A falta de oposição de julgados nas situações de revista extraordinária, previstas nas als. c) e d) do art. 629º, 2, aplicáveis por força do art. 671º, 3, 1.ª parte, do CPC, acarreta o não conhecimento do objecto do recurso.
Acordam em conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça
A) RELATÓRIO
I. AA propôs acção declarativa, sob a forma de processo comum, para a impugnação de deliberações sociais, contra a sociedade «Cunha & Vieira – Gestão e Construção de Imóveis, Lda.», pedindo que sejam (a) declaradas nulas e inexistentes, sem quaisquer efeitos, todas as deliberações sociais tomadas na assembleia geral realizada no dia 23 de Julho de 2024 por falta de cumprimento dos requisitos exigíveis no aviso convocatório; sem prescindir, que sejam (b) declaradas anuladas todas as deliberações tomadas na assembleia geral realizada no dia 23 de Julho de 2024, com fundamento no disposto no art. 58º, 1, a), b) e c), e 4, do CSC.
II. Após Contestação da Ré e prolação de despacho saneador (com fixação do valor processual da causa em € 30.000,01, transitado em julgado), e Requerimento apresentado pela Autora (11/11/2024, ref.ª CITIUS .....47), resultante já do constante na petição inicial, foi proferido despacho (12/11/2024):
“Admite-se a alteração ao rol de testemunhas apresentado pela Autora.
Notifique-se a Ré com vista a juntar aos autos a Acta da Assembleia Geral de 2024 [rectificado; originariamente: 2023], o Relatório de Gestão e contas e o Balanço do exercício de 2023 e ainda o balancete analítico reportado ao mês 15.º.” (Com despacho complementar de rectificação de lapso de escrita, proferido em 19/12/2024, após requerimento da Autora de 8/12/2024.)
III. Inconformada, a Ré interpôs deste despacho, na parcela sublinhada, recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Guimarães (TRG), nos termos do art. 644º, 2, d), do CPC, que, admitido com efeito meramente devolutivo (e depois confirmado na tramitação), conduziu a ser proferido acórdão, no qual se julgaram improcedentes as nulidades arguidas e imputadas ao despacho e se julgou improcedente a apelação, mantendo-se o despacho recorrido, no que respeita à questão decidenda (“se o requerimento probatório apresentado pela Autora relativo à junção pela Ré da Acta da Assembleia Geral de 2024, do Relatório de Gestão e contas e do Balanço do exercício de 2023 e ainda do balancete analítico reportado ao mês 15.º não deve ser admitido, por não importar à decisão da causa e/ou por a sua junção violar o regime previsto nos arts. 42º e 43º do Código Comercial”).
IV. Novamente sem se resignar, a Ré interpôs recurso de revista para o STJ, invocando os arts. 671º, 2, a) e b), e 629º, 2, c) e d), do CPC: para a al. c), invocou o acórdão do STJ de 22/4/1997, enquanto jurisprudência uniformizada (RUJ n.º 2/98, processo n.º 87158, publicado in DR, I Série-A, n.º 6, de 8/1/1998); para a al. d), após despacho de convite à indicação de um só aresto, invocou o Ac. da Relação de Coimbra de 12/7/2022, com certidão comprovativa e nota de trânsito em julgado (Conclusões 2. a 7. e 13.); mais arguiu nulidades com base no art. 615º, 1, c) e d), do CPC (Conclusões 19. e 30.), que conduziu a ser proferido acórdão, em conferência, pelo TRG, julgando improcedente a arguição de nulidade atinente ao acórdão recorrido; ainda invocou o art. 672º, 1, a) e c), a título de revista excepcional (v. Conclusões 7., 10. a 13.).
V. Subidos os autos ao STJ, foi proferido despacho de convolação oficiosa, determinando-se, tendo em conta o requerido em recurso pela Recorrente, a revista normal, a título principal, de acordo com o regime do art. 671º, 2, a), e 629º, 2, c) e d), e a revista excepcional, a título subsidiário, de acordo com o regime do art. 672º, 1, a) e c), do CPC, transitado em julgado.
