I – Embora com o intuito de obter a anulação da sentença, tendo o recorrente colocado em causa a matéria de facto fixada (por a considerar insuficiente, ou seja, por, a seu ver, não incluir factos relevantes que decorrem do depoimento prestado por uma testemunha), estamos ainda perante recurso que tem como objeto “reapreciação de prova gravada” com o sentido e alcance protegidos pelo art. 638.º, n.º 7 do CPC, sendo merecedora de tutela a dificuldade acrescida inerente ao cumprimento do ónus de apresentação de alegações com a necessidade de acesso pelas partes ao conteúdo das gravações que foram realizadas.
II – Assim, independentemente de o recurso cumprir ou não as exigências que decorrem dos arts. 639.º, n.º 1 e 640.º do CPC, o recorrente usufrui, também neste caso, do alargamento do prazo concedido pelo art. 638.º, n.º 7 do CPC.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Acordam os juízes que integram este coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:
I-Relatório
AA, residente na Rua ..., ..., lugar..., ... – ..., do concelho ...
intentou contra
A..., S.A., com sede na Rua ... – Apartado ...76 – ... ...
a presente ação declarativa, sob a forma comum, pedindo a condenação desta no pagamento da quantia “de 67.310,00€ à qual deverão acrescer as quantias que se vencerem a título de privação do uso do veículo (Trator Agrícola) até integral liquidação e as devidas em consequência do agravamento do prémio seguro, e bem assim os juros que se vencerem após a citação”, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos.
Invocou, como fundamento, a ocorrência, em 14 de abril de 2021, de um embate entre o ligeiro de passageiros com a matrícula ..-..-BE, seguro na Ré, e o trator agrícola com a matrícula ..-..-NZ, conduzido e pertença do A., embate esse exclusivamente imputável à condutora de veículo ..-..-BE e que teve as consequências/danos que descreveu.
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A Ré contestou, peça processual onde, para além de sustentar que o acidente ocorreu por culpa exclusiva do A., defendeu que, mesmo que assim não se entendesse, apenas assistiria ao A. o direito à indemnização no valor correspondente ao da aquisição do trator (€10.500) e à relativa a 14 dias de paralisação.
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Em 08.01.2025 foi proferida sentença (ref. 109354994), contendo o seguinte dispositivo: “julgo a ação totalmente improcedente por não provada absolvendo por consequência a Ré dos pedidos contra ela formulados”.
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O A. interpôs recurso dessa decisão, fazendo constar nas alegações apresentadas as conclusões que se passam a transcrever:
“1º-Atento o depoimento prestado pela testemunha – BB (gravação áudio 00,001 a 14,05), o Tribunal teria que levar aos factos provados a sinalização de trânsito existente no local do acidente e no sentido de trânsito da segurada da Ré, ou seja:
- a existência da placa identificativa de localidade de ...,
- a existência da placa identificativa do limite de velocidade de 50km/hora; - a existência do sinal de trânsito identificativo de passadeira para peões;
- que o sinal de stop, existente n rua por onde seguia o A., atento o sentido de trânsito seguido se situa a cerca de oito a nove metros da linha continua delimitativa da faixa de rodagem por onde seguia a segurada da Ré.
2º-Atenta a localização do dano verificado no veículo da segurada da Ré, conforme se verifica da foto nº4 junta pela GNR com a participação do acidente, na quina frontal direita e guarda lamas, este local, não é a mesma coisa que lateral direita, conforme o Tribunal deixou por provado no facto “6” e, portanto incumbia que neste ponto “6” dos factos provados fosse substituída “parte lateral direita” por “parte lateral direita/zona da guarda lamas dianteiro”.
3º-Relativamente ao facto provado sob o ponto “9”, o Tribunal não poderia considerá-lo por provado, atendendo a que o veículo do A. apenas estaria a ocupar parte da sua faixa de rodagem em cerca de 90 cm a 1 m correspondente à peça desintegrada quando a segurada da Ré possuía livres cerca de 2m de faixa de rodagem e não circulava em sentido contrário qualquer outro veículo que a impedisse de efetuar a manobra de recurso podia sempre invadir a faixa de rodagem contrária.
4º - O Tribunal teria que levar aos factos provados o teor do ponto “3” dos factos que considerou por não provados, porquanto se a segurada da Ré circulasse em atenção à sinalização existente no local, jamais o resultado do embate teria as consequências que na realidade teve e, portanto, este facto teria que ter a redação de que, não podendo identificar-se a velocidade que a segurada da Ré imprimia ao veículo, no entanto a velocidade imposta de circular a não mais de 50 km/hora não é compatível com a dimensão do dano provocado no veículo do A. em consequência do embate ocorrido.
