REQUERIMENTO PROBATÓRIO
DECLARAÇÕES DE PARTE
NÃO INDICAÇÃO DOS FACTOS OBJETO DE PROVA
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
INDEFERIMENTO
Sumário

O incumprimento da formalidade ou exigência legal de discriminar os factos sobre os quais haverão de recair as declarações de parte (cfr. artigos 466.º, n.º 2 e 452.º, n.º 2 do CPC) não pode determinar o imediato indeferimento desse meio probatório sem que, previamente, a parte seja convidada a suprir/corrigir essa irregularidade ou deficiência do requerimento probatório; constatada essa irregularidade, deve a parte ser convidada a proceder ao respectivo suprimento e só depois disso, se a parte não corresponder ao convite, o requerimento pode ser indeferido.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Relatora: Maria Catarina Gonçalves

1.º Adjunto: Chandra Gracias

2.º Adjunto: Anabela Marques Ferreira

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

No âmbito da acção instaurada por AA, residente na Rua ..., ..., ..., contra BB, residente em Largo ..., ..., ..., ... ... e contra CC, residente na Rua ..., Dt, ... ..., o Autor requereu, logo na petição inicial, as suas próprias declarações de parte (nos termos do art.º 466.º do CPC) a toda a matéria constante da petição inicial.

Findos os articulados, foi proferido despacho saneador e, em apreciação dos requerimentos probatórios, decidiu-se indeferir as declarações de parte do Autor, requeridas pelo próprio na petição inicial, “por não virem indicados, de forma discriminada, os factos sobre os quais tais declarações haveriam de recair (artigo 452.º, n.º 2 ex vi 466.º, n.º 2 do Código do Processo Civil)”.

Inconformado com essa decisão, o Autor veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

A. Aos 26 de Janeiro de 2025 com a referência citius 109458699, veio o Tribunal “a quo” a proferir o competente despacho saneador.

B. Nesse, o “Tribunal a quo” indeferiu o requerimento de declarações de parte do A., requeridas pelo próprio na petição inicial, por não virem indicados, de forma discriminada, os factos sobre os quais tais declarações haveriam de recair.

C. Salvo o devido respeito, não pode o ora Recorrente e A. concordar com tal posição.

D. Ora, tem a jurisprudência maioritária defendido que, quando a discriminação dos factos aos quais se pretende inquirir a parte não é feita, a solução não será no sentido do indeferimento de tal meio de prova, mas sim o julgador convidar a parte requerente a aperfeiçoar o seu requerimento de prova, concedendo assim a possibilidade de suprir tal falta.

E. Esta é a solução que melhor se adequa à prossecução da verdade material.

F. Ou seja, esta ponderação deve ser feita quer para o requerimento de prova por depoimento de parte, quer para o requerimento para prestação de declarações de parte, já que estas, tal como as primeiras, constituem um meio de prova que incide sobre os factos de que a parte tenha conhecimento direto e que só pode ser requerido pela própria parte e não pela parte contrária, nem por determinação oficiosa do tribunal.

G. Daqui resulta a remissão para as normas que regulam o depoimento de parte – art.ºs 456.º e 465.º do CPC. designadamente o dever de a parte que pretende prestar declarações indicar os factos sobre que irá depor, delimitando minimamente o objecto do seu depoimento.

H. Conforme supra se referiu, nesta situação a posição doutrinária e jurisprudencial tem sido no sentido de que a falta de indicação no respetivo requerimento dos factos sobre que a parte irá depor deve ser suprida mediante convite judicial, nunca podendo ser motivo de indeferimento imediato (cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2.ª edição, pág. 551.).

I. Posto isto, insurge-se o Recorrente contra a decisão do Tribunal “a quo” em rejeitar liminarmente as declarações de parte por si requeridas na sua petição inicial, perante a falta de indicação, de forma discriminada, dos factos sobre os quais as mesmas haveriam de recair.

