Sumário:
I. Ocorre simulação relativa quando as partes fingiram realizar um determinado negócio – a compra e venda - quando, na realidade, pretendiam outorgar uma doação ( art.º 241º do Cód. Civil).
II. O negócio dissimulado não é inválido porque a a lei não impede que o autor da herança faça doações a terceiros em vida.
III. Se tais doações (ou liberalidades) forem inoficiosas - por ofenderem a legítima dos herdeiros legitimários – art.º 2168º do Cód. Civil - são redutíveis a requerimento dos mesmos.
IV. A inoficiosidade aplica-se a quaisquer liberalidades do autor da sucessão, feitas em vida ou por morte, aos herdeiros legitimários ou a terceiros pois não visa a igualação da partilha entre os herdeiros legitimários, antes se destinando à defesa da integridade da legítima.
ACÓRDÃO
I. RELATÓRIO
1. AA e BB, em nome próprio e em representação da Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de CC demandaram DD peticionando a condenação deste a (i) reconhecer que a venda do prédio descrito no artigo 6.º da petição inicial é nula por simulada e contrária à lei e, consequentemente, (ii) a restituir o mencionado prédio à Herança de CC livre de ónus e encargos e, bem assim, (iii) todos os valores por si recebidos por força do arrendamento do prédio desde a data do óbito de CC até à efetiva restituição do prédio, acrescido de juros de mora à taxa legal em vigor desde a data da citação até integral e efetivo pagamento. Mais peticionou (iv) o cancelamento junto da Conservatória do Registo Predial do registo de aquisição do referido prédio a favor do réu e (v) a sua condenação nas custas do processo, incluindo custas de parte a favor das autoras.
2. Para tanto, alegaram, em síntese, que a falecida CC, de quem são netas e únicas e universais herdeiras, mediante escritura de compra e venda declarou vender ao réu, com reserva de usufruto, o prédio descrito no artigo 6.º da petição inicial.
Sustentam as autoras que CC não teve intenção de vender o prédio ao réu, nem este de o comprar, mas antes, que se tratou de um negócio simulado, sendo intenção da primeira doar o mencionado prédio e, do segundo, recebê-lo a título gratuito.
Mais sustentam que, caso não se entenda que se trata de um negócio simulado, sempre a compra e venda seria nula, porquanto foi realizada com o propósito de violar disposição legal de carácter imperativo, no caso a legítima das Autoras.
3. O Réu contestou, sustentando, em síntese, inexistir qualquer simulação, sendo o contrato de compra e venda objeto da ação inteiramente válida e conforme à lei. Caso assim não se entenda, defendeu que o negócio simulado sempre seria válido, não sendo afetado pela nulidade do negócio simulado.
3. Realizada audiência final foi, subsequentemente, proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente, por não provada, absolvendo o Réu do pedido.
4. É desta sentença que recorrem as Autoras, formulando, na sua apelação, as seguintes conclusões:
I – As Autoras/Recorrentes impugnam a decisão da matéria de facto constante das alíneas a), b), c) e d) dos factos não provados, por entenderem que, em respeito pela integridade da prova produzida nos autos, deveria a mesma ter sido dada como provada.
II – Neste sentido, as Recorrentes pedem que o Tribunal da Relação, assumindo- se como um verdadeiro Tribunal de Substituição, proceda à reavaliação da matéria de facto especificadamente impugnada, “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-as, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada.” (Cfr. Acórdão do S.T.J. de 3/11/2009, disponível em www.dgsi.pt.) – negrito nosso.
III – A decisão recorrida considerou não provado que «O Réu não efectuou o pagamento do preço declarado em 5)», por entender que não existe “prova suficiente para convencer o Tribunal da sua verificação”, as Recorrentes entendem que esta matéria merecia resposta positiva (provado).
IV – Pois, pese embora, de seguida o Tribunal “a quo” acabe por admitir (e bem) que, no caso concreto, seja possível recorrer à prova testemunhal, bem como a presunções judiciais, a fim de colocar em crise a declaração confessória contida na escritura de compra e venda, incompreensivelmente acaba por concluir que “a prova testemunhal e documental não se mostrou suficiente para afastar a declaração confessória de CC aposta na escritura de compra e venda, não possuindo o Tribunal substrato factual suficiente que lhe permita o uso de presunções judiciais para concluir que tal declaração não corresponde à realidade material”.
V – As Recorrentes consideram – salvo o respeito por melhor opinião, que é muito -, foi produzida prova suficiente de modo a que, analisando-a de uma forma concatenada, à luz dos critérios da experiência comum e do normal acontecer das coisas, conjugando todos os factos, o Tribunal pudesse formar, fundamentadamente, uma convicção positiva acerca do não pagamento do preço declarado e, consequentemente, da intenção dos contraentes.
VI - DD, Réu e suposto comprador no imóvel - de todos os ouvidos em audiência o que se encontrava em melhor posição para esclarecer os termos do negócio celebrado, por ter sido de entre os presentes o único que participou no mesmo -, não foi capaz de esclarecer ao longo do seu depoimento os termos concretos do negócio celebrado, designadamente, a data do negócio (acordo de vontades), as datas de pagamento, os valores das prestações, a data limite para a formalização do acordo (escritura pública), limitando-se a dizer ao longo do seu depoimento que foi acordado com a tia, em 2008, “ir pagando como podia” e que deu “€ 10.000,00 no início”;
VII – Conforme depoimento gravado na audiência de julgamento realizada no dia 10-10-2023, tendo o seu início pelas 09:52 horas e o seu termo pelas 10:31 horas, disponível no sistema Citius como Diligencia_255-21.7T8ETZ_2023-10- 10_09-49-54, concretamente, as seguintes passagens transcritas supra a minuto 02:05 e ss; minuto 14:48 e ss e minuto 35:00 e ss do depoimento.