5º – Deverá também o facto “13” ser alterado por forma a que seja esclarecido que, ao referir a estrada no local, a mesma se desenha em traçado curvo e, portanto de pouca visibilidade”, se pretende identificar a mesma como se tratando da estrada por onde circulava a condutora do “BE”, segurada da Ré atenta a descrição constante do croqui junto com participação e elaborado pela GNR.
6º – Em consequência deste não cumprimento da imposição legal de não circular a mais de 50km/hora e, portanto, a condutora do BE, segurada na Ré, porquanto conduzia, desatenta, descuidada e alheia à sinalização de trânsito que se encontrava na via e atento o seu sentido de trânsito deu causa ao acidente e portanto tornou -se responsável pelos danos sofridos pelo A. e alegados na p.i..
7º – Caso assim VV. Exªs não entendam, então sempre deverão revogar a sentença proferida e substituindo por outra que considere que ambos os condutores concorreram para a oclusão do acidente, atenta a violação da sinalização de trânsito por parte de ambos os condutores, devendo graduar as respetivas culpas em proporções diferentes, nomeadamente atribuir à condutora do BE um grau de culpa superior à devida pela conduta do A., atenta a obrigação que se lhe impugna de não circular a mais de 50km/hora.
8º – Deverá, assim, considerar-se a sentença ferida de nulidade, atendendo a que não se pronunciou sobre a sinalização existente na via e da mesma era essencial conhecer.
9º – Com a decisão proferida, violou o Tribunal a que ao disposto nos artºs 607º nº4 , 615 nº1/d do C.P.C. e artºs 362º, 483º e 506º do C.C”.
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A Ré respondeu pugnando pela não admissão do recurso (por intempestividade), pela sua rejeição na parte respeitante à impugnação da matéria de facto (por o A/recorrente não ter cumprido os ónus impostos), e defendendo o acerto da decisão, quer quanto à decisão da matéria controvertida, quer quanto à absolvição da Ré do pedido.
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No despacho em que admitiu o recurso o Sr. Juiz pronunciou-se quanto à suscitada nulidade da sentença nos seguintes termos:
“No caso em apreço, não se vislumbra a ocorrência do alegado vício. Com efeito, o que resulta da posição do recorrente, firmada nas alegações de recurso, é um desacordo quanto à solução jurídica dada ao caso.
Ora, segundo se crê, tal divergência não cabe no invocado vício.
Da mesma forma, não se vê que exista qualquer outro suscetível de ser reparado nesta fase processual, na certeza, porém, de que V. Exas., com mais saber e experiência, melhor saberão aplicar a lei e fazer justiça”.
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Colhidos os vistos, foi realizada a conferência, com obtenção dos votos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos.
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II-Questões prévias
A – Da intempestividade do recurso
Na resposta ao recurso o apelado, a título de questão prévia, suscitou a questão da extemporaneidade do recurso invocando, em síntese, que:
- O prazo de 30 dias para a interposição do recurso terminou no dia 12 de fevereiro 2025, ou, no limite, mediante o pagamento de multa, no dia 17 fevereiro 2025,
- O Autor apresentou o seu requerimento de interposição de recurso em 24 fevereiro 2025, ou seja, muito para além do prazo de que dispunha para o efeito,
- É certo que, nos termos do n.º 7 do Art.º 638º do CPC, pretendendo impugnar a decisão da matéria de facto a partir da reapreciação de meios de prova gravados (e apenas neste caso), o recorrente beneficia de um acréscimo de 10 dias,
- No entanto, para o recorrente beneficiar desse acréscimo de 10 dias, é necessário que a alegação por ele apresentada, “ou seja, a peça que define o objeto do recurso, contenha alguma impugnação da decisão acerca da matéria de facto a partir da reponderação de meios de prova que, tendo sido prestados oralmente, tenham ficado registados, independentemente do juízo que ulteriormente seja feito acerca do cumprimento do ónus de indicação das passagens da gravação ou de qualquer outro requisito previsto no artigo 640º”,
- Ou seja, o recorrente apenas pode beneficiar desse prazo alargado se tiver, no recurso, impugnado a decisão da matéria de facto tendo por base depoimentos gravados,
- No caso concreto, no que respeita à impugnação da matéria de facto e reapreciação da prova gravada, o Recorrente apenas alega que: “do depoimento prestada pela testemunha – BB, morador na localidade em causa e a poucos metros do local do acidente (constante da gravação áudio com o inicio ao minuto 00,001 a 14,05) pelo mesmo foi confirmado que:
- quem circule na estrada em que seguia o A., atendendo a que o sinal de stop se situa em local recuado e a oito nove metros, qualquer condutor tem que avançar até à linha limite da faixa de rodagem para poder verificar quem circula de um lado e do outro;
- que atento o sentido de trânsito que a segurada da Ré seguia a localidade da ... possui a placa identificativa da mesma;
- que possui marcada no pavimento a passadeira de peões e a placa identificativa do limite de velocidade de 50km/hora.”
