LIBERDADE CONDICIONAL
PRAZOS
SITUAÇÃO JURÍDICA
SUSPENSÃO DO PROCESSO
PROCESSO PENDENTE
INAPLICABILIDADE
Sumário

I - O recluso tem direito à pronúncia do tribunal sobre a concessão da liberdade condicional nos marcos legalmente definidos para as condenações que está a cumprir.
II - A existência de processos pendentes, cujo resultado e duração são por natureza incertos e onde, sobretudo, o arguido goza da presunção de inocência enquanto não ocorra uma condenação transitada em julgado não constitui motivo suficiente para parar a marcha do procedimento para apreciação da aplicação da liberdade condicional.
III - Assim, não há lugar à suspensão do incidente de apreciação da liberdade condicional com o fundamento de que a situação jurídico-processual do condenado ainda não se encontra estabilizada por ter outro ou outros processos pendentes.

(Sumário da responsabilidade do Relator)

Texto Integral

Processo n.º 641/18.0TXPRT-M.P1

Relator: William Themudo Gilman

1ª Adjunta: Cláudia Sofia Rodrigues

2ª Adjunta: Maria Deolinda Dionísio


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Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:

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1-RELATÓRIO

No Processo n.º 641/18.0TXPRT do Tribunal de Execução das Penas do Porto, Juízo de Execução das Penas do Porto - Juiz 4, em 28-05-2025, foi proferida decisão na qual se decidiu, ao abrigo do estatuído na al. c) do n.º 1 do artigo 173º e na primeira parte do n.º 1 do artigo 174º do Código de Execução das Penas e das Medidas Privativas da Liberdade, não designar data para reunião do Conselho Técnico e audição de AA no incidente de liberdade condicional, aguardando-se se necessário por três meses o conhecimento da decisão final a proferir no processo ....


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Não se conformando com esta decisão, recorreu o condenado, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

««1- Vem o arguido/recluso AA apresentar recurso ao despacho de 28.05.2025 que decidiu não agendar a data para conselho técnico para efeitos de apreciação da liberdade condicional por referência ao meio da pena largamente ultrapassado (artigo 61º do código penal) a um arguido que se apresentou voluntariamente no e.p. ...;

2- O tep refere que a situação do arguido não está estável invocando a pendência de dois processos – cujas condenações em 1ª instância omitiu deliberadamente porque o tep sabe quais são essas condenações, sendo a condenação no processo ... uma pena de multa de 1.260 euros já paga e no processo ....47jabrg uma pena suspensa na sua execução – tudo o que o tep omitiu!!!

3- O acórdão do t.r.l. datado de 26.01.2023, relatora raquel lima, entre muitos outros acórdãos, na linha jurisprudencial mais recente e respeitadora dos direitos dos cidadãos reclusos, já definiram que, a situação jurídico-processual dos reclusos, quando não estamos perante novas penas de prisão efetiva, não condicionam nem são obstaculizadoras da situação referente à liberdade condicional da pena de prisão efetiva que se encontra a ser cumprida – não podendo, em caso algum, o recluso ser prejudicado.

4- Não cabe ao tep fazer futurologia sobre hipotéticos ou putativos eventuais reformulações de cúmulo jurídico entre a pena de prisão efetiva em execução e a pena suspensa aplicada no processo ... – uma vez que é aos tribunais de 1ª instância que cabe aferir os pressupostos de concurso superveniente e se aquelas penas são de diferente natureza. o supremo tribunal de justiça tem jurisprudência fixada no sentido que a pena suspensa é uma pena de diferente natureza da pena de prisão efetiva e nos termos do n.º 3 do artigo 77º do código penal, a diferente natureza das penas, em caso de cúmulo jurídico,

Mantém-se! tudo isto é matéria de 1ª instância – quando for e se for!! o tep não tem que se intrometer nestas questões que não lhe pertencem nem lhe cabe tecer considerações ou juízos de valor de qualquer especíe.

