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DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
RECUSA DE DEPOIMENTO
SUSPEITO
ARGUIDO
Sumário
(da responsabilidade da Relatora) I. A relação pessoal/familiar entre o arguido e a testemunha que justifica o reconhecimento do direito de recusa a prestar depoimento é exactamente a mesma, antes e depois da assunção formal do estatuto de arguido, como é a mesma a necessidade e a razão de ser do direito ao silêncio reconhecido às testemunhas nas condições previstas naquele art. 134º nº 1 als. a) a c) do CPP. II. Por conseguinte, para efeitos de aplicação do disposto no art. 134º do CPP, arguido é o autor dos factos sob investigação, já constituído ou a constituir com esse estatuto jurídico-processual, ainda que em momento posterior ao da inquirição como testemunha do seu familiar. III. Assim, na medida em que a advertência acerca da prerrogativa de recusa a depor prevista no art. 134º nº 2 do CPP é uma condição de validade e eficácia do depoimento, constitui uma formalidade essencial que deverá ser sempre observada e não depende da prévia constituição de alguém como arguido, por tal advertência ser uma forma de tutela das testemunhas em atenção a determinados vínculos existenciais que as ligam aos autores dos factos sob investigação e que não se alteram em função da qualidade de arguido ou da qualidade de mero suspeito.
Texto Integral
Os juízes da 3º Secção do Tribunal da Relação de Lisboa acordam, em conferência:
I – RELATÓRIO
Por despacho proferido em diligência de declarações para memória futura realizada em ... de ... de 2025, no âmbito do inquérito nº 918/24.5KRLSB do Tribunal Central Instrução Criminal, Juiz 1, com vista à inquirição da testemunha AA, filho dos suspeitos BB e CC, o Mmo. Juiz de Instrução Criminal, decidiu que não iria fazer a advertência prevista no artigo 134° do Código de Processo Penal, por entender que os denunciados não são ainda arguidos constituídos.
O Mº. Pº. interpôs recurso desta decisão, tendo, para o efeito, formulado as seguintes conclusões:
1 – No presente inquérito investigam-se factos susceptíveis de integrarem a prática do crime de violência doméstica, sendo vítima AA, filho dos denunciados/suspeitos BB e CC.
2 – Em cumprimento do disposto no artigo 33.º, n.º 1 da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro e no artigo 271.º do Código de Processo Penal, o Ministério Público promoveu a tomada de declarações à vítima menor e fê-lo sem que, previamente, os denunciados tenham sido constituídos arguidas. Por essa razão, mais requereu o Ministério Público a presença do mandatário constituído pelos denunciados/suspeitos e a sua notificação para estar presente no acto, nos termos do disposto no artigo 64.º, n.º 1, alínea f) do Código de Processo Penal, com vista ao cabal exercício do direito ao contraditório.
3 – O Ministério Público fê-lo, ainda, tendo em vista a recolha de prova suficiente que sustente a constituição como arguidos dos denunciados/suspeitos.
4 – O Mmo. Juiz de Instrução, a quo, deferiu a tomada de declarações para memória futura da vítima promovida, em momento anterior à constituição como arguidos dos denunciados e determinou a nomeação/ presença do mandatário daqueles, para estar presente na diligência agendada.
5 – Todavia, no início da tomada de declarações para memória futura da vítima, encontrando-se presente o Ministério Público e o mandatário dos suspeitos dos embora se verificasse uma das qualidades previstas no artigo 134.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, o Mmo. Juiz de Instrução a quo, não procedeu à advertência do n.º 2 do mesmo dispositivo legal, com o fundamento da lei prever que tal obrigação apenas deve ser cumprida quando exista arguido e não denunciado/suspeito, como acontece no caso concreto, fazendo uma interpretação literal do preceito, sem considerar a globalidade do sistema legal.
6 – Salvo o devido respeito, que é muito, o Ministério Público não entende, desde logo, porque motivo o Mmo. Juiz de Instrução a quo, procedeu (e bem) à nomeação de defensor aos denunciados embora a lei preveja “arguido” e no que respeita à advertência nos termos do artigo 134.º, n.º 2 do Código de Processo Penal não o fez, com o argumento de não haver arguido constituído, mas apenas denunciados.
7 – Por outro lado, a realização da diligência em causa, com a omissão voluntária da advertência nos termos do disposto no artigo 134.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, tem a consequência das declarações prestadas nestes moldes não poderem ser utilizadas como prova, mostrando-se inevitável, pelo menos, que a vítima seja novamente chamada em sede de audiência de julgamento, a fim de colmatar tal falta, o que com as declarações para memória futura promovidas, de todo, se pretendeu evitar.
8 – Em nosso entendimento, o Mmo. Juiz de Instrução ao não dar cumprimento à advertência prevista no artigo 134.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, com o fundamento de não existir arguido constituído, fê-lo em violação do disposto nos artigos 32.º, n.º 8, 2.ª parte da Constituição da República Portuguesa e 126.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
9 – A possibilidade de um familiar próximo vir a ser constrangido a testemunhar contra outro perturba a confiança, fundada no afecto ou nas projecções sociais sobre o afecto devido, que é cimento da coesão desse elemento básico da sociedade.
10 – A possibilidade de recusa a depor, em resultado da advertência prevista no artigo 134.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, não consubstancia uma garantia de defesa, nem existe em atenção ao arguido, mas sim, em benefício e para protecção exclusiva da própria testemunha, vítima, assistente, parte civil e da sua família, sendo de todo irrelevante, que a pessoa identificada como autor dos factos integradores do crime em investigação, seja só suspeito ou tenha já sido constituído arguido.
11 – Razão pela qual o despacho ora em crise, deve ser substituído por outro, onde se determine a advertência da vítima, nos termos do disposto no artigo 134.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, no início da tomada de declarações para memória futura.
Termos em que deve ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão proferida, e em consequência, que seja designada data para a realização da diligência de tomada de declarações para memória futura requerida, à vítima dando-se cumprimento à advertência prevista no artigo 134.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
Admitido o recurso, os denunciados foram notificados para responder, o que fizeram, tendo concluído o seguinte, na sua resposta ao recurso:
A. Consideram os Denunciados que assiste total razão ao Ministério Público e que o recurso se alicerça em fundamentos válidos, devendo o mesmo ser considerado procedente.
B. Com o devido respeito, que é muitíssimo, o Senhor Juiz a quo andou mal ao considerar que não haveria que dar cumprimento à advertência constante no artigo 134.º, n.º 2, do CPP, aquando da prestação de declarações para memória futura do depoente menor, filho dos Denunciados, pela circunstância de os Denunciados, apesar de serem pais do depoente, não terem sido constituídos arguidos.