- O Recorrente não transcreve nenhum segmento do referido depoimento, nem sequer indica, com exatidão, as passagens da gravação em que se funda, ou seja, aquelas que poderiam permitir ao Tribunal a quo concluir pela prova dos factos no sentido pretendido pelo Recorrente.
- Não há, no caso concreto, uma verdadeira reapreciação da prova gravada e, por isso, o Recorrente não dispunha de outro prazo para apresentar o seu recurso para além dos 30 dias.
Decidindo:
O prazo para interposição de recurso é de 30 dias (art. 638.º, n.º 1 do CPC).
Todavia, se o recurso tiver por objeto a reapreciação da prova gravada, ao prazo de interposição e de resposta acrescem 10 dias (n.º 7 do citado normativo).
Está em causa apurar se o alargamento do prazo concedido pelo n.º 7 do art. 638.º do CPC está dependente da do cumprimento das exigências constantes dos arts. 639.º, n.º 1 e 640.º do CPC.
Contudo, tal como se apresenta manifesto, e com consolidado apoio na jurisprudência, tal alargamento do prazo apenas depende do objeto da apelação (delimitado pelas respetivas conclusões), e, em concreto, se ele versa sobre a reapreciação da prova gravada.
Conforme se refere no Ac. do STJ de 28-04-2016 (Proc.º nº 1006/12.2TBPRD.P1.S1),
“A extensão do prazo de 10 dias previsto no art. 638º, nº 7, do CPC, para apresentação do recurso de apelação quando tenha por objecto a reapreciação de prova gravada depende unicamente da apresentação de alegações em que a impugnação da decisão da matéria de facto seja sustentada, no todo ou em parte, em prova gravada, não ficando dependente da apreciação do modo como foi exercido o ónus de alegação.
(…)
Tendo o recorrente demonstrado a vontade de impugnar a decisão da matéria de facto com base na reapreciação de prova gravada, a verificação da tempestividade do recurso de apelação não é prejudicada ainda que houvesse motivos para rejeitar a impugnação da decisão da matéria de facto com fundamento na insatisfação de algum dos ónus previstos no art. 640º, nº 1, do CPC.”
Igualmente, no acórdão do STJ de 06.06.2018 (Proc.º nº 4691/16.2T8LSB.L1.S1) decidiu-se “… Apesar de não haver lugar à reapreciação da prova gravada, por não fazer parte do objeto da apelação, continua a justificar-se o alongamento do prazo, por mais 10 dias, para a interposição da apelação, se na alegação o recorrente tiver impugnado a decisão proferida sobre a matéria de facto, nomeadamente, indicando e transcrevendo os trechos dos depoimentos gravados que, no seu entender, impõem a alteração da matéria de facto”.
Vai também na mesma linha, o sumário do acórdão do STJ, de 22.10.15 (Proc.º n.º 2394/11.3TBVCT.G1.S1): “Contendo a alegação apresentada pelo recorrente uma impugnação séria, delimitada e minimamente consistente da decisão proferida acerca da matéria de facto, deve ter-se por processualmente adquirido, em termos definitivos, que se verificou a prorrogação do prazo para recorrer por 10 dias, independentemente do preciso juízo que ulteriormente se faça acerca do cumprimento do ónus de exacta indicação das passagens da gravação – que naturalmente poderá condicionar o conhecimento de tal impugnação, sem, todavia, pôr em causa a tempestividade do recurso de apelação.”
No caso, embora com o objetivo de obter a anulação da sentença, é manifesta a intenção do recorrente no sentido de colocar em causa a matéria de facto que considera insuficiente, ou seja, por não incluir factos a seu ver relevantes e que decorrem do depoimento da testemunha BB e constantes da gravação áudio 00,001 a 14,05 (a saber; a existência da placa identificativa de localidade de ..., do limite de velocidade de 50km/hora, do sinal de trânsito identificativo de passadeira para peões e que o sinal de stop existente na rua por onde seguia o A., se situa a cerca de oito a nove metros da linha continua delimitativa da faixa de rodagem por onde seguia a segurada da Ré).