5- Na data da interposição deste recurso ao despacho de 28.05.2025 não existe uma qualquer decisão do tribunal da relação sobre o recurso do arguido no processo ..., além disso o arguido em data anterior ao dia 28.05.2025 comunicou ao apenso c destes autos do tep que, existem questões de constitucionalidade naquele processo ... e que, em caso de não procedência do recurso na relação de guimarães, irá exercer o seu direito de recurso ao tribunal constitucional, cuja média de tempo desses recursos, quando admitidos, ronda um a dois anos, não podendo o tep obstaculizar a apreciação da liberdade condicional apenas porque o arguido exerce o seu direito constitucional de recorrer naquele processo - cuja pena de prisão é suspensa na sua execução

6- O despacho recorrido de 28.05.2025 é ilegal, intolerável e inaceitável na medida em que, a sra. juíza do tep do porto tem conhecimento funcional nos termos do artigo 412º n.º 2 do código processo civil, aplicável aos processos do tep pela remissão subsidiária do artigo 4º do c.p.p que, um processo pendente é uma pena de multa (que até já pagou) e no outro é uma pena suspensa na sua execução – e quando não existe nenhuma pena de prisão efetiva noutro processo pendente, não se pode obstaculizar a apreciação da liberdade condicional.

7- Foi assim violado e desrespeitado o artigo 61º do código penal e 179º do código de execução de penas, o despacho em causa tem que ser revogado e substituído por outro que ordene a imediata apreciação da liberdade condicional com urgência – atendendo a que o recluso em causa já ultrapassa largamente o meio da pena;

8- É ilegal e inconstitucional, por violação do direito ao recurso e da presunção da inocência, a interpretação efetuada pelo tep quando obstaculiza a apreciação da liberdade condicional usando como fundamento dois processos pendentes cuja condenação em 1ª instância foi em pena de multa já paga (aguardando-se meramente o despacho formal da extinção) e de uma pena suspensa na sua execução não transitada e inexistente na ordem jurídica, sobre a qual ainda não existe, sequer, à data da entrada deste recurso, um acórdão do tribunal superior sobre o recurso, do acórdão que vier a ser proferido, caso o recurso seja improcedente, o arguido pode dele arguir a nulidade, ainda pode recorrer ao tribunal constitucional sobre as questões de constitucionalidade levantadas em sede de recurso ordinário e devidamente descritas processualmente, como o tribunal de recurso pode mandar repetir todo ou parte o julgamento, repetir o acórdão por contradição insanável ou melhor fundamentação, enfim, uma panóplia de hipóteses do conhecimento geral, pelo que o tep quando tece considerações especulativas e prejudiciais ao recluso apenas merece total censura por parte da defesa e dos tribunais superiores.

9- Não cabe nas funções dos juízes do tep ou dos magistrados do m.p. tecerem considerações ou criarem obstáculos à boa execução da pena e às obrigatórias apreciações às medidas de flexibilização destas, tendo o tep a obrigação legal e estaturária de cumprir os direitos do recluso – artigo 6º do código de execução de penas.

Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso do recluso AA, revoge-se imediatamente o despacho de 28.05.2025, decretando-se que o tep não podia obstaculizar a apreciação da liberdade condicional como fez, quando decidiu “aguardando-se, antes, o conhecimento da decisão final a proferir no processo ...” porquanto isso é totalmente imprevisível e sendo a condenação de 1ª instância (ainda em recurso) uma pena suspensa na sua execução, em nada colide com a apreciação da pena de prisão efetiva em curso, à qual o arguido se apresentou voluntariamente no e.p. para cumprir a pena e sobre a qual já cumpriu bem mais de metade.

Além de que, como se disse, não cabe ao tep aferir ou especular se aquela pena suspensa vier a transitar, se caberá ou não lugar a novo cúmulo jurídico – isso não é da competência do tep estar a efetuar esses juízos de valor ou de prognóse jurídiquês – o tep tem que se limitar a decidir o que tem em execução efetiva.»


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Após reclamação do recorrente do despacho que lhe não admitiu o recurso, a qual obteve provimento no Tribunal da Relação do Porto, o recurso foi admitido.

