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RENÚNCIA ABDICATIVA
RENÚNCIA DEVOLUTIVA
Sumário
I. O n.º 1 do artigo 2057.º do CCivil respeita à chamada renúncia abdicativa, ao passo que o respetivo n.º 2 refere-se à denominada renúncia devolutiva. II. No primeiro caso, ocorre um verdadeiro repúdio da herança com alienação gratuita da mesma, ao passo que na renúncia devolutiva verifica-se uma aceitação tácita da herança seguida da sua alienação. III. A alienação da herança exige sempre o concurso da aceitação do adquirente. IV. A situação em apreço constitui um caso de renúncia devolutiva: em escritura pública intitulada de «Renúncia “translativa” de herança», o declarante referiu que renunciava nos termos do n.º 2 do artigo 2057.º do Código Civil à herança de seu pai a favor de um dos seus sobrinhos, o qual declarou, entretanto, aceitar a herança, termos em que tal renúncia produziu efeitos.
Texto Integral
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I. RELATÓRIO.
Neste processo comum de declaração, o A., AA, demanda o R., BB, pedindo que se decrete a nulidade da escritura de renúncia translativa de herança outorgada em 06.11.2019, bem como se ordene o cancelamento de quaisquer registos efetuados pelo R. com aquela escritura.
Como fundamento do seu pedido, o A. alegou, em suma, que nos termos daquela escritura CC renunciou à herança de seu pai, DD, a favor do aqui R., seu sobrinho, sendo que à data aquela renunciante não tinha vontade livre e esclarecida.
Referiu também que a herança em causa foi aceite por CC em data anterior à indicada escritura de renúncia e que o R. não aceitou formalmente a herança.
O R. deduziu contestação, alegando, em resumo, que aquando da outorga da referida escritura de renúncia CC encontrava-se lúcida, tendo celebrado tal escritura de livre e espontânea vontade.
Referiu também que a apontada escritura é válida e o R. aceitou a renúncia em causa, termos em que concluiu pedindo que a ação seja julgada improcedente por não provada.
As partes juntaram documentos e arrolaram prova pessoal.
Foi dispensada a audiência prévia, proferido despacho saneador, identificado o objeto do litígio e indicados os temas da prova
Procedeu-se a julgamento.
O A. veio alegadamente ampliar o pedido, requerendo que venha a
«a) Decretar-se a final a nulidade da escritura outorgada, e ordenar-se o cancelamento de quaisquer registos efetuados pelo Réu que tiverem por base a escritura descrita em a).
b) Decretar-se a nulidade da escritura, por se encontrar ferida da aceitação do beneficiário, impedindo o Réu de registar quaisquer direitos sobre os imóveis pertencentes à herança de sua tia CC».
Tal ampliação foi admitida.
As partes alegaram por escrito, mantendo as suas posições anteriormente indicadas.
O Juízo Central Cível de Lisboa julgou a ação improcedente por não provada.
Inconformado com tal decisão, dela recorreu o A., o qual apresentou as seguintes conclusões:
«A) Por douta sentença, proferida a 28/03/2025, o Tribunal a quo, veio em súmula declarar a presente ação improcedente, uma vez que o Autor peticionou a nulidade da escritura de renúncia translativa da herança, outorgada a 6 de Novembro de 2019, no cartório do Dr. EE, sito na Localização 1 em Lisboa, quando, na sua perspetiva, a mesma padece de ineficácia: “Aceite a herança, ainda que tacitamente, já não é possível renunciar a ela, sendo, nesse caso, a declaração de renúncia ineficaz;” (…) Cremos que este é o vício que se verifica no caso e não a alegada nulidade que é defendida na petição inicial. (…) A falta de aceitação impede a perfeição do acto, por lhe faltar um dos elementos essenciais aos actos bilaterais. Sem a aceitação, temos apenas uma proposta, faltando a declaração negocial em que se adere. Pelos motivos expostos, concluímos que a escritura sub judice não padece dos vícios apontados, não estando ferida de nulidade, pelo que a ação será julgada improcedente.