VI. Foi proferido despacho ao abrigo do art. 655º, 1, do CPC, atenta a eventualidade de não admissão do recurso de revista normal, que mereceu resposta de ambas as partes.
Na sequência, enfrentando-se a questão prévia da admissibilidade da revista normal, configurada a título principal, no exercício dos poderes atribuídos pelo art. 652º, 1, ex vi art. 679º, do CPC, foi proferida decisão singular: (i) julgar o não conhecimento do objecto do recurso em sede de revista normal extraordinária, à luz dos arts. 629º, 2, c) e d), do CPC; (ii) ordenar a remessa dos autos à Formação prevista no art. 672º, 3, do CPC, para análise e verificação da admissibilidade do recurso de revista excepcional.
VIII. Inconformada com o decidido sob (i), veio a sociedade Ré e Recorrente deduzir Reclamação para a Conferência, de acordo com o regime do art. 652º, 3, ex vi art. 679º, do CPC, pugnando pela admissão da revista normal, uma vez que, no essencial, reitera que existe as oposições de julgados que fundamentam a interposição do recurso.
A Recorrida apresentou resposta, invocando a bondade da decisão singular reclamada e, portanto, a inadmissibilidade da revista normal por falta de oposição de julgados nos termos exigidos pelo art. 629º, 2, c) e d), do CPC.
∗
Foram dispensados os vistos nos termos legais (arts. 657º, 4, 679º, CPC).
Cumpre apreciar e decidir da bondade da decisão reclamada.
B) APRECIAÇÃO E FUNDAMENTOS
I. A factualidade relevante é a que consta do Relatório anteriormente exposto.
II. A questão sindicada consiste na averiguação pressupostos de admissibilidade da revista normal, interposta a título principal e com os fundamentos extraordinários apresentados.
O que se reclama apresenta a seguinte fundamentação.
“1. A decisão reapreciada pela Relação constitui decisão interlocutória de natureza processual tomada em sede de admissibilidade dos meios de prova (decisão interlocutória “velha”), submetido ao regime da revista “continuada” do art. 671º, 2, do CPC no acesso ao 3.º grau de jurisdição, que, como tal, também se inclui no regime de impedimento do art. 671º, 3, do CPC1.
2. O art. 671º, 3, do CPC, determina a existência de “dupla conformidade decisória” entre a Relação e a 1.ª instância como obstáculo ao conhecimento do objecto do recurso de revista normal comum ou regra junto do STJ (art. 671º, 1 e 2, CPC), em relação aos segmentos decisórios e seus fundamentos com eficácia jurídica autónoma (objecto de impugnação) nos quais se verifica identidade de julgados, sem fundamentação essencialmente diferente e sem voto de vencido, ou, para além disso, em que a decisão recorrida, no ou nos segmentos decisórios recorridos (mesmo que sem confirmação integral no dispositivo) e seus fundamentos atendíveis, se revela mais favorável, qualitativa ou quantitativamente, à parte recorrente (mesmo que só com procedência parcial do recurso).
3. Verifica-se que, no que toca à questão de direito objecto de impugnação e reapreciada pela Relação, a revista normal não é admissível tendo em conta a existência de “dupla conformidade decisória”, por confirmação da decisão de 1.ª instância pelo acórdão recorrido, com o mesmo resultado decisório e com fundamentação, motivada pela apelação, sobre a relevância (“pertinência e necessidade”) dos documentos para a decisão da causa (cfr. págs. 27-29); assim é pois o acórdão recorrido não entra em contradição ou falta de coincidência com o decidido em 1.ª instância2, vista esta decisão em consonância e em conjunto com a adesão aos fundamentos do requerido em sede de despacho interlocutório (art. 154º, 2, 2.ª parte, CPC) – logo, com fundamentação vista ainda neste contexto como essencialmente coincidente3 –, no âmbito do mesmo regime jurídico-processual, tendo como base o art. 429º do CPC; verificando-se não haver voto de vencido, nos termos e para os efeitos do art. 671º, 3, do CPC; isto sem prejuízo do desenvolvimento argumentativo relativo à interpretação e aplicação dos arts. 42º e 43º do CCom., demandados pelo art. 435º do CPC (cfr. págs. 30-34), que não descaracteriza a “dupla conformidade” decisória.
