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EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO INDISPONÍVEL
SUBSÍDIOS DE FÉRIAS E DE NATAL
Sumário
Sumário[1]: I – Na aferição do montante dos rendimentos a excluir do objeto de cessão determinada no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante importa considerar que o sustento minimamente condigno não se reduz a um mínimo de sobrevivência física nem, por outro lado, corresponde ao que seria necessário para manter o nível de vida que o devedor detinha antes da declaração da sua insolvência se superior ao necessário a uma vivência humanamente condigna. II – A Remuneração Mínima Mensal Garantida (RMMG) corresponde à expressão numérica do que o legislador ordinário, no contexto sócio-económico em que é fixado, entendeu como o mínimo para salvaguardar uma vivência digna e que, por isso, não poderá deixar de ser considerado como critério referência obrigatório na tarefa de quantificação do rendimento a excluir da cessão determinada pelo incidente da exoneração do passivo restante durante o período ‘de provação’. III – Em qualquer caso, constituindo aquele um critério referência, e não um critério padrão, a RMMG não detém a virtualidade de, por si só, fundamentar a fixação do respetivo valor como o necessário ao sustento minimamente digno do devedor, exige-se que se atenda às particularidades do caso concreto e que aquele seja o resultado de uma ponderação casuística, para o que relevam as concretas despesas atendíveis. V – O montante necessário ao sustento minimamente condigno corresponderá à soma dos encargos de subsistência que, pela sua natureza indistintamente quotidiana, regular ou periódica se assumem comuns a todos e que, num padrão de normalidade ditada pela experiência geral, são passíveis de igual quantificação para a generalidade das pessoas, com os encargos decorrentes de particularidades ou condições especiais daquela pessoa/insolvente, campo em que a RMMG (remuneração mínima mensal garantida) constitui critério referência enquanto expressão numérica do que o legislador ordinário, no contexto sócio-económico em que é fixado, entendeu como o mínimo para salvaguardar uma vivência condigna. III - Às despesas gerais e comuns a todos poderão acrescer outras em função de condições sócio-familiares e profissionais particulares do devedor, designadamente, o montante do encargo tido como necessário com habitação que, por regra, corresponde ao que mais onera o agregado familiar e não é passível de compressão ou de ajustamento proporcional ao número de elementos que no agregado familiar auferem rendimentos e para ela contribuem. IV – Tendo o devedor alegado que as suas despesas mensais com habitação (renda), alimentação e deslocações ascendem ao montante de €820,00, e considerando que o montante da RMMG a considerar aquando do início do período de cessão é de €870,00, afigura-se que o correspondente a 1,25 a RMMG constitui o necessário e o suficiente a uma subsistência digna do devedor. V – Fixado o rendimento excluído de cessão, recai sobre o exonerando o ónus de requerer e submeter a apreciação judicial a alteração do rendimento indisponível com fundamento em despesas acrescidas supervenientes, ou tão só a ocasional ressalva/exclusão de despesas pontualmente ocorridas, nos termos previstos pelo art. 239º, nº 3, al. b), iii) do CIRE. VI – Os subsídios de natal e de férias correspondem a rendimentos na asserção prevista pelo corpo do art. 239º, nº 3 do CIRE, que, conjuntamente com a retribuição, outras prestações remuneratórias ou quaisquer outros rendimentos em cada período recebidos pelo devedor, integram a base para cálculo e determinação do concreto montante dos rendimentos a ceder à fidúcia. VII - O que o legislador pretende garantir com a fixação do rendimento indisponível é que em cada mês de cada ano o devedor disponha do valor mensal fixado como o necessário para lhe garantir uma subsistência digna por recurso aos seus rendimentos. VIII – Por isso, nos casos em que o montante do rendimento mensal é inferior ao montante do rendimento excluído da cessão, nos meses em que este seja excedido pelo recebimento dos subsídios de férias e de natal, só haverá rendimentos disponíveis/a ceder se e na medida em que o resultado da divisão do montante da soma dos rendimentos anuais por doze meses exceda o montante do rendimento mensal indisponível judicialmente fixado.
[1] Da responsabilidade da relatora, cfr .art. 663º, nº 7 do CPC
Texto Integral
Acordam as juízas da 1ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I – Relatório
1. A., solteira, residente em Rua..., São João da Talha, apresentou-se à insolvência em 10.11.2023, que foi declarada por sentença de 16.11.2023 já transitada em julgado, e, simultaneamente, deduziu pedido de exoneração do passivo restante.
2. Alegou que presta serviços como assistente técnica em departamento de saúde do … pelos quais aufere prestação mensal base de €979,20, reside de favor em casa do seu ex-companheiro, e suporta despesas mensais fixas nos montantes de €500,00 a título de renda pelo imóvel onde habita, €50,00 a título de despesas com o transporte de e para o local de trabalho e para sessões de fisioterapia, e €270,00 a título de despesas mensais com alimentação
3. Foi dispensada a realização da assembleia de credores e, no cumprimento do art. 155º do CIRE, a Sra. administradora da insolvência (AI) considerou o rendimento e as despesas alegadas pela insolvente e concluiu por um rendimento disponível no valor mensal de €159,20. Juntou lista provisória de créditos, correspondentes aos relacionado pela insolvente com origem em contratos de crédito celebrados com cinco instituições financeiras no montante total de cerca €34.194,14, propôs o encerramento do processo por ausência de bens a apreender para a massa insolvente, e pronunciou-se favoravelmente à concessão da exoneração do passivo restante.
4. Na ausência de oposição de credores, que não emitiram qualquer pronúncia, em 09.12.2024 foi proferido despacho de encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente nos termos do art. 230º, nº 1, al. d) do CIRE, e despacho inicial de exoneração do passivo restante que autorizou o período de cessão e, no que aqui releva, fixou o rendimento a excluir da cessão nos seguintes termos:
“A retribuição mínima mensal garantida para 2024 cifra-se em €820, 00 (DL DL 107/2023, de 17-11). Em 2025, cifrar-se-á em € 870, 00. Releva, na determinação do rendimento disponível, a ponderação da factualidade considerada na sentença declaratória de insolvência e nos documentos juntos aos autos, incluindo com o requerimento ref.ª 15858587:
1. A. nasceu em 14-03-1996 e é solteira.
2. O seu agregado familiar é composto por si própria.
3. Aufere o vencimento mensal líquido de € 836, 71.
4. Realiza despesas mensais referentes a renda de casa de habitação (€ 500, 00), alimentação (€ 270, 00), deslocação (€ 50, 00).
Considerando o quadro doméstico exposto, que define os termos de necessidade a uma subsistência digna da devedora, constatando-se que a despesa com renda de casa de habitação consome mais de metade do seu vencimento, a que acresce a conjuntura económica actual, com o aumento acentuado do custo de vida, associado ao aumento do custo dos bens essenciais, entende-se que deve ser cedido ao Fiduciário o valor mensal auferido excedente a uma vez e ¼ o salário mínimo nacional, vigente em cada ano, doze vezes por ano.
Nesta parte concluiu com a seguinte decisão:
"Termos em que, com os fundamentos atrás expostos, admito liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante apresentado pela devedora/insolvente A. e, em consequência:
A) Determino que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência(período de cessão), o devedor entregue ao Fiduciário o valor excedente do seu rendimento mensal disponível, que ultrapasse uma vez e ¼ o salário mínimo nacional, vigente em cada ano × 12 meses;
(…)
5. A insolvente recorreu desta decisão no segmento que fixou o valor dos rendimentos excluídos da cessão, requerendo a sua revogação e substituição por outra que determine “a exclusão de 1,5 (uma vez e meia) do salário mínimo nacional por 12 meses no ano do rendimento disponível, e a consequente alteração do valor fixado a título de rendimento necessário ao seu sustento condigno, assim como a totalidade dos subsídios de férias e de Natal que venham a ser auferidos pela Insolvente.”
Formalizou conclusões que, não obstante como tal epigrafadas, longe de o serem, apresentam-se prolixas, não cumprindo minimamente o ónus de sintetização imposto pelo art. 639º, nº 1 do CPC posto reproduzirem a argumentação contida na motivação de recurso e parte delas repetirem o teor (semântico) de outras. Porém, a referida deficiente prestação processual da recorrente, que aqui expressamente se assinala, não impede a identificação, com a segurança exigida, das questões pretendidas submeter a apreciação, razão pela qual se dispensou o despacho de convite ao aperfeiçoamento nos termos do art. 639º, nº 3 do CPC e aqui se transcrevem com exclusão das que repetem o sentido de outras:
(…)
VI. Ao fixar como necessário ao sustento minimamente condigno da Recorrente o valor mensal de € 1062,50 (Oitocentos e vinte euros), o Douto Tribunal a quo desconsiderou o valor mensal fixo atinente às despesas suportadas pelo Recorrente com custos da vida diária como a aquisição de roupa, calçado ou até o suporte de alguma necessidade básica de saúde ou medicamentosa.
