I. É a instauração do inquérito que, para todos os efeitos, marca o início do procedimento penal.
II. Consequentemente, para o julgamento de coarguidos acusados e pronunciados por crime relacionado com áreas diversas em que há dúvidas sobre aquela em que se localiza o elemento relevante para determinação da competência territorial, é competente o tribunal da circunscrição onde primeiramente houve notícia do crime que originou aí a abertura do correspondente inquérito.
Conflito negativo de competência
Decisão:
Dos elementos com que vem instruído o vertente procedimento incidental e da consulta da tramitação eletrónica do processo principal apura-se, com relevância para a resolução do vertente conflito negativo de competência que: ------
1. AA, em 9.09.2014, entregou em mão, na Procuradoria-Geral da República, em Lisboa, queixa por si manuscrita e assinada denunciando o Banco Espírito Santo e BB, imputando-lhe a prática dos factos aí narrados
2. Queixa que foi registada na Procuradoria-Geral da República como E 166/2014, sendo certo que aí não se determinou a abertura de inquérito.
3. Queixa que depois surge incluída no inquérito com o NUIPC 6049/14.9T9PRT – constituindo fls. 37 e que por despacho de 26.02.2015, da Procuradora da República titular se desentranhou, determinando que com ela se constituísse apenso que mandou identificar com a letra A2.
4. Mediante denúncia escrita apresentada por CC pelos factos aí narrados, o Ministério Publico no DIAP de Matosinhos, por despacho de 20.10.2014, determinou a abertura do inquérito que aí se autuou com o NUIPC n.º 1523/14.0T9MTS.
5. Inquérito que por determinação da Procuradora da República titular, “atenta a conexão entre o objeto” de ambos, veio a ser apensado ao presente constituindo o Apenso A1.
6. Mediante denúncia de DD, o Ministério Público no DIAP do Porto, por despacho de 3.12.2014, determinou a abertura de inquérito que foi aí autuado com o NUIPC 6049/14.9T9PRT e que constitui o vertente processo.
7. Inquérito que foi transmitido ao DCIAP e no qual o Ministério Publico deduziu acusação imputando aos arguidos BB, EE (entretanto falecido), FF, GG, HH e Banco Espírito Santo (em liquidação) os factos aí narrados e com isso a prática, em coautoria material, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217º, nº 1, 218º, nºs 1 e 2, al. a) por referência ao artigo 202º, al. b), todos do Código Penal e, com exceção da pessoa coletiva, a prática, em concurso efetivo, de um crime de manipulação do mercado, p. e p. pelo artigo 379º, nº 1, com referência aos artigos 135º, 149º e 243º, todos do Código de Valores Mobiliários, introduzido pelo Decreto-Lei nº 485/99, de 13 de Novembro, na versão vigente à data dos factos (Decreto-Lei nº 40/20/2014, de 18 de Março)
8. Mediante requerimento dos coarguidos BB, FF, HH e Banco Espírito Santo (em liquidação) foi aberta a instrução que correu termos no TCIC -juiz 9.
9. Encerrada a qual, o Tribunal, por decisão de 14.10.2024, pronunciou os coarguidos pela prática dos factos descritos na acusação e pelos crimes de que vinham acusados.
10. Remetido o processo para julgamento1, com distribuição ao Juízo Central Criminal de Lisboa - Juiz 13, a Exma. Juíza, por despacho de 10.12.2024, entendendo que “ocorre conexão processual, cfr. artigo 24º nº 1 al. d) do Código de Processo Penal. Destarte, será competente o Tribunal da área onde tiver sido cometido o crime de pena abstracta mais elevada – artigo 28, proémio e al. a) do Código de Processo Penal” e constatando que o crime relevante para determinação da competência territorial do tribunal é o de burla qualificada por ser o mais gravemente punido – com “a moldura penal abstracta de 2 a 8 anos de prisão” - e que, atento o teor da acusação, foi cometido por múltiplos atos plurilocalizados de modo que não é possível saber em que local ocorreu o último ato de execução – “o artigo 4399º [da acusação]não faculta qualquer localização territorial” -, considerou que “o local da consumação (ou do último acto que a integrou) é desconhecido”, pelo que, invocando o disposto no art. 21.º do Código de Processo Penal, conhecendo oficiosamente, declarou a incompetência territorial daquele tribunal para tramitar a fase de julgamento.