VIII - De realçar que a prova do não pagamento do preço declarado na escritura para as Autoras é a prova de um facto negativo, daí decorre «a acrescida dificuldade da prova de factos negativos deverá ter como corolário, por força do princípio constitucional da proporcionalidade, uma menor exigência probatória por parte do aplicador do direito, dando relevo a provas menos relevantes e convincentes que as que seriam exigíveis se tal dificuldade não existisse, aplicando a máxima latina «iis quae difficilioris sunt probationis leviores probationes admittuntur». (Vide a título de exemplo o Ac. do Supremo Tribunal Administrativo de 17-12-2008, proferido no processo n.º 0327/08, disponível in www.dgsi.pt).
IX – Contrariamente, para o Réu a prova do pagamento do preço – a ter-se verificado - seria fácil de realizar. Pois, ainda que, o mesmo tivesse sido pago faseadamente e em dinheiro, sempre deveria o Réu possuir as provas dos saques de algumas quantias das suas contas bancárias.
X – E, o facto de o réu ter apresentado os comprovativos dos pagamentos dos impostos da suposta compra do imóvel nada vem acrescentar quanto à prova do pagamento do preço. Pois é do senso comum que para realização de uma escritura de compra e venda, o comprador tem que apresentar os comprovativos do prévio pagamento dos impostos, para que a escritura se possa realizar. Aliás, a existência desses comprovativos tem que ficar a constar do próprio texto da escritura, como ficou (Cfr. escritura pública junta como Doc. 9 da petição inicial).
XI - Também se sabe, que o sistema da Administração Tributária apenas permite emitir os documentos de liquidação dos impostos para a compra e venda de um imóvel em nome do comprador (sujeito passivo do facto tributário), não sendo possível emitir as guias para pagamento em nome do vendedor. Tratando-se de um negócio simulado, para manter a aparência da veracidade do negócio, normal é que esses documentos de liquidação dos impostos sejam apresentados pelo comprador, como foram (Cfr. Doc. 1, 2 e 3 da contestação).
XII - Contudo, importante seria que o Réu tivesse demonstrado que os fundos que serviram para pagar esses impostos lhe pertenciam. Mas, o Réu não fez essa prova, nem tentou fazer, pelo que se desconhece quem era o proprietário dos fundos que serviram para o pagamento dos impostos, se o réu, se CC, se terceiro, pois não existe nenhum comprovativo da origem de tais fundos.
XIII – Acresce que, prova da simulação é quase sempre indirecta, por se reportar a eventos do foro interno dos simuladores, importa fazer uso de presunções judiciais, alicerçadas em indícios condensados pela uniforme prática jurisprudencial.
XIV - Neste conspecto, é natural que as testemunhas ouvidas EE e FF, pese embora fossem as pessoas que no período que o Réu indica como tendo sido estabelecido o acordo de compra e venda e realizado o pagamento faseado (anos de 2008 até 2012) mantinham relação próxima e frequente com CC, nada saibam acerca do acordo estabelecido entre CC e o Réu (venda ou doação), nem tampouco acerca do pagamento do preço. Pois, conforme resulta do depoimento destas testemunhas, o comportamento de CC e do Réu ao longo dos anos, nunca indiciou que a propriedade do imóvel tivesse sido transmitida. O que é, aliás, o mais espectável, quando se pretende ocultar dos futuros herdeiros o destino dado aos bens, de forma a que os mesmo não integrem o património hereditário.
XV – Mas, o depoimento destas testemunhas, por serem pessoas próximas de CC àquela época, é relevante para esclarecer o Tribunal das circunstâncias de vida de CC contemporâneas da celebração do negócio, de forma a dotar o Tribunal do acervo factual necessário para alcançar a real intenção/vontade de CC, quando outorgou a escritura de compra e venda do imóvel.
XIV – EE, prestou depoimento em audiência de julgamento realizada no dia 10-10-2023, com início pelas 11:44 horas e termo pelas 13:35 horas, disponível no sistema Citius, Diligencia_255-21.7T8ETZ_2023-10-10_11-43-48, com relevo para a decisão da matéria controvertida, vejam-se as passagens supra transcritas: minuto 04:44, minuto 07:20, minuto 14:45 e minuto 19:50 do depoimento.
XV - FF, que prestou depoimento em audiência de julgamento no dia 10-10-2023, com início pelas 14:11 horas e termo pelas 14:55 horas, disponível no sistema Citius, Diligencia_255-21.7T8ETZ_2023-10-10_14-11-13, com relevo para a decisão da matéria controvertida, vejam-se as passagens supra transcritas: minuto 02:51, minuto 20:20, minuto 25:50 e minuto 42:27 do depoimento.
XVI – As declarações destas testemunhas conjugadas com a prova documental junta aos autos (concretamente: doc. 4 e 5 juntos com o requerimento de 16-05- 2022; doc. 4 junto com requerimento de 08-06-2022; certidão junta com o requerimento 10-01-2023), permitem compreender o circunstancialismo da vida de CC e o posicionamento desta no que respeita às netas e ao Réu, por forma a permitir alcançar a sua intenção aquando da realização do negócio (simulado).