VII. Face às despesas mensais fixas da Recorrente, no valor de € 820,00 (oitocentos e vinte euros) sobrar-lhe-ão € 242,50 com os quais terá de liquidar despesas de telecomunicações, vestuário, calçado e eventualmente de saúde.
VIII. Com o despacho ora Recorrido a Insolvente deixa de ter qualquer capacidade para suprir despesas extraordinárias que surjam no âmbito da sua saúde ou vida corrente.
IX. Fixando-se o sustento da Recorrente em 1 salário mínimo nacional acrescido ¼ do mesmo, não fica salvaguardada uma subsistência digna da devedora Insolvente.
X. Entende a Recorrente que não foram ponderadas adequadamente, igualmente as demais despesas que a mesma detém mensalmente, sendo o Douto Despacho ora colocado em crise contraditório com os factos dados como provados e respectiva prova documental apresentada com a petição inicial.
XI. Entende a Recorrente que deve ser modificada a decisão proferida sobre a cessão de rendimento, e com interesse para o presente despacho, devendo para os devidos efeitos, entendendo-se que o montante mínimo que salvaguarda a subsistência digna da devedora ascende a 1,5 (uma vez e meia) o salário mínimo nacional.
(…)
XIII. O despacho inicial que admite liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante do Recorrente e aqui colocado em crise não se pronunciou acerca da exclusão, do subsídio de férias e de Natal, do sustento mínimo fixado à Recorrente.
XIV. Uma das poucas possibilidades que a Devedora tem de encontrar equilíbrio financeiro que lhe permita salvaguardar algum rendimento extraordinário que poderá aplicar na sua vida corrente e com a sua saúde é com o montante decorrente do 13.º e 14.º mês, nomeadamente, subsídio de férias e natal.
XV. O Despacho Inicial de deferimento do pedido de exoneração do passivo restante não precaveu as despesas extraordinárias suportadas pela Recorrente, as quais a insolvente, aqui Recorrente, apenas consegue suportar com o auxílio precioso do subsídio de férias e com o subsídio de Natal.
XVI. Tal solução, aliás, é a única que permite harmonizar casuisticamente a situação financeira da devedora e suas despesas e, bem assim, o sacrifício financeiro dos credores e o proporcional sacrifício da Insolvente, tendo como limite a vivência minimamente condigna do Recorrente, imposta pelo n.º 3 do artigo 239º do CIRE.
XVII. Considerando que a Recorrente, nos termos da determinação do rendimento disponível, não se encontra em condição de aforrar um euro que seja, ficará sem meios de custear as despesas extra ou sazonais, como a compra de vestuário, realizar consultas e exames médicos que a condição de saúde exija, pagar prémios de seguro e impostos que o fisco liquide ou até melhorar a sua alimentação, entre outras que surjam, como comprar um agasalho ou um par de sapatos que se romperem.
XVIII. Pelo exposto, atendo-se a Recorrente aos ditames do artigo 239.º do CIRE e considerando a sua própria condição económica e despesas, o rendimento disponível da Insolvente objecto da cessão deverá ser integrado por todos os rendimentos que ao Insolvente advenham a qualquer título, com exclusão dos subsídios de férias e de natal como absolutamente necessários para o sustento minimamente condigno da Recorrente.
(…)
XXIII. A jurisprudência constitucional pronuncia-se no sentido de que o salário mínimo nacional será um valor referencial a ter em conta como indicativo do montante mensal considerado como essencial para garantir um mínimo de subsistência condigna.
XXIV. Tais critérios não devem, todavia, ser utilizados de forma automática, sem se atender aos aspectos particulares do caso concreto em apreciação.
XXV. De igual modo, o critério do padrão de vida do homem-médio português que a decisão recorrida utiliza, valor do ordenado mínimo nacional, não pode ser aceite, sem mais, sob pena de uma interpretação restritiva do disposto no artigo 239º, nº 3, al. b) (i) do CIRE, o que a lei não permite.
XXVI. Sendo certo que, a exoneração do passivo restante não pode ser vista como a possibilidade de o insolvente se liberar, quase automaticamente, da responsabilidade de satisfazer as obrigações para com os seus credores durante o período de cessão,
XXVII. O montante a excluir deve, todavia, ser o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e respectivo agregado familiar, cabendo ao juiz a tarefa de, caso a caso e atentas as circunstâncias específicas de cada devedor, concretizar este limite.
XXVIII. Entre os interesses legítimos, conflituantes, do credor na satisfação do seu crédito e o do devedor a manter um rendimento que lhe permita viver com dignidade mínima (arts.1.º e 59.º, n.º1, a), da Constituição da República Portuguesa), o critério legal dá acolhimento à ideia de que ao sacrifício financeiro dos credores terá de corresponder o sacrifício do insolvente, através da compressão das suas despesas.
XXIX. O despacho Recorrido coarcta a possibilidade da devedora se reabilitar economicamente, pondo inclusivamente em causa o seu sustento.
XXX. Pois a fixação do valor excluído do rendimento objecto de cessão nos moldes em que foi decretado, sem ter em conta a base de vida familiar e profissional da Recorrente, é passível de violar o direito do mesmo a uma subsistência condigna, bem como a proverem à sua reabilitação económica.
XXXI. Contudo, e para além das considerações supra expostas, nomeadamente as despesas que o recorrente/insolvente possui mensalmente e que se encontram devidamente documentadas e provadas, igualmente no despacho que ora se recorre, não tomou em consideração os subsídios de férias e de Natal auferidos pelo Recorrente como incluídos ou excluídos do montante mínimo de sobrevivência que foi fixado.
XXXII. Que, salvo devido respeito, deveria ter sido levada em consideração na prolação do presente despacho, e consequentemente deveria ter sido assegurada e considerada, face a natureza particular, nos termos do artigo 239.º, n.º3, b), ponto iii “como outras despesas a ressalvar pelo juiz no despacho inicial” (sic).
XXXIII. Consubstanciando-se, assim, o valor excluído do rendimento objecto de cessão, como manifestamente diminuto.
XXXIV. E violador de uma medida constitucional, por grave violação do Principio da Dignidade da Pessoa Humana, consagrado no artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa.
(…)
XXXVI. Assim, e tendo em conta a matéria de fato, pelo qual a aqui recorrente pugna pela sua alteração, e entende o mesmo, que face às suas condições atuais, que se afigura razoável e adequado, para que a mesma possa viver os atuais tempos difíceis com dignidade, satisfazendo as suas necessidades mais básicas, como suportar as despesas de dia a dia, sem luxos, de ter acesso aos cudados de saúde, cumprimento das pensões alimentícias, que a Insolvente veja excluído do passivo restante, o montante equivalente a 1,5 (uma vez e meia) do salário mínimo nacional vigente em cada ano x 12 meses, assim como a totalidade dos subsídios de férias e de Natal que venham a ser auferidos pela Insolvente.
7. Não foram apresentadas contra-alegações.
II – Objeto do Recurso
Nos termos dos arts. 635º, nº 5 e 639º, nº 1 e 3, do Código de Processo Civil, o objeto do recurso, que incide sobre o mérito da crítica que vem dirigida à decisão recorrida, é balizado pelo objeto desta, tal qual como surge configurado pelas partes de acordo com as questões por elas suscitadas, e destina-se a reapreciar e, se for o caso, a revogar ou a modificar decisões proferidas, e não a analisar e a criar soluções sobre questões – de facto ou de direito - que não foram sujeitas à apreciação do tribunal a quo e que, por isso, se apresentam como novas, ficando vedado, em sede de recurso, a apreciação de novos fundamentos de sustentação do pedido ou da defesa, bem como de conhecer de questões que não foram oportunamente submetidas a apreciação. Acresce que o tribunal não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos nas alegações das partes, mas apenas das questões de facto ou de direito suscitadas que, contidas nos elementos da causa (ou do incidente), se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto.
Nestes termos, pelo presente recurso cumpre apenas apreciar se, conforme defende a recorrente, o valor dos rendimentos que a decisão recorrida excluiu da cessão à fidúcia fica aquém do razoavelmente necessário ao seu sustento minimamente digno, com incidência no concreto montante fixado, que a recorrente pretende ver alterado de 1,25 para 1,5 o salário mínimo nacional, e nos subsídios de férias e de Natal, que a recorrente pretende sejam excluídos dos rendimentos objeto de cessão.