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O Ministério Público concluiu as suas alegações de resposta ao recurso nos seguintes termos:

«- AA encontra-se no Estabelecimento Prisional ... desde 03.02.2025, preso à ordem do Juízo Central Criminal de Braga - Juiz 2, em cumprimento da pena única de 6 (seis) anos e 10 (dez) meses de prisão em que foi condenado por acórdão proferido no processo ... (em razão da prática de três crimes de furto qualificado, dois crimes de falsificação de documentos, dois crimes de detenção de arma proibida, um crime de receptação);

- Conforme liquidação realizada pelo Tribunal da condenação, considera-se já cumprida metade da pena (em razão do desconto do tempo correspondente ao período compreendido entre 02.07.2018 e 06.12.2021, em que AA esteve sujeito a medida de coacção de permanência na habitação), estando previstos o cumprimento de dois terços da pena em 19/03/2026, de cinco sextos em 09/05/2027 e o termo em 29/06/2028;

- Cumpriria apreciar a eventualidade de concessão de liberdade condicional uma vez cumprida metade da pena de prisão, com um mínimo de seis meses (artigos 61º, n.º 2, do Código Penal, e 173º e sgs do Código de Execução das Penas);

- Todavia, a situação penal do condenado poderá sofrer alteração, designadamente por ter pendente o processo ..., no qual foi condenado pela prática de um crime de corrupção activa agravada, na forma tentada, numa pena de 3 anos de prisão suspensa na sua execução por igual período;

- Essa situação poderá originar o conhecimento superveniente de concurso de crimes, cujos pressupostos legais estarão preenchidos;

- Na verdade, face à indefinição jurídica da sua situação, o marco temporal para apreciação da liberdade condicional poderá vir a ser alterado (neste sentido ver decisão sumária proferida no TRP em 26/06/2012 no âmbito do processo n.º 4624/10.0TXPRT (aí se referindo expressamente que “se a situação jurídico-penal do condenado não se encontrar estabilizada, não há lugar a Conselho Técnico - “claro como água”), bem como pelo STJ em decisão proferida no Acórdão de 6/9/2012 (Relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Santos Carvalho, proferido no âmbito de NUIPC 87/12.3YFLSB.S1, do 4.º Juízo do TEP-Lisboa, in www.dgsi.pt) que “a liberdade condicional, quer a facultativa (na metade ou nos dois terços do cumprimento da pena), quer a obrigatória (nos cinco sextos de cumprimento das penas superiores a 6 anos de prisão), só poderá ser determinada pelo TEP quando a situação prisional do arguido estiver estabilizada”;

- Motivo pelo qual, não deverá, por ora, ser apreciada a sua liberdade condicional, devendo aguardar-se pela estabilização da situação jurídica do condenado, nos termos do disposto nos artigos 173, n.º 1, al. c), e 174, n.º 1, ambos do CEPMPL, tal como foi decidido no despacho ora recorrido;

- Sendo requisito da concessão da liberdade condicional (relativo à prevenção especial) a formulação de um juízo de prognose favorável - art. 61, n.º 2, al. a), do Código Penal) – ou seja, será de conceder a liberdade condicional se: For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes;

- Perante a incerteza acerca da situação penal do condenado, face à pendência de um outro processo, não é viável uma avaliação adequadamente informada e decisão consequente acerca das questões a que se referem os n.ºs 2 e 3 do artigo 61º do Código Penal, para o efeito importando ainda aguardar o desfecho do processo pendente (cfr. artigo 173º, n.º 1, al. c), do Código de Execução das Penas), tal como decidiu a Mma. Juiz no despacho em causa;

- Termos em que o presente recurso deverá improceder, mantendo-se o despacho recorrido nos seus precisos termos, sendo que, nenhuma norma legal foi violada ou mal interpretada.

Porém, V. Ex.ªs melhor decidirão, fazendo a habitual JUSTIÇA!»


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Nesta instância, o Ministério Público emitiu parecer no sentido de improceder o recurso interposto pelo recluso/recorrente.

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Foi cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2, do CPP, tendo o recorrente respondido, concluindo que a pendência processual de um processo com medida de coação de termo de identidade e residência não obstaculiza a apreciação da liberdade condicional nos termos do artigo 61º do Código Penal.

Colhidos os vistos e indo os autos à conferência, cumpre apreciar e decidir.


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2-FUNDAMENTAÇÃO

Conforme jurisprudência constante e assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.

Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, a questão apreciar e decidir é a de saber se pode ser suspenso o incidente de apreciação da liberdade condicional com o fundamento de que a situação jurídico-processual do condenado ainda não se encontra estabilizada por ter outro ou outros processos pendentes.