C. Consideram os Denunciados que, nesta situação, deveria o depoente ser advertido de que lhe assiste o direito de recusar o depoimento, em conformidade com o disposto no artigo 134.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do CPP, sob pena de nulidade.
D. Conforme bem elucida o Ministério Público, na base deste direito da testemunha reside o propósito de proteger as relações de confiança e solidariedade próprias dos vínculos familiares e análogos, devendo ser conferida à testemunha a possibilidade de recusar contribuir para a incriminação de um parente próximo ou cônjuge.
E. Efetivamente, a razão de ser da norma mantém-se, quer o visado no processo- crime tenha sido constituído arguido, quer não o tenha sido, pois o que releva é a relação da testemunha com o visado no processo.
F. Acresce que, no caso em apreço, o Exmo. Sr. Juiz de Instrução, aquando da designação da data para a tomada das declarações, determinou – e bem – a notificação dos Denunciados, dando nota da obrigatoriedade de comparência do respetivo defensor no ato, embora também nesse caso a Lei se refira ao “arguido” e seu defensor e não ao “visado/denunciado” e seu defensor.
G. Já na sequência da interposição do recurso, o Exmo. Sr. Juiz de Instrução incorreu em mais uma flagrante contradição ao determinar – e bem – a notificação dos Denunciados para efeitos de apresentação da respetiva resposta.
H. A ser de considerar, como se considerou na Decisão recorrida, que não se impunha o dever de advertir o filho dos Denunciados relativamente ao direito de se recusar a prestar depoimento, por não terem aqueles sido constituídos arguidos, também agora, com base no mesmo fundamento, não haveria que os notificar do recurso interposto e para efeitos de exercício do direito de resposta.
I. Assim se vê a contradição em que laborou o Exmo. Senhor Juiz a quo ao optar por não dar cumprimento àquela advertência.
J. Pelo exposto, pese embora nada temam os Denunciados quanto ao teor das declarações que o seu filho possa pretender prestar diante do Exmo. Senhor Juiz a quo, merece a nossa total concordância a posição expressa pelo Ministério Público no seu recurso, devendo o mesmo ser considerado procedente e, em consequência, ser revogada a Decisão recorrida.
Nestes termos e nos melhores de Direito, deve o recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida, assim se fazendo a costumada Justiça.
Remetido o processo a este Tribunal, na vista a que se refere o art. 416º do CPP, o Exmo. Sr. Procurador Geral da República Adjunto emitiu parecer, concluindo:
«Confrontados os fundamentos do recurso e da douta decisão recorrida, acompanhamos o recurso do Ministério Público junto da 1.ª instância, o qual dispensa qualquer acréscimo, pelo que o nosso parecer é no sentido de que o recurso deve ser julgado procedente, revogando-se, assim, a douta decisão impugnada.»
Cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do CPP, não houve resposta.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, nos termos e para os efeitos previstos nos arts. 418º e 419º nº 3 al. c) do CPP, cumpre, então, decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E IDENTIFICAÇÃO DAS QUESTÕES A DECIDIR:
De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art. 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005).
Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061).
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º por remissão do art. 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art. 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art. 410º nº 2 do mesmo diploma;
Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito.
Seguindo esta ordem lógica, face às conclusões do recurso, a única questão a decidir é saber se o Mmo. JIC deveria ter feito a advertência prevista no arts. 134º nº 1 als. a) e b) do CPP, à testemunha cuja inquirição em declarações para memória futura foi iniciada em ... de ... de 2025, ou, se como decidiu, não tinha de a fazer, em virtude de ainda não haver arguido constituído como tal.
2.2. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos a considerar, com relevo para a apreciação do recurso, são os seguintes:
O presente inquérito iniciou-se com a denúncia de factos susceptíveis de integrarem, em abstracto, crimes de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º nº 1, al. d), e nº 2, al. a) do Código Penal, praticados por BB e CC e na pessoa do filho de ambos, AA, (participação com a referência Citius 26112768);
Neste processo, realizou-se, no dia ... de ... de 2025, diligência judicial de tomada de declarações para memória futura com vista à inquirição como testemunha, de AA (auto com a referência Citius 9417659);
No decurso da diligência, logo após a identificação da testemunha, o Mmo. JIC fez-lhe a advertência de que «está obrigado a responder e a responder com verdade, nos termos do artigo 91.º, n.º 6, al. a) do Código de Processo Penal» (auto com a referência Citius 9417659);
Nessa sequência, o Magistrado do Mº. Pº. presente requereu que o ofendido, uma vez que é filho dos aqui denunciados, deverá nesta diligência ser advertido nos termos do disposto no artigo 134.º do Código de Processo Penal sob pena das suas declarações não serem válidas em sede de julgamento (auto com a referência Citius 9417659);
Relativamente ao requerido pelo Ministério Público, foi dada a palavra ao Ilustre Mandatário dos denunciados, o qual afirmou que o ofendido deverá ser advertido nos termos do disposto no artigo 134.º do Código de Processo Penal (auto com a referência Citius 9417659);
Foi então proferido o despacho recorrido que tem o seguinte teor (transcrição integral):
Por não concordarmos com o entendimento do Ministério Público, por entendermos que destinatários da faculdade de recusar depoimento são as pessoas elencadas no art.º 134.º, n.º 1, als. a) e b) do Código de Processo Penal, ligadas por um vínculo familiar ou análogo a quem é arguido e não mero suspeito, entendemos que no caso vertente, por não haver arguido constituído, não há que dar cumprimento ao disposto no art.º 134.º, n.º 1, al. a) do referido diploma legal.
Apenas os familiares e afins do arguido ou as pessoas que com este conviverem em união de facto têm a faculdade de se recusarem a depor como testemunhas, não abrangendo tal direito de recusa os familiares, afins e pessoas que convivam em união de facto com um mero suspeito, assistente ou partes civis – neste sentido, cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 2011, 4.ª edição atualizada, pp. 374, anotação 1.
A possibilidade de recusa tem como parâmetros a posição relativa ocupada pelo arguido e aquele cuja recusa se configura, pelo que a circunstância de a testemunha ter um vínculo familiar ou análogo a quem é um mero suspeito não constitui fundamento legal de recusa a prestar depoimento – neste sentido, cfr. António Gama e Luís Lemos Triunfante, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo II, Livraria Almedina, 2021, 3.ª ed.ª, pp. 131, § 15.