Embora com o sentido não rigorosamente coincidente com o resolvido na jurisprudência citada (nesta parte o recurso dos autos tem como objeto a nulidade da sentença e não a sua mera alteração quanto à decisão atinente aos factos), estamos ainda perante uma impugnação da matéria de facto (de acordo com o recorrente deviam ter sido dados como provados outros factos provados, que não apenas os que o foram), que, nas diferentes soluções plausíveis para a resolução da questão, pode incluir a verificação e audição de prova gravada.
Afigura-se-nos, por isso, que, também aqui, estamos em presença de recurso que tem como objeto “reapreciação de prova gravada” com o sentido e alcance protegidos pelo art. 638.º, n.º 7 do CPC, sendo merecedora de tutela a dificuldade acrescida inerente ao cumprimento do ónus de apresentação de alegações com a necessidade de acesso pelas partes ao conteúdo das gravações que foram realizadas.
Assim, independentemente de o recurso cumprir ou não as exigências que decorrem dos arts. 639.º, n.º 1 e 640.º do CPC, o recorrente usufrui do alargamento do prazo concedido pelo art. 638.º, n.º 7 do CPC, tendo o recurso sido apresentado em tempo.
Em conformidade, improcede a invocada extemporaneidade do recurso.
B – Da rejeição do recurso na parte respeitante à impugnação da matéria de facto
(…).
III - Objeto do recurso
Como é sabido, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo e que não se encontrem cobertas pelo caso julgado, são as conclusões do recorrente que delimitam a esfera de atuação deste tribunal em sede do recurso (arts. 635, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 640.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPC).
No caso, perante as conclusões apresentadas, e com respeito pelo já decidido nas matérias previamente apreciadas, são as seguintes as questões a apreciar e decidir:
Saber se:
a) a sentença é nula,
b) deve ser modificada a decisão proferida no tocante aos factos provados sob os n.ºs 6 e 13,
e se
c) deve ser revogada a decisão proferida, por se dever concluir que a produção do acidente se deveu à culpa exclusiva do veículo seguro na Ré, ou, pelo menos, por se dever considerar que ambos os condutores concorreram para a produção do acidente.
*
IV-Fundamentação
Com vista à incursão nas questões objeto de recurso, importa, antes de mais, transpor a factualidade que na decisão recorrida foi dada como provada.
Assim, na decisão recorrida consta a este propósito o seguinte:
“Factos provados[2]
1. No dia 14 de Abril de 2021, pelas 11h e 14m, na Rua designada por ..., no lugar..., da freguesia ..., ocorreu um acidente de viação.
2. Sendo que nesse dia, hora e local, transitava na dita Rua ... e no sentido de trânsito das localidades – ..., do concelho ..., e ..., do concelho ..., o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-BE, marca Ford Orion, conduzido aquando do acidente ocorrido pela sua proprietária – CC.
3. Para a sua circulação terreste, havia esta sua proprietária celebrado contrato de seguro com a aqui Ré, através da Apólice nº ...36.
4. Por sua vez, o Autor nesse mesmo dia, hora e local, conduzia o seu veículo trator agrícola marca ISEKI, modelo 33TF325F, e matricula ..-..-NZ, o qual possuía acoplado o reboque agrícola de matrícula L-...... e, igualmente, seguro na Ré, pela apólice nº ...56 circulava com o referido veículo na Rua ..., da mesma localidade de ..., rua esta que entronca de forma diagonal na Rua ..., onde circulava o veículo ..-..-BE, pelo lado direito, atento o sentido de trânsito deste veículo.
5. O A. pretendia entrar nesta Rua ... e seguir à sua esquerda, para a localidade de ..., quando chegou ao sinal stop, não imobilizou o seu veículo.
6. De seguida entrou na via por onde circulava o veículo BE embatendo neste na parte lateral direita.
7. Se o Autor tivesse parado junto à junção entre a Rua ... e a Rua ... este acidente de viação não tinha acontecido.
8.O mesmo ocorre porque o Autor entra na Rua ... no momento da passagem, por si, do veículo BE.
9.Sem que à sua condutora fosse possível travar, guinar para a sua esquerda ou executar qualquer outra manobra de recurso, para evitar o acidente.