No entanto.
4. O art. 671º, 3, 1.ª parte, do CPC salvaguarda a impugnação recursiva nos termos do art. 629º, 2, do CPC («Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível…»), como revista “extraordinária” (excluindo-se, pois, no regime-norma do art. 671º, 2, para a revista “continuada” das decisões interlocutórias “velhas”, apenas o fundamento da al. b) do art. 671º, 2, em caso de “dupla conforme”), o que legitima processualmente a configuração do recurso de revista normal, extraordinária, de acordo com o art. 629º, 2, c) e d), do CPC (sem necessidade de convocação do art. 671º, 2, ainda que coincidente na fundamentação recursiva da al. a)), salvaguardada e legitimada pela parte inicial do art. 671º, 3, do CPC.
Assim sendo, cumpre analisar previamente as condições de apreciação do objecto do recurso de revista interposto a título principal.
5. Nos termos do art. 629º, 2, c), do CPC, «[i]ndependentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso: Das decisões proferidas, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça.
A admissibilidade da revista extraordinária fundada na al. c) do art. 629º, 2, sem prejuízo de, por força da lei – neste caso, pela remissão da 1.ª parte do art. 671º, 3, do CPC –, não ter que ser respeitado o art. 629º, 1, do CPC, depende da verificação de a mesma questão fundamental de direito ser resolvida e obter soluções antagónicas pelo acórdão recorrido e por um AUJ.
Tal verificação depende, em especial, de: (i) uma relação de identidade entre a questão de direito que foi objecto de uniformização jurisprudencial e a que foi objecto da decisão recorrida, aferida tendo em conta uma equiparação substancial da situação material de facto subjacente ao litígio em cada uma das decisões em confronto; (ii) essencialidade dessa questão de direito sob controvérsia para o resultado obtido numa e noutra das decisões, num quadro normativo substancialmente idêntico; (iii) contrariedade ou oposição ou diversidade (não acolhimento) da resposta dada pela decisão recorrida em relação ao núcleo essencial da uniformização alegadamente desrespeitada4.
Ora, para este efeito, não se verifica oposição do acórdão recorrido com o Acórdão do STJ de 22/4/1997 (AUJ n.º 2/1998, publicado in DR, I, Série-A, n.º 6, de 8/1/1998), enquanto uniformizador da jurisprudência fixada e orientadora, antes conformação e aplicação de tal orientação:
“O artigo 43.º do Código Comercial não foi revogado pelo artigo 519.º, n.º 1, do Código de Processo Civil de 1961, na versão de 1967, de modo que só poderá proceder-se a exame dos livros e documentos dos comerciantes quando a pessoa a quem pertençam tenha interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida.”
Na verdade, o acórdão recorrido assim fundamenta:
“O art. 435º do C.P.C. remete para legislação comercial no que se refere à exibição judicial, por inteiro, dos livros de escrituração comercial e dos documentos a ela relativos. Já não obsta à exibição parcial, quando com interesse para a causa, requisito aplicável a todos os meios de prova propostos.
Sendo a Ré/recorrente parte no processo e com responsabilidade na questão, ao abrigo do art. 43º do Código Comercial, é possível a solicitação parcial de elementos, verificado o interesse para a causa.
Ora, estamos no âmbito de uma ação anulatória, proposta por uma sócia contra a sociedade, em que são pedidos apenas elementos com relevância sobre as deliberações em causa. Por isso, não tem cabimento (não se aplica) a restrição probatória, e nem o interesse subjacente às normas sobre a matéria – segredo da escrituração mercantil – é violado.” (Subllinhado da minha responsabilidade.)