11. Competência relativa que atribuiu ao tribunal da área onde primeiramente foi adquirida a notícia do crime que, no seu entendimento, teria ocorrido no Porto
12. Determinando, por isso, a remessa do processo ao Juízo central criminal do Porto.
13. O Banco Espírito Santo (em liquidação), inconformado, reagiu, invocando a nulidade do despacho que declarou a incompetência territorial do Tribunal criminal de Lisboa, pugnando pela confirmação da competência territorial do mesmo, alegando, em suma, que a primeira denúncia foi apresentada em Lisboa, anterior em data à que originou o vertente processo, sendo, por isso, determinante para fixar a competência territorial do tribunal, ainda que tenha sido junta aos autos posteriormente à instauração do processo no Ministério Público do Porto.
14. O Ministério Público e os coarguidos FF e HH sufragam esse entendimento.
15. A Exma. Juíza no Juízo Central Criminal de Lisboa, por despacho de 25.03.2025, indeferiu ao assim requerido.
16. O Banco Espírito Santo (em liquidação) e HH não se conformando, por requerimento por cada um apresentado em 9.5.2025, interpuseram recurso desse despacho, peticionando que seja admitido com subida imediata, em separado e com efeito suspensivo, pugnando pelo revogação do despacho recorrido e que seja substituído por outro que declare a competência territorial do Juízo Central Criminal de Lisboa para o julgamento dos arguidos pronunciados nos presentes autos.
17. Remetido o processo ao Tribunal judicial da comarca do Porto onde foi distribuído ao Juízo Central Criminal do Porto- Juiz 1, a Exma. Juíza, por despacho de 4.06.2025, coincidindo que “é impossível determinar o local da consumação do crime de burla” e que, por isso, “será competente para conhecer do crime o tribunal onde primeiro tiver havido notícia do crime”, adotando como fator determinante a primícia da queixa entregue em mão, em 9.09.20214 na Procuradoria-Geral da República, em Lisboa e entendendo que foi aí onde o Ministério Público, através dela, teve conhecimento dos crimes (cfr. art.º 241.º do CPP), invocando o disposto no art.º 21.º, n.º 1, do CPP, declarou a incompetência territorial daquele tribunal para o julgamento em 1.ª instância neste processo.
18. Embora tenha verificado que “o facto de tal denúncia não ter sido, naquele momento, registada e autuada como inquérito” desconsiderou-o por entender que a “lei processual penal em lado algum manda aferir a competência territorial do tribunal em função do local onde o processo de inquérito foi, em primeiro lugar, instaurado”, acrescenta que “se assim fosse, o tribunal competente seria, então, o Juízo Central Criminal de Vila do Conde, uma vez que foi no DIAP de Matosinhos que, em 20-10-2014, foi apresentada a denúncia que deu origem aos autos de inquérito n.º 1523/14.0T9MTS, ao qual, de acordo com o disposto no art.º 29.º, n.º 2, do CPP, deveriam ter sido apensados todos os demais processos, por respeitar ao crime determinante da competência por conexão. Donde, em qualquer das hipóteses, nunca seria este [o Juízo central criminal do Porto] o tribunal territorialmente competente para o julgamento”, ainda assim atribuiu a competência relativa em causa ao Juízo Central Criminal de Lisboa, por ter sido ai que “foi apresentada a primeira participação dos crimes aqui imputados aos arguidos e onde o Ministério Público, através dela, teve conhecimento de tais crimes (cfr. art.º 241.º do CPP)”.
19. Deparando-se com o conflito negativo de competência territorial assim surgido no processo, denunciou-o, suscitando a sua resolução ao Presidente da secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça.
b) parecer do Ministério Público:
O Digno Procurador-Geral Adjunto, em douto parecer, sustenta que não há ainda conflito negativo de competência (territorial) a resolver porque uma das decisões em oposição ainda não transitou em julgado, o que se deve declarar.
Se assim não se entender, sustentando que o critério relevante para a atribuição da competência territorial deve ser o da primeira notícia do crime e que tendo-se a mesma verificado em Lisboa, pronuncia-se no sentido de o conflito negativo se resolva com a atribuição da competência territorial para o julgamento nestes autos ao Juízo Central Criminal de Lisboa, Juiz-13, Tribunal Judicial da mesma Comarca.
c) os demais sujeitos processuais:
Os arguidos FF HH e Banco Espírito Santo (em liquidação), defendem que o conflito em apreço se resolva com a atribuição da competência territorial para o julgamento da causa penal ao Juízo central criminal de Lisboa.
d) a questão prévia suscitada:
O Digno Procurador-Geral Adjunto, atentando em que ainda não transitou em julgado o despacho do Juízo Central Criminal do Lisboa, Juiz-13 que declarou a sua incompetência territorial, concluiu que ainda não existe conflito negativo de competência, o que deve declarar-se, com a consequente preclusão da resolução.