B) O Tribunal a quo, considerou assim provada a alegação fáctica do Autor – em concreto a verificação de actos que comprovam a aceitação da herança, que impedem a sua renúncia translativa e a falta de aceitação da herança por parte do Réu - contudo, entendeu declarar a acção improcedente uma vez que o vício que o A. deveria ter apontado à referida escritura, seria a ineficácia e não a sua nulidade.
C) Ora, com a referida sentença o Recorrente não se conforma, uma vez que esta viola o artigo 5.º n.º 3 do CPC, o artigo 547.º do CPC, e o princípio da economia processual.
D) O pedido é o efeito jurídico que se pretende obter com a ação, sendo, juntamente com a causa de pedir, o seu objeto jurídico, o espaço dentro do qual o tribunal é chamado a dirimir os interesses conflituantes, e a causa de pedir consiste no facto jurídico concreto ou no complexo de factos jurídicos concretos, realmente ocorridos, que consubstanciam a relação material controvertida invocada pelo autor na petição inicial, dos quais procede o efeito jurídico pretendido, a pretensão por si deduzida em juízo.
E) In casu, a exposição fáctica elencada pelo Autor na petição inicial, evidência uma pretensão, cujos contornos e alcance, resultam claros da mesma, sem necessidade de conjecturar acerca da verdadeira intenção do autor quando resolveu solicitar a intervenção judicial.
F) Ora os factos jurídicos concretos invocados pelo Recorrente foram acolhidos pelo Tribunal, que, à semelhança deste, também considerou que não só não pode ocorrer a renúncia translativa de uma herança já aceite, como ainda que a renúncia operada na escritura em causa nestes autos, está ferida da aceitação do beneficiário.
G) Resulta também dos autos, clareza e inteligibilidade na tutela solicitada pelo Autor, pelo que não se compreende que o Tribunal, tenha dado como provada a factualidade invocada pelo A. - factualidade essa que visava abalar a vigência da escritura em causa nos autos - e que a final tenha pugnado pela improcedência da acção por uma imprecisão no pedido, ou um deficiente enquadramento normativo.
I) Se é certo que o princípio do pedido domina o processo privado, impedindo que o tribunal decida para além ou diversamente do que foi pedido, isso “não obsta a que profira uma decisão que se inscreva no âmbito da pretensão formulada” (ac. STJ, de 11.02.2015, Proc. 607/06.2TBCNT.C).
J) É, por isso, de admitir “o suprimento ou correcção de um deficiente enquadramento normativo do efeito prático-jurídico pretendido pelo autor ou requerente, admitindo-se a convolação do juiz para o decretamento do efeito jurídico ou forma de tutela jurisdicional efectivamente adequado à situação litigiosa” (Lopes do Rego, O princípio do dispositivo e os poderes de convolação do juiz no momento da sentença, in “Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I, Coimbra Editora, 2013, pág. 794).
L) Em circunstância idêntica (pese embora em sede de uma impugnação pauliana), escreve Antunes Varela, RLJ, 122, p. 255) e o STJ, em Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 3/2001, firmou jurisprudência no sentido de que «Tendo o autor, em acção de impugnação, pedido a declaração de nulidade ou a anulação do acto jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em relação ao autor (nº 1 do artigo 616º do Código Civil), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declara tal ineficácia, como permitido pelo artigo 664º do Código de Processo Civil».
M) Assim, tendo o Autor peticionado a nulidade do negócio celebrado, com os fundamentos aduzidos na Pi - (acolhidos pelo Tribunal) e tratando-se, na perspetiva do Tribunal de um negócio ineficaz, deveria o tribunal ter corrigido oficiosamente esse erro e declarar a ineficácia, nos termos do art. 5.º, n.º 3 CPC.