Sendo que no AUJ n.º 2/1998 em confronto se fundamentou para a consequente uniormização:
“Tanto a doutrina como a jurisprudência têm pacificamente entendido que o artigo 43.º se mantém em vigor, quando restringe a exibição dos livros e documentos a questões em que tenha interesse ou responsabilidade a pessoa a quem eles pertençam.
Esta interpretação é a que se afigura correcta.
Com efeito, desde logo é de observar que o artigo 519.º, que no n.º 1 impõe o dever de cooperação para a descoberta da verdade, logo ressalva, no n.º 3, da sua aplicação, expressamente, os casos em que a recusa será legítima se importar, além de outros motivos, violação do sigilo profissional.
Por outro lado, a norma do artigo 554.º, § 4, do Código de Processo Civil de 1939, que passou ao artigo 550.º, n.º 4, na versão original do de 1961 e culminou no artigo 534.º após a revisão de 1967, compreendida na secção II, relativa à prova por documentos, do capítulo III, sobre a instrução do processo, estabelece que as normas adjectivas referidas nesta secção não são aplicáveis aos livros de escrituração comercial nem aos documentos a ela relativos.
Tudo inculca, pois, que estas normas processuais não permitem postergar o desejado grau de confiança e a correspondente garantia nas transacções comerciais, que conferem as aludidas regras substantivas da reserva na exibição dos livros e documentos.
(…)
Anote-se, finalmente, que a lei processual civil agora saída do Decreto-Lei n.º 329-A/95 e do Decreto-Lei n.º 180/96, no mesmo artigo 519.º regula em termos mais cuidados e exaustivos a conciliação entre o dever de cooperação e o dever de sigilo, que deverão ser compatibilizados, em última análise, à luz do princípio da prevalência do interesse preponderante.”
Não se vislumbra manifestação de contrariedade da decisão recorrida perante a orientação judicativa do segmento uniformizador em causa, nem se vislumbra que se tenha optado por uma resposta diversa da que foi assumida no segmento de uniformização, que, aliás, nada mais fez do que uma reprodução do art. 43º, 1, do CCom., uma vez assente a sua subsistência; antes se verifica o seu acolhimento para a resposta dada pelo acórdão recorrido.
Logo, não estão de todo verificados os pressupostos de admissibilidade da revista à luz da al. c) do art. 629º, 2, do CPC, falecendo, pois, a pretensão de ver conhecido o recurso por força da aplicação desta hipótese recursiva.
6. Nos termos do art. 629º, 2, d), do CPC, «[i]ndependentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso: Do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.»
7. O art. 629º, 2, d), do CPC, fundamento do recurso interposto pela Recorrente, circunscreve-se aos casos em que se pretende recorrer de acórdão da Relação proferido no âmbito de acção cujo valor excede a alçada da Relação e relativamente ao qual, de acordo com a sua natureza temática ou objecto recursivo, esteja excluído, por regra, o recurso de revista por outro motivo de ordem legal (alheio à conjugação do valor do processo com o valor da alçada da Relação) – requisitos cumulativos, desdobrados do pressuposto legal: recurso do acórdão da Relação «do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal».
Na verdade, a al. d) do art. 629º, 2, encontra-se reservada para as situações em que o obstáculo único para a admissibilidade da revista resulta de motivo que transcende a alçada (e a conjugação com a alçada) do tribunal recorrido. Assim, esse pressuposto negativo (e excludente da regra de admissibilidade prevista no proémio do n.º 2 do art. 629º, 2, CPC) implica que o recurso assim fundamentado está circunscrito aos casos em que se pretende recorrer de acórdão da Relação no âmbito de recorribilidade delimitada pelo art. 629º, 1, do CPC mas relativamente ao qual está excluído por princípio o recurso ao STJ por outra motivação legal (impedimento ou restrição) e, sendo esse o caso, em razão da natureza do processo (como sucede, por exemplo, com os procedimentos cautelares, nos termos do art. 370º, 2, e dos processos de jurisdição voluntária, de acordo com o art. 988º, 2, sempre do CPC).
