Sumário:
I. Se o inventariado e sua mulher entregaram um cheque para pagamento do preço de um imóvel adquirido pelos seus netos, é importante apurar o intuito subjacente à entrega desse dinheiro, já que a existência de herdeiros legitimários implica a obrigatoriedade de relacionar os bens que o inventariado doou quer para efeitos de colação (doação a descendentes não exceptuados dela) quer com vista ao apuramento da inoficiosidade.
II. No âmbito do inventário em que se relacionam contas bancárias contituladas pelo inventariado é relevante apurar a proveniência dos fundos que alimentam essas mesmas as contas bancárias tendo em conta a alegação de que são apenas creditadas com o valor mensal das reformas do casal (Inventariado e Cabeça-de-Casal), não sendo realizado nenhum movimento a crédito com fundos da outra co-titular, filha de ambos.
ACÓRDÃO
I- RELATÓRIO
1. AA, interessada nos autos de inventário à margem identificados por óbito de BB, dissentindo da decisão proferida sobre reclamação à relação de bens, dela veio recorrer, formulando, na sua apelação as seguintes conclusões:
1 - A Recorrente impugna a decisão da matéria de facto, por considerar incorrectamente julgados os pontos 3), 6), 9) e 10) dos factos provados e a alínea c) dos factos não provados e, por outro lado, por considerar insuficiente a selecção dos factos para a boa decisão da causa.
2 - A Recorrente entende que os ponto 3) e a alínea c) dos factos não provados mereciam diferente decisão tendo em consideração a prova documental junta aos autos, designadamente, a documentação bancária concatenada com a restante prova produzida.
3 – No que respeita ao ponto 3), resumidamente, resulta dos extractos bancários da conta com o n.º ... da Caixa Geral de Depósitos e da Declaração de saldos à data do óbito, que a mencionada conta tinha o saldo de € 8.108,17 à data do óbito do Inventariado.
4 – Ora, resultando dos extractos bancários das contas do inventariado e da posição da cabeça de casal, que os montantes depositados naquelas contas pertenciam apenas ao casal (inventariado e cabeça de casal), deve ser relacionado como pertencente à herança metade daqueles saldos.
5 – No que respeita à alínea c) dos factos não provados, olhando à matéria dada como provada nos pontos 11), 12), 13), 14) e 15) conjugada com a restante prova produzida que, concluímos que a resposta àquela matéria deveria ser provada em vez de não provada.
6 – Pois, se tal imóvel foi adquirido em 10/04/2014, pelos netos do Inventariado CC e DD, à data com 11 e 6 anos de idade, respectivamente; e se o Inventariado veio a falecer em .../.../2014 e teve a sua última residência habitual na Rua 1, n.º 10, freguesia do Local 1, concelho de Vila A. Um raciocínio lógico, aliado às regras da experiência comum, levam-nos a concluir com segurança que, desde a aquisição do imóvel até ao descenso do Inventariado (data em que foi aberta a sua herança), os menores não usaram, nem gozaram do imóvel, não retirando qualquer benefício em serem os seus titulares inscritos. Até porque estamos a falar de um período de apenas três meses e meio.
7 – Para além disso, acresce que os pontos 6), 9) e 10) dos factos provados padecem de incompleta e obscura fundamentação.
8 – Sobre estes pontos foi apenas produzida prova pericial (relatório pericial de 06/02/2023 e esclarecimentos prestados por escrito pelo Sr. Perito em 24/03/2023).
9 – No relatório pericial o Sr. Perito avaliou o imóvel constante da verba 7 pelo valor de € 73.000,00 e o imóvel constante da verba 11 pelo valor de € 49.000,00. Contudo, nos esclarecimentos prestados posteriormente o Sr. Perito considerou mais correcto, justificando o porquê, reduzir estes valores para € 68.250,00 para a verba n.º 7 e € 45.500,00 para a verba n.º 11.
10 – Razão pela qual não se compreende porque razão optou a Meritíssima Juiz a quo por dar preferência aos valores do relatório e não aos valores dos esclarecimentos, uma vez que nenhuma razão é apontada para a preferência pelos valores de um documento em detrimento dos valores do outro. Ficamos sem compreender esta opção e a decisão recorrida também não o esclarece.