N) Ainda que assim não se entenda, se o Tribunal entendeu que a concreta alusão à nulidade e não "ineficácia", afetaria irremediavelmente a pretensão do Autor (não obstante ter dado como provada a factualidade em que assenta o pedido) poderia, e deveria, ter adequado formalmente o processo, adaptando o conteúdo do pedido ao fim que visava atingir, assegurando um processo equitativo, o que se invoca nos termos e para os efeitos do artigo 639 n.º 2 als. a) e b) e do artigo 547.º do CPC:
O) Na prática, significa assim que, a presente acção teria tido um desfecho diametralmente oposto (a procedência) se o Autor tivesse substituído uma única palavra, em concreto, a palavra "nulidade" pela palavra "ineficácia".
P) Com o devido respeito o Autor defende que o Tribunal deveria ter corrigido esse erro oficiosamente, ou em última ratio ter convidado o Autor a rectificar, a mera deficiência na formulação dos pedidos, constituindo esta postura do tribunal, resposta adequada ao princípio da economia processual e ao da prevalência das decisões de mérito sobre as formais.
Q) Ora, como tem vindo a ser considerado pela Jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, embora o pedido formulado pelo autor na petição inicial deva, em regra, ser feito na conclusão, tal não obsta a que possa também ser expresso na parte narrativa do articulado, desde que se revele com nitidez a intenção de obter os efeitos jurídicos pretendidos (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 10-09-2023 (disponível em www.dgsi.pt, processo n.º 6/07.9TBPNH.C1).
R) Segundo o entendimento corrente, dentro dos atos das partes distinguem-se os atos constitutivos (que produzem, por eles mesmos, efeitos em juízo) e os atos postulativos (através dos quais uma parte formula ao tribunal um pedido de conhecimento de uma questão processual ou material, e cujos os efeitos produzidos no processo decorrem da decisão que o juiz venha a proferir sobre tal questão e não diretamente do ato da parte) - cf. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, in https://blogippc.blogspot.com/2021/01/o-que-e-um-acto-postulativo.html, entrada de 30-01-2021.
S) Das mencionadas normas do Código de Processo Civil, extrai-se a necessidade de ponderar quer o real sentido das declarações do autor constantes da petição inicial (a apurar pelos mecanismos de cooperação processual previstos, designadamente, nos artigos 7.º, n.º 2 e 590.º, n.º 4, da Lei Processual Civil), quer a interpretação que delas fez o réu (cf. artigo 186.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), parâmetros interpretativos esses que são eco dos plasmados nas normas substantivas contidas no artigo 236.º do Código Civil (em cujo n.º 1 se prevê que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, estabelecendo-se, no n.º 2, a relevância da vontade real do declarante sempre que o declaratário a conheça).
T) In casu, interpretados os factos alegados pelo A. quer na petição inicial, quer no articulado de aperfeiçoamento (e que o Tribunal acolheu na douta sentença) forçoso será concluir que o pedido vertido na alínea a) e b) da petição e do articulado superveniente, deverá aqui ser analisado como tem vindo sempre a ser interpretado pelo Tribunal e pelas partes ao longo de todo o desenvolvimento do pleito: o A. entende que a escritura em causa, não pode produzir efeitos no nosso ordenamento jurídico.
U) Em súmula, tendo ocorrido, na perspetiva do Tribunal, um deficiente enquadramento normativo no pedido formulado, este poderia e deveria ter sido convolado, decretando-se o efeito jurídico ou forma de tutela jurisdicional mais adequada à situação, nos termos do artigo 5 n.º 3 do CPC.
V) Tendo nessa medida a douta sentença ora em crise, violado o artigo 5 n.º 3 do CPC, e o princípio da economia processual, uma vez que se vê o Recorrente forçado a propor nova acção, com os mesmos fundamentos, mas substituindo apenas a palavra nulidade, pela palavra ineficácia,
Termos em que, e nos mais a suprir por V. Ex.ª, requer a V. Exas a revogação da douta sentença, substituindo-se por outra que declare a presente acção procedente, decretando-se a ineficácia da escritura de renúncia translativa de herança, outorgada a 6 de novembro de 2019, no Cartório Notarial do Dr. EE na Localização 1, Lisboa».
O R. não contra-alegou.
Colhidos os vistos, cumpre ora apreciar a decidir. II. OBJETO DO RECURSO.