A respeito da natureza excecional da recusa em depor, realça o Exm.º Senhor Desembargador Cruz Bucho, em sentido coincidente: “As alíneas a) e b) do citado artigo 134.º enumeram as pessoas que podem recusar-se a depor. Vimos, porém, que nos termos do artigo 131.º, n.º 1 do CPP qualquer pessoa que não se encontrar interdita por anomalia psíquica tem capacidade para ser testemunha e só pode recusar-se nos casos previstos na lei. A regra geral é, pois, a obrigação de depor. O direito de recusa assume, assim, natureza excecional. Por isso, no direito português só podem recusar-se a depor as pessoas expressa e taxativamente indicadas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do citado artigo 134.º, ou seja:
“a) Os descendentes, os ascendentes, os irmãos, os afins até ao 2.º grau, os adoptantes, os adoptados e o cônjuge do arguido;
b) Quem tiver sido cônjuge do arguido ou quem, sendo de outro ou do mesmo sexo, com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação”.
A norma constante do artigo 134.º reveste natureza excecional. Não consente aplicação analógica (artigo 11.º do Código Civil) nem sequer interpretação extensiva por o legislador apenas ter querido abranger as pessoas indicadas no referido preceito (…).
Finalmente importa destacar que, à semelhança do que se passa no ordenamento jurídico germânico, também entre nós o direito de recusa só existe caso o familiar da testemunha seja já arguido.
O direito de recusa é outorgado aos familiares do arguido e não aos familiares de meros suspeitos.
O reconhecimento daquele direito pressupõe, por conseguinte, que a constituição de arguido tenha sido formalizada nos termos dos artigos 57.º e 58.º do CPP” – José Manuel Saporiti Machado de Cruz Bucho, A Recusa de Depoimento de Familiares do Arguido: o Privilégio Familiar em Processo Penal (notas de estudo), pps. 52 a 55.
O legislador pronunciou-se em termos precisos e adequados, não sendo por isso curial interpretar a norma em análise como abrangendo também os familiares dos suspeitos – neste sentido, cfr., igualmente, M. Simas Santos e M. Leal Henriques, Código de Processo Penal Anotado, I Volume, Editora Rei dos Livros, 1999, 2.ª edição, pps. 731 e 732.
Como se enfatiza no Código de Processo Penal, Comentários e notas práticas, Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, Coimbra Editora, 2009, pp. 359, transcrevendo o Ac. RL, de 21/02/2007, proc. 9335/2006-3, “Porque constitui excepção ao princípio geral da obrigatoriedade de prestar depoimento ínsito no art. 131.º, n.º 1 do CPP, não pode o art. 134.º do mesmo Código ser alargado, extensiva ou analogicamente, a outras situações que não estejam ali expressamente previstas”.
A este propósito, pode ler-se no recente acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, de 06/02/2024, relatado pelo Exm.º Sr. Desembargador Rui Coelho, disponível em INTERNET, http://www.dgsi.pt/jtrl, proferido na sequência de um recurso intentado pelo Ministério Público de um despacho nosso em que se entendeu não dever ser dado cumprimento à advertência prevista no artigo 134.º, n.º 2 do Cód. Processo Penal, com o fundamento de não existir arguido constituído (processo com o NUIPC 541/23.1SXLSB), ser “manifesto que o regime fixado se destina à salvaguarda do Arguido. E só o arguido beneficia desta prerrogativa consagrada na lei e que é, manifestamente, uma exceção ao regime geral de depoimento de testemunhas, assistentes e partes civis, todos eles obrigados aos deveres de colaboração com a Justiça e de verdade quando ouvidos em juízo”, entendimento que perfilhamos.
E pode ler-se, num ainda mais recente acórdão do Venerando Tribunal da Relação
de Lisboa, de 07/05/2024, relatado pelo Exm.º Sr. Desembargador Rui Coelho, disponível em INTERNET, http://www.dgsi.pt/jtrl, proferido na sequência de um recurso intentado pelo Ministério Público de um despacho nosso em que se entendeu não dever ser dado cumprimento à advertência prevista no artigo 134.º, n.º 2 do Cód. Processo Penal, com o fundamento de não existir arguido constituído (processo com o NUIPC 76/24.5SXLSB), que “O Ministério Público assumiu uma estratégia. Não pode, porém, socorrer-se de um regime que não foi pensado para acudir aos direitos de determinada pessoa que nem sequer é, ainda, sujeito processual. Tanto mais que, sendo um princípio geral estruturante do processo penal português que a prova deverá ser produzida em audiência (art. 355.º do Código de Processo Penal), a opção por soluções diferentes deverá respeitar os preceitos especificamente criados para cada uma das exceções. Ou seja, a norma em apreço é excecional pelo que não deverá o intérprete aplicá-la de acordo com uma interpretação analógica ou extensiva. No caso das declarações para memória futura nenhuma previsão determina que a advertência prevista no art. 134.º do Código de Processo Penal, criada para salvaguarda dos direitos do Arguido, seja alargada para salvaguarda dos direitos do “suspeito”, entendimento que perfilhamos.
Entendimento este que foi, igualmente, defendido no recente acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, de 04/06/2024, relatado pela Exm.ª Srª. Desembargadora Carla Francisco, proferido na sequência de um recurso intentado pelo Ministério Público de um despacho nosso em que se entendeu não dever ser dado cumprimento à advertência prevista no artigo 134.º, n.º 2 do Cód. Processo Penal, com o fundamento de não existir arguido constituído (processo com o NUIPC 1141/23.1PALSB), entendimento que perfilhamos, motivo pelo qual, neste particular, se indefere o promovido, por entendermos que a pretensão do Ministério Público, acompanhada pela Ilustre Defesa dos denunciados, de a testemunha presente dever ser advertida, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 134.º, n.ºs 1, al. a) e 2 do Cód. Processo Penal, carecer de fundamento legal.
2.3. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
O art. 134º do CPP prevê a possibilidade de recusar a prestação de depoimento na qualidade de testemunhas a três grupos de pessoas:
Na alínea a) do nº 1, aos descendentes, aos ascendentes, aos irmãos, aos afins até ao segundo grau, aos adoptantes, aos adoptados e ao cônjuge do arguido;
Na alínea b) do nº 1, a quem tiver sido cônjuge do arguido ou quem, sendo de outro ou do mesmo sexo, com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação.
Na alínea c) do nº 1, a membro do órgão da pessoa colectiva ou da entidade equiparada que não seja representante da mesma no processo em que ela seja arguida.
Por seu turno, o nº 2 impõe à entidade competente para receber o depoimento, que informe as pessoas referidas no número 1 als. a) a c) dessa prerrogativa de recusarem depoimento, sendo a omissão de tal advertência cominada com a sanção da nulidade.