11 – Acresce que, no que respeita ao imóvel sob a verba n.º 10, o relatório pericial atribuí-lhe o valor de € 90.000,00, os esclarecimentos do Sr. Perito não alteraram este valor, mas o tribunal a quo decidiu fixar o valor deste imóvel em € 108.000,00. Uma vez mais, não se compreende o raciocínio do tribunal recorrido.
12 – Uma vez que, a única alusão que é feita no relatório a este valor, diz expressamente que “No entanto a verba em si, correspondente a 19/35 do prédio, não tem autonomia, pelo que por si só poderá ter um valor inferior à proporção de 200.000€×19/35, cerca de 108.000 € (….)”. (Cfr. Parte 2 do Relatório de Avaliação).
13 – Somos, assim, a concluir que relativamente a esta matéria existe clara deficiência na fundamentação da decisão recorrido, em violação do disposto no artigo 607.º, n.º 4 do CPC, o que determina a anulação da mesma no que aos pontos 6, 9 e 10 dos factos provados diz respeito e o seu reenvio ao tribunal de primeira instância para a cabal fundamentação da decisão, ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 2, al. c) do CPC.
14 – Por outro lado e a acrescer, a decisão recorrida padece de insuficiência da selecção da matéria de facto.
15 – Pois, na reclamação à relação de bens a Recorrente acusou a falta de relacionamento do prédio urbano sito na Rua 1, n.º 10, freguesia do Local 1, concelho de Vila A, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 474, da referida freguesia e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila A sob o n.º 558.
16 – Tendo para o efeito alegado, resumidamente, que aquele imóvel pertence ao acervo hereditário, porque foi adquirido três meses antes do óbito do Inventariado, foi adquirido com dinheiro próprio do Inventariado, foi a última residência do Inventariado, é até à presente data a residência da Cabeça-de-Casal. O que revela a intenção do Inventariado de adquirir o imóvel para si, mas através de interposta pessoa (os seus netos).
18 – Sucede que, o Tribunal a quo deu apenas como provado a data de aquisição do imóvel, não tendo considerado relevante a restante factualidade alegada na Reclamação, que não levou ao quadro fáctico da sentença e que, em nosso ver, seria importante para, em sede de subsunção dos factos ao direito, enquadrar juridicamente a aquisição do imóvel e determinar o proprietário do mesmo.
19 - No centro do litígio está, pois, saber quem quis efectivamente adquirir o imóvel, quem pagou o preço e quem se declarou e ficou inscrito como seu comprador. Para, posteriormente, se determinar quem é/são o(s) real(is) proprietário(s) do mesmo.
20 - Tanto mais quando, a Cabeça-de-Casal e a Interessada CC (legal representante dos menores na escritura de aquisição) se recusaram no âmbito dos presentes autos a autorizar o levantamento do sigilo bancário das contas do Inventariado (vide requerimentos de 13/02/2023). E, quando a CGD juntou aos autos os extratos das contas do Inventariado e do cheque que serviu ao pagamento do preço do imóvel, a Cabeça-de-Casal veio assumir, pela primeira vez, que “Efectivamente o cheque ora junto aos autos destinou-se ao pagamento da compra do prédio urbano sito na Rua 1 n.º 10 em Local 1 (….)”, mais acrescentando que foi sua pretensão e do seu marido doar aquele imóvel aos netos EE e FF (Vide requerimento de 05/01/2024).
21 - Num tal contexto, mesmo que se considere alguma eventual displicência alegatória da Reclamante, que se ficou a dever à falta de conhecimento dos termos do negócio e ao facto da CGD nunca ter fornecido os movimentos das contas do Inventariado, cabia ao Tribunal, em postura de cooperação com as partes (cfr. art.º 7.º, n.º 1, do CPC), aproveitar o material alegado por todas as partes e submetê-lo à prova (designadamente, de cariz pessoal), de molde a apurar quanto à celebração do contrato de compra e venda, mormente quanto à titularidade dos fundos e uso dado ao imóvel, para posterior adequada qualificação jurídica, com as inerentes consequências de Direito. Tanto mais que foi referido pela Cabeça-de-Casal, co-titular das contas do Inventariado e esposa deste, que era sua intenção doar o imóvel aos netos e foi a mesma que pagou o preço do imóvel, sacando um cheque sob o saldo das contas do Inventariado, o que ficou demonstrado pela documentação bancária junta aos autos.