XVII – Acresce que, foi alegada pelas partes a seguinte factualidade, não considerada pelo Tribunal “a quo”:
- CC mantinha uma relação mais próxima com o sobrinho do que com as netas, o que criou as condições ideais para que fosse o beneficiário do património daquela (art. 15.º, 16.º e 17.º da petição inicial, conjugado com os art. 65.º a 68.º da contestação);
- o Réu era co-titular da única conta bancária de CC (art. 10.º e 11.º do requerimento de 08-06-2022);
- era o Réu que movimentava a conta de CC, com transferência “de” e “para” a sua própria conta (art. 12.º e 13.º do requerimento de 08-06-2022);
- CC não habitava o imóvel que vendeu ao Réu, pelo menos desde Dezembro de 2013, data em que passou a residir no Lar..., onde aquele a colocou (art. 14.º e Doc. 4 do requerimento de 08-06- 2022).
XVIII – Estas circunstâncias conjugadas com a demais factualidade e com o teor dos documentos supra referidos, acrescido o facto de à data do óbito, o património hereditário de CC ser constituído apenas pelo recheio do imóvel e pelo saldo da conta bancária de depósitos à ordem n.º ... no valor de € 50,08, permite-nos concluir com elevada probabilidade que, não só o preço da aquisição do imóvel não foi pago pelo Réu, como os beneficiários das poupanças de CC foram o Réu e os seus progenitores.
XIX – O que melhor se compreende se atentarmos às declarações da testemunha FF, que relatou que CC lhe havia confidenciado certa vez, que a casa (prédio dos autos) ficava para quem cuidasse de si. Sendo que nos últimos anos de vida de CC apenas o Réu e os pais deste mantinham contacto assíduo com CC.
XX – Também por estas razões, deveria a decisão recorrida ter dado como provada a matéria contida nas alíneas b), c) e d) dos Factos Não Provados.
XXI – Pois, recorrendo aquilo que nos ensina a Jurisprudência «No caso concreto o recurso às “regras da experiência” culmina todo o percurso probatório e a bem dizer traduz-se num “juízo presuntivo” onde um conjunto de factos positivos e omissivos é mais que bastante para que possa, de harmonia com o senso comum e as realidades da experiência e da vida, permitir concluir por forma a optar pela resposta aos quesitos em análise que constituem o fecho da abóbada da construção tendente a subtrair o património dos RR. à satisfação dos direitos do credor. Desde que a convicção do julgador seja devidamente motivada é imprescindível o recurso à prova por presunções para aferir da veracidade de certos factos, nomeadamente em matérias como a que ora apreciamos cujos momentos essenciais não são palpáveis de imediato através da prova testemunhal, mas antes o resultado de uma mediação ponderada de quem julga com recurso às realidades da vida e às normas da experiência.» (Vide Ac. TRC de 8/04/2008, proferido no processo nº 456/04.2TBALB.C1, in www.dgsi.pt).
XXII –Julgamos ter ficado demonstrado pela actuação do Réu e de CC, nos últimos anos de vida desta, que CC não mantendo uma relação próxima com as netas, tendo como familiares próximos apenas o irmão AA e o filho deste (Réu), começa por: em Dezembro de 2008, fazê-los co-titulares da sua conta bancária; para de seguida ir afastando as poucas pessoas próximas (netas, vizinho); para posteriormente, já com CC a frequentar a Instituição para idosos, outorgarem a escritura pública de 16-05-2013; mantendo a aparência perante terceiros de que o imóvel continuava a ser propriedade de CC, uma vez que a renda do estabelecimento comercial continuava a ser depositada na conta bancária de CC, como sempre foi, e os recibos a serem emitidos com o NIF de CC.
XXIII - Desta actuação de CC e do Réu (simuladores) – coadjuvados pelos pais do Réu - é possível alcançar a real intenção dos outorgantes da escritura, doar o imóvel a DD e este recebê-lo a título gratuito, para que as únicas herdeiras legitimárias de CC – as Autoras – não viessem a herdar o imóvel.
Ficando assim demonstrada a real vontade das partes, deverão ser dados como provados os factos contidos nas alíneas b), c) e d) dos factos provados.
XXIII – Daqui se conclui que, mal andou o Tribunal recorrido na análise da prova produzida nos presentes autos. Pois, do co-relacionamento dos meios probatórios supra referidos, nada havendo que os descredibilize no seu conteúdo – como não há -, em oposição às testemunhas apresentadas pelo Réu que foram totalmente descredibilizadas pelo Tribunal recorrido, parece-nos incontroverso que resulta provada a doação do imóvel por CC ao Réu, uma vez que, os diversos documentos juntos aos autos pelas Autoras analisados à luz das declarações das testemunhas, permitem concluir com elevada probabilidade que a intenção de CC era beneficiar o Réu em detrimento das netas. Logo, é inelutável que o Réu adquirente, ao outorgar a escritura impugnada, tinha pleno conhecimento e consciência que o negócio real consistia numa doação e não numa venda, apenas tendo sido celebrado nestes moldes para fugir à norma imperativa que proíbe as doações em prejuízo da legítima dos herdeiros legitimários.
XXIV – Assim, deverá ser considerado provado que:
- O réu não efectuou o pagamento do preço declarado em 5);
- CC não teve intenção de vender ao réu o prédio
identificado em 10), nem este teve a intenção de comprar;
- CC quis doar o prédio mencionado em 10) ao réu;
- CC e o réu outorgaram a escritura pública
mencionada em 5) com o propósito de retirar o prédio do ser acervo hereditário
em prejuízo das autoras.