Atento o disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPCivil, as conclusões do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de questões que devam oficiosamente ser apreciadas e decididas por este Tribunal da Relação.
Nestes termos, atentas as conclusões deduzidas pelo Recorrente, não havendo questões de conhecimento oficioso, está em causa tão-só apreciar e decidir se a intitulada escritura «renúncia “translativa” de herança» a que se referem os autos padece de vício que coloque em crise a sua validade e eficácia, bem como dos efeitos jurídicos decorrente de tal vício, se tal for o caso.
Assim. III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
A factualidade a considerar na motivação de direito é a que foi dada como provada pelo Tribunal recorrido, a qual não foi impugnada em sede recursiva, a saber:
1) No dia 06.11.2019, EE, notário do cartório sito na Avenida 1, compareceu na morada sita na Estrada 2, a fim de outorgar a escritura de “Renúncia Translativa de Herança”, junta à petição inicial como doc. n.º 1;
2) Nos termos da aludida escritura, CC, natural da freguesia de Olaia, concelho de Torres Novas, com nif ..., residente na morada em que ocorreu a outorga da escritura id. em 1), renunciou nos termos do n.º 2 do artigo 2057.º do Código Civil à herança de seu pai FF, a favor de um seu sobrinho BB, R. nestes autos;
3) Na escritura é feita menção de que CC não pode assinar, sem indicar o motivo concreto, encontrando-se aposta nela uma impressão digital;
4) CC faleceu no dia 17.07.2020, no estado de solteira e sem filhos;
5) AA e BB, respetivamente A. e R. nestes autos, sobrinhos de CC, foram habilitados seus herdeiros, na escritura de habilitação outorgada em 28.09.2021 e junta à petição inicial como doc. n.º 2;
6) Por escritura de “Habilitações”, outorgada em 24.05.1993, no Cartório Notarial de Torres Novas, junta à pi como doc. n.º 3, foram habilitados como herdeiros de FF, falecido a 261 de dezembro de 1989, no estado de viúvo, as suas filhas: CC, tia do A. e R., e GG, mãe do A. e do R;
7) A herança de FF integrava 1/2 do prédio sito na Avenida 3, em Lisboa, freguesia de Santa Engrácia, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o n.º ... da freguesia de Santa Engrácia;
8) No ano de 2007, o prédio referido em foi constituído em propriedade horizontal, resultando na constituição de 15 frações, identificadas das letras “A” a “P” (cfr. Ap. 19 de 2007/11/15 da certidão predial junta à petição como doc. n.º 6);
9) Pela Ap. 7 de 1994/06/20 foi registada a aquisição, por sucessão legítima, a favor dos seguintes sujeitos ativos:
- 1/2 a favor de HH, II, JJ, KK, LL e;
- 1/2 a favor de CC e GG, em comum e sem determinação;
10) Desde 1994 e até ao seu óbito, CC recebeu a sua parte das rendas das frações que integram o prédio id. em 7) e que se encontram arrendadas;
11) Através de escritura pública outorgada em 29.03.2001, no 1.º Cartório de Lisboa, em conjunto com os demais proprietários, CC, requereu um empréstimo bancário para fazer face a obras de que o prédio carecia;
12) Com os demais proprietários, por escritura pública outorgada no Cartório Notarial de MM, a 11.10.2007, no ano de 2007, CC constituiu o prédio id. em propriedade horizontal;
13) Após a outorga da escritura id. em 1) e após o óbito de NN, o R. remeteu uma carta para a morada sita em pé de Cão, Concelho de Torres Novas, contendo o seguinte teor:
“Exmas senhora
Vimos pelo presente formalmente comunicar a aceitação da herança aberta por óbito de FF meu Avó, falecido em 27/12/1989, em pé de Cão, de que V.Ex.ª é legitima herdeira e que por um acto próprio de disposição me foi transmitida. Por essa a sua vontade aceito-a em toda a sua plenitude.
Lisboa, 19 de Fevereiro de 2020”;
14) O R., no dia 10.12.2019, efetuou a participação da renúncia efetuada pela sua tia a seu favor à Autoridade Tributária.