22 - Concluindo, assim, genericamente pela «falta de provas», deveria a 1.ª instância analisar cuidadosamente a prova a respeito, fosse documental ou pessoal, âmbito em que deveria fazer transparecer o seu entendimento sobre os documentos bancários - extractos onde é possível aferir da movimentação do preço da aquisição do imóvel e, ainda, que a mencionada conta apenas é creditada com as pensões do casal idoso -, explicitando os motivos pelos quais neles não baseou/formou uma convicção positiva. E deveria explicitar também os motivos pelos quais a prova pessoal – de per si ou conjugadamente com a prova documental – não logrou permitir tal convicção positiva.
Se necessário, chamando oficiosamente as partes nos autos (a Cabeça-de-Casal e a Interessada GG interveniente na escritura) a prestarem declarações sobre estes factos, nos quais tiveram intervenção directa.
23 - E, ainda, analisar articuladamente a prova testemunha produzida, pois é certo que todas as testemunha (à excepção de HH) confirmaram que o Inventariado passou a residir naquele imóvel antes de falecer e a testemunha II chegou mesmo a afirmar que em determinada circunstância quando se encontrou com o Inventariado no Centro de Saúde este lhe terá dito que tinha comprado uma casa no Local 1, para ir viver para perto da filha, porque estava doente (Cfr. página 7 da decisão recorrida).
24 - Porém, não o fez aquele Tribunal, termos em que, com o devido respeito, deve concluir-se pela existência de deficit quanto à própria factualidade relevante alegada, por não constar dos listados factos provados, tal como dos não provados, a dita matéria alegada quanto ao negócio jurídico de aquisição do imóvel, o que, por se tratar de materialidade essencial para determinar o proprietário do mesmo, designadamente o acervo hereditário do falecido, como tal, indispensável com vista à boa decisão da causa, obriga à ampliação da matéria de facto.
25 – O que determina, ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 2, al. c) e d) do CPC, a remessa dos autos à primeira instância, a fim de serem colmatadas as apontadas falhas da decisão recorrida.
Termos em que e nos demais de Direito, com o mui Douto suprimento de V. Exas., deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele:
a) alterada a decisão do ponto 3) dos factos provados e da alínea c) dos factos não provados, nos termos supra referidos; e b) anulada a decisão recorrida, ordenando-se a remessa dos autos à 1.ª instância, para adequada fundamentação da convicção probatória dos pontos 6), 9) e 10) dos factos provados, suprindo-se a referida deficiência/obscuridade de justificação; e, para ampliação da matéria de facto, com vista a apurar o real negócio jurídico subjacente à aquisição do imóvel sito na Rua 1, n.º 10, freguesia do Local 1, concelho de Vila A, se necessário com a repetição parcial do julgamento.
Fazendo-se, assim, a habitual e necessária JUSTIÇA!
2. Não houve contra-alegações.
3. O objecto do recurso, delimitado pelas enunciadas conclusões (cfr.artºs 608º/2, 609º, 635º/4, 639º e 663º/2 todos do CPC) reconduz-se à apreciação das seguintes questões:
1. Impugnação da matéria de facto: O ponto 3) dos factos provados e da alínea c) dos factos não provados;
2. Se a fundamentação da convicção probatória dos pontos 6), 9) e 10) dos factos provados enferma de deficiência/obscuridade de justificação;
3. Se a matéria de facto carece de ser ampliada.
4. Reapreciação jurídica da decisão
II. FUNDAMENTAÇÃO
4. É a seguinte a decisão de facto inserta na decisão decorrida:
4.1. Factos Provados:
“1) BB faleceu a ... de ... de 2014, no estado de casado com GG.
2) Do casamento entre BB e GG nasceram duas filhas: CC e AA.
3) Na data do óbito do Inventariado BB, a conta poupança com o n.º ..., domiciliada na Caixa Geral de Depósitos, tinha um saldo credor no valor total de € 2.702,71.