Vejamos: ----
Dispõe o art.º 33.º do CPP que, “declara a incompetência do tribunal, o processo é remetido para o tribunal competente”. Quis o legislador dizer que quando o tribunal se declara incompetente o processo deve ser imediatamente remetido ao tribunal que considerar competente, sem aguardar o trânsito em julgado dessa sua decisão.
Decisão que não admite recurso ordinário.
Assim mesmo sufragam os comentadores e a doutrina (maxime: Paulo Pinto de Albuquerque2, Germano Marques da Silva3, Figueiredo Dias e Nuno Brandão4) e a jurisprudência do tribunal Constitucional5, que decidiu “não julgar inconstitucionais as normas constantes dos artigos 33.º, 34.º, 36.º e 399.º do Código de Processo Penal, quando interpretadas no sentido da irrecorribilidade da decisão proferida por tribunal criminal que se declare territorialmente incompetente”.
Sem prejuízo da arguição de nulidade ou correção de erros materiais, também não admite reclamação, diversamente o que está previsto no art.º 105.º n.º 4 do CPC.
O legislador processual penal instituiu um procedimento autónomo e específico para a sequência da declaração de incompetência territorial do tribunal:
i. aceitando o tribunal destinatário a competência que lhe é atribuída pelo outro inexiste conflito;
ii. declinando a competência poderá atribuí-la a terceiro tribunal para o qual remeterá o processo, não existindo então, ainda conflito;
iii. conflito existe quando o tribunal a que foi atribuída competência a recusa, atribuindo-a ao outro que já se havia declarado incompetente; e
iv. depois de ter surgido o conflito, qualquer dos tribunais em dissídio pode vir a declarar-se competente, o que resultará na cessação imediata do conflito (artigo 34.º n.º 2 do CPP).
Existindo e persistindo o conflito – como se verifica no caso - o único procedimento de reação legalmente previsto é a denúncia, suscitando a resolução ao tribunal imediatamente superior aos dois (ou mais) tribunais em dissídio.
A decisão de incompetência do tribunal criminal de Lisboa observou o disposto no art.º 33.º, n.º 1, do CPP, pelo que bem andou ao remeter o processo, imediatamente, ao tribunal que no seu entender é competente, em razão do território, para o julgamento da vertente causa penal.
Não aceitando o tribunal criminal do Porto a competência relativa que lhe foi atribuída pelo de Lisboa e tendo-se declarado territorialmente incompetente, surgiu o conflito negativo de competência, a denunciar e resolver através do procedimento disciplinado nos arts. 34.º a 36.º do CPP.
Conclui-se, assim, que a decisão do Tribunal central criminal de Lisboa que declarou a incompetência, em razão do território não tinha de aguardar pelo trânsito em julgado para remeter o processo ao tribunal a que atribuiu a competência, não admitindo recurso.
d) a primeira notícia dos crimes:
Questão diversa, pertinentemente aventada, mas não devidamente considerada na decisão do Juízo central criminal do Porto, é a de saber se a competência territorial para o julgamento neste processo não cabe ao juízo central criminal de Vila do Conde por ter sido na respetiva circunscrição que foi apresentada, em 20.10.2014, - (anteriormente à instauração do processo em epigrafe) denúncia que originou a abertura, nos serviços do Ministério Público de Matosinhos, do inquérito com o NUIPC 1523/14.0T9MTS que constitui o apenso A1, destes autos: Diversamente da denúncia que foi apresentada na PGR que não deu lugar à abertura de inquérito.
e) o conflito:
Conforme estabelece a lei, o tribunal pode conhecer oficiosamente da sua própria competência como ocorreu no caso pelos tribunais em dissídio e pode declarar-se incompetente, na fase de julgamento, até ao início da respetiva audiência - art. 32.º do CPP. No caso, a audiência ainda não foi declarada aberta.