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2.2- A DECISÃO RECORRIDA:

É o seguinte o teor da decisão recorrida (transcrição):

« A situação penal de AA não está tendencialmente estabilizada, o que impede, por ora, a apreciação dos pressupostos de eventual prosseguimento do cumprimento da pena (com que duração?) em liberdade condicional (cfr., a propósito, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.09.2012, proferido no processo 87/12.3YFLSB.S1: “(…) a liberdade condicional (…) só poderá ser determinada pelo TEP quando a situação prisional do arguido estiver estabilizada (…)”; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12-07-2023, proferido no processo 981/19.0TXPRT-I.P1, ambos consultados em www.dgsi.pt).

Com efeito, no processo ... foi proferido acórdão condenatório (que não transitou em julgado relativamente a AA, que dessa decisão interpôs recurso – cfr. documentos no suporte electrónico do processo a 14.04.2025) que, a confirmar-se, poderá repercutir-se em significativa alteração da situação penal de AA (designadamente por poder vir a ocorrer, nos termos previstos no artigo 78º do Código Penal, conhecimento superveniente de concurso de crimes e consequente determinação de pena cumulativa que englobe a em execução – aplicada no processo ... – e eventualmente a aplicada no processo ...).

Está também pendente (igualmente em fase de recurso) o processo ....

Tal incerteza (acerca da situação penal de AA) inviabiliza quer a verificação dos pressupostos temporais a que se referem os n.ºs 2 e 3 do artigo 61º do Código Penal (e, eventualmente, também os n.ºs 1 e 2 do artigo 63º do mesmo Código), quer que acerca das questões a que se refere o n.º 2 do artigo 61º do Código Penal seja proferida decisão conscienciosa e consequente, mediante necessária avaliação global e sem muito relevante risco de indesejável disrupção no prosseguimento dos objectivos legais da aplicação das penas (designadamente o de consistente socialização).

Considerado o exposto e ao abrigo do estatuído na al. c) do n.º 1 do artigo 173º e na primeira parte do n.º 1 do artigo 174º do Código de Execução das Penas e das Medidas Privativas da Liberdade, não se designa, por ora, data para reunião do Conselho Técnico e audição de AA, aguardando-se, antes, o conhecimento da decisão final a proferir no processo ..., se necessário por três meses.

Comunique-se ao Estabelecimento Prisional, solicitando a notificação de AA.

Notifique-se Ministério Público e Ilustre Defensor(a).»


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2.3- APRECIAÇÃO DO RECURSO.

Comecemos por ver qual o papel da liberdade condicional no direito penal, entendido este em sentido amplo ou ordenamento jurídico-penal que abrange para além do direito penal substantivo, o direito processual, adjetivo ou formal, e o direito de execução das penas e medidas de segurança ou direito penal executivo[1].

No programa político criminal consagrado no nosso direito penal, fruto de uma visão unitária, coerente, marcadamente humanista[2] que se estende por todo ele, desde os fins das penas – a prevenção do crime e a reintegração do agente na sociedade –, à proibição de penas cruéis ou degradantes – morte ou prisão perpétua -, passando pelo caráter de ultima ratio conferido à pena privativa da liberdade, pela escolha e determinação da pena e concluindo na fase da sua execução - baseada numa dinâmica progressiva de preparação para a liberdade -, o instituto da liberdade condicional constitui a principal via de prossecução dos fins que o direito penal quando concretizado numa pena de prisão efetiva visa atingir sem perder a legitimação material de causar o mínimo mal possível, a mínima violência ao condenado.

Assim, além de fulcral no sistema, a liberdade condicional constitui uma etapa normal da execução das penas de prisão, mais não sendo do que a continuação da execução da pena de prisão por outros meios.

Resulta do artigo 61º do Código Penal que a liberdade condicional facultativa, enunciada nos seus ns.º 2, 3 e 4, depende de pressupostos formais e materiais.

Constituem pressupostos formais:

a) O consentimento do condenado (artigo 61.º, nº1, do Código Penal);

b) O cumprimento de, pelo menos, seis meses da pena de prisão ou da soma das penas de prisão que se encontram a ser executadas (artigos 61.º, nº2 e 63.º, nº2, ambos do Código Penal);

c) O cumprimento de 1/2, 2/3 ou 5/6, da pena de prisão ou da soma das penas de prisão que se encontram a ser executadas (artigos 61.º, nº2 e 63.º, nº2, do Código Penal).

Constituem pressupostos de natureza material:

a) O juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do condenado quando colocado em liberdade (art.º 61.º, nº 2, al a) do Código Penal);

b) O juízo de prognose favorável sobre o reflexo da libertação do condenado na sociedade (juízo atinente à prevenção geral positiva), dito de outro modo, sobre o seu impacto nas exigências de ordem e paz social (artigo 61.º, nº2, al b) do Código Penal).