Neste contexto.
8. Temos no caso (de acordo com a interpretação pugnada em face do corpo do do n.º 2 do art. 629º do CPC) causa com valor superior à alçada da Relação, isto é, € 30.000,00 (art. 44º, 1 e 3, da Lei 62/2013, de 26 de Agosto), (…), em face da decisão processualmente legítima (arts. 303º, 1, 306º, 1 e 2, CPC) e com os efeitos processuais devidos nos termos do art. 296º, 2, do CPC.
9. A al. d) do art. 629º, 2, apenas serve e só se aplica para situações de exclusão (impedimento ou restrição) da revista, imposta ou prevista por lei; logo, abrange a previsão do art. 671º, 3, do CPC, que – sublinhe-se – remete expressamente e como salvaguarda para o art. 629º, 2, do CPC5 (ainda como revista normal especialmente ditada pelas situações de revista extraordinária e sem afectação da “dupla conformidade”).
Sem prejuízo.
10. A al. d) do art. 629º, 2, do CPC implica que o recorrente tem o ónus específico de demonstrar que a diversidade de julgados a que respeitam os acórdãos em confronto é consequência de uma interpretação divergente da mesma questão fundamental de direito na vigência da mesma legislação, conduzindo a que uma mesma incidência fáctico-jurídica tenha sido decidida em termos contrários, sob pena de não inadmissibilidade do recurso do acórdão recorrido e apreciação do seu mérito.
11. Para existência da indispensável oposição jurisprudencial para efeitos de admissibilidade da revista, as decisões entendem-se como divergentes se se baseiam em situações fáctico-materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo – tendo em vista os específicos interesses das partes em conflito – são análogas ou equiparáveis, pressupondo o conflito jurisprudencial uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto, acrescendo que a questão fundamental de direito em que assenta a alegada divergência assuma um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso.
Assim, para que o STJ seja chamado a pronunciar-se, orientando a jurisprudência em tais tipos de processos, é necessário concluir, previamente, que existe uma oposição (frontal e expressa, por regra) de entendimentos nos acórdãos em confronto sobre a aplicação de determinada solução legal, sendo que – reitere-se – tal divergência se projecta decisivamente no modo como os casos foram decididos.
12. Vistas as Conclusões que finalizam a revista, a Recorrente alega que a questão fundamental de direito contraditoriamente julgada nos acórdãos em confronto respeita à restrição de prova documental e à imposição de segredo da escrituração mercantil ao abrigo dos arts. 42º e 43º do CCom. em acção de impugnação de deliberações sociais.
Mas não é isso que decorre do confronto com o acórdão fundamento, que, sem prejuízo de uma identidade factual parcialmente análoga para este efeito, correspondente à apresentação de actas de assembleias gerais (e “listas de presenças”) num contexto de acção tendente à nulidade de deliberações, fundamenta assim:
“Como sabemos, os documentos constituem um meio de prova – artigo 362º e ss do Código Civil – e, como tal, têm por função a “demonstração da realidade dos factos” - art. 341.º / ainda o ónus da prova plasmado no artigo 342.º do mesmo diploma.
O art. 429.º do Código de Processo Civil – Documentos em poder da parte contrária –, dispõe:
“1 – Quando se pretenda fazer uso de documento em poder da parte contrária, o interessado requer que ela seja notificada para apresentar o documento dentro do prazo que for designado; no requerimento, a parte identifica quanto possível o documento e especifica os factos que com ele quer provar.
2 – Se os factos que a parte pretende provar tiverem interesse para a decisão da causa, é ordenada a notificação.”
Esta disposição normativa constitui uma manifestação do princípio geral da cooperação material no campo da instrução do processo, tendo em vista a prova de factos desfavoráveis ao detentor do documento.