J. Assim, seguindo-se a jurisprudência maioritária, imporia-se-ia o convinte ao aperfeiçoamento do requerimento de prova, naquela parte, por forma a que o A. com aquela requerimento, pudesse discriminar os factos que pretenderia fazer incidir as suas declarações de parte, tudo isto ao abrigo do prescrito nos artigos 6.º, 146.º, 452.º n.º 2 e 466.º todos do Código de Processo Civil, normas estas violadas pelo despacho recorrido, no segmento em apreço e que cumpre sanar, com o consequente convite do Recorrente a aperfeiçoar o seu requerimento de prova por declarações de parte, nos indicados termos.

K. Dir-se-á ainda que, não contendo o aludido despacho saneador os separadores referentes, nem à identificação do objecto do litigio, nem aos temas da prova, será este o momento oportuno para se notificar o Recorrente para esse efeito.

L. Em conclusão, deve o douto despacho recorrido deve ser revogado e, em consequência, substituído mediante douto Acórdão que determine o convite do Recorrente para vir a aperfeiçoar o seu requerimento para prestação de declarações de parte, nos termos supra expostos.

Conclui pedindo que seja revogado o despacho recorrido e substituído por acórdão que ordene o convite do Recorrente para vir a aperfeiçoar o seu requerimento para prestação de declarações de parte, conforme supra exposto.

Não houve resposta ao recurso.


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II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações do Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se as declarações de parte que havia requerido podiam ter sido indeferidas por falta de indicação, de forma discriminada, dos factos sobre as quais deviam recair sem que tivesse sido previamente notificado para suprir essa omissão.


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III.

O presente recurso incide, como se referiu, sobre o despacho que indeferiu as declarações de parte do Autor por falta de indicação, de forma discriminada, dos factos sobre as quais deviam recair.

Não está em causa – nem o Apelante questiona – a imposição legal resultante das disposições conjugadas dos artigos 466.º, n.º 2, e 452.º, n.º 2, do CPC, segundo a qual o requerimento das declarações deve ser acompanhado da indicação, de forma discriminada, dos factos sobre que há de recair.

O que está em causa – é apenas esse o objecto do recurso – é saber se tais declarações podiam ter sido indeferidas com esse fundamento, sem que, previamente, se tivesse convidado a parte (o Autor) a suprir aquela omissão.

Pensamos que não; não podia haver lugar a indeferimento sem dar à parte a oportunidade de corrigir o seu requerimento probatório.

Na verdade, no âmbito de um sistema processual civil – como é o nosso – em que são atribuídos ao juiz poderes com alguma amplitude no âmbito da correcção de vícios da instância ou deficiências dos articulados que sejam susceptíveis de sanação (artigos 6º, 590.º e 591.º do CPC), em que se consigna (cfr. art.º 7.º) um princípio e um dever de cooperação entre as partes e o tribunal (onde também se inclui o dever do tribunal de prevenir ou advertir a parte para a existência dos apontados vícios e deficiências, tendo em vista a sua correcção) e no âmbito do qual se percepciona, de forma nítida, uma preocupação do legislador em assegurar o máximo aproveitamento dos actos das partes não obstante as suas deficiências, não se compreenderá que o juiz não possa – e não deva – convidar a parte a corrigir um requerimento probatório quando ele não cumpra uma determinada exigência legal que, como acontece no caso, é facilmente suprível.

Na verdade, se o juiz tem um poder alargado no âmbito do suprimento da falta de pressupostos processuais, podendo convidar as partes a praticar os actos necessários à regularização da instância (cfr. art.º 6.º, n.º 2), se o juiz tem o poder/dever de convidar as partes a suprir vícios e irregularidades dos articulados (cfr. art.º 590.º, n.º 3), se tem o poder/dever de convidar as partes a suprir insuficiências ou imprecisões na exposição e concretização da matéria de facto alegada (cfr. art.º 590.º, n.º 4) e se tem também um poder alargado no âmbito da instrução do processo ao nível da realização oficiosa de diligências probatórias (cfr. art.º 411.º), nenhuma justificação encontramos para considerar que o juiz não possa – e não deva – fazer uma coisa tão simples como seja a de convidar a parte a discriminar os factos sobre os quais vão incidir as declarações de parte que requereu oportunamente, embora omitindo aquela indicação.