*
O Tribunal recorrido deu como não provada que:
i) CC, nos últimos tempos da sua vida, não se encontrava na plenitude das suas faculdades, quer físicas ou mentais, e por essa razão não assinou a escritura id. em 1) dos factos provados;
ii) CC ao celebrar a referida escritura estava tolhida da sua liberdade;
iii) O R. se apropriou de cartões bancários, cheques, dinheiros ou pertences da sua tia, CC. IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
Está em causa a validade e eficácia da escritura pública intitulada «Renúncia “Translativa” de Herança», que constitui documento n.º 1 junto com a petição inicial e é diretamente referenciada nos factos provados n.ºs 1, 2 e 3.
Em sede recursória, o A., aqui Recorrente, entende, basicamente, que tal «renúncia» é inválida e ineficaz, uma vez que a renunciante aceitou anteriormente a herança em causa, de FF, seu pai, não podendo depois renunciar a tal herança, cingindo a tal o objeto do recurso.
Vejamos.
1. Com a epígrafe «Caso de aceitação tácita», o artigo 2057.º, n.ºs 1 e 2, do CCivil dispõe que:
«1. Não importa aceitação a alienação da herança, quando feita gratuitamente em benefício de todos aqueles a quem ela caberia se o alienante a repudiasse.
2. Entende-se, porém, que aceita a herança e a aliena aquele que declara renunciar a ela, se o faz a favor apenas de algum ou alguns dos sucessíveis que seriam chamados na sua falta».
O n.º 1 respeita à chamada renúncia abdicativa, ao passo que o n.º 2 refere-se à denominada renúncia devolutiva.
No primeiro caso, ocorre um verdadeiro repúdio da herança acompanhada da sua alienação gratuita a favor de todos aqueles que beneficiam do repúdio e na exata proporção legal supletivamente prescrita.
Na renúncia devolutiva verifica-se uma aceitação tácita da herança seguida da sua alienação a favor apenas de algum ou alguns sucessíveis do renunciante ou em proporção diversa à legal e supletivamente prescrita.
Nestes termos, a epígrafe do preceito do artigo 2057.º refere-se manifestamente tão-só à indicada renúncia devolutiva prevista no respetivo n.º 2, pressupondo, pois, sempre uma aceitação da herança.
Como referia Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, volume II, edição de 1990, páginas 29 e 30, nota 572, “[n]o n.º 1 do art. 2057.ºdo Código Civil, considera-se também que não «importa» aceitação a chamada renúncia abdicativa, quando o chamado aliena gratuitamente a herança «em benefício de todos aqueles a quem ela caberia se o alienante a repudiasse», tudo se passando como se tivesse havido repúdio, defendendo-se o alienante contra si mesmo e afastando as consequências de uma dupla transmissão (…)”.
“Diferentemente, considera-se haver uma aceitação tácita presumida (cfr. art. 350.º do CCiv) e de alienação posterior na denominada renúncia devolutiva quando o chamado «declara renunciar a ela, se o faz a favor apenas de algum ou alguns dos sucessíveis que seriam chamados na sua falta», o que se justifica, pois nesse caso o chamado faz infletir por força da sua vontade o curso da transmissão sucessória”.
Igualmente referia Carlos Pamplona Corte-Real, Direito da Família e das Sucessões, volume II – Sucessões, edição de 1993, página 275, «(…) o impasse técnico suscitado pela renúncia abdicativa prevista no art. 257º, nº 1, (…) parece talvez superável se se entender que, dada a identidade, do ponto de vista formal, exigida para a alienação da herança e para o repúdio, o art. 2057º, nº 1, seria permissivo de um repúdio implícito ou tácito, ou seja, de uma exceção à regra do art. 2063º (…)».
«Já o art. 2057º, nº 2, reportando-se à renúncia devolutiva (…) envolveria, naturalmente, uma aceitação tácita».