XXV - A simulação é um vício atinente à declaração negocial, em que a divergência entre a vontade real dos contraentes e o que por estes é efectivamente declarado (entre o “querido” e o “declarado”) é intencional.
XXVI - Nos termos do n.º 1 do artigo 240.º do Código Civil, constituem elementos integradores deste vício da vontade: o acordo (simulatório) entre o declarante e o declaratário, a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração emitida e o intuito de enganar terceiros.
XXVII – A sanção prevista na lei para o negócio simulado é, de acordo com o n.º1 do artigo 240.º, do Código Civil, a nulidade.
XXVIII - Atendendo à matéria que consideramos ter ficado demonstrada resulta que, pese embora tenha existido a formalização de um contrato de compra e venda, na verdade CC quis doar o prédio aos Réu, tendo como objectivo enganar terceiras pessoas, mormente as Autoras (fazendo-lhes crer que a herança da avó não era composta por qualquer prédio). Poderia pensar-se que, neste caso, seria válido o negócio dissimulado (doação), porquanto foi respeitada a forma exigida por lei (art. 241.º do C.C.).
XXIX - Sucede que, visando os outorgantes atingir a legítima das Autoras, como efectivamente atingiram, sempre aquela doação seria nula, ao abrigo do disposto no artigo 294.º do Código Civil, por se tratar de um negócio jurídico celebrado contra disposição legal de carácter imperativo (artigos 2156.º, 2160.º do CC).
XXX – Por outro lado e a acrescer, «Uma doação dissimulada sob um contrato de compra e venda, no intuito de afastar as disposições legais que protegem as legítimas dos filhos, nos termos do art. 946º nº1 do CC, seria nula tratando-se de um acto “mortis causa”, entendendo-se que aquelas doações são as que produzem os seus efeitos por morte do doador, quer e trate do contrato sucessório, em que a morte funciona como causa de devolução dos bens, quer a morte funcione como condição ou termo.» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 03-12-2015, proferido no processo n.º 2936/07.9TBBCL.G1.S1, Relator: Orlando Afonso, disponível in www.dgsi.pt).
XXXI - Pelo que, também pela via da doação se chegaria à mesma conclusão nulidade do negócio jurídico celebrado entre CC e o Réu, com as consequências previstas no artigo 289.º do Código Civil.
XXXII - A decisão recorrida violou claramente o princípio da livre apreciação da prova (art. 607.º, n.º 5 do CPC) e o artigo 349.º do Código Civil. Assim como, viola o disposto nos artigos 240.º, 294.º, 2156.º, 2160.º e 946.º todos do Código Civil.
XXXIII- Impondo-se, portanto, a revogação da decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que condene o Recorrido nos termos peticionados.
Termos em que, nos melhores de Direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., Venerandos Desembargadores, deve a sentença apelada ser revogada e, em consequência, ser julgada a acção totalmente procedente por provada, declarando-se a nulidade da venda, formalizada por escritura pública de 16-05-2013, do prédio urbano sito na Rua 1, n.º 6 e 6-A, da freguesia de S..., concelho de Cidade 1, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 942/20081226 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 569 da actual União de Freguesias de E... e S...), outorgada entre o Réu e CC e, consequentemente;
a) Condenar-se o Réu a restituir à Herança Ilíquida e Indivisa de CC o prédio urbano supra identificado, livre de ónus ou encargos, no estado em que o recebeu, por fazer parte do acervo hereditário daquela;
b) Ordenar-se o cancelamento junto da Conservatória do Registo Predial do registo de aquisição pelo Réu do prédio urbano supra identificado, bem como de quaisquer outros registos contrários ao aqui peticionado;
c) Condenar-se o Réu a restituir à Herança Ilíquida e Indivisa de CC todos os valores por si recebidos, em virtude do arrendamento do mencionado prédio, desde a data do óbito de CC, até à efectiva restituição do prédio, os quais à data de 31/12/2022 já totalizavam o valor de € 9.300,00, tudo acrescido de juros de mora à taxa legal em vigor até efectivo e integral pagamento.
Assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.
5. Contra-alegou o Réu defendendo a manutenção integral do decidido.
6. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Como se viu, no caso, apela-se da sentença que conheceu do mérito dos embargos, circunscrevendo-se o objecto do recurso, delimitado pelas enunciadas conclusões (cfr.artºs 608º/2, 609º, 635º/4, 639º e 663º/2, todos do CPC) às seguintes questões:
1. Impugnação da matéria de facto: Se os factos vertidos nas alíneas a), b), c) e d) dos factos não provados devem ser dados como provados;
2. Reapreciação jurídica da causa: Se o negócio jurídico celebrado entre a falecida CC e o Réu DD é nulo, por simulado, a luz do disposto no art.º 240º do Código Civil, e provando-se a existência de uma doação se a mesma é nula, ao abrigo do disposto no artigo 294.º do Código Civil, por se tratar de um negócio jurídico celebrado contra disposição legal de carácter imperativo.
