DECISÃO FINAL DO INQUÉRITO
DEDUÇÃO DE SEGUNDA ACUSAÇÃO
VÍCIO DA INEXISTÊNCIA
REGIME LEGAL DE CORRECÇÃO DAS DECISÕES
Sumário

I - A prolação de despacho final de inquérito constitui o corolário do dever de decidir por parte do Ministério Público e tratando-se de acusação também o corolário do principio do acusatório, seja pela vinculação temática seja pela separação de quem acusa e de quem julga.
II - À prolação das decisões finais de inquérito está associado um efeito de preclusão, no sentido negativo, ou seja, no da consunção da ação penal e positivo obrigando o Mº Público a aceitar a sua decisão e a não reiterar, quanto ao mesmo objeto, a ação penal.
III - O artigo 380.º do Código de Processo Penal estabelece um regime próprio de correção das decisões, atribuindo a possibilidade de quem proferiu a decisão a expurgar de “erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade” que possa conter, contudo, sem que a correção possa ir além ou ficar aquém daquilo que foi já decidido.
IV - A segunda acusação junta ao processo foi deduzida num momento em que já se havia precludido o respetivo poder de decidir, padecendo do vício da inexistência que, sendo insanável, pode ser conhecida a todo o tempo.
V - Opção diferente permitiria uma violação do principio da determinabilidade das
leis e da confiança e segurança jurídica, pois possibilitaria que através da alegação de um erro de escrita, quando está em causa um erro de imputação, a substituição integral de uma peça processual já após o exercício do respetivo poder de decisão em violação do princípio ne bis in idem.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

*

Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I-RELATÓRIO

I.1 No âmbito do processo 463/24.9PBLRA … a 06.03.2025 foi proferido a seguinte decisão instrutória [transcrição]:

(…) Com o fundamento § 5, decide-se:

6.  Desentranhar a acusação que se mostra junta e datada de 3.12.2024 porque inexistente, e em consequência pronunciar J… para julgamento em tribunal singular nos termos e sob o conteúdo da acusação de 18.10.2024.

Sem custas.

 Notifique.


***

II – Do Recurso

Inconformado com aquele despacho veio o Mº Público interpor recurso apresentando as seguintes conclusões [transcrição]:

“CONCLUSÕES

1º - O presente recurso vem interposto da decisão proferida a 06/03/2025 nestes autos que considerou inexistente a acusação deduzida pelo Ministério Público a 03/12/2025 considerando aquela sem fundamento legal, dizendo não poder estar em causa uma retificação a coberto dos artigos 97º, nº3 e 380º, ambos do CPP.

2º - Um dos princípios que enforma o nosso direito processual, civil e penal, é o da preclusão. É consensual que, uma vez proferida uma decisão em determinado processo, com a sua prolação resulta esgotado o poder jurisdicional quanto à matéria em causa, quando se trate de decisão do juiz – art.º 613º do Código de Processo Civil - e, tratando-se de decisão do Ministério Público na fase do inquérito, que dirige, fica precludida a possibilidade de nova decisão sobre a mesma matéria.

3º - O ato praticado tornou-se definitivo e parte integrante do processado, salvo ocorrência de situação que justifique aplicação do art.º 380º do CPP. Não é, pois, um princípio absoluto. A correção de sentença e de despachos judiciais e do Ministério Público é possível em nome dos princípios da economia e celeridade processual, desde que não estejamos perante novas decisões, designadamente sobre o mérito, mas perante simples aperfeiçoamento do decidido num quadro meramente retificativo, não podendo integrar nulidades insanáveis e desde que não importem alterações substanciais.

4º - O art.º 380º do Código de Processo Penal prevê, assim, um processo de correção de sentença extensível aos atos decisórios do art.º 97º do CPP, neles se incluindo as decisões do Ministério Público, quando o ato decisório contiver lapso, obscuridade ou ambiguidade, cuja modificação não importe modificação essencial.

