa.

25.º - Termos em que se entende que terá havido violação do princípio do juiz natural, na medida em que só o titular dos outros autos referidos teria a competência funcional para modificar a medida de coacção anteriormente aplicada e executar de imediato a medida de prisão preventiva.

26.º - Ou mesmo sem conceder, - e admitindo até a possibilidade de aplicação dessa medida de coacção - podendo considerar-se essa uma questão processual (de requisito de procedibilidade para a aplicação de medida detentiva) a caber na previsão do art.º 7.º do CPP e a ser decidida pela instância em ordem à suspensão da execução da dita prisão preventiva, até que o arguido fosse colocado em liberdade.

27.º - O que não se logrou efectuar.

28.º - Para além do mais, a suspensão da execução preventiva pode ser suspensa nos casos previsto no art.º 211.º do CPP – que não são taxativos.

29.º - Sendo as normas que regulam as medidas de coacção normas processuais materiais e obedecendo estas ao princípio da legalidade substantiva (art.º 29.º n.º 3 e 4 da CRP).

30.º - O certo é que a execução das medidas de coacção não deve prejudicar o exercício de direitos fundamentais do arguido que não forem incompatíveis com as exigências cautelares que o caso requer. E que no caso se mostram ter sido postergados.

31.º - Termos em que se deve considerar a prisão actual do peticionante ilegal.

32.º - A qualquer cidadão que se encontre ilegalmente preso, o STJ concede, sob petição, a Providência Extraordinária de HABEAS CORPUS, (art.º 222.º CPP e art.º 31.º da Constituição da República).

32.º - Pelo que se requer a imediata libertação do peticionante, por se entenderem preenchidos os requisitos do art.º 222.º alíneas a) e b) do CPP e art.º 31.º da Constituição da República.

A Mm.ª Juiz de Instrução Criminal do Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa – Juiz 7, prestou nos autos a informação a que se reporta o n.º 1 do art. 223.º do CPP nos seguintes termos (transcrição – itálico nosso):

O arguido apresentou petição de providência habeas corpus por prisão ilegal, ao abrigo do disposto nos artigos 222.º e 223.º do Código de Processo Penal, com os fundamentos na mesma consignados e que, em síntese, respeitam ao facto de o arguido ter sido sujeito a prisão preventiva após ter sido detido e interrogado no âmbito de processo 99/25.7S9LSB, apesar de no momento da detenção se encontrar a cumprir a medida de coacção de OPHVE aplicada no âmbito do processo n.º 642/24.9SDLSB, arguindo a defesa que o Juiz de Instrução Criminal não podia aplicar uma nova medida de coacção ao arguido, ainda que noutro processo diferente, somente o juiz titular para a prática de actos jurisdicionais do primeiro processo seria competente para agravar o estatuto coactivo a que o mesmo já estava sujeito (artigo 222.º, n.º 2, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal).

Dita o artigo 222.º do sobredito diploma, que a petição de habeas corpus deve fundar-se em ilegalidade de prisão por «a) ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial».

A prisão preventiva do arguido foi ordenada, por Juiz de Instrução Criminal, tendo o arguido sido detido em flagrante delito o que deu origem aos presentes autos (99/25.7S9LSB) — em respeito ao previsto nos artigos 17.º, 268.º, n.º 1, alínea b), e 194.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

Já foi entretanto deduzida acusação em processo abreviado nos presentes autos.

A circunstância de o arguido estar sujeito a OPHVE noutro processo não tem qualquer relevância ou ligação ao presente processo, e não há qualquer impedimento legal em serem aplicadas ao mesmo arguido várias medidas de coacção em processos autónomos e independentes entre si, sem que se faça uso da agravação do artigo 203.º do Código de Processo Penal, tal como ocorreu nos presentes autos.

A consideração da aplicação de medidas de coacção cumulativa ou separada (e.g., artigo 200.º do Código de Processo Penal), reporta-se à aplicação no mesmo processo, e a agravação do artigo 203.º do Código de Processo Penal respeita, também, ao próprio processo.

A circunstância de um arguido em OPHVE ser julgado fortemente indiciado pela prática de outro crime e ser sujeito a prisão preventiva apenas conduz a que o arguido fique em prisão preventiva, informando-se os autos onde o mesmo cumpria uma medida menos restritiva de que este já não poderá ficar sujeito a OPHVE, perdendo a mesma utilidade na prática enquanto o arguido se encontrar privado da liberdade no estabelecimento prisional.

A decisão sobre a medida de coacção aplicada no processo n.º 99/25.7S9LSB não afectou a decisão tomada no processo n.º 642/24.9SDLSB, apenas inviabilizou a sua execução, cabendo agora ao Juiz de Instrução Criminal do processo 642/24.9SDLSB apreciar o estatuto coactivo do arguido ao abrigo do artigo 212.º do Código de Processo Penal, não tendo aplicação o artigo 214.º do mesmo diploma, invocado pela defesa.