II. FUNDAMENTAÇÃO
7. É o seguinte o teor da decisão de facto inserta na sentença recorrida:
A. Factos Provados
“1. A autora AA nasceu a ........1984 e está registada como filha de GG e HH;
2. A autora II nasceu a ........1981 e está registada como filha de GG e HH;
3. GG nasceu a ........1957 e está registado como filho de JJ e de KK;
4. GG faleceu a ........1992, no estado de casado com HH;
5. No dia 16.05.2013, no ... LL, CC e DD outorgaram escritura pública, pela qual aquela primeira declarou que “Que, com reserva de usufruto, para ela vendedora, pelo preço de trinta e seis mil euros que já recebeu, vende ao segundo o prédio urbano, sito na Rua 1, números 6 e 6-A, freguesia de ...), concelho de Cidade 1, inscrito na matriz sob o artigo 466, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o número novecentos e quarenta e dois, barra, dois mil e oito, doze, vinte e deis da dita freguesia, onde a respetiva aquisição se encontra registrada a seu favor pela apresentação três de vinte e nove de janeiro de mil novecentos e oitenta e um, com o correspondente valor patrimonial tributário de € 29.112,00” e o segundo declarou “Que aceita esta venda”;
6. CC faleceu a ........2021, no estado de viúva de MM;
7. CC não deixou testamento ou qualquer disposição de vontade;
8. Por missiva datada de 23.02.2021, as Autoras solicitaram a NN, a entrega dos documentos pessoais de CC, assim como dos demais bens pertencentes à herança da falecida e as chaves do prédio sito na Rua 1, n.º 6 e 6-A, em Cidade 1;
9. Em 26.02.2021, as autoras foram informadas, através de comunicação remetida pela Mandatária de OO e do réu DD à mandatária das autoras, que o réu era o único proprietário do prédio sito na Rua 1, n.º 6 e 6-A, freguesia de S..., concelho de Cidade 1, descrito na Conservatória do Registo Predial deCidade 1 sob o n.º 942/20081226 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 569 da atual União de Freguesias de Cidade 1;
10. Desde o óbito de GG, único filho de CC, as autoras não mantiveram uma relação próxima com CC;
11. Na data do óbito de CC o seu acervo hereditário era composto pelo recheio do imóvel mencionado em 5) e por um saldo bancário no montante de € 50,08;
12. Após o óbito de CC o réu passou a receber a renda referente ao rés-do-chão do prédio mencionado em 5), onde se encontra instalado um cabeleireiro, no valor mensal de 200,00 €;
13. Após o óbito de CC o réu cedeu o gozo e fruição do primeiro andar do prédio mencionado em 5) para habitação, recebendo, em contrapartida, a quantia de 280,00 €;
14. No ano de 2021 o réu auferiu a quantia de 4100,00 € a título de renda referente ao prédio mencionado em 5);
15. No ano de 2022 o réu auferiu a quantia de 5.200,00 € a título de renda referente ao prédio mencionado em 5);
16. O réu procedeu ao pagamento do Imposto Municipal Sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis referente ao acordo mencionado em 5);
17. O réu procedeu ao pagamento do Imposto de Selo referente ao acordo mencionado em 5);
18. O réu procedeu ao pagamento dos emolumentos notariais e de registo referente ao acordo mencionado em 5);
19. Encontra-se registada na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1, através da ap. 3109 de 2013/05/17, a aquisição, mediante compra, a favor de DD do prédio sito na Rua 1, n.ºs 6 e 6-A, freguesia de S..., composto por edifício de rés-do-chão, 1.º e 2.º andares, a confrontar de norte e nascente com PP, de sul com QQ e de Poente com Rua 1, com área de 36 m2, inscrito na matriz predial urbana sob o art. 569 da União de Freguesias de Cidade 1 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o n.º 942/20081226 da freguesia de S...;
20. O réu é portador de uma incapacidade permanente global de 69 %;
21. O valor venal do imóvel descrito em 10) em 16.12.2022 era de € 81.918,50;
B. Factos não provados
a. O réu não efetuou o pagamento do preço declarado em 5);
b. CC não teve intenção de vender ao réu o prédio identificado em 10), nem este teve a intenção de comprar;
c. CC quis doar o prédio mencionado em 10) ao réu;
d. CC e o Réu outorgaram a escritura pública mencionada em 5) com o propósito de retirar o prédio do seu acervo hereditário em prejuízo das autoras;
e. O recheio do imóvel descrito em 10) não tinha valor comercial;
f. Previamente ao referido em 5) CC e o réu ajustaram os termos e condições do negócio;
g. A incapacidade do réu é suscetível de variação futura;
h. O réu pretendeu acautelar uma futura alternativa de residência no centro da cidade, pelo receio de vir a ficar incapacitado de conduzir e atentas as dificuldades no acesso a transportes públicos.
8. Do mérito do recurso
1. Impugnação da matéria de facto
As apelantes insurgem-se contra a resposta dada aos factos vertidos nas alíneas a), b), c) e d) dos factos não provados, a saber:
a. O réu não efetuou o pagamento do preço declarado em 5);
b. CC não teve intenção de vender ao réu o prédio identificado em 10), nem este teve a intenção de comprar;
c. CC quis doar o prédio mencionado em 10) ao réu.
Sustenta a sua pretensão no próprio depoimento do Réu e nas declarações das testemunhas que indica.
d. CC e o Réu outorgaram a escritura pública mencionada em 5) com o propósito de retirar o prédio do seu acervo hereditário em prejuízo das autoras.
Enveredámos por ouvir a prova produzida em audiência.