No caso, dois tribunais de 1.ª instância, especializados em matéria criminal e funcionalmente competentes para a fase de julgamento em processo penal, recusam a competência própria para esse efeito, atribuindo-a ao outro.
Tal como se apresenta “concebido” o conflito, a declaração de incompetência territorial foi conhecida, oficiosamente e tempestivamente declarada pelos tribunais em dissídio. Conforme estabelece a lei, o tribunal pode conhecer da sua própria competência, oficiosamente ou mediante requerimento dos sujeitos processuais e pode declarar-se incompetente, em razão do território até ao início do debate instrutório, havendo instrução ou até ao início da audiência, tratando-se de tribunal de julgamento – art.º 32.º n.º 2 al.ªs a) e b) do CPP.
Porque os tribunais em conflito, - embora sejam de 1.ª instância -, pertencem a circunscrição de diferentes tribunais da Relação - um à de Lisboa, o outro à do Porto -, é ao Presidente da secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça que, nos termos do art. 11.º. n.º 6, al. a), do CPP, compete resolver o vertente conflito negativo de competência territorial.
Os tribunais em confronto invocam as mesmas normas adjetivas para amparar a declaração da respetiva incompetência em razão do território: ademais da conexão objetiva processualmente relevante, o do Porto, ampara a sua decisão apelando ao art. 21.º, do CPP; o de Lisboa invocou o art. 21.º, n.º 1, do CPP.
e) critérios da competência territorial:
“A competência em processo penal - a cada crime corresponde um processo para o qual é competente o tribunal predeterminado em função das regras sobre competência material, funcional e territorial - é, por princípio, unitária, respondendo a exigências precisas de determinação prévia do tribunal competente, para prevenir a manipulação avulsa ou arbitrária de competência em contrário do respeito pelo princípio do juiz natural”6, com estatuto supra legal firmado no art.º 32.º n.º 9 da Constituição da República.
O objeto do processo penal é definido pela acusação e/ou pela pronúncia. Que devem incluir, sempre que possível, o lugar da prática dos factos imputados ao arguido.
O local onde o crime foi cometido, não sendo relevante para a verificação da factualidade típica, é o referencial fáctico para aplicação do regime normativo que rege sobre a determinação da competência territorial do tribunal de julgamento.
O critério geral da competência territorial do tribunal para o julgamento das causas penais é o locus delicti commissi ou, na expressão do legislador, aquele com jurisdição no local “onde se tiver verificado a consumação” – art. 19.º do CPP.
O crime cometido por ação considerando-se praticado tanto no lugar em que o agente atuou como naquele em que o resultado típico ou o resultado não compreendido no tipo se produzir – art. 7º n.º 1 do Cód. Penal.
Quanto ao momento considera-se praticado quando o agente agiu independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido – art. 3º do CPP.
Mas, a realização de todos os elementos do crime pode, em alguns tipos de crime, não coincidir com o momento em que a ação é perpetrada e em outros o crime consuma-se por uma pluralidade de atos sucessivos ou reiterados ou por ato que se prolonga no tempo.
Com frequência, o mesmo agente comete no mesmo ou em diferentes locais, vários crimes, objetiva ou subjetivamente, conexionados.
E, não raramente, a acusação e/ou a pronúncia omitem a indicação do local da prática dos factos constitutivos ou do último ato de execução do crime ou crimes imputados ao arguido.
Não constando da acusação ou da pronúncia o local da ocorrência dos factos constitutivos do crime ou crimes imputados ao arguido não pode o tribunal, para ajuizar da sua competência territorial ou para a atribuição da mesma a outro, pesquisar em autos ou termos do processo dados ou factos que aquelas peças nucleares omitiram.
Omissão que não permite ao tribunal de julgamento saber então em que circunscrição judicial se consumou o crime ou crimes imputados ao arguido.
O legislador, prevendo que assim possa suceder, estabeleceu critérios específicos para predeterminar o tribunal territorialmente para conhecer da causa penal nessas situações.
Quando ao arguido é acusado ou pronunciado no mesmo processo por um concurso efetivo de crimes, o legislador sobrepôs, ao critério geral - consagrado no art.º 19.º n.º 1 do CPP - o regime da conexão subjetiva e/ou objetiva, de modo que num só processo se julguem todos os crimes cometidos pelo/s mesmo/s arguido/s ainda que realizados e consumados em locais pertencentes à circunscrição de diferentes tribunais.