4) Na data do óbito do Inventariado BB, a conta à ordem com o n.º ..., domiciliada na Caixa Geral de Depósitos, tinha um saldo credor no valor total de € 1.206,70.
5) Estas contas encontram-se abertas na titularidade do Inventariado BB, da Cabeça de Casal GG e da Interessada CC.
6) O valor de mercado do imóvel correspondente à verba n.º 7 da relação de bens é de € 73.000,00.
7) O valor de mercado do imóvel correspondente à verba n.º 8 da relação de bens é de € 11.000,00.
8) O valor de mercado do imóvel correspondente à verba n.º 9 da relação de bens é de € 55.000,00.
9) O valor de mercado do imóvel correspondente à verba n.º 10 da relação de bens é de € 108.000,00.
10) O valor de mercado do imóvel correspondente à verba n.º 11 da relação de bens é de € 49.000,00.
11) Mediante acordo escrito, datado de 10.04.2014, intitulado “Título de Compra e Venda”, JJ e KK declararam vender a EE (de onze anos de idade) e FF (de seis anos de idade) que – representados no ato por LL e mulher CC –, declararam comprar, pelo preço de € 25.000,00, o prédio urbano sito na Rua 1, n.º 10, freguesia de Local 1, concelho de Vila A, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila A sob o n.º 558.
12) A aquisição a favor de EE e DD foi inscrita no registo predial pela Ap. 2971 de 10.04.2014.
13) O preço desta aquisição foi pago, em 11.04.2024, através de cheque sacado sobre a conta com o n.º ....
14) O cheque foi emitido pela Cabeça de Casal à ordem de JJ.
15) A última residência do Inventariado foi no prédio identificado sob o ponto 11).
16) O valor comercial do prédio identificado em 11) é de € 32.500,00.”
4.2 – Factos não provados:
a) A Interessada AA recebeu do Inventariado a quantia de € 15.000,00, a título de liberalidade.
b) A Interessada CC utilizou o dinheiro depositado nas contas bancárias do Inventariado para adquirir o imóvel em nome dos filhos.
c) EE e FF nunca usaram ou gozaram do prédio identificado em 11), tal como não receberam qualquer vantagem por serem os titulares inscritos.
d) O Inventariado declarou doar prédio referenciado em 11) a EE e FF.
5. Do mérito do recurso
1. Impugnação da matéria de facto:
Insurge-se a apelante contra a resposta vertida no ponto 3) dos factos provados referindo que de acordo com os extratos bancários juntos, a mesma deverá ser do seguinte teor:
“3) Na data do óbito do Inventariado BB, a conta poupança com o n.º ..., domiciliada na Caixa Geral de Depósitos, tinha um saldo credor o valor total de € 8.108,17.
Vejamos se assim é.
De acordo com a sentença recorrida, os factos descritos sob os pontos 3) a 5) resultaram da valoração conjunta dos extratos bancários juntos aos presentes autos pela Caixa Geral de Depósitos em 31.10.2023 e, bem assim, do teor da “Declaração de Saldos por Óbito do Cliente” junta com a reclamação à relação de bens.
Analisámo-las e delas decorre o seguinte:
Neste último documento, emitido especificamente pela CGD para estes fins, o saldo que consta como sendo o saldo da conta em apreço à data do óbito é efectivamente de € 8.108,17.
E este é a nosso ver o único saldo que deve ser tido em consideração e não o que emerge dos extractos das contas bancárias que subsequentemente foram juntos.
Assim, defere-se a impugnação em apreço passando o facto 3) a ter a redacção sugerida pela apelante.
Relativamente ao facto vertido na alínea c) dos factos “ não provados” (EE e FF nunca usaram ou gozaram do prédio identificado em 11), tal como não receberam qualquer vantagem por serem os titulares inscritos), entende a apelante que “ (…) se o imóvel identificado no ponto 11 dos factos provados foi adquirido em 10/04/2014, pelos netos do Inventariado CC e DD, à data com 11 e 6 anos de idade, respectivamente; e se o Inventariado veio a falecer em 29/07/2014.