Foram tomadas declarações ao Réu que começou por referir ter adquirido uma casa à tia em Maio de 2013 que efectuou o pagamento do respectivo preço em prestações (desde meados de 2008) que “variavam um bocado”, acrescentando que numa base de 5000 contos por ano. Justificou ser em dinheiro porque a tia tinha obras em casa (pagando assim em notas aos trabalhadores). Referiu que a tia e ele tomavam apontamento dos pagamentos conquanto reconheça que não há rasto de tais documentos…
Vejamos.
O facto atinente ao pagamento do preço, essencial para aferir da verdadeira natureza do negócio jurídico (compra e venda/doação) na formulação negativa que aqui está em causa não pode ser razoavelmente exigido às apelantes por via da prova directa (v.g. por testemunhas) por se tratar de um facto que dificilmente por essa via consegue ser demonstrado.
Convém notar que a simulação de um negócio jurídico constitui um dos paradigmas processuais em que prova por presunção assume um papel preponderante.
Como nos revela Luís Filipe Pires de Sousa no seu livro “Prova por Presunção no Direito Civil “1, em matéria de simulação, é necessário apurar as intenções das partes ao outorgarem o negócio e sendo a prova directa dessas intenções rara, quase sempre terá de ser feita por meio de indícios/ presunções.
A ser verdade que o Réu havia pago em dinheiro e em prestações o preço do imóvel, era suposto que, para sua “defesa” o Réu tivesse em seu poder um documento da falecida vendedora comprovativo do pagamento de tais quantias que ele próprio nem sabe identificar com rigor. Aliás, a instâncias da advogada das Autoras afirmou que “rasgou” o seu apontamento onde tomava notas dos pagamentos.
Afirmou que a intenção da falecida foi vender a casa ao Réu porque era sobrinho(?)e que a sua intenção foi ter uma casa em Cidade 1 em razão das suas condições físicas (problema no joelho). A verdade, porém, é que apesar da vendedora já ter falecido há algum tempo ( 2021) e mesmo antes do decesso ter ido para um lar, o Réu continua sem habitar o imóvel , sendo que o andar de cima que está livre nem sequer é adequado às suas limitações físicas e o de baixo está arrendado a um cabeleireiro.
Não se afiguram minimamente plausíveis as justificações que foram dadas pelo Réu para adquirir a casa e muito menos por a ter pago o seu preço em notas e não haver quaisquer vestígios desse pagamento.
Aliás, como bem referem as apelantes: “ (…) ainda que, o mesmo tivesse sido pago faseadamente e em dinheiro, sempre deveria o Réu possuir as provas dos saques de algumas
quantias das suas contas bancárias, uma vez que, o próprio refere que os € 10.000,00 que pagou de entrada provieram de uma indemnização que recebeu de um acidente (o valor da indemnização terá forçosamente que ter sido movimentado através de contas bancárias tituladas pelo Réu, como se sabe).
Assim como, as restantes tranches do pagamento, que tinham origem como diz o Réu, essencialmente, nos subsídios de Natal e de férias do próprio e da esposa, logo sendo ambos funcionários públicos, cujos vencimentos são pagos através de transferência bancária, poderia o Réu ter demonstrado o saque daquelas quantias das suas contas bancárias. O que não fez, nem tentou fazer!”.
Aliás, é o próprio Tribunal “a quo” que afirma que: “ (…) o réu não foi capaz de dar explicações cabais sobre como e quando é que efectuou o pagamento, não esclarecendo quantas prestações foram, de que montantes, quando e onde foram pagas, o que se mostra irrazoável, considerando que estamos perante factos pessoais que o réu tem obrigação de conhecer”.
Mas há mais.
O depoimento da testemunha EE, professor aposentado, e vizinho da falecida, foi igualmente decisivo para perceber os contornos do negócio e confirmar a inverosimilhança do depoimento do Réu.
Explicou que o imóvel pertencia à D. CC que o habitou até ir para o lar, ao que supõe em 2011.
Ela não sabia ler, nem escrever e pedia ajuda à testemunha, pessoa de muita confiança da falecida, ao ponto desta lhe ter pedido que ficasse contitular da contas- o que a testemunha recusou.
Negou veementemente que a mesma lhe tivesse alguma vez dito que pretendia vender a casa. Aliás, de acordo com a testemunha, a falecida não precisava de dinheiro, até se sentia “desafogada”, como lhe confessou, pois tinha até a loja arrendada para cabeleireiro à D. FF que até custeou as obras. Reconheceu que algumas obras de reparação foram custeadas pela falecida mas mais nada. O património dela era apenas constituído por dinheiro (contas bancárias) e pelo imóvel em causa.
Não podemos, também, deixar de notar que se a falecida tivesse de facto alienado o imóvel ao Réu pelo valor que consta da escritura ( 36 mil euros) era natural que algum vestígio do recebimento do mesmo subsistisse ( pelo menos na sua conta bancária).
Mas não.
Como se provou, à data da sua morte o saldo da sua conta bancária apresentava apenas o saldo irrisório de € 50,08!
Revela-se, pois, inverosímil que a falecida tenha tido necessidade de gastar integralmente tal quantia (caso a tivesse recebido, está claro) apesar de viver desafogadamente, como salientado pela testemunha.
Reconheceu igualmente a testemunha o que a partir duma dada altura as netas começaram a deixar de ir a casa da falecida, passando a fazê-lo com mais assiduidade o Sr. AA, pai do Réu e posteriormente este último.
Afirmou que a casa ter “ficado” para este foi uma surpresa pois era suposto ter “ficado” para as herdeiras.