“Trata-se de uma opção legislativa na base da qual se surpreende sempre a conveniência da Justiça. Ou porque há entre os crimes uma tal ligação que se presume que o esclarecimento de todos será mais fácil ou mais completo quando processados conjuntamente, evitando-se possíveis contradições de julgados e realizando-se consequentemente melhor justiça, ou porque o mesmo agente responde por vários crimes e é conveniente julgá-los a todos no mesmo processo até para mais fácil e melhor aplicação da punição do concurso de crimes (art.º 77.º do Código Penal)”.
f) crime determinante da competência:
No caso, os arguidos foram acusados e pronunciados pela prática, em coautoria e em concurso efetivo, de um crime de manipulação de mercado, p. e p. pelo artigo 379° n° 1, com referência aos artigos 135°, 149° e 243º, todos do Código dos Valores Mobiliários, e de um crime de burla qualificada p. e p. pelos artigos 217.°, n.º 1, 218.°, n.ºs 1 e 2, al. a), por referência ao artigo 202.° al. b), todos do Código Penal.
No que para aqui releva, os coarguidos vêm acusados de um concurso de dois crimes sendo que, como notam os tribunais em dissídio, o mais gravemente punido é o crime de burla qualificada, com a pena de 2 a 8 anos de prisão.
Em apertada síntese, os coarguidos vêm pronunciados de terem planeado e executado aquele aumento de capital do BES de forma a induzir em erro os potenciais subscritores, mediante a divulgação intencional de informação inverídica e incompleta. Em particular, teriam omitido passivos relevantes do universo GES, designadamente da Espírito Santo International (ESI), bem como os riscos inerentes à exposição financeira do BES ao referido grupo económico. Paralelamente, os relatórios financeiros apresentados ao mercado teriam sido manipulados, com o propósito de transmitir uma aparência de estabilidade e solvência que não correspondia à realidade.
De terem promovido de forma extensa e sistemática o referido aumento de capital, através de apresentações dirigidas a investidores institucionais e de declarações públicas veiculadas pela comunicação social.
De que tal atuação logrou os efeitos pretendidos junto dos investidores, tendo-se verificado, conforme descrito no artigo 4399.º e no anexo digital que, entre os dias 27 de maio e 9 de junho de 2014, no âmbito da Oferta Pública de Subscrição, foram subscritas 1.607.033.212 novas ações do BES, por um total de 23.736 investidores, correspondendo a um montante global de €1.044.571.587,80.
Da narração fáctica da acusação e da pronúncia resulta que o crime de burla qualificada imputada aos coarguidos, consumou-se com a mencionada subscrição de ações, mediante o pagamento do referido montante por parte dos investidores, no período compreendido entre 27 de maio e 9 de junho de 2014.
O crime de burla previsto no art. 217.º, n.º 1, do Código Penal é um crime de dano que se consuma com a produção de um efetivo prejuízo no património do sujeito passivo, e um crime de resultado cortado, na medida em que a sua consumação não exige a verificação do correspondente enriquecimento por parte do agente, bastando-se com o empobrecimento do lesado .
Assim, a sua consumação verifica-se no local onde é levado a cabo o ato gerador do prejuízo patrimonial da vítima. Em termos dogmáticos, corresponde ao momento em que os bens, valores ou direitos saem da esfera de disponibilidade fáctica do lesado, consumando-se, portanto, o crime nesse local.
Mas, no caso, atenta a considerável pluralidade de ofendidos, pelos termos da acusação e pronuncia não é possível determinar, com precisão, o local da consumação do crime de burla qualificada nem tampouco determinar em que localidade ocorreu o último ato da sua execução.
Consequentemente, aqui, não tem préstimo o critério geral – do n.º 1 - nem os subcritérios do art. 19º, nos n.ºs 2 e 3, do CPP.
g) critério da al.ª c) do art. 28.º do CPP:
Restando o critério estabelecido para os casos em que, por omissão na acusação e na pronúncia -, da indicação geográfica do local da consumação ou do último ato de execução - e tratando-se de um concurso em que um deles, o crime de burla qualificado imputado à/ao arguida/o é, na economia da acusação e da pronúncia, de localização plurilocalizada mas sem que venha indicado o sítio onde ocorreu o último ato de execução..
Prevendo situações como esta e não havendo arguidos presos à ordem do processo, o legislador, instituiu critérios para a atribuição da competência territorial do tribunal com jurisdição na área onde primeiro tiver havido notícia do crime.