Ainda no mesmo sentido, refere Cristina Araújo Dias, Código Civil Anotado, Livro V, Direito das Sucessões, edição Almedina, 2022, página 76, em anotação ao artigo 2057.º do CCivil, que «[c]onsidera o n.º 1 do artigo que havendo alienação da herança a favor daqueles a quem ela caberia se o chamado e alienante a tivesse repudiado tal não importa aceitação da herança. Não se considera, assim, haver aqui uma declaração tácita de aceitação da herança e subsequente alienação da mesma, tratando a lei tal ato como sendo repúdio».
«(…) Já se considera, porém, que há aceitação e subsequente alienação da herança quando o chamado renúncia a ela a favor apenas de algum ou alguns dos sucessíveis que seriam chamados na sua falta (n. 2). Repare-se que se trata de renúncia e não propriamente repúdio. Na verdade, havendo repúdio seriam chamados todos os sucessíveis e não apenas alguns, como pretende o renunciante (…)».
2. Na situação vertente.
Conforme decorre dos factos provados 1, 2 e 3, em escritura pública intitulada de «Renúncia “translativa” de herança», CC declarou que renunciava nos termos do n.º 2 do artigo 2057.º do Código Civil à herança de seu pai FF, a favor de um seu sobrinho, BB, R./Recorrido nos presentes autos.
Ou seja, está em causa uma renúncia devolutiva e, pois, uma aceitação tácita da herança de FF por parte da renunciante, acompanhada de proposta de alienação a favor exclusivamente de um dos sucessíveis da mesma, o aqui R./Recorrido.
Diversamente do alegado pelo Recorrente a renúncia devolutiva em causa não corresponde a um repúdio da herança, antes pressupõe uma aceitação tácita desta com alienação da mesma a favor de apenas um dos sucessíveis.
Consequentemente, inexiste qualquer contradição entre a renúncia devolutiva e os atos de aceitação da herança de FF por parte de CC indicados como provados em 9, registo a seu favor da aquisição de metade do indicado prédio sito em Lisboa, em comum e sem determinação de parte, 10, recebimento de parte das rendas do mesmo prédio, 11, celebração de mútuo para obras no mesmo prédio, e 12, constituição da propriedade horizontal relativamente ao mesmo prédio.
Pelo contrário, todos os apontados factos exprimem uma aceitação tácita da herança de FF por parte de CC, estando, pois, em consonância com a renúncia devolutiva decorrente da referida escritura de «Renúncia “translativa” de herança» a que se referem os autos.
3. Na matéria, convirá distinguir o repúdio da herança em termos técnico-jurídicos da renúncia devolutiva da herança, situação esta considerada no referido artigo 2057.º, n.º 2, do CCivil e expressamente referenciada na escritura pública de «Renúncia “translativa” de Herança» em causa.
Tal como a aceitação, o repúdio é também irrevogável, conforme artigos 2061.º e 2066.º do CCivil.
Contudo, enquanto no repúdio o chamado responde negativamente ao chamamento sucessório e é considerado como não chamado, na renúncia devolutiva o chamado aceita o chamamento e aliena a sua herança a favor apenas de algum ou alguns dos sucessíveis que seriam chamados na sua falta ou em proporção diversa à legalmente prescrita em termos supletivos.
Como se refere Parecer n.º RP 212/2011 SJC-CT do Conselho Técnico do Instituto dos Registos e Notariado, aprovado em 20.04.2012, homologado em 23 de maio seguinte, «a renúncia em causa [translativa de herança] não consiste de facto em verdadeiro repúdio – ato unilateral, não recipiendo, irrevogável, cuja ocorrência faz funcionar, quando se verifiquem os respetivos pressupostos, o instituto da representação sucessória (CCivil, arts. 2039.º e 2043.º; cfr. CN, art. 46.º/3) – e, portanto, renúncia abdicativa; trata-se, antes, de repúdio in favorem, e, portanto, de renúncia com eficácia translativa, devolutiva ou atributiva. A hipótese não é a do repúdio tratado nos arts. 2062.º e ss. do CCivil, senão a que expressamente se encontra prevista no n.º 2 do art. (…) 2057.º».