No entanto, o (não) deferimento judicial está sujeito a requisitos que se destinam a habilitar o juízo sobre o interesse dos documentos para a prova dos factos controvertidos e a proferir a decisão de deferir ou indeferir o requerimento (…).
O acesso ao direito e aos tribunais, para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, constitui um direito fundamental constitucionalmente protegido que implica a obtenção em prazo razoável de uma decisão judicial que aprecie a pretensão regularmente deduzida em juízo.
Nessa medida pressupõe também, para o efeito, que através do tribunal se possa obter a colaboração daqueles que podem dar o seu contributo para a descoberta da verdade, sem o que, em certos casos, se não passaria de simples enunciação teórica dos direitos de cada um, sem concretização efectiva, designadamente por ausência de prova.
Mais, nas normas dos artigos 42.º e 43.º do Código Comercial apenas está em causa a escrituração mercantil e os documentos a ela, escrituração, relativos – podendo, no entanto, proceder-se a tal exame, a instâncias da parte ou oficiosamente, quando a pessoa a quem pertençam tenha interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida –, sendo que o carácter secreto da escrituração comercial diz respeito apenas à exibição judicial dos livros de escrituração comercial por inteiro – é o que resulta, também da norma do artigo 435.º/
A exibição judicial, por inteiro, dos livros de escrituração comercial e dos documentos a ela relativos rege-se pelo disposto na legislação comercial/ (…).
Sobre o tema, e mais recente, ver o Acórdão da Relação de Guimarães de 3.2.2022 e 21.10.2021, ambos pesquisáveis em www.dgsi.pt: “Sendo solicitada a “exibição” de elementos da escrituração comercial de um terceiro, no âmbito de um processo, não é lícita a recusa com fundamento no disposto no artigo 42.º do CCom, que se aplica apenas à exibição judicial por inteiro, conforme artigo 435.º do CPC, caindo-se na alçada do artigo 417.º do CPC. Na apreciação de qualquer pedido de “exibição” parcial, devem conjugar-se os interesses em jogo, limitando-se a pretensão ao que for necessário e imprescindível para a prova pretendida, de acordo com critérios de adequação e proporcionalidade.”/ O artigo 435º do CPC remete para legislação comercial no que se refere à exibição judicial, por inteiro, dos livros de escrituração comercial e dos documentos a ela relativos. Tal norma não obsta à exibição parcial, quando com interesse para a causa. Sendo a requerida parte no processo e com responsabilidade na questão, sempre seria possível ao abrigo do artigo 43º do C.Com. a solicitação parcial de elementos, verificado o interesse para a causa e efetuada a devida ponderação dos interesses em jogo”.
Neste contexto, os documentos em causa nos autos possuem relevância para a apreciação concreta da pretensão, tal como esta foi formulada pelos autores (…).
(…)
Por isso, correcta a decisão da 1.ª instância, quando escreve:
“Sucede que, concretamente quanto à junção a processos judiciais de documentos da escrituração comercial para efeitos probatórios – e, por conseguinte, não estamos aqui perante casos de exames ou perícias à referida escrituração comercial, a que se reporta o artigo 43.º do Código Comercial, mas apenas no contexto da prova documental –, decorre da conjugação dos citados artigos 435.º do Código de Processo Civil e 42.º do Código Comercial que «o carácter secreto da escrituração comercial diz respeito apenas à “exibição judicial dos livros de escrituração comercial por inteiro” (artigo 42.º do C. Comercial) que só pode ser ordenada em casos contados e específicos (a favor dos interessados, em questões de sucessão universal, comunhão ou sociedade e no caso de quebra) e não à junção de cópia de documentos avulsos dessa escrituração comercial.” (acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09/10/2012, proc. 1570/09.3TBVNG-A.P1, José Igreja Matos, in www.dgsi.pt).
Ora, no caso em apreço, não foi determinada a junção pela ré da sua escrituração comercial por inteiro, nem tão pouco se visa nos autos o escrutínio e a sindicância daquela escrituração da ré.