Critério supletivo que está consagrado para diversas situações, como sucede com as normas dos art.ºs 20º n.º 3, 21º n.º 2, 22º n.º 1, 28º al.ª c) e 264º n.º 2, todos do CPP, precisamente para contornar as dificuldades práticas que possam advir da aplicação dos critérios fundados na regra do locus delitci comissi (art.º 19º do CPP) essencialmente destinados a fixar a competência territorial do tribunal para o julgamento de apenas um crime, quer a consumação seja instantânea ou ocorra por atos sucessivos ou ainda por atos que se prolongam no tempo.
Pelo que, vindo os coarguidos pronunciados pela prática, em concurso efetivo de dois crimes, dos quais, repete-se, o mais gravemente punido é o crime de burla qualificada e que vem conexionado com várias áreas territoriais, a competência para a fase de julgamento do processo pertenceria, segundo a regra basilar do locus delicti comissi, a qualquer dos tribunais dessas áreas territoriais, preferindo aquela onde primeiro houve notícia do crime - art. 21.º, n.º 1, do CPP.
O CPP distingue entre a “notícia do crime” e a “aquisição da notícia do crime” por parte do Ministério Público –art.º 241.º do CPP.
No caso de denúncia – que aqui importa considerar – a notícia do crime ocorre quando o denunciante comunica os factos às autoridades competentes, seja ao Ministério Público, a outra autoridade judiciária ou a um órgão de polícia criminal, por qualquer dos meios legalmente previstos – cfr. artigo 244.º do CPP.
Quando a denúncia é apresentada a entidade diversa do Ministério Público, deve ser-lhe transmitida no mais curto prazo, nunca superior a 10 dias – artigo 245.º do CPP.
Deste modo, a notícia do crime corresponde ao momento inicial de comunicação dos factos, ao passo que a aquisição da notícia do crime corresponde ao momento em que o Ministério Público toma conhecimento dessa comunicação.
Com a exceção dos crimes de natureza particular (nos quais o ofendido, ademais da queixa e da constituição de assistente, tem também de deduzir acusação), é ao Ministério Público que cabe, em exclusividade (nos crimes semipúblicos mediante prévia queixa do ofendido), “exercer a ação penal orientado pelo princípio da legalidade” – art.º 4 n.º 1 al.ª d) do EMP.
Nos termos do art.º 53.º, n.º 2 do CPP, “compete em especial ao Ministério Público:
a) Receber as denúncias, as queixas e as participações e apreciar o seguimento a dar-lhes;
b) Dirigir o inquérito;
c) Deduzir acusação e sustentá-la efectivamente na instrução e no julgamento.”
“A notícia do crime é prévia, exterior ao procedimento, pois que este só se inicia com o ato de promoção do Ministério Público, mas sendo exterior, pré-procedimental, é um ato processual de grande importância.”7
A regra, decorrente do princípio da legalidade, de que “a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito”, admite exceções – art. 262.º n.º 2 do CPP. Ademais das denúncias de em que o denunciante não é titular do direito de queixa e nos crimes particulares em que não pede logo a constituição de assistente e das denúncias anónimas, também não dão sempre lugar à abertura de inquérito comunicações de determinadas entidades impostas para prevenção da criminalidade económica e financeira e do terrorismo que no DCIAP se tramitam como averiguações preventivas.
E, em bom proceder, a notícia de um crime apresentada ou endereçada ao Ministério Público de localidade diferente daquela onde tiver sido cometido deve por este ser transmitida, imediatamente e sem mais, ao Ministério Publico material e/ou territorialmente competente nos termos do art.º 264.º do CPP.
O processo penal só existe juridicamente quando o Ministério Público declara aberto o inquérito para investigar da existência de um crime de que teve conhecimento ou recebeu a correspondente notícia. Efetivamente, constituindo o inquérito a fase preliminar do processo (a primeira, segunda, facultativa, é a instrução) deve considerar-se proposta a ação penal para efeitos da definição da competência, quando o inquérito é instaurado, conforme temos decidido, aliás, em consonância com a jurisprudência deste Supremo Tribunal.