Por tal, não se vislumbra que haja qualquer suporte legal para o alegado na petição de habeas corpus, pois o Juiz de Instrução Criminal que presidiu ao 1.º interrogatório judicial de arguido detido era o Senhor Juiz de Instrução Criminal de turno, actuando no pleno exercício das suas funções, e decidindo aplicar uma medida de coacção de modo fundamentado, com cabimento legal, pois julgou o arguido como fortemente indiciado da prática de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, o qual admite prisão preventiva (artigos 347.º do Código Penal e 202.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal).

Resta, destarte, concluir, que, in casu, não se verifica qualquer situação passível de ser enquadrada como prisão ilegal, devendo a presente providência de habeas corpus ser indeferida, por inexistência de fundamento legal, mantendo-se o arguido AA sujeito à medida de coacção de prisão preventiva.

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Autue apenso de habeas corpus com certidão dos seguintes elementos, além do presente despacho e do requerimento que lhe deu origem, remetendo-os, pela via habitual, ao Supremo Tribunal de Justiça:

i. Auto de notícia, fls. 2 a 3;

ii. Despacho de apresentação de fls. 43 a 46

iii. Auto de primeiro interrogatório do dia 06-09-2025, fls. 63 a 72;

iv. Acusação em processo abreviado de fls. 78 a 81.

Resulta da certidão geral com que os autos foram instruídos a atualidade da prisão.

Convocada a secção criminal e notificados o Ministério Público e o mandatário do arguido, realizou-se audiência conforme previsto no artigo 223.º, n.º 2, do CPP.

Finda a audiência a secção reuniu para deliberação, como prevê o n.º 3 do mesmo artigo.

II – FUNDAMENTAÇÃO:

Os factos relevantes para a apreciação e decisão desta providência de habeas corpus são os enunciados na petição apresentada pelo requerente, na informação judicial prestada nos autos e na certidão com que estes foram instruídos, sem que se veja necessidade de solicitar qualquer elemento complementar, atenta a disponibilidade para consulta Citius do processo principal.

Dos autos resulta essencialmente e com relevo para a decisão desta providência o seguinte:

1. Por despacho proferido no processo n.º 642/24.9SDLSB pela Juiz de Instrução Criminal 23, foi imposta ao arguido AA a medida de coação de Obrigação de Permanência na Habitação sob Vigilância eletrónica.

2. Ulteriormente, por despacho de 6 de setembro de 2025, proferido no processo nº 99/25.7S9LSB-A pela Mma. Juiz de Instrução Criminal (JCIC de Lisboa – Juiz 7), foi imposta ao arguido a medida de coação de prisão preventiva, situação em que se encontra atualmente, por ter praticado factos suscetíveis de integrar a prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário, p. p. pelo art. 347º, nº 1, do Código Penal, a que corresponde a moldura abstrata de 1 a 8 anos de prisão, e um crime de injúria agravada, p. p. pelos arts. 181º, nº 1 e 184º, ambos do Código Penal.

A petição de habeas corpus é tempestiva, atenta a atualidade da privação da liberdade, tanto quanto é certo que o requerente se encontra em prisão preventiva.

A legitimidade do requerente é inquestionável à luz do disposto nos artigos 31.º, n.º 2, da CRP e 222.º, n.º 2, do CPP.

É pacífico na jurisprudência, como na doutrina, o entendimento de que o habeas corpus, no recorte dos artigos 31.º da Constituição da República Portuguesa e 220.º a 224.º do Código de Processo Penal, se traduz numa providência urgente e de natureza extraordinária que visa essencialmente garantir o direito à liberdade individual tutelado pelo art. 27.º da CRP, constituindo o adequado instrumento reativo contra o abuso de poder por detenção ou prisão ilegal, tendo como escopo a imediata reversão dessas situações, suposto que a ilegalidade da detenção ou da prisão se ofereça como manifesta, traduzindo ostensivo abuso de poder.

A lei processual penal distingue os procedimentos de habeas corpus por detenção ilegal e por prisão ilegal.

O requerente funda a sua pretensão em prisão ilegal.

No que tange à prisão ilegal, o procedimento correspondente pauta-se pela livre disponibilidade (pode ser requerido pelo próprio cidadão privado da liberdade ou por qualquer outra pessoa no gozo dos seus direitos políticos), pela celeridade (é apresentado à própria autoridade à ordem da qual o preso se encontrar, que o remete de imediato ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, sendo decidido pela competente Secção Criminal no prazo de oito dias) e pela simplicidade da tramitação (o seu objecto é restrito à previsão da alínea ou alíneas do n.º 2 do art. 222.º que quadrem ao caso, com exclusão de quaisquer outras questões de fundo ou de forma que extravasem aquele âmbito).