É essa, aliás, a posição que, em termos uniformes, tem vindo a ser assumida e reiterada pela nossa jurisprudência, seja ao nível das declarações de parte, seja ao nível do depoimento de parte (a situação é idêntica porque a formalidade em questão resulta da mesma disposição legal – o n.º 2 do art.º 482.º – que é aplicável directamente ao depoimento de parte e que é aplicável às declarações de parte por força do disposto no n.º 2 do art.º 466.º), como se vê pelos seguintes Acórdãos:

- Acórdãos da Relação de Coimbra de 26/11/2024 (processo n.º 1760/23.6T8LRA-A.C1) e de 17/01/2017 (processo n.º 143/13.0TBCDN-A.C1);

- Acórdão da Relação de Lisboa de 31/05/2022 (processo n.º 6660/21.1T8LSB-A.L1-7) e de 21/12/2015 (processo n.º 4059/15.8T8LSB-A.L1-4);

- Acórdãos da Relação do Porto de 14/12/2022 (processo n.º 3791/18.9T8VNG.P1), de 06/02/2020 (processo n.º 3144/12.2TBPRD-Q.P1) e de 21/11/2019 (processo n.º 29903/15.6T8PRT-F.P1);

- Acórdãos da Relação de Guimarães de 17/10/2024 (processo n.º 3436/22.2T8GMR-B.G1), de 09/05/2024 (processo n.º 1223/20.1T8BGC-A.G1), de 15/02/2024 (processo n.º 4296/22.9T8VCT-A.G1), de 10/01/2019 (processo n.º  2998/17.0T8BRG-B.G1) e de 12/11/2015 (processo n.º 7178/11.6TBBRG-A.G1)[1].

É essa também a posição assumida por M. Teixeira de Sousa[2] .

Também José Lebre de Feitas, Montalvão Machado e Rui Pinto[3] se pronunciam nesse sentido – ainda que com referência ao depoimento de parte e ao anterior CPC em que a disposição legal em questão era idêntica à actual – dizendo ser esse o entendimento preferível atendendo, designadamente, aos maiores poderes conferidos ao juiz no sentido de zelar pelo aproveitamento dos actos das partes que apresentam deficiências.

Acrescente-se apenas – e por último – que, ao contrário do que se disse no despacho que admitiu o recurso, o que está aqui em causa não é propriamente um convite à parte para a prova de factos alegados ou para a apresentação de meios probatórios, porque a prova ou meio probatório em questão (declarações de parte) foi efectivamente requerido pelo Autor. O que sucedeu foi apenas que o Autor incumpriu uma formalidade ou exigência legal porque, ao contrário do que exige a lei, não discriminou os factos sobre os quais iriam incidir as declarações. O que está em causa é, portanto, uma deficiência do requerimento probatório no que toca às requeridas declarações de parte e não se vislumbram razões para que essa circunstância conduza ao imediato indeferimento daquele elemento probatório sem dar à parte a possibilidade de corrigir esse erro ou lapso, nos mesmos termos em que isso aconteceria se estivesse em causa uma irregularidade ou deficiência dos articulados (cfr. art.º 590.º).

Se é certo que a lei não proíbe a formulação de convite com vista ao aperfeiçoamento da apontada irregularidade ou deficiência, em relação ao requerimento probatório em questão (nada se diz na lei nesse sentido), aquilo que emerge dos princípios e regras acima mencionados é que tal convite pode – e deve – ser formulado.

Procede, portanto, o recurso com a consequente revogação da decisão recorrida.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

(…).


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IV.
Pelo exposto, concedendo-se provimento ao presente recurso, revoga-se a decisão recorrida e determina-se que o Autor seja convidado a suprir a irregularidade/deficiência do requerimento probatório procedendo à discriminação dos factos sobre os quais haverão de recair as declarações de parte.
Custas a cargo de quem, a final, seja por elas responsável.
Notifique.

                              Coimbra,

                                             (Maria Catarina Gonçalves)

                                                    (Chandra Gracias)

                                              (Anabela Marques Ferreira)    


[1] Todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[2] Blog do IPPC, CPC Online, anotação 4 ao art.º 466.º
[3] Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 2.ª edição, pág.