Entre outras decisões – cerca de uma dezena não publicadas -, na resolução de conflito negativo de competência surgido no processo n.º 180/23.7GABBR-A.L1.S1, do sumário da decisão de 8.03.2025, publicada, consta: -----
“IV. A notícia do crime adquire-se com a abertura do inquérito nos serviços do Ministério Público.”8
No AFJ n.º 2/2017, sustentou-se: “Efectivamente, como refere Figueiredo Dias o processo penal, na perspectiva jurídica que assume – (…) -, surge como uma regulamentação disciplinadora da investigação e esclarecimento de um crime concreto, que permite a aplicação de uma consequência jurídica a quem, com a sua conduta, tenha realizado um tipo de crime. Nesta medida constitui ele, de um ponto de vista formal, um «procedimento» público que se desenrola desde a primeira actuação oficial tendente àquela investigação e esclarecimento (…).
“O conceito de relação jurídica processual penal terá então, ao menos, o efeito útil de dar a entender, com nitidez, que com o início do processo penal se estabelecem necessariamente relações jurídicas entre o Estado e todos os diversos sujeitos processuais se bem que a posição jurídica destes seja a mais diversa e diferenciada e que dali nascem para estes direitos e deveres processuais...”
E, em voto de vencido (do Conselheiro Manuel Matos, também da 3.ª secção criminal), sintetizou-se: -----
“Integrando o inquérito uma fase do processo, com a mesma dignidade da instrução, deve ser considerada proposta a ação para efeitos da definição da competência, quando o inquérito é instaurado.”
Pereira Madeira – emérito Presidente desta 3.ª secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça -na decisão de 5.01.2011 proferida em conflito negativo surgido no processo n.º 176/06.3EAPRT-B.P1.S1, expendeu(sumário): ----
I - Estando em causa na acusação, a prática de um crime conexionado com várias áreas territoriais, a competência para julgamento do feito pertence a qualquer dos tribunais dessas áreas territoriais, «preferindo o daquela onde primeiro tiver havido notícia do crime» - art.º 21.º, n.º 1, do CPP.
II - Para tal efeito, notícia do crime, é, apenas e só, o conhecimento que o Ministério Público adquire dos factos, pois que o procedimento criminal só se inicia com um acto do Ministério Público (art.ºs 48.º e 53.º, n.º 2, a), do CPP e art.º 219.º, n.º 1, da Constituição).
III - A participação entretanto feita a entidade diferente do Ministério Público, ainda que se trate de um órgão de polícia criminal, reveste a natureza de acto meramente instrumental relativamente ao momento relevante para desencadeamento da acção penal por quem de direito: o Ministério Público, após a notícia, directa ou indirecta que assuma do mesmo facto.”9
Em suma e como temos decidido, a instauração do inquérito, marca, para todos os efeitos, o início e, consequentemente a existência, do processo penal.
O legislador não pode ter querido e não seria razoável pensar que teve me mente que sempre que haja de recorrer-se aos critérios do art.º 21.º e 28.º al.ª c) do CPP, seja o denunciante – e o mesmo vale dizer-se para os OPCs -, a determinar o tribunal competente para o julgamento. O que sucederia se se interpretasse que a competência do tribunal de julgamento em vez de ser determinada pela abertura do inquérito – como entendemos -, se considerasse fixada pelo recebimento da denúncia ou pelo recebimento da notícia do crime.
h) onde primeiramente se abriu inquérito:
No caso sub judice, dos elementos com que vem instruído o vertente procedimento incidental, apura-se que a primeira denúncia foi entregue em mão, em 09-09-2014, por AA, na Procuradoria-Geral da República, em Lisboa. Aí recebida e tratada, aparentemente, como exposição (como inculca o E que antecede o número de entrada). Sendo certo que com base na mesma não foi aberto inquérito, nem aí, nem em qualquer outro serviço ou departamento do Ministério Público. Surge depois incluída no Inquérito com o NUIPC 6049/14 acima identificado, do qual veio a desentranhar-se por despacho da Procuradora da República que o dirigia, determinando que com a mesma se organizasse o Apenso A2.
Apura-se que, mediante denúncia apresentada por CC, o Ministério Publico no DIAP de Matosinhos, por despacho de 20.10.2014, determinou a abertura do inquérito que aí se autuou com o NUIPC n.º 1523/14.0T9MTS.
Inquérito que veio a ser incorporado no NUIPC 6049/14.9T9PRT e que por despacho da Procuradora da República que o dirigia foi, depois, desapensado para com o mesmo se constituir o Apenso A1.