O que foi determinado foi tão-só e apenas a junção de cópia das actas das reuniões da Assembleia Geral da ré e das respectivas listas de presença, por via das quais se aprovaram as contas da sociedade ré e que estiveram na base dos registos constantes do respectivo registo comercial de 15 de Maio de 2016, de 27 de Julho de 2016 e de 13 de Novembro de 2017. Trata-se, por conseguinte, da junção de meras cópias e não da documentação original.
Assim como a diligência probatória ordenada se refere a concretos documentos, perfeitamente individualizados e identificáveis e que se revelam essenciais para a boa decisão da causa e, nomeadamente, para a descoberta da verdade material (em face do objecto do litígio enunciado no saneador), que em nada contenderá com o exercício da actividade societária da ré, nos termos em que o mesmo vinha sendo executado até à data. Não está, ao invés, em causa, uma indiscriminada miríade de documentos susceptível de revelar informação interna da sociedade ré que em nada se reporta ao objecto dos autos.
Assim, o acolhimento da leitura do referido regime probatório da escrituração comercial sustentada pela ré, afigura-se-nos a nós, ser injustificadamente limitadora da actividade instrutória do Tribunal, que extravasa largamente o âmbito normativo do artigo 42.º do Código Comercial (e a ratio legis subjacente) e que poderá colidir, isso sim, com o direito dos autores a um processo equitativo (artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem).
De resto, tendo sido tal documentação apresentada para efeitos de instrução dum determinado registo comercial (na versão dos autores), mal se compreende que não pudesse ser junta, para efeitos instrutórios, num processo judicial, sede na qual, em princípio, se poderá determinar o acesso aos registos e respectivo arquivo”.”
13. Daqui decorre que não se vislumbra que os acórdãos em confronto se distanciem na interpretação da mesma questão de direito pertinente para avaliação da oposição de julgados, quanto ao âmbito de aplicação e de irradiação dos arts. 429º e 435º (e 436º, 1) do CPC, assim como dos arts. 42º e 43º do CCom., relativos à prova documental requerida e instrumental para a decisão da causa, de modo que, mesmo perante situações fáctico-materiais litigiosas que podem ser vistas como equiparáveis, não se afigura que a interpretação feita pelo acórdão fundamento, por não ser oposta (ainda que com fundamentação adicional), conduzisse a resultado decisório diverso no acórdão recorrido.
Em suma: não se preenche o requisito da dissemelhança entre os resultados da interpretação das disposições legais relevantes, tendo os acórdãos interpretado e aplicado com coincidência a mesma normatividade legal para apreciar a admissibilidade da prova requerida, sem condições para se afirmar a exigida contradição jurisprudencial que faria admitir a revista para apreciação no condicionamento exigente e apertado do art. 629º, 2, d), do CPC.
Resulta do analisado que, sem prejuízo do inconformismo da Recorrente quanto à solução do acórdão recorrido proferido pela Relação, não ocorre, como condição prévia para a admissibilidade do recurso, a oposição de julgados (pelo menos com este acórdão indicado como fundamento recursivo) indispensável para ser conhecida a revista no âmbito do art. 629º, 2, d), do CPC. E sem esta condição estar verificada, não se pode aceitar uma reapreciação em último grau de jurisdição através de uma revista que deve ser admitida com particular exigência, no âmbito de um regime prima facie de irrecorribilidade, ditado pelo art. 671º, 3, na relação internormativa com o art. 671º, 2, do CPC.
14. Destarte.
Ocorrendo “dupla conformidade” que, nos termos da 1.ª parte do art. 671º, 3, do CPC, implica a aplicação do art. 629º, 2, do CPC, não é admissível a revista normal extraordinária, destinada a sindicar decisão interlocutória com incidência processual, proferida em 1.ª instância e reapreciada pela Relação, se não se comprova desconformidade com jurisprudência uniformizada do STJ (al. c)), e nem se verifica oposição jurisprudencial sobre a mesma questão fundamental de direito que, perante situações fáctico-materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo são análogas ou equiparáveis, conduzisse a que a aplicação das soluções legais discutidas se projectasse decisivamente no modo como os casos foram decididos e fosse susceptível de modificar o resultado decisório do acórdão recorrido (al. d)).