10. O veículo BE seguiu a sua marcha para o seu lado esquerdo considerando o sentido de marcha imprimido aí se imobilizando a cerca de 120 metros do local do embate
11. Em consequência do embate o veículo conduzido pelo Autor ficou com a parte da frente, zona do motor partida e desanexada do restante chassi e além de partida foi ainda projetada para a sua direita, atento o sentido de trânsito do BE, ficando a 2,90m da roda traseira direita, junto da linha que delimita a faixa de rodagem,
12. Sem que houvesse, nem antes do embate nem depois do embate no BE, deixado qualquer rasto de travagem.
13. A estrada no local, desenha-se em traçado curvo e, portanto de pouca visibilidade pelo que ao Autor lhe eram exigíveis maiores cautelas na sua condução.
14. A via no local do acidente possui a largura de 5,60m, pelo que cada hemifaixa de rodagem possui a largura de 2,80m.
15. O pavimento estava seco e limpo e fazia bom tempo no momento do acidente.
16. O A. teve necessidade, porque se avizinhava o período de realização das sementeiras do milho, da batata, das hortas, as quais se iniciam em finais de abril, início de maio, de cortar as ervas e transportá-las para o palheiro, para alimentar os animais ovinos e caprinos, de transportar o motor da rega para a rega e seus acessórios dos milharais, da horta e bem assim de efetuar todas as demais lides agrícolas.
17. Outra alternativa não teve que de se socorrer das poucas economias que possuía e, adquirir outro trator agrícola já com inúmeros anos e com mais 10 anos de uso que o sinistrado, e, em pior estado de conservação, para poder realizar em devido tempo os trabalhos agrícolas e poder produzir os produtos agrícolas para a sua subsistência e da sua esposa.
18. Na sequência do acidente de viação ocorrido o A adquiriu um outro trator à firma, a B..., Ldª, com sede em IC..., ..., ... – ..., e com a qual teve que despender a quantia de 10.500,00€.
*
Aqui chegados, importa apreciar e decidir as questões suscitadas no recurso.
Assim:
A – Da nulidade da sentença
O recorrente sustenta que a sentença recorrida é nula porque, tendo em consideração o depoimento prestado pela testemunha BB, o tribunal omitiu factos provados relevantes respeitantes à sinalização existente na via, ou seja:
- a existência da placa identificativa de localidade de ...,
- a existência da placa identificativa do limite de velocidade de 50km/hora;
- a existência do sinal de trânsito identificativo de passadeira para peões;
- que o sinal de stop, existente na rua por onde seguia o A., atento o sentido de trânsito seguido, se situa a cerca de oito a nove metros da linha continua delimitativa da faixa de rodagem por onde seguia a segurada da Ré.
É, desde há muito, entendimento pacífico[3], que as nulidades típicas da sentença se reconduzem a vícios formais decorrentes de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal.
Tratam-se, na essência, de vícios de formação ou atividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afetam a regularidade do silogismo judiciário da sentença e que obstaculizam o pronunciamento de mérito.
Assim, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), conduz a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou normativa (traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei), o error in procedendo consiste num desvio à realidade factual ou jurídica (por ignorância ou falsa representação da mesma).
Revisitando o ensinamento de José Alberto Reis (Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 1981, Vol. V, págs. 124, 125), o magistrado comete erro de juízo ou de julgamento quando decide mal a questão que lhe é submetida, ou porque interpreta e aplica erradamente a lei, ou porque aprecia erradamente os factos; comete um erro de atividade quando, na elaboração da sentença, infringe as regras que disciplinam o exercício do seu poder jurisdicional. Os erros da primeira categoria são de carácter substancial: afetam o fundo ou o efeito da decisão; os segundos são de carácter formal: respeitam à forma ou ao modo como o juiz exerceu a sua atividade.
As nulidades ditam a anulação da decisão por ser formalmente irregular, as ilegalidades ditam a revogação da decisão por estar desconforme ao caso (decisão injusta ou destituída de mérito jurídico)[4].
No caso dos autos, o recorrente fundamentou a existência do vício no art. 615.º, n.º 1, d) do CPC, ou seja, na omissão de pronúncia.
A seu ver, tendo uma testemunha efetuado referências à sinalização existente na via, o tribunal devia ter incluído os factos respetivos no elenco dos factos provados.
Ora, o dever de pronúncia que se exige ao tribunal é o de proferir decisão quanto aos factos alegados pelas partes que relevam para a decisão do mérito da causa e todos os que se imponham nos termos do previsto no art. 607.º, n.º 4 e 611.º do CPC, e não os que decorrem do depoimento prestado por uma testemunha.