Não é, pois, exato que a circunscrição onde primeiramente houve notícia do crime de burla qualificada com a correspondente abertura de inquérito tenha sido no Porto.
Embora o tribunal do Porto afirme, com a corroboração do Digno Procurador-Geral Adjunto, que foi em Lisboa – concretamente na PGR - que primeiramente houve notícia dos factos constitutivos do crime mais gravemente punido - a burla qualificada -, tal não é exato porque a denúncia que foi apresentada, em mão, não originado a abertura de inquérito, não está sequer identificada nos autos por um qualquer NUIPC (numero único de identificação do processo-crime).
Resta então a aplicação ao caso do critério residual da alínea c) do art. 28.º do CPP, segundo o qual, havendo conexão processual e imputação de concurso de crimes de execução plurilocalizada e sem que seja possível determinar onde ocorreu o último ato de execução, - concurso no qual um dos crimes assume maior gravidade -, e não havendo arguidos em prisão preventiva, a competência territorial atribui-se, de entre os diversos tribunais com competência territorial, àquele em que primeiramente houve notícia do mesmo crime com a legalmente imposta abertura do correspondente inquérito.
O critério residual da aquisição da notícia do crime funciona necessariamente conjugado com o corpo do artigo, regendo na repartição da competência quando, em caso de conexão, “os processos devessem ser da competência de tribunais com jurisdição em diferentes áreas”. Desnecessário será aclarar que aquela norma não serve para atribuir o processo a um tribunal que não tem competência para nenhum dos crimes do concurso que determinou a conexão processual.
Não tendo a denúncia apresentada na PGR originado a abertura de inquérito e verificando-se que o que primeiramente se instaurou foi nos serviços do Ministério Público de Matosinhos, na sequência da denúncia aí apresentada por um dos ofendidos – acima identificado -, conclui-se que a competência para a fase de julgamento neste processo cabe ao Juízo central criminal de Vila do Conde, por ter sido na sua circunscrição que a notícia do crime de burla qualificada primeiramente originou a abertura do processo criminal, com a instauração de um dos inquéritos que – por apensação -, incluem o vertente processo penal.
Bem que o tribunal do Porto, que até viu que assim havia sucedido, poderia ter chegado à mesma conclusão e, declarando-se incompetente em razão do território, ter atribuído essa competência ao tribunal central criminal de Vila do Conde, remetendo-lhe os autos.
Sucede que o Juízo central criminal de Vila do Conde não surge aqui em conflito, ao invés dos de Lisboa e do Porto que não só denegam a competência territorial própria como a atribuem ao outro.
Não obstante, nada nos impede de, adiantando serviço, decidir já da atribuição de competência territorial ao Juízo central criminal de Vila do Conde por aplicação do critério do art.º 28.º al.ª c) do CPP, uma vez que foi, conforme referido, na sua jurisdição que primeiramente houve notícia do crime de burla qualificada que é o mais gravemente punido do concurso de crimes pelos quais os coarguidos vêm acusados e pronunciados nestes autos.
Assim mesmo decidimos nos conflitos de competência n.ºs 54/22.9TELSB-A.S1, por decisão datada de 02-07-2024, e 47/17.8JAAVR-B.P1.S1, decisão datada de 18-06-2024.
i) dispositivo:
Pelo que, de conformidade com o exposto decido, nos termos do art. 36º n.º 1 do CPP, resolver o conflito negativo surgido nos autos, atribuindo a competência territorial para o processamento dos mesmos e o julgamento em 1ª instância, ao Juízo central criminal de Vila do Conde (para o qual deve remeter-se o processo).
O Presidente da 3ª secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça
Nuno Gonçalves
________
1. O despacho da Exma. Juíza de Instrução: “(…) remeta à distribuição para julgamento, em processo comum, com intervenção do Tribunal Colectivo”.
2. Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, p. 114.
3. Curso de Processo Penal, I, p. 211.
4. “Sujeitos Processuais Penais: O Tribunal”, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2015/2016, disponível em https://.apps.uc.pt/mypage/faculty/nbrandao/pt/003.
5. Acórdão do TC n.º 158/2003, Processo n.º 107/03, in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20030158.html.
6. Supremo Tribunal de Justiça, Acórdão de 06-10-2004, processo n.º 04P1139
7. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, p. 52, 2000.
8. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/ea71c7502549037880258c4b0058e282?OpenDocument
9. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/405c1af51da989c880257810004f4044?OpenDocument