III – Fundamentação
A) De Facto:
Com relevo para a apreciação do recurso não existem outros factos a considerar para além dos descritos no relatório, para o qual se remete.
B) De Direito
1. O instituto da exoneração do passivo restante, previsto pelos arts. 235º e ss. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE[1]), corresponde a concessão de benefício a insolventes pessoas singulares que, esgotado que seja o património do devedor, se traduz num perdão de dívidas, sendo irrelevante para o efeito tratar-se de reduzidas ou de elevadas quantias, exonerando-os dos seus débitos com a perda e o sacrifício, para os credores, dos correspetivos créditos; benefício que é concedido independentemente de, à data da apreciação do pedido, o devedor ser ou não titular de efetivos rendimentos, facto que a lei não erigiu a requisito da concessão do dito benefício.
Conforme se extrai da exposição de motivos que consta do diploma preambular do Dec. Lei nº 53/2004 de 18.03 (ponto 45) e das fontes do instituto em questão, o perdão de dívidas que pelo instituto em apreço é concedido encontra justificação sistémica de ordem económico-social, visando a recuperação da pessoa singular enquanto agente económico em benefício de uma visão sistémica da economia, no ciclo e de acordo com os papéis dos que nela intervêm. Por referência à esfera jurídica do devedor, surge também justificado pelo interesse superior do direito à realização pessoal condigna de cada ser humano, sendo aquele beneficio concedido apenas se o devedor revelar conduta anterior não desmerecedora do mesmo, a par com a reeducação, contemporânea com o decurso do período de cessão, de hábitos de consumo e poupança, com adequação do nível de vida aos rendimentos de que pode dispor e aos encargos que aquela importa, no quotidiano e em situações pontuais, mas previsíveis pela sua normalidade. Benefício/sacrifício que, nas palavras de Cláudia Oliveira Martins[2], justifica afirmar que o processo de insolvência, como primeiro pressuposto para o pedido de exoneração do passivo restante, deixou de ser o processo dos credores para passar a ser o processo dos devedores. Assumindo o nosso legislador que o devedor não deve ser exonerado em qualquer circunstância, o perdão de dívidas por ele concedido não decorre automaticamente da declaração da insolvência nem da excussão do seu património, sendo concedido apenas se o devedor revelar conduta anterior não desmerecedora do mesmo, a par com a reeducação de hábitos de consumo e poupança com adequação do nível de vida aos rendimentos de que pode dispor e aos encargos que esta importa, no quotidiano e em situações pontuais mas previsíveis pela sua normalidade, impondo-lhe para este efeito um período de ‘provação’ - que o legislador designou de período de cessão do rendimento disponível. Na pendência do período de cessão recai sobre o devedor o ónus de cumprimento de obrigações (previstas pelo art. 239º, nº 4 do CIRE) e um comportamento correto cuja inobservância pode obstar à concessão definitiva da exoneração. A previsão do período de provação corresponde a uma solução de compromisso na gestão do conflito dos interesses em evidente antítese no instituto da exoneração do passivo restante: por um lado, o interesse do devedor em libertar-se das suas dívidas, por outro lado o interesse dos credores na satisfação dos correspetivos créditos. Nesta dicotomia, em bom rigor, as obrigações previstas pelo art. 239º, nº 4 só o são no restrito contexto do período de cessão porque, por referência à exoneração do passivo restante requerida pelo devedor, mais se enquadram na figura do ónus associado ou emergente de um direito, enquanto requisito ou exigência a cumprir (pelo devedor) com vista à obtenção de um resultado em seu benefício e sob pena de o mesmo não lhe ser concedido.
Na pendência do período de cessão – e, reitera-se, no contexto da voluntariedade do recurso ao instituto pelo devedor - recai sobre este o cumprimento das obrigações previstas pelo art. 239º, nº 4 como manifestação de um comportamento correto cuja inobservância pode obstar à concessão definitiva da exoneração. Na dinâmica e finalidade da exoneração do passivo, em rigor, estas obrigações enquadram-se juridicamente na figura do ónus associado ou emergente de um direito, enquanto requisito ou exigência a cumprir (pelo devedor) com vista à obtenção de um resultado em seu benefício e sob pena de o mesmo não lhe ser concedido, caso em que a sua situação se mantém inalterada para além da extinção do passivo que a execução de todo o seu património penhorável permita satisfazer.
Do conjunto dos ónus impostos durante o período de cessão[3] destaca-se com superior relevância e impacto na vida do exonerando a obrigação de ceder os rendimentos disponíveis que em cada mês ou ano são determinados, na contraposição dos rendimentos efetivamente auferidos com os rendimentos necessários a uma subsistência humana e socialmente condigna que ao juiz cabe quantificar e fixar por referência aos elementos de facto a respeito carreados e, eventualmente, documentados nos autos - seja em benefício seja em prejuízo do interesse do devedor - vigorando aqui o princípio do inquisitório previsto pelo art. 11º do CIRE, cujo alcance abrange o âmbito do princípio da aquisição processual implícita e expressamente previsto pelos arts. 412º e 413º do CPC. Com relevância ao caso cumpre anotar que o princípio do inquisitório previsto pelo art. 11º do CIRE não oblitera o princípio do dispositivo; isto é, não desresponsabiliza os devedores do ónus de alegarem e demonstrarem os elementos de facto que no seu interesse e benefício pretendem sejam considerados em sede de valoração e fixação, inicial ou superveniente, do montante dos rendimentos a excluir da cessão.
2. Dispõe o art. 239º, nº 3, al. b) que Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor”……“com exclusão (…) Do que seja razoavelmente necessário para: i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional; ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional; iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.”.
Conforme é referido por Carvalho Fernandes e João Labareda, [a]s exclusões referidas nestas alíneas [a) e b)] assumem mais de uma modalidade, tendo diferentes fundamentos. Nesta visão, e por referência à al. b), imputa às subalíneas i) e ii) a ‘função interna do património’, enquanto suporte da vida económica do seu titular que, no contexto do conflito de interesses assinalado, prevalece sobre a função externa do património, enquanto garantia geral dos credores do respetivo titular[4]. Mais especificamente, o rendimento fixado por referência ao critério qualitativo previsto pela subalínea i) é o indissociável do instrumental e necessário à subsistência e custeio de necessidades do devedor e do seu agregado familiar, ou seja, o montante dos encargos de subsistência que, pela sua natureza indistintamente quotidiana ou periódica (alimentação, vestuário, higiene, etc.) se assumem comuns a todos e que, num padrão de normalidade ditada pela experiência geral, são passíveis de igual quantificação para a generalidade das pessoas. Deste critério - sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar -, extrai-se que o montante a excluir da cessão não se reduz nem corresponde a um mínimo de sobrevivência física[5], mas também não corresponde necessariamente ao exigido para manter o nível de vida que o devedor detinha antes da declaração da sua insolvência, se superior ao necessário a uma vivência humanamente condigna naqueles termos compreendida[6]. Significa que o sacrifício que onera o devedor durante o período de cessão, o sujeita a comprimir as suas despesas, reduzindo-as ao necessário a uma efetiva adaptação do padrão de vida ao estatuto conferido pela insolvência e pelo instituto da exoneração do passivo restante, sacrifício que surge justificado/legitimado pelo sacrifício que este mesmo instituto impõe aos credores na satisfação dos seus créditos. Dentro dessa mesma função, a exclusão prevista pela al. ii) está especificamente relacionada com a atividade profissional exercida pelo devedor e pretende salvaguardar as condições objetivamente necessárias à sua continuidade e garantir que a perceção de rendimentos do devedor não seja prejudicada, precisamente, pelo instituto que prevê a sua cessão.
A respeito do primeiro item de exclusão discute-se na jurisprudência o critério para fixação do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, sendo porém unanimemente aceite que o limite máximo corresponde a três vezes o salário mínimo nacional, que só excecionalmente poderá ser excedido, caso em que o legislador impõe ao julgador um dever acrescido de fundamentação da decisão[7]. A discussão da questão assume maior acuidade na definição do limite mínimo. O critério qualitativo para o efeito ali previsto e tutelado – sustento minimamente digno -, corresponde ao principio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º da Constituição da República Portuguesa), princípio universal de qualquer normativo de tutela dos direitos fundamentais que, por isso, se impõe interpretar e integrar de acordo com o previsto pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, cujo art. 25º prevê que [T]oda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários (…). Conceção ampla que, na nossa ordem jurídica interna, subjaz ao conceito legal de alimentos definido pelo art. 2003º do Código Civil (CC): [t]udo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário.