5º - Conforme resulta da leitura do despacho de 03/12/2024 este mecanismo de correção foi usado pelo Ministério Público quando detetou o lapso de escrita na parte atinente à identidade da arguida e aos ilícitos à mesma imputados na acusação por si proferida em 18/10/2024.

6º - Tal correção foi introduzida pelo Ministério Público antes de o processo avançar para a fase de julgamento, encontrando-se para todos os efeitos ainda na fase de inquérito (apesar do despacho de encerramento proferido) e com observância do contraditório e demais direitos de defesa de todas as arguidas, a quem se concederam novos prazos legais de reação à acusação.

7º - Sendo o regime enunciado no art.º 380º aplicável aos despachos do Ministério Público por via da remissão do nº 3 para o art.º 97º, ambos do Código de Processo Penal não se vê porque não poderia o Ministério Público promover a correção na acusação de 18/10/2024, espelhando o mesmo texto na “segunda” acusação, sendo que não importa, portanto, uma sua modificação essencial. Acresce que tal retificação foi efetuada enquanto se mantinha como dominus do processo e com salvaguarda do contraditório e demais garantias de defesa.

8º - Analisado o conteúdo da “primeira” e da “segunda” acusação pode constar-se que a única alteração da “primeira” para a “segunda” é a da identidade da arguida (de S… para J…) e, em consequência, a imputação dos crimes a esta última, sendo que a descrição que se mostrava vertida na “primeira” acusação mostra-se imutável. Pode constatar-se que os factos são exatamente os mesmos, não foram “alterados”, nele estando presentes todos os elementos constitutivos do tipo legal de crime em questão (crime de furto).

9º - Deste ponto de vista, numa situação como a dos autos em que o Ministério Público constata um erro na acusação e procede à retificação daquela, está em pleno exercício das suas competências legais, revelando-se em tal ato a própria estrutura acusatória do processo.

10º - Assim sendo, entendemos que o Mmº Juiz de Instrução Criminal devia ter admitido a correção da acusação, nos termos efetuada pelo Ministério Público, aceitando a retificação por este efetuada subjacente à “segunda” acusação.

11º - O vício da inexistência constitui uma anomalia processual insanável, impeditiva da formação do caso julgado, assim se contrapondo aos demais vícios procedimentais, os quais, não impedindo a formação do caso julgado, ficam sanados com a verificação do trânsito em julgado da sentença. Temos assim que a inexistência jurídica é reservada aos vícios tão graves que não pode divisar-se qualquer potencial de idoneidade do ato, ou porque foi omitido ou porque o que se materializou é equiparável a uma situação de omissão, um não ato sem existência no mundo jurídico, e não um ato processual viciado.

12º - Ora, se, em certa tese, se pode ter por inexistente uma segunda acusação no processo, mercê da aludida preclusão, não vemos já fundamento para que se faça abranger nesse vício o despacho proferido na parte em que se assume e antecipa a correção do erro/lapso na acusação deduzida. Deve antes considerar-se efetivada uma tal correção, tendo como referência a redação original. E assim sendo, não pode já negar-se existência ao despacho pelo qual, subsequentemente à acusação, se reconhece o lapso nela contido e se promove a correção do mesmo.

13º - Na verdade, em nosso entender, o despacho ganha autonomia enquanto proferido pela entidade competente para a fase em que o processo se encontrava. Neste consigna-se o reconhecimento do vício e a promoção da sua efetiva correção, reunindo, portanto, todos os requisitos para ser considerado como existente.

14º - E como já referimos não pode olvidar-se que, uma vez suprida a omissão constatada na acusação, foi novamente dirigida notificação a todos os sujeitos processuais, concedendo-se novos prazos às arguidas, nomeadamente para efeitos de requerimento de abertura de instrução. Assim, também nesta vertente, é de afastar o vício da inexistência jurídica do segundo despacho pelo qual o Ministério Público procedeu à sanação do erro verificado, por não conter o mesmo qualquer potencial de agressão aos direitos, liberdades e garantias individuais, sendo que (além do mais) continha todos os elementos legais elencados no artigo 283° do Cód. de Processo Penal.