Assim, não tendo o recorrente apontado, de entre os alegados ou supervenientes, os factos relativamente aos quais, por terem sido alegados pelas partes, ou posteriormente incluídos como objeto de prova/instrução, devia ter havido, mas não ocorreu, pronúncia do tribunal, falece, desde logo, apoio jurídico para sustentar a nulidade.
Ainda assim, sempre se diga que, quanto aos factos alegados a propósito da sinalização existente na via, o tribunal pronunciou-se expressamente quanto à circunstância de o embate ter ocorrido dentro de localidade de ... (facto provado 1), a existência de sinal stop que se impunha ao A. (facto provado 5), placa limitativa de velocidade máxima de 50 Km./h (facto não provado 3), sendo que, no que atine à existência de sinal de passadeira para peões, trata-se de matéria que nunca foi alegada, e, quanto à defesa da necessidade de o A. ter que avançar até à linha limite da faixa de rodagem para poder verificar quem circula de um lado e do outro por o sinal stop se apresentar em local recuado, a oito nove metros, só surge defendido em sede de recurso, depois de efetuada prova em como o A. não imobilizou o veículo que conduzia junto ao sinal de stop e ingressou na via sem ter verificado a existência de condições para tanto.
Inexiste, por isso, fundamento para considerar a sentença nula.
B – Da impugnação da matéria de facto
O recorrente pretende também que seja alterada a decisão da matéria de facto no tocante aos factos provados n.ºs 6 e 13.
Quanto ao facto provado n.º 6 no sentido de o texto “parte lateral direita” ser substituído por “parte lateral direita/zona do guarda-lamas dianteiro” e quanto ao facto provado n.º 13, de forma a ficar clarificado que a estrada a que o mesmo se refere era aquela por onde circulava a condutora do veículo BE.
Alterações que têm como base, no primeiro caso, a foto n.º 4 junta pela GNR com a participação do acidente, e, no segundo, a descrição constante do croqui junto com participação.
Ocorre que, para além de tal se apresentar irrelevante para a decisão, quanto ao facto n.º 6, de acordo com o exame da foto n.º 4 incluída na participação, não pode dizer-se que o embate tenha sido exclusivamente na “zona do guarda-lamas dianteiro”, antes abrangendo, na parte visível na foto, toda a parte lateral direita da frente da viatura (incluindo a porta), e, quanto ao facto 13, por o sentido inequívoco da resposta, sem necessitar de alteração de texto e corroborado pelo croqui, é o de que a estrada onde o BE seguia e o veículo do A. entrou (sem se imobilizar ao sinal stop) apresenta-se em “traçado curvo e, portanto de pouca visibilidade pelo que ao Autor lhe eram exigíveis maiores cautelas na sua condução”.
Do exposto ressalta a improcedência quanto à impugnação.
C – Da questão de direito.
De acordo com o A., a produção do acidente a que os autos se reportam deve-se ao facto de a condutora do veículo BE circular a mais de 50km/hora, desatenta, descuidada e alheia à sinalização ou, em derradeiro caso, por ambos os condutores terem violado a sinalização de trânsito que se lhes impunha.
Não obstante, os factos considerados provados não consentem essa leitura, deles não resultando qualquer violação de regra estradal por parte da condutora do BE que tenha contribuído causalmente para o surgimento o embate, antes evidenciando que o mesmo se deveu exclusivamente ao facto de o A., provindo da Rua ..., estando obrigado (sinal stop) a imobilizar o trator agrícola que tripulava antes de ingressar na Rua ... (onde a condutora do BE circulava), não o fez, tendo entrado na via por onde circulava o veículo BE e neste embatido, sem que à sua condutora (do BE) fosse possível travar, guinar para a sua esquerda ou executar qualquer outra manobra de recurso, para evitar o acidente.
Assim, a responsabilidade não é imputável, total ou concorrencialmente, à condutora do BE, antes e em exclusivo ao A., não lhe assistindo, como tal, o direito ao recebimento de qualquer indemnização seja por facto ilícito de outrem, seja pelo risco.
*
Sumário[5]
(…).
V - DECISÃO
Nestes termos, sem outras considerações, acorda-se em:
a) não admitir o recurso quanto às questões supra indicadas
e, no demais,
b) julgar improcedente o recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
*
Custas pelo recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.
Coimbra, 8 de julho de 2025
(Paulo Correia)
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(Anabela Marques Ferreira)
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(Maria João Areias)