3. É nessa tarefa de fixação do rendimento indisponível que, pela função (de suporte da vida económica do devedor) que desempenham, se impõe ao julgador atender aos critérios previstos pelas referidas alíneas i) e ii), quantificando-os por referência às concretas situação e circunstâncias do devedor que resultem dos elementos disponíveis nos autos. Assim, e se os rendimentos – a qualquer título - auferidos pelo devedor o permitirem[8], o que o legislador pretende garantir com a imperativa fixação do rendimento indisponível em sede de despacho inicial é que o devedor saiba o valor que deve ceder à fidúcia para cumprimento de requisito de que depende a concessão do benefício a que se ‘candidatou’. A consideração e atendibilidade de concretas circunstâncias e/ou despesas – contemporâneas ou posteriores à apresentação do incidente de exoneração ou supervenientes -, depende de tanto ser especificamente requerida pelo devedor, e logo que o seja, portanto, sem eficácia retroativa relativamente ao período de cessão decorrido quando seja requerida a alteração do inicialmente fixado. Ou seja, para além do montante dos rendimentos que ao juiz se impõe excluir por referência ao sustento minimamente condigno genericamente equivalente para qualquer cidadão, está na disponibilidade do devedor invocar elementos de facto (sem prejuízo dos que resultem dos autos) que pretende sejam considerados, bem como requerer a exclusão de despesas que visam assegurar a satisfação de concretas, pontuais ou ocasionais necessidades para o devedor ou para algum dos elementos que compõe o seu agregado familiar. Se o acréscimo de despesas tiver como causa uma realidade de verificação fixa ou regular no tempo e que, pela sua superveniência, não foi nem podia ser judicialmente considerada aquando da apreciação e quantificação dos critérios previstos pelas als. i) e ii) da al. b) do nº 3 do art. 239º, o seu reconhecimento conduzirá à alteração, genérica e indistintamente válida para todos os meses/anos do período de cessão, do montante do rendimento necessário nos termos daquelas alíneas[9].
4. Na tarefa da concreta quantificação do montante a excluir da cessão, na jurisprudência produzida pelas 1ª e 2ª instâncias destaca-se o recurso ao salário mínimo nacional – agora retribuição mínima mensal garantida (RMMG) - como critério quantitativo referência para o apuramento do que em cada caso concreto possa entender-se como o rendimento necessário a uma vivência minimamente condigna[10]. Com efeito, o salário mínimo nacional foi entre nós pela primeira vez instituído no pós-revolução de 25 de abril, em 1974 e, de acordo com os seus mentores e defensores, no plano dos efeitos imediatos teve como principal objetivo melhorar as condições de vida de muitos trabalhadores que, então, viviam miseravelmente. Nos dias de hoje, o salário mínimo nacional, refém, é certo, das flutuações e concertações do sistema micro e macro económico-financeiro do país, será a expressão numérica do que o legislador ordinário, no contexto sócio económico em que é fixado, entendeu como o mínimo para salvaguardar uma vivência condigna e que, por isso, não poderá deixar de ser considerado como referência obrigatória na tarefa de quantificação do rendimento a excluir da cessão determinada pelo incidente da exoneração do passivo restante durante o período ‘probatório’.
Extrai-se do exposto que, numa abordagem material do princípio universal da dignidade humana e do que subjaz à consagração do salário mínimo nacional, aquele principio é indissociável do instrumental e necessário à subsistência e custeio de necessidades do devedor e do seu agregado familiar, e que o sustento minimamente condigno não se reduz nem corresponde a um mínimo de sobrevivência física. A dignidade da pessoa atua (ainda que não exclusivamente) como diretriz jurídico-material tanto para a definição do núcleo essencial, quanto para a definição do que constitui a garantia do mínimo existencial, que, na esteira de farta doutrina, abrange bem mais do que a garantia da mera sobrevivência física, não podendo ser restringido, portanto, à noção de um mínimo vital ou a uma noção estritamente liberal de um mínimo suficiente para assegurar o exercício das liberdades fundamentais.[11]Por outro lado, também não corresponde ao que seria necessário para manter o nível de vida que o devedor detinha antes da declaração da sua insolvência, se superior ao necessário a uma vivência humanamente condigna naqueles termos compreendida. Nesse sentido, entre outros, acórdão da Relação de Coimbra, de 31.1.2012: Não existe qualquer correspondência directa entre o valor a retirar do rendimento disponível para garantir o sustento do devedor e o montante global das despesas por aquele indicadas – a não ser assim, o legislador diria que o valor a fixar deveria corresponder ao montante global das despesas apresentadas e não fixaria um valor máximo.[12]
Com efeito, o critério a atender não corresponde, sem mais, à mera soma das despesas médias mensais do devedor e do seu agregado familiar, mas antes enquanto encaradas no quadro de uma família inserida na sociedade atual com as contingências próprias do momento que esta e aquela atravessam, considerado ainda o meio rural ou urbano e ponto do país, ou outro, em que reside, enquanto fatores determinantes de um maior ou menor custo de vida (para aceder ao mesmo tipo ou natureza de bens e serviços). Significa que, se for o caso, o sacrifício que o período de cessão impõe ao devedor o sujeita a comprimir as suas despesas, reduzindo-as ao necessário a uma efetiva adaptação do padrão de vida ao estatuto conferido pela insolvência - emergente e inevitavelmente associado a uma situação de créditos não cumpridos pelo insolvente - e pelo instituto da exoneração do passivo restante – do qual inevitavelmente decorre a extinção forçada de pelo menos parte desses mesmos créditos -, sacrifício que surge justificado/legitimado pelo sacrifício que este mesmo instituto impõe aos credores na satisfação dos seus créditos. Com efeito, urge não esquecer que na outra face do benefício concedido pela exoneração está o direito económico à propriedade privada da banda dos credores, igualmente tutelado pela lei fundamental (art. 62º da CRP), no sentido de verem cumprida a expetativa da maior satisfação possível dos seus direitos de crédito pelo produto do património do devedor. O sacrifício que, nos limites assinalados, o período de cessão impõe ao devedor, designada e principalmente, através da entrega dos rendimentos que aufere e que excedam o necessário à subsistência condigna de qualquer cidadão, é o mínimo para assegurar o equilíbrio dos interesses em presença[13]. Mais importa ter sempre presente que a alternativa ao sacrifício do devedor voluntariamente se sujeitar aos ónus do período de cessão é o direito de os credores prosseguirem com a cobrança coerciva dos seus créditos após o encerramento do processo de insolvência, com o consequente constrangimento de o devedor ver os seus rendimentos penhorados e afetados até ao pagamento da totalidade do seu passivo.
Em qualquer caso, constituindo aquele um critério referência, e não um critério padrão, o salário mínimo nacional não detém a virtualidade de, por si só, fundamentar a fixação do respetivo valor como o necessário ao sustento minimamente digno do devedor. A concretização do princpio da dignidade humana e a inviolabilidade constitucional do direito a uma retribuição mínima periodicamente atualizada (cfr. art. 59º, nº 2 da CRP) exige que na fixação do montante excluído da cessão se atenda às particularidades do caso concreto, e que aquele seja o resultado de uma ponderação casuística, suportada em premissas gerais que, além do mais, sejam aptas ao cumprimento do princípio da justiça relativa[14], que se cumpre mediante a sua adaptação às circunstâncias do caso concreto. Na ausência de específicos e concretos critérios legais para quantificação, correspondência ou reprodução certa, aritmética, e objetiva do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, os critérios a atender na fixação do rendimento a excluir da cessão à fidúcia poderão reconduzir-se a um modo de decidir por recurso à equidade, figura que, nas sábias palavras de Carneiro da Frada, “aponta uma dimensão ideal da Justiça e do Direito” e ambiciona realizar uma “justiça com coração” no pressuposto de que [n]as relações humanas, nem tudo é, portanto, direito (estrito)” e que [u]ma justiça sem coração é, de resto, uma justiça mutilada.”[15]
Importa novamente frisar que, nesta tarefa, é irrelevante a determinação e a consideração do valor dos rendimentos auferidos pelo devedor posto que, independentemente de se cifrarem neste ou naquele valor, o que releva para efeitos de quantificação do rendimento excluído da cessão (o indisponível) é o montante considerado necessário para o sustento minimamente condigno, ou seja, o montante dos encargos de subsistência que, pela sua natureza indistintamente quotidiana ou periódica (habitação e fornecimento de bens essenciais, alimentação, educação, vestuário, higiene, etc.) se assumem comuns a todos e que, num padrão de normalidade ditada pela experiência geral, são passíveis de igual quantificação para a generalidade das pessoas. Neste particular, ao remeter para o salário mínimo nacional, dispensou [o] tribunal de proceder à análise e ponderação das despesas do devedor, avaliando a sua necessidade ou pertinência, demonstrada através de comprovativos como faturas de água, gás ou electricidade, talões de supermercado e afins, o que se traduziria numa intromissão na vida privada[16]. Despesas correntes que, salvo circunstâncias especiais, serão sempre as mesmas independentemente dos rendimentos que aufira.