15º - Cremos, pois, que deve considerar-se válida e produtora de efeitos a correção que pelo despacho de 03/12/2024 se introduziu na acusação datada de 18/10/2024, tendo em consideração os fundamentos invocados para o efeito (artigo 380º e 97º, do C.P.Penal).


***


*

II.1 Resposta ao recurso

Efetuada a legal notificação a arguida J… apresentou resposta, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:

CONCLUSÕES:

1ª - A douta decisão recorrida não merece qualquer censura, é certeira na aplicação do direito e suficientemente fundamentada.

2ª- A arguida J… foi acusada, a 18.10.2024, como autora de um crime de ofensa à integridade física, previsto no art.º 143º, nº 1, do C.P., e depois acusada, no mesmo processo, a 03.12.2024, como como autora de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art.º 143º, nº 1, do C.P. e em concurso efetivo como autora de um crime de furto previsto no art.º 203 do C.P.

3ª No novo despacho de acusação é imputada à arguida J… a totalidade da matéria factual anteriormente atribuída à arguida S… e, consequentemente, decide-se pelo arquivamento dos autos no que respeita à arguida S…, não lhe sendo imputada a prática de qualquer crime.

4ª - Alega o recorrente, sem razão, que a segunda acusação resulta de correcção efectuada ao abrigo do regime previsto no art.º 380º, do CPP.

5ª - Essa permissão de correcção, ou rectificação, só seria possível caso a acusação contivesse “erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial”.

6ª - Uma coisa é mero erro, ou lapso de escrita, que acontece quando o declarante escreve algo diferente do que verdadeiramente pretende escrever, outra coisa é o declarante escrever exactamente o que pretende escrever, não obstante estar errado na análise que faz dos factos, ou errado nas suas premissas, argumentos ou conclusões.

7ª - A lei permite a correcção daquele primeiro mero erro ou lapso, mas não permite a correcção do outro.

8ª - O mero erro, ou lapso de escrita, é necessariamente manifesto, ostensivo, perceptível a qualquer pessoa de medianos conhecimentos, e revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que aquela é feita.

9ª - Da análise, e comparação, do teor das duas acusações proferidas pelo MP resulta que a primeira acusação é aparentemente perfeita e que as modificações introduzidas na segunda acusação vão muito para além da supressão de mero erro ou lapso.

10ª - Enquanto na segunda acusação o MP determina o arquivamento dos autos  relativamente à arguida S…, na primitiva acusação o MP nomeia-lhe defensor, equaciona a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo e analisa o seu certificado de registo criminal.

11ª - Por outro lado, quanto à arguida J…, na segunda acusação o MP pronuncia-se sobre a questão da singularização da competência do tribunal, o que não fez na primitiva acusação relativamente a esta arguida, que vinha então acusada de apenas um crime cuja moldura penal não excedia os cinco anos de prisão.

12ª- Além disso, de um despacho acusatório para o outro, o MP também introduz modificações quanto ao requerimento de perda das vantagens e quanto ao estatuto coactivo das arguidas.

13ª - O MP não incorreu em mero erro ou lapso de escrita.

14ª - A “correcção” efectuada implica modificação essencial ou alteração substancial dos factos, definida no art.º 1º, al. f) do CPP como “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”, pelo que está expressamente afastada do regime do art.º 380º do mesmo diploma.

15ª - Acresce que, a segunda acusação foi proferida já depois de decorrido o prazo de reacção da arguida à primeira acusação. Repugna que, em qualquer caso, pudesse o MP ensaiar uma acusação, esperar a reacção do arguido e eventual argumentação apresentada pelo mesmo, e depois reformular a acusação.

16ª – O despacho acusatório proferido em segundo lugar é juridicamente inexistente.