«A prova por testemunhas vem à cabeça de todas as outras, é a prova de uso mais frequente, porque é, na maioria dos casos, a única que se pode produzir» (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. IV, reimpressão, Coimbra Editora, 1981, pág. 360).
«Dentro do quadro das provas, a prova testemunhal é a que mais utiliza e mais aproveita ao processo penal, pois o testemunho é o modo mais adequado para recordar e reconstituir os acontecimentos humanos, é a prova na qual a investigação judicial se desenvolve com maior energia» (Cruz Bucho, A Recusa de Depoimento de Familiares do Arguido: o Privilégio Familiar em Processo Penal (notas de estudo), 2015, pág. 3, nota 2, citando Eugénio Florian, https://www.trg.pt/ficheiros/estudos/recusa%20de%20depoimentotexto.pdf. No mesmo sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, 5ª ed., Lisboa, 2011, Verbo, pág. 201).
Mas é também a mais falível e uma das que convoca maiores cautelas de valoração e tratamento como fonte de formação da convicção do julgador.
A recusa a depor prevista no art. 134º da CPP foi a concretização do propósito de «abolição de diferença estatutária entre testemunhas e declarantes» que estava consagrada no antigo art. 216º do CPP de 1929, tal como anunciado na Lei de autorização legislativa em matéria de processo penal, a Lei nº 43/86, de 26 de Setembro (cfr. artigo 2.º, nº 2, alínea 23) e para colmatar a falta de clareza e de correcção do anterior regime jurídico que redundava na primazia da prova testemunhal sobre a prova por declarações, apenas com base no juramento (cfr. artigos 96.º§1 e 97.º, n.º1 do CPP de 1929), presumindo ou ficcionando uma espécie de «capitis diminutio» ou de estatuto de «suspeição», exclusivamente dependente da condição de «ascendentes, descendentes, irmãos e afins nos mesmos graus, marido ou mulher do ofendido, da parte acusadora e do arguido», no caso da previsão do nº 3 § 1º do citado art. 216º, sem correspondência no direito substantivo e ignorando as reais circunstâncias aptas a determinar com segurança a credibilidade e verosimilhança dos relatos para reconstituir acontecimentos humanos, bem assim, que essas circunstâncias operam, independentemente, daqueles vínculos parentais.
«O artigo 134.º do Código de Processo Penal de 1987 surgiu na sequência da supressão da distinção entre as figuras de testemunha e de declarante, que existia no direito anterior (cf. artigo 214.º e segs. do Código de Processo Penal de 1929), e do alargamento do princípio geral de que todas as pessoas poderão depor como testemunhas, com exclusão dos interditos por anomalia psíquica, nos termos do artigo 131.º, e daqueles que estão legalmente impedidos de prestar testemunho, em função do seu posicionamento processual (os arguidos, assistentes e partes cíveis) ou por estarem sujeitos ao “dever de segredo”. Insere-se num conjunto de situações típicas (cf. artigos 132.º, n.º 2, 134.º e 135.º) que, em derrogação do dever jurídico de prestar declarações que incumbe às testemunhas [cf. artigo 132.º n.º 1, alínea d); dever penalmente censurado no artigo 360º do Código Penal, em caso de falso testemunho], consagram o direito a recusar depoimento (aliás, em algumas das hipóteses a recusa é um dever profissional ou deontológico)» (Ac. do TC nº 154/2009, in http://www.tribunalconstitucional.pt).
O direito de recusa previsto neste art. 134º do CPP corresponde a uma tomada de posição expressa do legislador no sentido de resolver um conflito de deveres, no confronto entre o poder punitivo do Estado na administração da justiça penal e o dilema ou conflito de consciência das pessoas nas condições previstas no citado art. 134º nº 1 als. a) a c) entre responder com verdade às perguntas sobre os factos objecto do processo, assim contribuindo decisivamente para a responsabilização criminal do seu familiar ou cônjuge ou parceiro íntimo, ou a sociedade de que é sócio, ou, ao invés, mentirem, com isso praticando um crime – o crime de falsidade de testemunho - para encobrirem ou favorecerem o arguido, quebrando, ora os valores de solidariedade e confiança considerados essenciais à instituição familiar, ora entorpecendo a acção da justiça e descredibilizando-a, produzindo provas deliberadamente inverídicas, por iniciativa e com a conivência do próprio do Mº. Pº., dos OPC e dos Tribunais.
Por isso, o legislador penal entendeu fazer ceder o interesse público da descoberta da verdade, no processo penal, ao interesse da comunidade na existência de relações de confiança entre os membros da mesma família, garantindo o interesse da testemunha em não ser forçada a prestar declarações, de forma a que não sinta a sua consciência violentada por incriminar, por força do seu depoimento, pessoa que lhe é próxima em virtude das ligações de parentesco, de afinidade ou societárias.
Nos casos das als. a) e b) do art. 134º nº 1 do CPP, «trata-se, inter alia e fundamentalmente de: prevenir formas larvadas e indirectas de auto-incriminação; preservar a integridade e a confiança nas relações de maior proximidade familiar; proteger o alargado espectro de valores individuais e supra-individuais pertinentes à área de tutela da incriminação da violação de segredo profissional ou de segredos para este efeito equivalentes, como, v. g., o segredo de ministro de religião; poupar as pessoas concretamente envolvidas às situações dilemáticas de conflito de consciência de ter de escolher entre mentir ou ter de contribuir para a condenação de familiares ou de clientes» (Costa Andrade, “Bruscamente no verão passado”, a reforma do Código de Processo Penal – Observações críticas sobre uma lei que podia e devia ter sido diferente, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 137º, n.º 3950, pág. 280. No mesmo sentido, António Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes, Pereira Madeira e António Henriques Pires da Graça, in Código de Processo Penal Anotado Comentado, pág. 531).