Por fim.
15. As nulidades arguidas, como fundamento acessório e dependente da impugnação recursiva, complementadas pela invocação de inconstitucionalidade ao abrigo da aplicação do art. 205º, 1, da CRP, apenas podem ser conhecidas e apreciadas se e na medida em que seja admitida a revista e conhecido o respectivo objecto, no segmento pertinente, enquanto vício imputado ao acórdão recorrido, nos termos do regime da modalidade normal (arts. 615º, 4, 2.ª parte, 666º, 1, 674º, 1, c), CPC) – o que, por ora, não sendo de admitir a revista normal extraordinária, não é de admitir o conhecimento e apreciação de tais nulidades.”
III. Não se verifica que a Recorrente e aqui Reclamante traga qualquer argumento que obsta à viabilidade e confirmação do anteriormente decidido, pelo que basta nesta oportunidade fazer recair acórdão sobre a decisão proferida, fazendo-se seguir os autos para a Formação Especial a que alude o art. 672º, 3, do CPC, a fim de dar cumprimento ao decidido sob (ii).
C) DECISÃO
Em conformidade, julga-se improcedente a Reclamação, confirmando-se o decidido sob (i) da decisão reclamada.
Custas pela Reclamante, que se fixam em taxa de justiça correspondente a 3 UCs.
STJ/Lisboa, 23 de Setembro de 2025
Ricardo Costa (Relator)
Maria Olinda Garcia
Cristina Coelho
Com Declaração de Voto
Voto a decisão de julgar improcedente a reclamação, porquanto entendo que não é de conhecer do objeto do recurso de revista à luz do disposto no art. 671º, nº 2, do CPC, estando em causa decisão interlocutória, de natureza meramente processual. Quer porque não se verifica a invocada contradição com jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça (arts. 671º, nº 2, al. a), e 629º, nº 2, al. c), do CPC), quer porque a invocada contradição de julgados é com acórdão da Relação, não admitida pelo 671º, nº 2, al. b), do CPC, entendendo não ser de aplicar o disposto no art. 629º, nº 2, al. d), do CPC, por falta de enquadramento legal.
SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC)
__________________________________________________
1. V. RUI PINTO, “Artigo 671º”, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, Artigos 546.º a 1085.º, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2015, pág. 176: “Esta limitação pode surgir em sede de revista de decisões finais e de decisões interlocutórias velhas (…)”; na fileira interpretativa, v. Ac. do STJ de 29/9/2020, processo n.º 731/16, in www.dgsi.pt.↩︎
2. V. RUI PINTO, “Artigo 671º”, Notas… cit., pág. 177.↩︎
3. Depois de requerida na petição inicial a prova documental em causa (ponto IV. do “Requerimento de Prova”), a Autora, aqui Recorrida, no requerimento de 11/11/2024 (ref. CITIUS .....67 dos autos, como referida) justificou este seu requerimento de prova: “Estes documentos mostram-se relevantes para o que se discute na acção.” (sublinhei).↩︎
4. ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 629º, págs. 54 e ss. Na jurisprudência do STJ, v. os Acs. de 7/9/2020, processo n.º 344/17, e de 15/12/2020, processo n.º 1413/16, sempre in www.dgsi.pt.↩︎
5. Em abono, mais recentemente, o Ac. do STJ de 16/11/2023, processo n.º 756/22, in www.dgsi.pt; na doutrina, inequivocamente, JORGE PINTO FURTADO, Recursos em processo civil, 2.ª ed., Nova Causa – Edições Jurídicas, Braga, 2017, pág. 45 (convergente na irrecorribilidade da “dupla conformidade”: ABRANTES GERALDES, Recursos… cit., sub art. 671º, pág. 361).↩︎