Constando, também, do assento de óbito n.º 39 do ano 2014 da Conservatória do Registo de Vila A, junto com o requerimento inicial, que o Inventariado teve a sua última residência habitual na Rua 1 n.º 10, freguesia do Local 1, concelho de Vila A.
Um raciocínio lógico, aliado às regras da experiência comum, levam-nos a concluir com segurança que, desde a aquisição do imóvel até ao descenso do Inventariado (data em que foi aberta a sua herança), os menores não usaram, nem gozaram do imóvel, não retirando qualquer benefício em serem os seus titulares inscritos. Até porque estamos a falar de um período de apenas três meses e meio.”.
Mais uma vez cremos assistir razão à apelante: ainda que estejamos em presença de um imóvel adquirido pelos menores (representados pelos seus pais) com dinheiro proveniente de uma conta bancária contitulada pelo inventariado (ainda em vida dele) e não tenha sido posta em causa a validade de tal negócio aquisitivo, o certo é que a prova produzida permite extrair a ilação de que os mesmos nunca viveram no imóvel em causa, já que foram os seus avós que no mesmo passaram a residir.
Termos em que se defere o requerido passando o seguinte facto a transitar para o elenco dos “Provados”: EE e FF, titulares inscritos do imóvel referido em 11) não residiram nele desde a sua aquisição e, pelo menos, até à data do falecimento do inventariado.
2. Da imputada deficiência/obscuridade de fundamentação na resposta aos pontos 6), 9) e 10) dos factos provados.
A apelante não impugna a resposta dada a tais factos. Limita-se a dizer que: “ (…) não se compreende a fundamentação da decisão recorrida, quando remete expressamente para o relatório de avaliação e para os esclarecimentos, nenhuma referência fazendo quanto à preferência de um ou outro documento na fundamentação dos valores que atribuí aos imóveis. Contudo, verifica-se que, no que respeita às verbas 7 e 11, o Tribunal a quo optou por considerar o valor atribuído pelo Sr. Perito no relatório de avaliação, ao invés do valor corrigido pelo Sr. Perito nos esclarecimentos posteriormente prestados.
Ficamos sem compreender esta opção do Tribunal a quo e a decisão recorrida também não o esclarece. Pelo que, quanto a esta concreta questão, consideramos estar perante uma omissão ou, pelo menos, deficiente fundamentação da motivação da decisão da matéria de facto, o que constitui violação do disposto no n.º 4 do artigo 607.º do Código de Processo Civil. “
Vejamos.
O Tribunal fundamentou a sua decisão quanto a tais pontos nos seguintes moldes: “Os factos descritos sob os pontos 6) a 10) e 16) resultaram da valoração do relatório pericial junto aos autos e respetivos esclarecimentos.”.
Não vemos que tal fundamentação seja de reputar de deficiente – parca - ou obscura – pouco clara – tendo em consideração que os factos em questão contemplam apenas a determinação dos valores de mercado de determinados imóveis.
O Tribunal atendeu, como disse, ao relatório pericial e aos esclarecimentos do perito.
Se um ou outro não sustentam, na visão da apelante, a decisão alcançada deveria ter sido impugnada a decisão destes factos, caminho, que como dissemos, a apelante não trilhou.
Improcede, assim, a sua pretensão de ver anulada a decisão com tal fundamento.
3. Da (des) necessidade de ampliação da matéria de facto
Refere a apelante que na reclamação à relação de bens indicou a falta de relacionamento do prédio urbano sito na Rua 1, n.º 10, freguesia do Local 1, concelho de Vila A inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 474, da referida freguesia e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila A sob o n.º 558.
Para o efeito alegou que o referido imóvel “pertence ao acervo hereditário, porquanto:
- foi adquirido três meses antes do óbito do Inventariado;
- foi adquirido com dinheiro próprio do Inventariado;
- foi a última residência do Inventariado;
- é até à presente data a residência da Cabeça-de-Casal.
O Tribunal a quo deu apenas como provado a data de aquisição do imóvel, não tendo considerado relevante a restante factualidade alegada na Reclamação, que não levou ao quadro fáctico da sentença e que, em nosso ver, seria importante para, em sede de subsunção dos factos ao direito, enquadrar juridicamente a aquisição do imóvel e determinar o proprietário do mesmo.