Uma vez verificados os pressupostos – formais e materiais – de que depende, o Tribunal de Execução de Penas tem o poder-dever de colocar o condenado em liberdade condicional.

O processo de liberdade condicional desenvolve-se com vista à apreciação da possibilidade de concessão dessa medida, tendo uma fase de instrução de recolha de informação, a qual deverá estar concluída antes da data admissível para a concessão da liberdade condicional – cfr. artigo 173º do CEP. Reunidos os elementos, o Juiz designa o dia para a reunião do conselho técnico, seguida da audição do recluso. Após, o Ministério Público emite parecer e o Juiz de Execução de Penas profere a decisão (artigo 177º CEP). Concluso o processo para decisão, pode ainda faltar a elaboração e a aprovação do plano de reinserção social ou haver motivos transitórios que obstam à colocação em liberdade condicional naquele momento mas em que é possível prognosticar, com razoável probabilidade, que serão ultrapassados num prazo de até três meses[3].

Nesses casos, como se refere no artigo 178º do CEP (Suspensão da decisão): «O juiz pode suspender a decisão, por um período não superior a três meses, tendo em vista a verificação de determinadas circunstâncias ou condições ou a elaboração e aprovação do plano de reinserção social.»

Mas estas circunstâncias cuja verificação se espera venham a acontecer a breve prazo apenas dizem respeito a motivos transitórios de natureza prática que obstam momentaneamente à colocação em liberdade condicional e que em princípio virão a ser afastados.

Só nessas condições se poderá suspender o procedimento e já não na previsão de que, mais cedo ou mais tarde, poderão eventualmente vir a surgir quaisquer circunstâncias que obstem à libertação condicional do recluso no marco temporal previsto na lei - ao meio, dois terços ou cinco sextos da pena – ou que possam mudar as datas de tais marcos temporais.

Um processo pendente, mais não é do que isso mesmo, uma investigação, acusação ou pronúncia e julgamento contra uma pessoa que se desenvolverá até ao seu termo, até à decisão final transitada em julgado, podendo ter vários resultados, desde o arquivamento em sede de inquérito, à não pronúncia no final da instrução e na fase de julgamento da absolvição à condenação e neste último caso das penas substitutivas à pena de prisão efetiva.

Converter a mera pendência dum processo em obstáculo à prossecução do incidente para apreciação da concessão da liberdade condicional, implicando a suspensão desta apreciação, não tem fundamento lógico suficiente e é contrário ao espírito do sistema.

Com efeito, não só a suspensão sem prazo certo – até que findem os processos pendentes – do incidente de apreciação da liberdade condicional não é permitida pela letra da lei que prevê um máximo de três meses, como também permitir a suspensão por um facto cujo acontecimento – trânsito em julgado da decisão final do processo - é por natureza temporalmente incerto, tanto podendo suceder em três meses como em menos ou mais tempo, fazendo depender dessa inconstante temporalidade a apreciação da liberdade condicional dentro ou fora dos marcos legais, afigura-se solução incerta, ilógica e injusta.

O importante instituto da liberdade condicional, situado no coração do programa político-criminal humanista desenhado pelo nosso legislador, não se compadece com tergiversações como “… pelo sim pelo não é melhor esperar pelos outros processos, … pode vir a ser condenado naquele processo, …, é capaz de dar prisão efetiva …, vai perder o recurso …, o trânsito em julgado é capaz de ocorrer dentro de três meses …”.

A marcha do procedimento para apreciação da aplicação da liberdade condicional tem de ser firme e decidida, não pode ficar sujeita a hesitações, incertezas e tropeções processuais, com suspensões tiradas por tudo e por nada.

Um processo crime pendente contra o recluso não deve ser considerado a priori como um motivo que obste à sua colocação em liberdade condicional e muito menos que determine a suspensão de tão importante incidente, como é o da apreciação – e no tempo devido (1/2, 2/3 ou 5/6 da pena) - da concessão da liberdade condicional, sob pena de arremesso para um canto esquecido do fundamental princípio da presunção de inocência – artigo 32º, n.º 2 da CRP – e de frustração ou adiamento sem sentido da possibilidade de atuação daquele importante instituto.