«Com o direito de recusa evidencia-se que, (…), «não é nenhum princípio da ordenação processual que a verdade deva ser investigada a todo o preço» (…). De facto, embora a descoberta da verdade constitua finalidade essencial de todo o processo penal (…) e elemento fundamental para uma correcta administração da justiça, a qual, enquanto vector essencial à manutenção da comunidade juridicamente organizada, representa uma vertente informadora da própria ideia de Estado-de-Direito (…), a eventual perda de prova com possível relevância para a descoberta da verdade será de aceitar nos casos em que a sua aquisição se traduza na lesão de um bem mais valioso. É o que sucede com o privilégio constante do artigo 134.°, n.º 1, do CPP: a lei renuncia ao possível conhecimento probatório da testemunha, ou melhor, renuncia aos meios de constrangimento destinados a obter o depoimento, deixando nas mãos da testemunha a decisão de prestar declarações (… ). E para que tal decisão seja efectivamente fruto de uma escolha livre e esclarecida a lei impõe às entidades competentes para receber o depoimento, uma vez verificado o laço familiar legalmente consignado, a obrigação de advertir a testemunha, «sob pena de nulidade, da faculdade que lhes assiste de recusar o depoimento» (artigo 134º n.º 2 do CPP) (…)». (Medina de Seiça, Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Janeiro de 1996, “Prova Testemunhal. Recusa de Depoimento de Familiar de um dos Arguidos em Caso de Co-Arguição”, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 6, Fasc. 3º, pág. 492 e 493).
«Trata-se de uma forma de protecção dos escrúpulos de consciência e das vinculações sócio-afectivas respeitantes à vida familiar que encontra apoio no n.º 1 do artigo 67.º da Constituição e que outorga ao indivíduo uma faculdade que se compreende no direito (geral) ao desenvolvimento da personalidade, também consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, enquanto materialização do postulado básico da dignidade da pessoa humana (…)» (Ac. do Tribunal Constitucional nº 154/2009, in http://www.tribunalconstitucional.pt).
Assim, nas situações taxativamente previstas no citado dispositivo, a testemunha pode recusar-se válida e eficazmente a prestar depoimento, ao contrário do que sucede com as testemunhas em geral, cujos deveres incluem, nos termos do art. 132º do CPP, o de responder e com verdade a todas as perguntas que lhes forem dirigidas, sob pena de incorrerem, na prática de um crime de desobediência, caso recusem prestar depoimento sem motivo válido, como acontecerá, quando o fizerem fora das condições previstas naquele 134º do CPP.
Porém, se a testemunha optar por depor, as suas declarações ficam simplesmente sujeitas ao princípio da livre apreciação da prova, nos termos do art. 127º do CPP e a partir do momento em que, depois de elucidada acerca do seu próprio direito ao silêncio, a pessoa visada opte por ser inquirida e responder às perguntas sobre os factos, reassume, de pleno, todos os deveres inerentes à condição de testemunha.
No que se refere à inobservância do preceituado no art. 134º nº 2 do CPP, este normativo sanciona-a expressamente com a nulidade.
O direito de recusar prestar depoimento, nos termos do artigo 134º nº 1 als. a) e b) do CPP, não está directamente relacionada com a intromissão na vida privada, mas antes com o facto de as pessoas ligadas ao arguido por vínculos de parentesco e/ou de afinidade não serem obrigadas a prestar um depoimento incriminatório, contra este, sujeitando-se à prestação de juramento e às consequências que lhe são inerentes.
Com efeito, se o que está em causa, com o cumprimento do dever de informação acerca da prerrogativa de se recusar a prestar depoimento, verificado o circunstancialismo do nº 1 do art. 134º, é poupar a testemunha ao conflito entre o dever jurídico de falar com verdade e o dever ético de fidelidade a um seu familiar próximo, da omissão do dever de informação não resulta qualquer violação da vida privada da testemunha, porque não ocorre qualquer acção do Tribunal que viole esse bem jurídico. Apenas está em causa a coesão familiar e a integridade do laço existencial que une a testemunha ao autor dos factos sob investigação ou julgamento.
O que acontece é tão-só a inobservância de uma formalidade, cuja consequência é a nulidade do acto, como a própria lei expressamente indica (“sob pena de nulidade”), nulidade esta, que é sanável, porque não consta da enumeração taxativa das nulidades insanáveis do art. 119º do CPP.
Por conseguinte, atenta a razão de ser das normas insertas no art. 134º do CPP e o princípio da legalidade, em matéria de nulidades, consagrado no art. 118º do CPP, a omissão do dever de advertência da faculdade de recusa a depor não envolve qualquer proibição de prova, antes constituindo uma nulidade relativa, que, de acordo com o disposto no art. 120º nº 3 al. d) do CPP, terá de ser arguida até à conclusão do depoimento em causa, sob pena de sanação (neste sentido, Acs. do STJ de 04.07.2018, proc. 1006/15.0JABRG-D.S1 e de 21.03.2019, proc. nº 356/17.6GACSC-A.S1; Acs da Relação de Évora de 13.07.2017, proc. 1508/15.9T9BJA.E1, da Relação de Coimbra de 07.03.2018, processo 94/14.1GBPBL.C1, da Relação do Porto de 06.04.2022, proc. 2218/20.0T9VFR.P1, in http://www.dgsi.pt), competindo à testemunha visada, e apenas a ela, a legitimidade para invocar o vício da omissão de advertência contida no nº 2 do art. 134º do CPP (Acs. do STJ de 21.10.2009, proc. 12124/04.0TDLSB–A.S1 e de 20.06.2018, processo 1014/11.0PHMTS-B.P1.S1, http://www.dgsi.pt).
«Se a entidade competente não fizer essa advertência o depoimento é nulo, ficando sujeito ao regime das disposições combinadas dos arts. 120.º e 121.º. Isto é: a nulidade daí decorrente, porque não incluída no elenco configurado pelo art. 119.º (que arrola as nulidades insanáveis) nem consta, como tal, de qualquer outra norma da lei, assume a natureza de nulidade relativa ou sanável, por isso dependente de arguição e em momento determinado (até à conclusão do depoimento, de acordo com o estatuído na al. a) do n.º 3, do art. 120.º)» (Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, Código de Processo Penal - Anotado, 3.ª edição, Editora Rei dos Livros, 2008, pág. 957, em anotação ao artigo 134.º do CPP).
«Este último parece ser, em nosso entender, o melhor entendimento pois que, sendo certo que inexiste uma observância de formalidade legal, da mesma não resulta qualquer violação da vida privada.