Às referidas despesas – alimentação, higiene, vestuário, calçado, deslocações, e consumos de água, gás e/ou energia elétrica -, comuns a todos, acrescerão outras decorrentes de particularidades ou condições especiais daquela pessoa/insolvente e do respetivo agregado familiar, a considerar nos termos do nº 2, al b), i) do art. 239º, como por exemplo, o número de pessoas que integram o respetivo agregado familiar e que dele dependam ou, ao invés, que para ele contribuam com rendimentos, um regime alimentar especial ditado por razões de saúde, a necessidade de acompanhamento e de tratamento médico e medicamentoso ditado por patologias, crónicas ou pontuais, deslocações para o trabalho quando suscetíveis de se particularizarem em relação à generalidade das pessoas (seja pela distância, seja pela ausência de rede de transportes públicos suscetível de servir as necessidades de deslocação do devedor), ou a necessidade de assistência ou de prestação de cuidados por terceira pessoa, etc. Particularidades que para serem consideradas no montante a excluir da cessão impõe sejam concretamente trazidas aos autos, mormente pela pena do interessado na exoneração, não como uma possibilidade futura incerta ou em abstrato, mas como algo certo, determinado ou determinável que deu ou vai dar causa a despesas particulares e/ou extraordinárias que extravasam do padrão ou dia a dia do cidadão comum e que, pela sua natureza, por princípio, serão passíveis de documentação (vg. uma consulta médica, aquisição de medicação prescrita, a aquisição de óculos para correção da visão, o pagamento de um imposto, etc.).
5. Em causa nos autos está o item de exclusão da cessão previsto pelo art. 239º, nº 3, al. b), i), como se referiu, sujeito a averiguação e concretização casuística. Nessa apreciação a decisão recorrida considerou o facto de o agregado familiar da recorrente ser constituído apenas pela própria, o montante da renda da casa onde reside e das despesas de alimentação e deslocação alegados na petição inicial e, em atenção ao encargo que a renda da casa representa no orçamento da recorrente, excluiu da cessão o montante correspondente a uma RMMG acrescida de ¼. A recorrente opõe que o valor fixado é “violador de uma medida constitucional, por grave violação do Principio da Dignidade da Pessoa Humana, consagrado no artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa” por insuficiente para suportar todas as suas despesas e, assim, não permitir uma subsistência digna aduzindo em fundamento, em síntese, (i) que a decisão recorrida “desconsiderou o valor mensal fixo atinente às despesas suportadas pelo Recorrente com custos da vida diária como a aquisição de roupa, calçado”, telecomunicações e eventualmente de saúde, para pagamento das quais, face às despesas mensais fixas de €820,00, apenas lhe sobrarão € 242,50, (ii) que o valor excluído da cessão não lhe permite “suprir despesas extraordinárias que surjam no âmbito da sua saúde ou vida corrente.”; iii) que a decisão recorrida “não se pronunciou acerca da exclusão, do subsídio de férias e de Natal, do sustento mínimo fixado à Recorrente” e que só com os valores destes conseguirá obter “algum rendimento extraordinário para aplicar na sua vida corrente” e suportar despesas extraordinárias, como com a sua saúde.
Em síntese, alega a recorrente que às despesas relacionadas na petição inicial acrescem despesas com vestuário, telecomunicações, água, gás e eletricidade e, eventualmente, de saúde, que a decisão recorrida não considerou, que o valor por esta fixado não lhe permite suportar todas as suas despesas nem as despesas extraordinárias que venham a ocorrer, designadamente com a sua saúde, e que para o efeito carece de rendimento mensal no montante correspondente a 1,5 a RMMG e dos subsídios de férias e de natal.
Efetivamente, no elenco dos fundamentos de facto o tribunal recorrido limitou-se a descrever as despesas que a recorrente especificou e quantificou na petição inicial, e a outras não fez expressa referência na fundamentação da decisão recorrida. Porém, nada mais tendo sido alegado a esse respeito, não se impunha ao tribunal que especificasse e muito menos quantificasse outras despesas na medida em que, como acima se referiu, os encargos com a subsistência quotidiana ou periódica (tal como alimentação, vestuário, higiene, bens essenciais de habitação, etc.) assumem-se comuns a todos e, num padrão de normalidade ditada pela experiência geral, são passíveis de igual quantificação para a generalidade das pessoas. Neste particular, ao remeter para o critério do salário mínimo nacional, dispensa [o] tribunal de proceder à análise e ponderação das despesas do devedor, avaliando a sua necessidade ou pertinência, demonstrada através de comprovativos como faturas de água, gás ou electricidade, talões de supermercado e afins, o que se traduziria numa intromissão na vida privada.[17] Ao referir expressamente as despesas da recorrente com a renda da habitação, deslocação e alimentação, o tribunal recorrido limitou-se a refletir na decisão a situação expressamente alegada pela recorrente que, na petição inicial, se limitou à indicação e quantificação daqueles encargos sem qualquer referência a outros, em conformidade com os princípios do pedido e do dispositivo consagrados pelos arts. 3º, nº 1 e 5º, nº 1 do CPC, entendidos com a amplitude da teoria da substanciação[18]. Princípios que deferem às partes o ónus de propor a ação em juízo e configurar o objeto do processo, do contraditório, dos poderes de conhecimento do juiz e, consequentemente, o âmbito da decisão ao qual o juiz está (negativa e positivamente) vinculado, limitada aos factos alegados pelas partes para fundamentar a tutela jurisdicional que requerem, sem prejuízo da consideração de outros que resultem dos autos e dos que são factos públicos e notórios. Por isso mesmo, contrariamente ao que a recorrente alega, na fixação do valor a excluir da cessão a decisão recorrida não se limitou a considerar apenas os encargos concretamente quantificados pela recorrente no montante total de €820,00 posto que excluiu da cessão rendimentos que no ano em curso (2025) ascendem ao montante mensal de €1.087,50, o que por si só revela que o tribunal considerou outros encargos necessários ao sustento digno da recorrente para além dos por ela quantificados, e o valor de €267,50 para os satisfazer. Valor que de acordo com padrões comuns do atual quotidiano não pode ter-se como insuficiente para despesas com bens essenciais comuns a todos como o fornecimento de água, gás e eletricidade na casa de habitação, os serviços de telecomunicações, a aquisição de vestuário e calçado, e até despesas menores de saúde com a aquisição de medicamentos não sujeitos a prescrição médica.
Com os elementos de facto que o tribunal recorrido dispunha e dispõe não existem fundamentos que imponham julgar o montante de €1.305,00 (1,5 a RMMG) como o necessário para garantir à recorrente uma subsistência digna atendendo a que só a recorrente depende economicamente dos rendimentos que aufere e que o valor que a decisão recorrida excluiu da cessão (superior ao que a recorrente declarou auferir e o tribunal julgou demonstrado, no montante mensal líquido de €836,71) comporta o custo da renda do imóvel onde reside (€500,00/mês), das despesas com a sua alimentação (€270,00/mês), deslocações de e para o trabalho (€50,00/mês), consumo de bens essenciais na habitação (água, luz, gás) e serviços de telecomunicações, aquisição de peças de vestuário e calçado que ocasionalmente seja necessário – posto que, contrariamente ao que a recorrente parece entender, uma subsistência com padrões de dignidade está longe de exigir a aquisição de peças de vestuário ou calçado em todos os meses do ano e, até, em cada ano - e, eventualmente, despesas menores de farmácia. Despesas para as quais disporá mensalmente de €267,50, a que corresponde a quantia anual de €3.210,00, parte da qual poderá afetar à aquisição sazonal ou pontual de uma ou outra peça de vestuário e calçado de que efetivamente careça para em cada uma das duas épocas do ano (primavera/verão e outono/inverno) se vestir com dignidade, valor este que, sem qualquer fricção ou compressão da sua dimensão, se compatibiliza com vestir com modéstia.