17ª - Conferir ao Ministério Público a prerrogativa de reformular ou substituir uma  acusação ou um despacho de arquivamento constituiria uma violação dos princípios da igualdade, da proporcionalidade e do non bis in idem.


*

II.2 - Parecer do Ministério Público

Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância a Exmª. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer …


*

I.5. Resposta


*

I.6. Prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.

Cumpre, agora, apreciar e decidir.


*


II- FUNDAMENTAÇÃO

II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:

Assim, face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso interposto nestes autos, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:

® Se a prolação da acusação 03.12.2025 integra-se no disposto no art. 380º do Código de Processo Penal.

® Aferir se o despacho recorrido ao declarar a inexistência jurídica da acusação deduzida a 03.12.2025 violou o disposto no art. 219º da Constituição da República Portuguesa, 48º, 53º, nº 2 al. b) 97º, 380, nº 1 al. b) todos do Código de Processo Penal:


*

II.2- Da decisão recorrida [transcrição]:

“1 Vem J… requerer a abertura de instrução a 10.2.2025. Assinala que foi acusada a 18.10.2024 como autora por um crime de ofensa à integridade física previsto no artigo 143 n.º 1 do C.P., porém foi no mesmo processo e por último acusada a 3.12.2024 como autora por um crime de ofensa à integridade física previsto no artigo 143 n.º 1 do C.P. e em concurso efetivo como autora de um crime de furto previsto no artigo 203 do C.P..

2 Realizou-se debate instrutório.

3 A questão resume-se a saber qual dos atos jurídicos decisórios praticados no processo pelo MP prevalece, de outra forma, qual das acusações seguirá e conformará os ulteriores termos processuais. Não está em causa assim uma análise de conteúdo da realidade indiciada, mas tão só de validade de ato, sendo questão prévia.

4 Ora, à luz das mais basilares regras, não há retificação do ato por não ser lapso de escrita, pois imputar à arguida requerente que “os bens foram levados pelas arguidas A… e J…, fazendo deles coisas suas” (7 da acusação de 3.12.2024) não é o mesmo que “os bens foram levados pelas arguidas A… e S…, fazendo deles coisas suas” (7 da acusação de 18.10.2024).

Há um pedaço de vida novo.

E há imputação diversa quando, a 18.10.2024, à arguida requerente a autoria de um crime de um crime de ofensa à integridade física previsto no artigo 143 n.º 1 do C.P., e após em novo ato decisório no mesmo processo como autora por um crime de ofensa à integridade física previsto no artigo 143 n.º 1 do C.P. e em concurso efetivo como autora de um crime de furto previsto no artigo 203 do C.P..

5 Não sendo lapso de escrita, ocorre um fenómeno processual denominado de preclusão.

A preclusão pode vir da repetição ou do tempo.

Ocorre este último caso com os prazos perentórios. Ocorre aqueloutro caso com a extinção do poder que lhe é atribuído, no caso, o de acusar, ou na perspetiva de garantias processuais no “ne bis in idem” latamente formulado (em que julgar é o mesmo que acusar) e artigo 29 n.º 5 da Lei Fundamental (C.R.P.).

Basta-nos argumentar com a preclusão por extinção do poder.

A acusação de 18.10.2024 foi dada aos autos e consuma o poder atribuído ao M.P., a simile o que resulta dos artigos 619 n.º 1 e 620 n.º 1 do C.P.C. ex vi artigo 4º do C.P.P., e aplicável à norma-texto a extraír dos artigos 97 n.º 3 e 276 n.º 1 do C.P.P..

A segunda acusação é assim inexistente uma vez imprestável para produzir qualquer efeito, inapta ao nível da eficácia do ato, traduzindo-se num nada em consequência do vício que enferma (irrepetibilidade e assim extinção do poder de decidir).

Breve, o “Código de Processo Penal não prevê segundas chances para acusar”, cfr. Ac. RP de 15.1.2025, rel. MARIA JOANA GRÁCIO, www.dgsi.pt..