A nulidade resultante da proibição do n.º 2 do artigo 126.º tem de ser aferida em relação a uma violação directa. Referindo o n.º 2 do normativo ora em análise a nulidade do depoimento tal nulidade só pode referir-se à prevista no artigo 118.º, do Código de Processo Penal.» (Santos Cabral, Código de Processo Penal - Comentado, Almedina, 2014, pág. 533, § 6 da anotação ao artigo 134.º, do CPP. No mesmo sentido, Maia Gonçalves, Código de Processo Penal - Anotado, 17.ª edição, Almedina, 2009, pág. 369, § 5 da anotação ao mesmo artigo 134.º do CPP, Paulo Sousa Mendes, «As proibições de prova no processo penal», nas «Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais», Almedina, 2004, pp. 149/150, e em «Lições de Direito Processual Penal», Almedina, 2014, pág. 190, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. II, 4.ª edição, Verbo, 2008, pág. 168, Cruz Bucho, «A recusa de depoimento de familiares do arguido: O privilégio familiar em processo penal», (notas de estudo), 2015, pág. 163, https://www.trg.pt/info/estudos/279-a-recusa-de-depoimento-de-familiares-do-arguido-o-privilegio-familiar-em-processo-penal-notas-de-estudo.html e António Gama e Luís Lemos Triunfante, «Comentário Judiciário do Código de Processo Penal», Tomo II, Almedina, 2019, pp. 139/140).
No presente processo, a testemunha a ser ouvida em declarações para memória futura é filho das pessoas identificadas como autoras de factos praticados contra a testemunha a ouvir em declarações para memória futura e susceptíveis de integrar a prática de crimes de violência doméstica.
O Mmo. Juiz de Instrução Criminal considerou que não tinha de efectuar a advertência contida no art. 134º nº 2 do CPP em virtude de ainda não haver arguido como tal constituído.
A esta tomada de posição parece estar subjacente o entendimento de que a constituição de arguido tem de ser necessariamente prévia à inquirição como testemunha de alguma das pessoas da sua família, ou das suas relações íntimas ou societárias, daquelas que se enquadram na previsão do art. 134º nº 1 als. a) a c) do CPP.
Porém, a ter sido este o entendimento, o mesmo não tem correspondência, nem na letra, nem no espírito da lei, nem na unidade do sistema jurídico.
Não se ignora que o art. 134º do CPP se refere expressamente a arguido.
Mas o que não estabelece é a sequência cronológica entre a constituição de arguido e a realização das diligências de investigação pertinentes à fase do inquérito, nisso, aliás, não se distinguindo a produção de prova testemunhal, ou por declarações dos assistentes e partes civis, das restantes provas e meios de obtenção de prova.
O CPP sanciona como nulidade insanável, nos termos do art.119º nºs 1 e 2 al. d), a falta do inquérito, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade.
Esta obrigatoriedade de realização do inquérito confunde-se com dever de investigar do Mº. Pº., cuja configuração resulta da conjugação das atribuições e competências que em matéria de investigação criminal e acção penal lhe estão estatutariamente atribuídas, nos termos dos arts. 3º nº 1 al. c); 47º; 58º e 63º da Lei 47/86, de 15.10, segundo a redacção da Lei 114/2017, de 29.12 e das regras específicas que regem a tramitação do processo penal, com especial enfoque, nos arts. 48º a 56º do CPP e nas que se referem às finalidades e razão de ser do inquérito, contidas nos arts. 262º e seguintes do mesmo código.
Consequentemente, a notícia de factos em relação aos quais não seja evidente, nem notório que são destituídos de tutela penal (seja por via da prescrição, de amnistia, da extinção do direito de queixa, de despenalização resultante da sucessão de leis penais no tempo, ou da manifesta falta de tipicidade) dará sempre lugar à instauração de inquérito e um dos actos legalmente obrigatórios no inquérito é, precisamente, o da constituição como arguido nos termos dos arts. 58º e 59º do CPP (Paulo Pinto de Albuquerque, Código de Processo Penal Anotado, 2007, pág. 313, nota 6 ao art. 120.º; Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, 2002, Vol. II, p. 84).
Não há dúvida de que, tendo o inquérito por finalidade a prolação de uma decisão sobre a acusação (artigo 262º nº 1 do CPP) e de que, para tal efeito, é essencial averiguar da ocorrência de um crime, da identificação do seu autor ou autores e da respectiva responsabilidade, na medida em que o processo penal visa a descoberta da verdade e a realização da justiça, a necessidade de audição daquele ou daqueles contra quem o inquérito é instaurado, surge como uma das manifestações das garantias de defesa do arguido consagradas, em geral, no art. 32º nº 1 da Constituição sob a forma do direito a ser ouvido pela autoridade judiciária antes de ser tomada qualquer decisão que pessoalmente o afecte, nos termos dos art. 61º nº 1 al. b); 141º e 144º do CPP.
O art. 272º do CPP, de harmonia com as referidas garantias de defesa impõe a obrigatoriedade da realização do interrogatório do arguido, se o inquérito correr contra pessoa determinada em relação à qual haja fundada suspeita da prática de crime e desde que seja possível notificá-la.
O art. 57º nº 1 do CPP estabelece que «assume a qualidade de arguido todo aquele contra quem for deduzida a acusação ou requerida a instrução num processo penal».
E a previsão contida no art. 58º do mesmo diploma prevê outras causas de constituição como arguido que podem ocorrer antes da dedução da acusação, como defluí da expressão «sem prejuízo do disposto no artigo anterior».
Entre elas, contam-se, na al. a), a existência de inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime, logo que esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal e, na al. d), quando foi levantado auto de notícia que dê uma pessoa como agente de um crime e aquele lhe for comunicado, salvo se a notícia for manifestamente infundada.
Por seu turno, o art. 59º do CPP, estabelece outros casos de constituição de arguido, prevendo no nº1 a eventualidade de no decurso de uma inquirição, a pessoa inquirida ser constituída arguida, se e logo que surja «fundada suspeita de crime por ela cometido» e no nº 2, que essa constituição como arguido aconteça a pedido do próprio, desde que sobre si exista a suspeita de ter cometido um crime e «sempre que estiverem a ser efectuadas diligências, destinadas a comprovar a imputação, que pessoalmente a afectem».
Da análise conjugada das normas contidas nos arts. 57º a 59º do CPP, resulta que o legislador processual penal deu primazia a um princípio geral de pronta constituição como arguido, logo que haja notícia consistente da prática de crime que lhe seja imputável, constituição de arguido esta, a levar a cabo, preferencialmente, no primeiro acto processual em que se imponha a sua intervenção, o que bem se compreende, pois que é da aquisição do estatuto jurídico-processual de arguido que depende a possibilidade de exercício efectivo de todas as garantias de defesa em vigor no processo penal e consagradas nos arts. 20º e 32º da Constituição – do processo justo e equitativo, aos direitos ao contraditório, a produzir provas e ao recurso, entre outros (arts. 60º e 61º do CPP), como é próprio do Estado de Direito Democrático em que vivemos.