Importa ainda considerar que desde a apresentação da petição inicial, em 2023, o valor da RMMG beneficiou de um aumento de €760,00 para os atuais €870,00, o que corresponde a um acréscimo de cerca de 14%, que é superior ao acréscimo da taxa de inflação anual média contabilizada de 2023 para 2024 que, de acordo com as previsões do Banco de Portugal por referência ao índice de preços no consumidor, beneficiou de um decréscimo de 5,3% para 2,6% e de 2024 para 2025 de 2,1%[19] o que, ao menos matematicamente, corresponderá a um aumento do poder de compra da RMMG no ano de 2025 em relação a 2023.
(ii) Por outro lado, em matéria de fixação do rendimento indisponível o incidente de exoneração do passivo restante assume vestes de procedimento de jurisdição voluntária na precisa medida em que o valor excluído da cessão é passível de ser (regular ou pontualmente) majorado com fundamento em concretas circunstâncias supervenientes (fixas, regulares ou ocasionais) que, precisamente, pela superveniência, não foram alegadas nem, por isso, consideradas aquando da fixação dos rendimentos indisponíveis, constituindo ónus do devedor de, se e quando se verificarem ou for prevista a sua realização, requerer e submeter a oportuna apreciação judicial a alteração e a fixação do rendimento indisponível em montante superior, ou tão só a ocasional ressalva/exclusão de despesas pontualmente ocorridas – extraordinárias - logo que ocorram factos que o justifiquem (que poderá ser tão só o aumento da taxa de inflação desacompanhada de igual acréscimo no valor do RMMG para os subsequentes anos do período de cessão). Com efeito, não obstante de em determinadas circunstâncias ou vicissitudes da vida ocorrerem (malograda e invariavelmente) despesas imprevistas e/ou pontuais e, por isso, extraordinárias (designadamente, com saúde), sem prejuízo das já referidas despesas padrão que dispensam alegação e demonstração e das que a recorrente expressamente quantificou na petição inicial, dos autos não constam elementos que permitam identificar outras despesas com periodicidade regular mensal que impusesse salvaguardar na fixação do montante do rendimento indisponível de modo genérico e indistintamente válido para todos os meses/anos, pelo que as despesas extraordinárias apenas deverão ser consideradas e contabilizadas se e quando realizadas e pelo montante em que forem documentalmente comprovadas, nos termos previstos pelo art. 239º, nº 3, al. b), iii) do CIRE. Para esse efeito, recai sobre o requerente da exoneração o impulso processual para requerer e submeter a apreciação judicial a alteração e a fixação do rendimento indisponível em montante superior ao que até aí se encontra em vigor, ou tão só a ocasional ressalva/exclusão de despesas pontualmente ocorridas, nos termos previstos pelo art. 239º, nº 3, al. b), iii) do CIRE.
(iii) Mais alega a recorrente que a decisão recorrida não se pronunciou sobre a questão da integração ou não dos subsídios de férias e de natal nos rendimentos objeto de cessão, pugnando simultaneamente pela sua exclusão dos rendimentos disponíveis para lhe garantir um rendimento extraordinário que lhe permita suportar despesas extraordinárias ou sazonais, como a compra de vestuário e calçado, a realização de consultas e exames médicos, o pagamento de prémios de seguros e impostos.
Nesta parte a recorrente incorre em dois equívocos na interpretação normativa do regime legal da exoneração do passivo restante e dos termos da decisão recorrida que o reproduziu: o primeiro, no sentido de que o período de cessão admite a exclusão de determinados rendimentos do cômputo dos rendimentos disponíveis em função do tipo, origem ou natureza dos mesmos (no caso, os auferidos a título de subsídios de férias e de natal); o segundo, que o período de cessão deverá permitir ou é conciliável com uma capacidade de o devedor aforrar rendimentos e que essa eventual expectativa é legítima e sobrepõe-se ao interesse dos seus credores na satisfação dos respetivos créditos pelos rendimentos por aquele auferidos (e que não se demostrem nem sejam julgados imprescindíveis à aquisição e satisfação do necessário a uma subsistência digna, nos termos expostos).
Em relação ao primeiro, extrai-se do teor do corpo do nº 3 do acima citado art. 239º, cujos termos constam reproduzidos no despacho que deferiu o período de cessão do rendimento disponível, que [i]ntegram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão (…) (subl. nosso). Ora, todos, corresponde a uma soma, totalidade ou universalidade sem outras exclusões para além das expressa e legalmente previstas nas alíneas daquela norma. Assente nas regras de interpretação da lei previstas pelo art. 9º do CC, das quais, além do mais, resulta que onde a lei não distingue não pode o intérprete distinguir’, para efeitos de cômputo do rendimento disponível não releva a origem, fonte ou a que título são percecionados rendimentos/proveitos pelo devedor a exonerar; basta que sejam por ele recebidos e que deles possa dispor. Interpretação que, para além do elemento literal, se harmoniza com a finalidade legal do período de cessão e da sua compatibilização com o princípio da dignidade humana e do direito ao exercício da atividade profissional constitucionalmente tutelados e, bem assim, com uma solução de compromisso na gestão do conflito de interesses do devedor e dos credores, em perfeita antítese no instituto da exoneração do passivo restante. Assim, se os rendimentos auferidos pelo devedor ao longo do ano o permitam - pois casos há em que os rendimentos efetivamente auferidos pelo devedor são inferiores ao entendido e fixado pelo tribunal como o necessário a uma subsistência minimamente digna, como urge ser o caso dos autos -, o que o legislador pretende garantir com a fixação do rendimento indisponível é que em cada mês de cada ano o devedor disponha do valor mensal fixado como o necessário para lhe garantir uma subsistência condigna por recurso aos rendimentos por si auferidos; nem mais, nem menos. O que vale por dizer que o valor da média mensal visada prevenir e garantir corresponde precisamente ao montante do rendimento mensal indisponível fixado, se tanto o permitir o montante anual dos rendimentos efetivamente auferidos, que pressupõe que sejam superiores ou, no mínimo, iguais a doze vezes o montante do rendimento indisponível fixado. Tanto basta para concluir que os subsídios de natal e de férias correspondem a rendimentos na asserção prevista pelo corpo do art. 239º, nº 3 do CIRE, que, conjuntamente com a retribuição e outras prestações remuneratórias ou outros rendimentos em cada período recebidos, integram a base para cálculo e determinação do concreto montante dos rendimentos a ceder, e que estes existem se e na medida em que o resultado da divisão do montante da soma dos rendimentos anuais por doze meses exceda o montante do rendimento indisponível fixado[20]. Terá sido com esse sentido que a decisão recorrida determinou a cessão do rendimento mensal disponível “x 12 meses” por ano; precisamente, para arredar o ‘direito’ à cumulação do rendimento indisponível com os subsídios de férias e de natal nos meses em que estes sejam pagos ao devedor.[21]
Em relação ao segundo, para além do que supra se expôs a respeito da verificação e oportuna consideração de despesas extraordinárias e supervenientes ao despacho inicial no cômputo dos montantes a ceder pelo exonerando (se e quando for requerido pelo exonerando), é assaz elucidativa a observação feita a respeito de igual pretensão do devedor insolvente no acórdão desta Relação e secção de 07.05.2024[22], “os três anos do período de cessão não são compatíveis com o ressalvar de quantias para fundo de maneio do devedor. É um período de sacrifício que é compensado no final com o perdão dos créditos.”
De resto, a posição da jurisprudência, senão consensual pelo menos maioritária, é no sentido de que “[a] contabilização do valor necessário para o sustento minimamente digno do devedor, para efeitos de fixação do montante a entregar ao fiduciário, durante o período de cessão e no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante (art. 239.º, nº3, alínea b) i) do CIRE), deve ser feita ponderando a inclusão dos valores auferidos pelo insolvente a título de subsídio de férias e de subsídio de Natal; (…).[23]
Porém, no caso não está em causa a fixação de um montante indisponível que anualmente salvaguarde ao devedor o montante da RMMG multiplicada por 14 - entendido este como o mínimo legal e constitucionalmente aceite e imposto como o necessário ao sustento minimamente digno do insolvente exonerando[24] - na medida em que o valor do rendimento que a decisão recorrida excluiu da cessão [€1.087,00 x 12 = €13.044,00] é superior a esse montante mínimo [€870,00 x 14 = €12.180,00].