O depoimento de FF, inquilina da loja, também contribuiu para gerar a convicção acerca do ocorrido: Confirmou ter negociado o arrendamento em 2010 com o senhor EE, que ajudava a D. CC.
Explicou ter feito as obras “de uma ponta à outra” e celebrado o contrato por 15 anos, sendo que nos primeiros 6 anos pagava €150,00 e ao fim de 6 anos passava a pagar €200,00.
Explicou não ter tido conhecimento antecipado de que o imóvel iria ser vendido (ou que o tenha sido) sendo que só disso tomou conhecimento após o falecimento da D. CC quando o Réu lhe comunicou que “agora sou o seu senhorio” explicando-lhe ser proprietário da casa.
Admitiu que a D. CC, numa ocasião, disse ia deixar a casa ao Sr. RR justificando à testemunha que a destinaria a quem tomasse conta dela, mas já noutro momento dizia que ficava para as “netinhas”.
Por conseguinte, a transmissão da casa foi aventada pela falecida sempre em termos de “deixar” e não de vender. De todo o modo, o depoimento da testemunha revelou que a falecida não estaria no pleno das suas capacidades mentais (o que aqui não é está em causa contribui para compreender o sucedido).
Em contrapartida, o depoimento da testemunha SS não teve a virtualidade de, a nosso ver, contrariar o referido já que praticamente todo ele radica no que foi contado pelo Réu, de quem é amigo, sendo revelador, após as instâncias do Tribunal e da mandatária das Autoras, da sua falta de credibilidade. Aliás, contou atabalhoadamente uma história de ter visto um envelope a ser dado pelo Réu à falecida (que a mesma não abriu) mas cujo conteúdo não viu, desconhecendo quem é que também o viu tal entrega…
Ora, analisando conjuga e criticamente a prova produzida, designadamente o inverosímil depoimento prestado pelo Réu aliado à circunstância de não haver quaisquer vestígios do pagamento do preço por parte do mesmo – que estava numa posição privilegiada para o demonstrar -alcançámos a conclusão de que, apesar do que a falecida declarou na escritura, o preço do imóvel não foi pago.
Por todo o exposto, se determina que a alínea a) dos factos não provados transite para o elenco dos “Factos Provados”.
Relativamente ao facto vertido na alínea b), cremos que o depoimento da inquilina FF ( a quem não comunicada previamente a projetada “ venda” e a quem a falecida falou em “ deixar “ o imóvel ao sobrinho ou às netas ) aliada à circunstância de o preço não ter sido pago, permite presumir que a mesma não teve intenção de vender ao réu o prédio identificado nem este teve a intenção de a comprar mas antes quiseram ambos operar a transmissão gratuita do imóvel para o Réu ( alínea c)).
Tendo em consideração de que as netas da falecida eram as suas únicas herdeiras legitimárias - o que a mesma inevitavelmente sabia, assim como o Réu, que era seu sobrinho - e que o imóvel era o único bem dessa natureza de CC, o que a mesma também sabia, assim como o Réu (dados os laços familiares e proximidade com a mesma) e que à data do seu óbito o seu acervo hereditário era apenas composto pelo recheio do imóvel e por um saldo bancário no montante de € 50,08, é possível concluir que o negócio em causa foi outorgado com o intuito de o retirar do património daquela antes do seu decesso em prejuízo das autoras (alínea d).).
Apesar de aparentemente nada impedir que a CC tivesse doado o imóvel ao seu sobrinho, ora Réu, cremos que esse caminho não foi trilhado por suporem que iria causar grande celeuma familiar e social e acarretar dissabores ao Réu uma vez que não podiam deixar de antever ser tal liberalidade inoficiosa.
Aliás, é precisamente a circunstância de a falecida e o Réu terem enveredado por celebrar um contrato de “compra e venda” sem pagamento do preço ao invés de um contrato de doação que nos reforça a convicção de que o intuito era, ainda que sub-repticiamente, prejudicar as Autoras (no mínimo os simuladores previram tal prejuízo e conformaram-se com tal resultado).
Termos em que se determina igualmente que os factos insertos nas alíneas b), c) e d) transitem para o elenco dos “factos provados”.
2. Reapreciação jurídica da causa: Se o negócio jurídico celebrado entre a falecida CC e o Réu DD é nulo, por simulado, a luz do disposto no art.º 240º do Código Civil, e se o dissimulado (doação) é nulo, ao abrigo do disposto no artigo 294.º do Código Civil.
Como se viu, o propósito principal das Autoras é verem declarada a nulidade, por simulação, do negócio translativo da propriedade ocorrido no dia 16.05.2013 entre CC e DD que outorgaram escritura pública, pela qual aquela primeira declarou que “Que, com reserva de usufruto, para ela vendedora, pelo preço de trinta e seis mil euros que já recebeu, vende ao segundo o prédio urbano, sito na Rua 1, números 6 e 6-A, freguesia de ..., concelho de Cidade 1, inscrito na matriz sob o artigo 466, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cidade 1 sob o número novecentos e quarenta e dois, barra, dois mil e oito, doze, vinte e deis da dita freguesia, onde a respetiva aquisição se encontra registrada a seu favor pela apresentação três de vinte e nove de janeiro de mil novecentos e oitenta e um, com o correspondente valor patrimonial tributário de € 29.112,00” e o segundo declarou “Que aceita esta venda”.