Não obstante a assunção desta aversão à perpetuação da condição de simples suspeito e à existência de investigações sem que as pessoas visadas tenham todo o conjunto de direitos e deveres inerentes ao estatuto jurídico-processual de arguido, o legislador processual penal não excluiu, porém, a possibilidade de a pessoa visada pela investigação criminal só vir a adquirir o estatuto de arguido numa fase mais tardia do processo.
Muitas vezes, tal até só acontece depois de produzida toda a prova testemunhal e recolhidos todos os outros meios de prova documental, pericial ou de outra natureza, no decurso da fase do inquérito, de resto como admitido expressamente, no art. 57º nº 1 do CPP.
Noutras vezes, pode até nunca chegar a haver constituição de arguido e o processo terminar, por falta de condições de procedibilidade, ou de indícios suficientes da prática do crime ou acerca da identidade do seu autor, num despacho de arquivamento (até porque fruto da 15ª alteração ao Código de Processo Penal, operada pela Lei 48/2007 de 29 de Agosto, para a constituição de arguido passou a exigir-se a suspeita fundada da prática de crime e não a mera suspeita da sua prática, como se vê da redação introduzida no art. 58º nº 1 a) do CPP).
É ao Ministério Público que incumbe a definição do objecto do inquérito, escolher as diligências de prova a realizar e determinar o momento da sua realização, orientado por critérios de legalidade, é certo, mas com total autonomia e sem ingerências de quem quer que seja, excepto no que se refere às competências do juiz de instrução nos termos previstos nos arts. 268º e 269º do CPP.
Daí que toda a actividade de recolha e produção de provas pertinente à decisão de submeter ao não o processo a julgamento possa ser desenvolvida sem arguido constituído, por razões táticas relacionadas com a estratégia da investigação, ou por imperativos de urgência, em ordem a garantir a obtenção, genuinidade e conservação de certos meios probatórios cujo sucesso se mostra incompatível com o contraditório em tempo real, postulando a necessidade de impedir interferências ou tentativas de adulteração e encobrimento dos factos, por parte da pessoa suspeita de os ter praticado e, ainda, por razões de protecção reforçada das vítimas e das testemunhas e da necessidade de obstar à sua revitimização ou à sua vitimização secundária, como sucede quando se investigam crimes sexuais, crimes de violência doméstica e outros crimes graves que atentam contra bens jurídicos eminentemente pessoais e que lesam direitos humanos das vítimas (cfr. António Miguel Veiga, «Notas sobre o âmbito e a natureza dos depoimentos (ou declarações) para memória futura de menores ou vítimas de crimes sexuais (ou da razão de ser de uma aparente "insensibilidade judicial" em sede de audiência de julgamento», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 19, 2009, p. 107, e ainda Rui do Carmo, «Declarações para memória futura - Crianças vítimas de crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual», Revista do Ministério Público, n.º 134, 2013, p. 123).
E por isso mesmo é que as declarações para memória futura, podem ser realizadas antes da constituição de arguido (cfr., nesse sentido, Acs. da Relação de Lisboa de 12.07.2022, proc. 235/22.5PALSB-A.L1 e de 25.05.2023, proc. 108/23.4PXLSB-A.L1-9, in http://www.dgsi.pt, Paulo Dá Mesquita, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, artigos 1.º a 123.º, António Gama et al, Coimbra: Almedina 2021, pp. 625-626, nota 10, Rui do Carmo e Júlio Barbosa e Silva, A Estratégia da Investigação, Revista do Ministério Público, 171, Julho-Setembro de 2022, págs. 208-209).
Ora, acerca das diligências probatórias que podem e em certos casos até devem ter lugar antes da constituição de arguido, para assegurar a eficácia da investigação, como sejam as escutas telefónicas e as buscas domiciliárias, ninguém duvida que a sua realização não fica inviabilizada pela circunstância de a pessoa por elas visada ainda não ter o estatuto de arguido, do mesmo modo que não oferece a menor dúvida de que terão de ser realizadas com estrita obediência a todos os requisitos de natureza substancial e formal de que depende a sua validade e eficácia como meios de obtenção de prova e de que terão de ser conservados para poderem vir a ser valorados, impugnados e contraditados, quando chegar o momento processual legalmente previsto para esse efeito.
De resto, o Tribunal Constitucional já concluiu que não implicava violação do direito ao contraditório, nem dos demais direitos de defesa do arguido a não participação deste e do seu defensor, ou do assistente, em diligências de instrução prévias ao debate instrutório, fossem estas realizadas perante o juiz por órgãos de polícia criminal, bem como a recolha de outras provas sem qualquer participação do arguido, incluindo prova por documentos e testemunhal, designadamente, por declarações para memória futura, o que vale por dizer que o direito ao contraditório tem de ser sempre assegurado, mas não tem de ser exercido em simultâneo com a recolha das provas, podendo ser efectivado em momento diferido (Acórdãos nºs 372/2000, 59/2001, 339/2005, 110/11 e, quanto às declarações para memória futura o Ac. nº 367/2014, todos in http://www.tribunalconstitucional.pt).
Mas a admissibilidade do contraditório em momento posterior àquele em que certas diligências probatórias são realizadas, sobretudo, as que são produzidas antes do momento processual natural em que vigoram a imediação, a oralidade e o contraditório – a audiência de discussão e julgamento – não se transmite à observância dos requisitos de natureza formal e substancial de que depende a sua validade e eficácia como meios de prova e/ou de obtenção de prova e a possibilidade da sua valoração para alicerçar a convicção do julgador em ordem a fixar os factos objecto do processo e da decisão final a proferir, já que estes não sofrem qualquer aligeiramento ou alteração, consoante as fases do processo, nem consoante sejam realizadas antes ou depois da constituição de arguido.
Essas formalidades legais são exactamente as mesmas e devem ser exactamente as mesmas, haja ou não haja arguido já constituído como tal, no momento em que são realizadas, porque a lei não estabelece qualquer distinção, nessa matéria, e porque em função da hipótese de vir a ser identificado o autor do crime em investigação e ser constituído arguido, ainda que só mais tarde, tem de estar já assegurado o seu valor intrínseco como provas susceptíveis de exame crítico pelo Tribunal, sob pena de toda investigação e recolha da prova redundar numa actividade inútil, logo, proibida, pelo art. 130º do CPC (ex vi do art. 4º do CPP), por efeito da omissão ou da violação dessas formalidades essenciais.
Tanto assim é, que as normas de procedimento que regulam as condições de validade formal e substancial da obtenção e conservação de meios de prova e de obtenção de prova, contêm várias previsões que assentam em juízos de prognose quanto à futura aquisição por alguém do estatuto jurídico-processual de arguido e previnem as garantias de exercício pleno do direito ao contraditório e demais direitos de defesa consagrados no art. 32º da CRP, logo que tal venha a acontecer.