Em causa está ‘apenas’ garantir que no cômputo do ano a recorrente possa efetivamente manter e dispor para si dos rendimentos que aufere no montante que o tribunal considerou e fixou como o necessário à sua subsistência digna atendendo a que o rendimento que aufere mensalmente é inferior a esse montante, exceto nos meses em que receba outros rendimentos ou acréscimos, como por exemplo, nos meses de pagamento dos subsídios de férias e de natal. Considerando que o valor do rendimento indisponível fixado pressupõe não só o montante suficiente, mas também o necessário, para assegurar uma vivência minimamente condigna durante o período de cessão, aquele deverá corresponder ao necessário para, independentemente do concretamente auferido em cada mês, garantir uma subsistência minimamente condigna ao longo dos doze meses de cada ano pelo que, nos casos de rendimentos de montante variável ao longo do ano, impõe-se admitir que os meses em que são de montante superior compensam (por defeito ou equivalência) os meses em que o devedor auferiu rendimentos aquém dos considerados como o mínimo judicialmente necessário para uma vivência condigna. Assim, se por um lado, e com exclusão do montante correspondente ao rendimento indisponível fixado, o rendimento disponível/objeto da cessão é integrado por todos os rendimentos que à exonerando advenha a qualquer título, o que incluiu a contabilização do auferido a título de subsídios de natal e de férias, por outro lado, o valor em excesso em cada mês, designadamente, nos meses em que aqueles subsídios são recebidos, apenas se integram, qualificam ou correspondem a rendimentos disponíveis se e na medida em que o resultado da divisão do montante da soma dos rendimentos anuais por doze meses exceda o montante do rendimento indisponível judicialmente fixado para cada mês. Estes subsídios devem ter-se como total ou parcialmente excluídos da cessão até ao necessário para garantir à recorrente a perceção do montante dos rendimentos mensais excluídos da cessão (vezes 12 meses), no caso, e para o ano de 2025, o montante anual de €13.044,00. No que demais excedam este montante, o valor dos subsídios integra (total ou parcialmente) os rendimentos a ceder à fidúcia. O que vale por dizer que a inclusão ou exclusão dos subsídios de férias e de natal dos rendimentos objeto de cessão é determinada por um critério quantitativo, e não por um critério qualitativo por referência ao título, causa ou origem dos rendimentos.
No sentido exposto:
- voto de vencido do Conselheiro Cura Mariano no acórdão nº 740/2014 de 12.11.2014 do Tribunal Constitucional, no qual, por referência aos subsídios de férias e de natal no âmbito da discussão sobre o conceito ou conteúdo da remuneração mínima garantida, consignou que “]n]ão é o momento em que são pagas que as torna ou não indispensáveis à subsistência condigna do executado, mas sim o seu valor, uma vez que é este que lhe permite adquirir os meios necessários a essa subsistência.;
- acórdão da Relação do Porto de 23.09.2019 já acima citado, proferido no processo nº 324/19.3T8AMT.P1, no qual se considerou que “os subsídios de férias ou de natal (tal como, eventualmente, outras atribuições patrimoniais) serão excluídos da indisponibilidade quando – apenas quando -, o montante singelo do rendimento do devedor já alcança o montante fixado como rendimento indisponível.”;
- acórdão da Relação do Porto de 01.03.2021, proferido no processo nº1784/19.8T8STS.P1, assim sumariado: I - No período de cessão de rendimentos, o devedor beneficia da garantia de um rendimento indisponível, indispensável à subsistência minimamente digna do próprio e do seu agregado familiar. II - Estão excluídos do rendimento de cessão os valores dos subsídios de férias e de Natal atribuídos ao devedor insolvente quando, englobados no seu rendimento total anual, e este dividido pelos 12 meses do ano, não ultrapasse em cada mês o valor do rendimento mensal indisponível fixado pelo tribunal. III - Não deve confundir-se o rendimento periodicamente obtido pelo insolvente --- em cada hora, dia, semana, mês, trimestre, semestre, etc. --- com o rendimento que em cada mês lhe deve ser garantido dentro das forças dos seus rendimentos (não necessariamente mensais) enquanto mínimo digno de subsistência do devedor e do seu agregado familiar, nos termos do art.º 239º, nº 3, al. b), subal. i), do CIRE.
Por elucidativos, transcrevem-se os pressupostos destas conclusões, conforme fundamentação ali exposta, à qual se adere in totum: “Se se determina um mínimo mensal de subsistência do agregado da insolvente, não pode, simultaneamente, a mesma decisão, permitir que esse mínimo lhe seja, total ou parcialmente, retirado, dentro das forças do rendimento da insolvente.”// (…).//No caso da devedora, como da generalidade dos trabalhadores, é mensal a periodicidade da remuneração do seu trabalho, mas nada na lei impõe que não se considere o seu rendimento anual, pressupondo os dois referidos subsídios como proporcionalmente distribuídos pelos 12 meses de cada ano civil. O acervo da entrega ao fiduciário é que deve ser efetuado aquando da disponibilidade do rendimento.//Pense-se no trabalhador com vários meses de salários em atraso quando os recebe posteriormente de uma assentada. Porventura endividado, poderia perder, a título de rendimento disponível, a quase totalidade do rendimento acumulado quando respeitava a vários meses e em cada um deles poderia ser indispensável à sua subsistência.//Ora, se os rendimentos do devedor devem ser afetos ao pagamento dos créditos da insolvência, devem também eles, primordialmente, garantir o mínimo da sua subsistência digna e do seu agregado familiar, pelo rendimento indisponível.//Não se compreende, desde logo à luz do princípio da dignidade humana e do direito constitucional, que dispondo a devedora de um rendimento regular anual que, proporcionalmente distribuído pelos 12 meses do ano, lhe permite aproximar-se, em cada mês, do valor fixado como o mínimo necessário à subsistência do seu agregado familiar e sem o atingir sequer, se veja privada dessa garantia que, ao abrigo do art.º 239º, lhe foi reconhecida pelo despacho de 7.10.2019. É que, se não operar a diluição mensal desse rendimento regular anual acumulado em subsídios de férias e de Natal, a devedora não só não atinge, em cada mês, o valor equivalente a uma vez e 1/3 da RMMG, como chegados os meses de pagamento daqueles subsídios, os vê serem afetados pela sua quase totalidade ao pagamento dos créditos. Estaremos então, paradoxalmente, perante um caso em que, garantindo a lei e a decisão recorrida um rendimento mínimo de subsistência digna a uma família, acabam por lhe ser parcialmente retirados, deixando-a abaixo daquele limiar de subsistência garantida, ou seja, numa situação de pobreza indevida e inaceitável à custa de um rendimento efetivamente obtido e que, em rigor, lhe está destinado até ao limite mensal de uma vez e 1/3 de RMMG.//(…).//Ao contrário do que defendem alguns arestos, temos para nós que o art.º 239º, nº 3, al. b), ponto i), concilia o princípio da satisfação dos direitos de crédito com a garantia de subsistência do devedor e da sua família, dando, assim, guarida às exigências constitucionais do princípio da essencial dignidade da pessoa humana.//É contraditório, por um lado, garantir à insolvente um rendimento que satisfaça as necessidades mensais do seu agregado familiar até ao montante de uma vez e 1/3 da RMMG (dentro das forças do seu rendimento) e, por outro lado, ordenar-lhe que entregue mensalmente tudo o que auferiu para além daquele valor, esquecendo, em qualquer caso e para sempre que o mínimo de subsistência não ficou assegurado, podendo vir a sê-lo, ao menos em parte, num dos meses seguintes, liquidando então o devedor eventuais dívidas de subsistência. Não é possível sobreviver num mês, não sobreviver no outro e voltar a sobreviver no mês seguinte…”.//(…)//Em cada ano civil, podem ocorrer variações de rendimento de tal modo abissais que o princípio da sustentabilidade mínima do agregado familiar pode ficar seriamente comprometido, tornando vã a norma legal do art.º 239º, nº 3, al. b), subal. i).//Aceitamos, por isso, sem rebuço algum, a divisão do rendimento anual líquido da devedora, ainda que pago mensalmente, acrescidos dos referidos subsídios, pelos doze meses do ano, segundo a regra dos duodécimos.//É, aliás, anual a periodicidade informativa a ser enviada pelo fiduciário a cada credor e ao juiz (art.º 240º, nº 2, parte final) e é também anual a notificação da cessão dos rendimentos do devedor àqueles de quem ele tenha direito a havê-los, assim com a afetação dos montantes recebidos aos vários fins, conforme previsão do art.º 241º, nº 1.//A periocidade mensal a que a lei dá relevância reporta-se apenas ao tempo para o qual deve ser calculado o valor do rendimento indisponível e não necessariamente ao período em que é auferido um rendimento.”
Com o que nesta parte se conclui pela parcial procedência do recurso, para excluir da cessão os montantes dos subsídios de férias e de natal necessários para em cada ano do período de cessão perfazer o montante do rendimento indisponível fixado, vezes 12 (meses).