Dispõe o artº240.º do Cód. Civil, sob a epígrafe “Simulação”, o seguinte :
1. Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado.
2. O negócio simulado é nulo.”.
Deste normativo, resulta que a simulação tem como requisitos :
a. divergência entre a declaração negocial e a vontade real dos declarantes “;
b. acordo simulatório («pactum simulationis» ou, na terminologia legal, “acordo entre declarante e declaratário”) ;
c. “intuito de enganar terceiros” (“animus decipiendi», gerador da chamada “simulação inocente”, ao qual poderá, ou não, cumular-se a de prejudicar outrem (“animus nocendi”).
A integralidade dos requisitos da simulação estão, a nosso ver, preenchidos, como se viu e decorre do que ficou provado: CC não teve intenção de vender ao réu o prédio identificado em 10), nem este teve a intenção de comprar; CC quis doar o prédio mencionado em 10) ao réu; d. CC e o Réu outorgaram a escritura pública mencionada em 5) com o propósito de retirar o prédio do seu acervo hereditário em prejuízo das autoras.
Estamos, todavia, em presença de uma simulação relativa já que as partes fingiram realizar um determinado negócio – a compra e venda - quando, na realidade, pretendiam outorgar uma doação ( art.º 241º do Cód. Civil).
Resta-nos apurar as consequências dessa constatação.
Cremos que o negócio dissimulado não é inválido ao contrário do que as apelantes pretendem (porque consideram que viola os artigos 2156.º, 2160.º do Cód. Civil).
Na verdade, a lei não impede que o autor da herança faça doações a terceiros em vida.
Sucede é que tais doações (ou liberalidades) caso sejam inoficiosas (por ofenderem a legítima dos herdeiros legitimários – art.º 2168º do Cód. Civil ) são redutíveis a requerimento dos herdeiros legitimários ( art.º 2169º do Cód. Civil).
A inoficiosidade aplica-se a quaisquer liberalidades do autor da sucessão, feitas em vida ou por morte, aos herdeiros legitimários ou a terceiros pois não visa a igualação da partilha entre os herdeiros legitimários, antes se destinando à defesa da integridade da legítima.
Para o cálculo da legítima deve atender-se não só aos bens existentes no património do autor à data da sua morte mas também ao valor dos bens doados ( assim como às despesas sujeitas à colação e às dívidas da herança) -art.º 2162º, nº1 do Cód. Civil.
“ Quanto às liberalidades consubstanciadas em doações, se os bens doados forem divisíveis, a redução faz-se separando deles a parte necessária para preencher a legítima; sendo indivisíveis, se a importância da redução exceder metade do valor dos bens, estes pertencem integralmente ao herdeiro legitimário e o donatário haverá o resto em dinheiro; no caso contrário, os bens pertencem integralmente ao donatário, tendo este de pagar em dinheiro ao herdeiro legitimário a importância da redução (art. 2174.º, n.ºs 1 e 2, do CC).2”
Perante a validade do negócio dissimulado não se chega a colocar a hipótese de conversão do negócio simulado pois aquela validade assegura a sua eficácia: ele vale tal como as partes o celebraram.3
Acresce que não ocorre invalidade formal do negócio dissimulado já que o simulado foi celebrado por escritura pública que é o instrumento revestido da forma legalmente exigida para ambos os negócios.
Não nos detemos, pois, na apreciação da vexata quaestio relativa ao sentido do nº2 do art.º 241º do Cód. Civil, ou seja, os termos em que pode ser válido o negócio dissimulado formal pois, tanto quanto sabemos, tem sido entendimento pacífico do STJ de que o regime do art. 241.º CC corporiza as teses defendidas por TT a respeito dessa problemática. (cfr. o recente acórdão de 19.9.2024 proferido no processo 11482/21.7T8PRT.P1.S1).
Sendo o negócio dissimulado (doação) válido, conquanto susceptível de constituir uma liberalidade inoficiosa (questão a apreciar em sede própria4), a pretensão das apelantes de o ver restituído à herança não tem como proceder neste momento.
É que só a nulidade da doação poderia determinar tal efeito retroactivo (de restituição de tudo o que tiver sido prestado - artº 289º nº1 do Código Civil).
Isto significa que, até ver, o imóvel dever permanecer na esfera jurídica do Réu.
III. DECISÃO
Por todo o exposto, revoga-se a sentença recorrida e em substituição, julga-se a acção parcialmente procedente e em consequência :
a. Declara-se que o contrato de compra e venda titulado pela escritura outorgada no dia 16.05.2013 no Cartório Notarial da Dra. LL, entre CC e DD é um contrato simulado e que, em consequência, naquela escritura o prédio ali identificado não foi objecto de uma compra e venda mas de uma doação entre os outorgantes.
b. Absolve-se o Réu do demais peticionado pelas Autoras.
Custas do recurso pelo Réu e da acção por AA. e R. na proporção de metade.
Évora, 18 de Setembro de 2025
Maria João Sousa e Faro ( relatora)
Susana Ferrão da Costa Cabral
Ricardo Miranda Peixoto
1. 2ª Edição, Almedina, pag. 231 e seguintes.↩︎
2. Assim, Acórdão do TRP de 26.1.2023 proferido no processo 979/13.2TJPRT-D.P1.↩︎
3. Assim, Carvalho Fernandes in “ A conversão dos negócios jurídicos civis”, pag. 275.↩︎
4. Cfr. com interesse Acórdão desta Relação de 7.11.2024 ( Sónia Moura).↩︎