O Supremo Tribunal de Justiça vem considerando uniformemente que o habeas corpus só poderá fundar-se nas circunstâncias taxativamente previstas na lei, sendo inadmissível a utilização desta providência para sindicar os motivos determinantes da prisão, questionando o mérito da decisão que a impôs, a sua pertinência de facto ou de direito, ou quaisquer outras razões que não as expressamente previstas, susceptíveis de pôr em causa a legalidade da prisão ou a sua regularidade. Para essas finalidades dispõem os interessados do recurso ordinário nos termos em que a lei o admite.

No que especificamente concerne à prisão ilegal, que constitui o alicerce da pretensão do requerente, podem constituir fundamento de habeas corpus:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

O requerente sustenta a ilegalidade da prisão preventiva que lhe foi imposta na circunstância de, quando esta medida de coação lhe foi imposta, se encontrar sujeito à medida de Obrigação de Permanência na Habitação sob Vigilância Eletrónica determinada no Proc. nº 642/24.9SDLSB. Entende, em síntese, que a Mmª Juiz de Instrução Criminal não tinha competência funcional para o submeter a medida de coação diversa daquela que se encontrava a cumprir.

Manifestamente, não lhe assiste razão. As medidas de coação são provisórias por natureza, valendo exclusivamente no âmbito do processo em que foram determinadas. Quando uma autoridade judiciária, em novo processo iniciado por força da existência de novos factos típicos criminalmente relevantes, aplica uma medida de coação, não revê a medida de coação a que o arguido foi anteriormente submetido – apenas um tribunal superior o poderia fazer, em sede de recurso –, limitando-se a definir a situação coativa no âmbito do novo processo. Ocorrendo uma agravação das exigências preventivas, a situação pessoal do arguido pode sofrer alteração, suposto serem incompatíveis as medidas fixadas num e no outro daqueles processos e mais gravosas as que ex novo houverem de ser-lhe aplicadas. Já a inversa não é verdadeira, não podendo as medidas de coação mais recentemente impostas conduzir a um desagravamento da situação pessoal do arguido. No limite, sendo compatíveis, as medidas impostas nos dois processos poderão coexistir 1. Sendo incompatíveis, subsistirá (em execução) a mais gravosa. Assim, como no caso vertente sucedeu, estando o arguido submetido à medida de OPHVE e sendo-lhe imposta em outro processo a medida de coação de prisão preventiva, subsistirá esta última, por ser a mais gravosa. Não está em causa um qualquer “direito” do arguido a cumprir uma qualquer medida de coação, assim como não está em causa uma invasão da esfera da competência do juiz que fixou a primeira medida de coação pelo juiz que ulteriormente, no âmbito de outro processo, fixa novas medidas de coação. A nova medida de coação imposta – prisão preventiva – é comunicada ao processo em que havia sido fixada a OPHVE para conhecimento da alteração da situação pessoal do arguido. Mutatis mutandis, no caso de deixarem de subsistir as razões que determinaram a prisão preventiva haverá que efetuar a pertinente comunicação ao processo anterior para que aí se decida da subsistência das razões que haviam determinado a OPHVE. Nenhuma destas situações implica invasão da esfera funcional do juiz que anteriormente tenha fixado outras medidas de coação.

Em suma, a argumentação expendida pelo requerente não preenche qualquer dos fundamentos legais que poderiam sustentar a providência requerida, posto que não está em causa uma prisão ordenada por entidade incompetente, estando o requerente em prisão preventiva na sequência de medida de coacção que lhe foi imposta após primeiro interrogatório judicial; também não se trata de prisão motivada por facto pelo qual a lei a não permita; e não se trata, por fim, de prisão que tenha perdurado para além do prazo fixado na lei ou decorrente de decisão judicial. Consequentemente, o pedido de habeas corpus deverá ser indeferido por inequívoca e manifesta falta de fundamento bastante, de acordo com a previsão do art. 223.º, n.º 4, al. a), do Código de Processo Penal.

III – DISPOSITIVO:

Em conclusão, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em julgar manifestamente improcedente a petição de habeas corpus por falta de fundamento legal.

Atento o carácter manifestamente infundado da providência, condena-se o requerente no pagamento da quantia correspondente a 8 (oito) UC, nos termos do art. 223.º, n.º 6, do CPP.

Fixa-se a taxa de justiça devida em 3 (três) UC (art. 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e correspondente Tabela III).

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Supremo Tribunal de Justiça,18.09.2025

(Texto processado pelo relator com recurso a meios informáticos e revisto por todos os signatários)

Relator: Jorge Miranda Jacob

1º Adjunto: Vasques Osório

2º Adjunto: Ernesto Nascimento

Presidente da Secção: Helena Moniz

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1. - Assim, se por hipótese um arguido sujeito apenas a medida de proibição de contactar com os coarguidos for ulteriormente, em outro processo, sujeito à medida de proibição de se ausentar do território nacional sem autorização do tribunal, ambas as medidas subsistirão por não serem incompatíveis e terem em vista finalidades diversas.