IV – Das custas
Nos termos do art. 527º, nº 1 e 2 do CPC, parcialmente vencida na apelação as custas são a cargo da recorrente por referência ao respetivo decaimento que, calculado nos termos do art. 300º, nº 2 do CPC, corresponde à diferença entre o valor mensal que requereu - 1,5 o valor atual da RMMG - e o valor mensal por esta decisão confirmado - 1,25 o valor atual da RMMG -, vezes doze meses do ano e, o produto assim obtido, vezes três (número de anos de duração do período de cessão).
V - Decisão
Em conformidade com o exposto, julga-se a apelação parcialmente procedente e decide-se pela alteração do segmento da decisão objeto de recurso para passar a constar nestes termos:
A) Determina-se que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período de cessão), a devedora entregue ao Fiduciário o valor que exceda 1 vez e ¼ a RMMG vigente em cada ano × 12 meses, excluindo-se da cessão o montante dos subsídios de férias e de natal necessários para completar/perfazer aquele valor em cada mês em que a recorrente tenha auferido rendimentos de montante inferior a 1 vez e ¼ a RMMG.
Custas do recurso a cargo da recorrente, considerando como decaimento a diferença entre o valor por ela aqui peticionado (1,5 a RMMG) e o fixado pela decisão recorrida (1,25 a RMMG), vezes doze meses do ano e, o produto assim obtido, vezes três anos, a duração do período de cessão.
Lisboa, 16.09.2025
Amélia Sofia Rebelo
Susana Santos Silva
Renata Linhares de Castro
_______________________________________________________ [1] Diploma a que pertencem todas as normas aqui indicadas sem menção de outra origem. [2] In Revista de Direito da Insolvência, Almedina 2016, p. 215. [3] Entre nós inicialmente previsto com a duração de cinco anos, mas que as alterações introduzidas pela Lei nº 9/2022 de 11.01, em vigor desde 11 de abril, reduziram a três anos. [4] CIRE Anotado, Vol. II, 2005, p. 194. [5] Nesta matéria, entre outros, mas pela sua eloquência, acórdão do STJ de 02.02.2016, proc. nº 3562/14.1T8GMR.G1.S1, relator Fonseca Ramos, e acórdão da RC de 06.07.2016, proc. n.º 3347/15.8T8ACB-D.C1, relator Falcão de Magalhães, ambos disponíveis na página da dgsi, assim como todos os que aqui se citam sem outra indicação. [6] Mais se acrescenta que para efeitos de fixação do valor dos rendimentos a excluir do dever de cessão é de todo irrelevante o valor do passivo verificado nos autos, bem como dos bens apreendidos para a massa. [7] Nesse sentido, entre outros, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18.10.2012, e da Relação de Lisboa de 11.07.2013. [8] Pois casos há em que desafortunadamente os rendimentos efetivamente auferidos (ou os comunicados) pelo devedor são inferiores ao entendido e fixado pelo tribunal como o necessário a uma subsistência minimamente digna. [9] Nesse sentido, acórdão da RE de 20.12.2018, proc. 833/17.9TOLH.E1. [10] No dizer do Sr. Conselheiro Fonseca Ramos, Salvo o devido respeito, não entendemos que o “sustento minimamente digno” equivalha à atribuição de um mínimo pecuniário de estrita sobrevivência; de outro modo negar-se-ia ao instituto da exoneração a sua finalidade precípua de regeneração do insolvente para voltar à inclusão económica e social, expurgado de um passivo que não consegue solver.//As interpretações punitivas da lei correspondem, quantas vezes, a preconceitos e, num domínio em que o conceito de dignidade e a ideia de subsistência são primordiais, o padrão a adoptar deve ser aquele que, sem descurar os direitos dos credores, não afecte o devedor, remetendo-o aos limites de uma sobrevivência penosa, socialmente indigna, sob pena de a proclamada intenção de o recuperar economicamente constituir uma miragem.//O salário mínimo nacional, (SMN) pese embora não ter sido actualizado entre 2009 e 2014, deveria ser considerado o montante mínimo para acudir às despesas inerentes a uma vida que se pretende que seja vivida com dignidade, tendo em contas despesas, essas sim de sobrevivência, como são as relacionadas com a habitação, alimentação, vestuário, consumos de bens essenciais (água, luz, transportes) e assistência médica.//Nesta perspectiva consideramos que, em regra, o SMN é o limite mínimo de exclusão dos rendimentos, no contexto da cessão de rendimentos pelo insolvente a quem foi concedida a exoneração do passivo restante, ou seja, nenhum devedor pode ser privado de valor igual ao salário mínimo nacional, sob pena de não dispor de condições mínimas para desfrutar uma vida digna. esse sentido (acórdão do STJ de 02.02.2016, proc. nº 3562/14.1T8GMR.G1.S1). No mesmo sentido, acórdão da RC de 06.07.2016, proferido no processo n.º 3347/15.8T8ACB-D.C1, relatado por Falcão de Magalhães, sendo que neste ultimo mais se justifica a não consideração do rendimento social de inserção como critério para apuramento do rendimento minimamente condigno. [11] Tânia Sofia Marques de Almeida in Insolvência: exoneração do passivo restante//Um olhar crítico quanto à fixação do sustento minimamente digno, Dissertação apresentada para a obtenção do grau de Mestre em Ciências Jurídico Forenses, consultável em file:///C:/Users/MJ01760/Desktop/Insolvência_exoneração%20do%20passivo%20restante.pdf. [12] No mesmo sentido, acórdão da RC de 04.02.2020, proc. nº 614/19.6T8LRA-C.C1 relatado por Barateiro Martins. [13] Vd. entre outros, acórdão da RE de 08.05.2024. [14] Entre outros, acórdão da RL de 27.02.2018, proc. nº 809/17.1T8BRR.L1-7, relatado por Higina Castelo. [15] Em A EQUIDADE (OU A “JUSTIÇA COM CORAÇÃO”) ainda que“A propósito da decisão arbitral segundo a equidade”, disponível em https://www.oa.pt/upl/%7Ba83fee07-fbee-44a1-86d7-bef33f38eb86%7D.pdf [16] Cláudia Oliveira Martins, in Revista de Direito da Insolvência, Almedina 2016, p. 222 [17] Cláudia Oliveira Martins, in Revista de Direito da Insolvência, Almedina 2016, p. 222. [18] De acordo com a qual, em síntese, o objeto da ação é identificado pelo pedido e pela causa de pedir: para além de invocar e peticionar o direito, impõe-se a alegação e a prova dos factos fundamento do pedido cuja subsunção permitam o reconhecimento desse direito, sendo que por princípio só esses factos constituem o thema probandum, e apenas estes integram o thema decidendum. [19] Informação consultada nesta data em https://www.bportugal.pt/page/projecoes-economicas [20] Sendo que, perante rendimentos de valor variável ao longo do ano ou rendimento mensal de valor inferior ao fixado como indisponível, só esta operação garante que, em cada mês e por recurso aos rendimentos que em cada mês e ao longo do ano vai auferindo, o devedor mantenha e disponha para si de rendimentos de montante não inferior ao fixado como o necessário - e o suficiente -, para em cada mês de cada ano do período de cessão garantir a sua subsistência minimamente digna e, se for o caso, do respetivo agregado familiar. Nesse sentido, acórdão desta Relação de 22.09.2020, relatado pela signatária no processo nº 6074/13.7TBVFX.L1. [21] No mesmo sentido, acórdãos da Relação do Porto de 18.11.2019, processo nº 1373/19.7T8AVR-C.P1, da Relação de Guimarães de 26.11.2015, processo nº 26.11.2015, de 23.05.2019, processo nº 4211/18.4T8VNF.G1, e de 17.09.2020, processo nº 1167/20.7T8VNF-C.G1, da Relação de Évora de 26.09.2019, processo nº 2727/18.1T8STR-C.E1, e de 23.04.2020, processo nº 7079/15.9T8STB-F.E1, da Relação de Coimbra de 22.06.2020, processo nº 6137/18.2T8CBR-B.C1. [22] Proferido no processo nº15105/23.1T8SNT-B.L1. [23] Acórdão desta Relação e secção de 22.03.2022, proferido no processo 15004/21.1 T8LSB-B. L1. [24] Conforme, entre outros, acórdãos da Relação do Porto de 22.05.2019, processo nº1756/16.4T8STS-S.P1, e da Relação de Lisboa de 02.05.2022, processo nº2525/21.5T8BRR.L1, e de 22.03.2022, processo 15004/21.1 T8LSB-B. L1.