Com ou sem processos pendentes o recluso tem o direito de ver apreciada a concessão de liberdade condicional dentro dos marcos legais, ressalvando a possibilidade de suspensão do incidente em circunstâncias muito concretas, como a elaboração do plano de reinserção social ou outros motivos transitórios relacionados com a própria execução prática de tal medida de flexibilização de pena, mas que se prevê sejam ultrapassados num prazo curto, num máximo de até três meses e não na existência de processos pendentes, cujo resultado e duração são por natureza incertos e onde, sobretudo, o arguido goza da presunção de inocência enquanto não ocorra uma condenação transitada em julgado.

Não se pode converter a limitada possibilidade de suspensão do incidente para apreciação da concessão liberdade condicional numa espécie de ‘reclusão preventiva’ para espera de decisão final dos processos pendentes do recluso e eventual, possível ou imaginável alteração dos marcos temporais previstos para aquela apreciação.

É a liberdade da pessoa que está causa, ainda que seja apenas uma liberdade vigiada ou condicionada, uma mera continuação da execução da pena de prisão por outros meios, contudo não deixa de ser liberdade.

E o recluso tem direito à pronúncia do tribunal sobre a concessão da liberdade condicional nos marcos legalmente definidos para as condenações que está a cumprir, sem ter de esperar pela resolução de eventuais, possíveis ou imagináveis futuras condenações, sob pena de se colocar distopicamente o processo à frente do direito fundamental à liberdade (ainda que apenas na sua versão condicional), impedindo a realização deste, em vez de se limitar a, de forma justa e equitativa, afirmar e fazer concretizar o direito.

Como assinalou o Tribunal Constitucional[4] a propósito da recorribilidade das decisões sobre licenças de saída jurisdicional, «a falta de estabilização da situação jurídico-penal do recluso – situação que pode perdurar durante um período significativo – não implica, sempre e só por si, a impossibilidade de apreciação das condições legalmente previstas. Poderá projetar-se nelas com maior ou menos intensidade, poderá até inviabilizá-las, mas trata-se de um juízo casuístico, a ponderar perante as incidências concretas, e não de forma a transformar a falta de estabilização da situação jurídico-penal do recluso numa cláusula geral de indeferimento (ainda que sob as vestes de a decisão de “ficar a aguardar” sem prazo) que a lei não previu, no que substancialmente se aproxima de uma abstenção de decisão, gerando uma situação de desproteção do recluso especialmente carecida de tutela por via recurso

Como se disse em jurisprudência ainda recente da Relação de Lisboa[5] sobre a matéria: «O que nos parece é que não é legítimo ao TEP travar o andamento do processo – não apreciando a liberdade condicional no marco imposto por lei – colocando a vida do arguido em “pousio” até que todos os processos estejam resolvidos.»

Assim, o facto de o recluso recorrente ter pendente – sem trânsito em julgado - contra si um processo (...), não é motivo para que, tendo sido atingido o meio da pena, se não continue com os procedimentos tendentes à apreciação da concessão da liberdade condicional, designadamente a marcação de data para reunião do Conselho Técnico e audição do recluso.

Concluindo, não há lugar à suspensão do incidente de apreciação da liberdade condicional com o fundamento de que a situação jurídico-processual do condenado ainda não se encontra estabilizada por ter outro ou outros processos pendentes.


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3- DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em dar provimento ao recurso e, em consequência, revogam a decisão recorrida, devendo ser substituída por outra que determine a continuação dos procedimentos tendentes à apreciação da concessão da liberdade condicional.

Sem custas.


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Comunique ao TEP, ao EP e à DGRSP.


Porto, 10 de setembro de 2025
William Themudo Gilman
Cláudia Rodrigues
Maria Deolinda Dionísio
_________________
[1] Cfr. sobre a noção ampla de direito penal, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, 2007, p. 6-7.
[2] Cfr. Sobre esta visão humanista o preâmbulo do Código Penal, I-Introdução, 1- (2º parágrafo).
[3] Cfr Joaquim Boavida, A Flexibilização da Prisão, 2018, p. 171.
[4] AC. TC 652/2023, in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20230652.html .
[5] Ac. TRL de 26.01.2023, proc. 177/19.1TXEVR-M.L1-9 (Raquel Lima), in https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/af6f401e36109f4a8025895100424994?OpenDocument .