«Dispõe na verdade este preceito que se entende “que aceita a herança e a aliena aquele que declara renunciar a ela, se o faz a favor apenas de algum ou alguns dos sucessíveis que seriam chamados na sua falta”. Como nota FRANCISCO PEREIRA COELHO, in “A Renúncia Abdicativa no Direito Civil”, 1995, p. 34, “o efeito que se produz aqui, não é naturalmente apto a produzi-lo um puro repúdio sucessório”, posto que “só mediante uma aceitação inicial da herança, e a sua subsequente alienação em favor de algum ou alguns dos ‘sucessíveis que seriam chamados na sua falta’, é que é possível esse específico efeito de atribuir a herança, ou um quinhão dela, a pessoas diversas dos beneficiários normais do repúdio.”»
«Estamos portanto em presença de uma renúncia que, pese embora sê-lo, envolve uma aceitação tácita presumida da herança por parte do sucessor que a faz. (…) Mas importa perceber em bons termos o regime aí estatuído, em particular no que toca à produção do efeito da alienação (isto é, a transmissão do direito à herança pelo renunciante e a correspetiva aquisição desse direito pelo beneficiário especificado/individualizado no ato de renúncia). Continuando com F. PEREIRA COELHO, (…) “Se a renúncia aí [no art. 2057.º/2] hipotizada é feita de forma unilateral, como um comum repúdio – e é essa hipótese aquela que se afigura tida em consideração pela lei –, então é difícil (será aliás incorreto) vir dizer-se que essa renúncia importa “aceitação” e “alienação” da herança”, uma vez que “qualquer forma de alienação, gratuita ou onerosa, exige o concurso da aceitação do adquirente, ou seja, exige a forma contratual”, e assim é que, “Na melhor das hipóteses, o que se poderá dizer, em bom rigor, é que, na renúncia unilateral em favor daquelas pessoas, se entende haver aceitação da herança e proposta de alienação da herança aceite – proposta que, dirigida àquelas pessoas, naturalmente tem de ser por elas aceite para que o respetivo contrato de ‘alienação’ se perfaça.” (…)».
Ora a aceitação da proposta de alienação da herança configura-se inequívoca na situação em apreço, conforme factos provados n.ºs 13 e 14: em escrito, o R./Recorrido declarou aceitar a herança por óbito do seu avô FF que lhe havia sido alienada a seu favor pela sua tia CC, sendo que em data anterior ao decesso desta participou à Autoridade Tributária tal renúncia devolutiva, o que não pode deixar de ser considerado como uma aceitação pelo R./Recorrido da proposta de alienação da herança aceite pela sua falecida tia, CC e, assim, válida e eficaz a alienação da herança em causa.
O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.10.2022, referido na decisão recorrido, processo n.º 677/19.3T8FAR.E1.S1, refere-se a situação diversa da presente: está nele em causa um verdadeiro e próprio repúdio da herança, uma renúncia abdicativa desta, não uma sua renúncia devolutiva, que convoque o disposto no artigo 2057.º, n.º 2, do CCivil, termos em que carece de sentido a sua invocação no caso, retirando dele ilações para a sua decisão.
4. Em suma, embora com fundamentação diversa da decisão recorrida, designadamente por revelar-se válida e eficaz a escritura de «Renúncia “Translativa” de Herança» em causa, improcede o recurso.
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Segundo o disposto nos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCivil e 1.º, n.º 2, do Regulamento das Custas Processuais, o recurso é considerado um «processo autónomo» para efeito de custas processuais, sendo que a decisão que julgue o recurso «condena em custas a parte que a elas houver dado causa», entendendo-se «que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção que o for».
Ora, in casu improcede a pretensão do Recorrente, termos em que este deve suportar as custas do recurso, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.
V. DECISÃO
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas pelo Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.
Lisboa, 11 de setembro de 2025
Paulo Fernandes da Silva
Ana Cristina Clemente
Higina Castelo
1. A decisão recorrida refere «2e», o que constitui um lapso de escrita que ora se corrige, considerando o indicado documento n.º 3 junto com a petição inicial