É o caso das regras contidas nos nºs 2 e 4 do artigo 271º, do CPP, bem como a necessidade de redução a auto das declarações prestadas, imposta pelo art. 275º nº 1 do CPP, ou ainda das autorizações judiciais, das validações e das cominações com a sanção da nulidade para a inobservância de determinadas formalidades, a imposição da elaboração de autos e/ou transcrições com os resultados das diligências e a sua disponibilidade para posterior consulta pelo arguido contidas no art. 174º nºs 3, 4 e 7, 176º, 177º nºs 1, 4 e 5, 178º nºs 6 a 8, 179º, 188º do CPP, só para invocar alguns exemplos.
É também de acordo com esta linha de raciocínio, em face da antecipação de que a pessoa visada pela investigação virá a ter o estatuto jurídico-processual de arguido, que as declarações para memória futura deverão ter sempre a intervenção de um Defensor, para assegurar o contraditório e as garantias de defesa, não obstando à nomeação desse Defensor e à sua intervenção, nas declarações para memória futura, como em quaisquer outras diligências de investigação, a circunstância de o denunciado ainda não se encontrar constituído arguido (Acs. da Relação do Porto de 23.11.2016, proc. 382/15.0T9MTS e da Relação de Lisboa de 04.05.2017, proc. 12/15.0JDLSB e de 23.09.2021, proc. 141/21.0SXLSB-A.L1-9 in http://www.dgsi.pt).
Ora, se esta é a solução quando estejam em causa valores tão essenciais como a garantia constitucional do acesso a um processo justo e equitativo densificada em regras como o direito à igualdade de armas e de tratamento, no processo, a proibição de todas as diferenças de tratamento arbitrárias; da indefesa e o direito ao contraditório reconhecidos ao arguido, por maioria de razão e lugar paralelo, o direito ao silêncio das testemunhas, assistentes ou partes civis, unidos a futuros potenciais arguidos por algum dos laços de parentesco, afinidade ou societários previstos nas als a) a c) do art. 134º nº 1 do CPP deverá ser-lhes garantido, sempre, em quaisquer circunstâncias, quando intervenham, nessas qualidades, mesmo que o indigitado autor dos factos ainda só seja suspeito.
Aparte considerações de índole estritamente jurídica, em torno da questão de saber se o que está em causa é a simples omissão de uma condição de validade formal do procedimento ou um método proibido de prova por afrontar a reserva da vida privada e familiar, cumpre sublinhar que, em termos práticos, tanto num caso como no noutro, a consequência será idêntica: a impossibilidade de valoração daqueles depoimentos (a não ser que a testemunha não argua a nulidade, dentro do prazo previsto no art. 120º nº 3 al. d) do CPP ou que consinta a posteriori na prestação do depoimento, de acordo com a possibilidade prevista no art. 126º nº 3 do mesmo código).
Portanto, a cabal informação sobre os deveres gerais das testemunhas e a possibilidade excepcional de se negar a cumpri-los, não prestando depoimento, quando se verifique alguma das circunstâncias previstas nas als. a) a c) do art. 134º nº 1 do CPP, terá de ser feita quer já haja arguido constituído, quer seja ainda só um suspeito, tal como acontece com as demais formalidades legalmente impostas para outros meios de prova.
Cumpre sublinhar, ainda, que a recusa a depor não é uma garantia de defesa, nem está prevista em atenção ao arguido, mas antes em benefício e para protecção exclusiva da própria testemunha, vítima, assistente, parte civil e da sua família.
É, assim, irrelevante que a pessoa identificada como autor dos factos integradores do crime em investigação, seja só suspeito ou já esteja constituído arguido.
O que releva é a autoria dos factos e a identidade do seu autor, por um lado e, por outro lado, a constatação de que o dilema entre falar com verdade como testemunha e incriminar o seu parente próximo, ou cumprir certos imperativos sócio-afectivos conaturais a certas relações de parentesco ou de intimidade conjugal ou afim, para cuja concretização é preferível recusar o depoimento, do que mentir, se verifica com os mesmos contornos e igual intensidade, quer o autor dos factos sobre os quais incidir o depoimento a prestar seja só suspeito ou já esteja formalmente constituído como arguido.
Na perspectiva da testemunha e esta é a única que releva para o art. 134º do CPP, o constrangimento de se ver forçada a prestar um testemunho incriminatório do próprio pai, marido, parceiro íntimo, irmão, cunhado, filho, etc., não é diferente nem mais intenso, consoante, no momento de prestar o depoimento, a pessoa que seja apresentada como autor dos factos objecto do processo já seja arguida, ou ainda não tenha adquirido esse estatuto processual.
A relação pessoal/familiar entre o arguido e a testemunha que justifica o reconhecimento do direito de recusa a prestar depoimento é exactamente a mesma, antes e depois da assunção formal do estatuto de arguido, como é a mesma a necessidade e a razão de ser do direito ao silêncio reconhecido às testemunhas nas condições previstas naquele art. 134º nº 1 als. a) a c) do CPP.
Por conseguinte, para efeitos de aplicação do disposto no art. 134º do CPP, arguido é o autor dos factos sob investigação, já constituído ou a constituir com esse estatuto jurídico-processual, ainda que em momento posterior ao da inquirição como testemunha do seu familiar.
Assim, na medida em que a advertência acerca da prerrogativa de recusa a depor prevista no art. 134º nº 2 do CPP é uma condição de validade e eficácia do depoimento, constitui uma formalidade essencial que deverá ser sempre observada e não depende da prévia constituição de alguém como arguido, por tal advertência ser uma forma de tutela das testemunhas em atenção a determinados vínculos existenciais que as ligam aos autores dos factos sob investigação e que não se alteram em função da qualidade de arguido ou da qualidade de mero suspeito.
Estas as razões da total procedência do presente recurso.
III – DECISÃO
Termos em que decidem:
Conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogam a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que designe data para tomada de declarações para memória futura à vítima/testemunha AA dando-se cumprimento à advertência prevista no art. 134º n.º 2 do C.P. Penal, mesmo que ainda não tenha havido constituição de arguido.
Sem Custas – art. 522º do CPP.
Notifique.
*
Acórdão elaborado pela primeira signatária em processador de texto que o reviu integralmente (art. 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pelos Juízes Adjuntos.
*
Tribunal da Relação de Lisboa, 24 de Setembro de 2025
Cristina Almeida e Sousa
Hermengarda do Valle-Frias
Alfredo Costa