Assim, cabia apurar e descrever como factologia, as circunstâncias que envolveram a compra do imóvel, designadamente, propriedade dos fundos utilizados no pagamento do preço, utilização dada ao imóvel após a sua aquisição e por quem, motivo subjacente à aquisição do imóvel, entre outros.”
Vejamos.
É de notar que não foi posta em causa a validade de tal negócio ( v.g. por simulação) sendo que a sua aquisição mostra-se consolidada na esfera jurídica dos seus adquirentes e não do inventariado e sua mulher. Independentemente de ter sido com dinheiro da conta deles que o mesmo foi adquirido…
Com efeito, por força da presunção constante do art.º 7º do Cód. Registo Predial, “o titular registal está legitimado para actuar no tráfico e no processo como titular do direito, bastando-lhe, para tal, apresentar o comprovativo do registo. Trata-se de presunções ilidíveis (cfr. o art. 350.º do Código Civil), mas com um enorme alcance prático: quem quiser demonstrar o contrário é que tem o ónus da prova e, se quiser obter o cancelamento do respectivo registo, há-de impugnar judicialmente o facto jurídico inscrito, invocando a sua inexistência ou invalidade, uma vez que das referidas presunções decorre a “vigência protegida do assento inexacto1”.
Porém, isto não significa que o intuito subjacente à entrega desse dinheiro, através de cheque, não seja relevante. É-o, já que a existência de herdeiros legitimários implica a obrigatoriedade de relacionar os bens que o inventariado doou quer para efeitos de colação (doação a descendentes não exceptuados dela) quer com vista ao apuramento da inoficiosidade.2
O mesmo se diga dos factos atinentes à proveniência dos fundos que alimentam as contas bancárias contituladas pelo inventariado.
Segundo a apelante as mesmas são apenas creditadas com o valor mensal das reformas do casal (Inventariado e Cabeça-de-Casal), não sendo realizado nenhum movimento a crédito com fundos da co-titular CC (filha do casal), como espelham os extractos bancários.
E acrescenta “ Mas, há ainda um dado específico a considerar: é a própria Cabeça-de-Casal que acaba por admitir que o dinheiro depositado naquelas contas bancárias apenas lhe pertencia a si e ao Inventariado, ao afirmar que usou aqueles saldos, para pagar a compra do imóvel sito no Local 1 “Efetivamente o cheque ora junto aos autos destinou-se ao pagamento da compra do prédio urbano sito na Rua 1 n.º 10 em Local 1 (….).
A cabeça de casal esclarece que sendo sua pretensão e do inventariado doar tal prédio aos referidos netos, por uma questão de economia de custos, a respetiva escritura de aquisição ficou logo em nome dos ditos netos.”
Em suma: perante o exposto, impõe-se, a nosso ver a ampliação da matéria de facto com vista a apurar a proveniência dos fundos constantes das contas bancárias contituladas pelos inventariados (e uma das interessadas) e o intuito subjacente à entrega do cheque com que foi pago o preço de aquisição do imóvel.
Sendo tais factos essenciais à decisão do incidente, impõe-se que a Relação, ao abrigo do disposto no artigo 662º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Civil, determine a anulação da decisão da 1ª instância para ampliação da matéria de facto, nos termos supra-referidos, com a realização das diligências probatórias que se tenham por necessárias, após o que se decidirá como for de direito.
III. DECISÃO
Nestes termos e com tais fundamentos, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, anular a decisão recorrida para ampliação da matéria de facto, nos termos supra-referidos e ulterior decisão.
Custas pela parte vencida a final.
Évora, 18 de Setembro de 2025
Maria João Sousa e Faro ( relatora)
Susana Ferrão da Costa Cabral
Ana Pessoa
1. Assim, Mónica Jardim in “Breves notas sobre a presunção de verdade e titularidade no sistema registal português, o acórdão de uniformização de jurisprudência nº 1/2017 e a necessidade de programar o futuro do Registo Predial em Portugal”, consultável na internet.↩︎
2. Neste sentido, Lopes Cardoso in Partilhas Judiciais, Vol.I, pag.447.↩︎