Com o fundamento § 5, decide-se:

6.  Desentranhar a acusação que se mostra junta e datada de 3.12.2024 porque inexistente, e em consequência pronunciar AA para julgamento em tribunal singular nos termos e sob o conteúdo da acusação de 18.10.2024.

Sem custas.

 Notifique.”

Com relevo importa ainda salientar a seguinte tramitação processual:

- A 18.10.2024 foi proferido despacho de encerramento de inquérito onde entre o maios consta ao seguinte [transcrição]:

“II – …

Nos presentes autos é imputado à arguida A… a prática, em concurso efetivo, de um crime de ofensas à integridade física, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, e um crime de furto, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal.

É imputado à arguida S… a prática de um crime de furto, previsto e punido pelos artigos 203.º, n.º 1, do Código Penal.

É imputado à arguida J… a prática de um crime de ofensas à integridade física, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1, do Código Penal.


*


***

O Ministério Público, para julgamento em processo comum perante tribunal singular, nos termos do artigo 283.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, acusa:

A…

S…

J…

Com as condutas acima descritas, constituíram-se:

a) A arguida A… em concurso efectivo:

• Co-autora material de 1 (um) crime de furto, sob a forma consumada, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 3.ª parte, e 203.º, n.º 1, do Código Penal;

• Autora material de 1 (um) crime de ofensa à integridade física, sob a forma consumada, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 143.º, n.º 1, do Código Penal.

b) A arguida S…:

• Co-autora material de 1 (um) crime de furto, sob a forma consumada, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 3.ª parte, e 203.º, n.º 1, do Código Penal;

(…)

Do Perdimento de Vantagens:

O Ministério Público, ao abrigo do artigo 110.º, n.º 1, alínea b), e n.º 4, do Código Penal requer se declare a perda das vantagens obtidas pelas arguidas A… e S…, com a prática dos factos descritos de 1. a 12., o que faz com os fundamentos que seguem:

Este despacho foi notificado às arguidas como consta das referências Citius nº 108711797; 108711806; 108711807; 108711974; 108711976 e 108711980, todas do dia 21.10.2024 e referências Citius nº 108712803; 108713054 e 108713308 da mesma data.

- A 03.12.2025 foi exarado no processo o seguinte despacho, onde consta entre o mais [transcrição]:

“Compulsados os autos, notamos que incorremos em lapso de escrita no corpo da acusação, aquando da descrição factual e imputação jurídica às arguidas S… e J….

Pelo presente dá-se sem efeito o despacho de 18 de Outubro de 2024 e determina-se a correcção de tal lapso de escrita com a prolação de novo despacho, nos termos dos artigos 380.º, n.ºs 1, alínea b), e 3, e 97.º, n.º 3, todos do C.P.P..


*

Notifique o presente despacho aos sujeitos processuais com a notificação do despacho de acusação que segue infra.

*

Declaro encerrado o inquérito – artigo 276.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

***


*

**********************************

V. O Ministério Público, para julgamento em processo comum perante tribunal singular, nos termos do artigo 283.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, acusa:

A…;

E

J…;

Porquanto:

Com as condutas acima descritas, constituíram-se:

• a) A arguida A…, em concurso efectivo:

• • Coautora material de 1 (um) crime de furto, sob a forma consumada, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 3.ª parte, e 203.º, n.º 1, do Código Penal;

• • Autora material de 1 (um) crime de ofensa à integridade física, sob a forma consumada, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 143.º, n.º 1, do Código Penal.

• c) A arguida J…:

• • Coautora material de 1 (um) crime de furto, sob a forma consumada, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 3.ª parte, e 203.º, n.º 1, do Código Penal;

• • Autora material de 1 (um) crime de ofensa à integridade física, sob a forma consumada, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 143.º, n.º 1, do Código Penal.


*

(…)

*

Do Perdimento de Vantagens:

O Ministério Público, ao abrigo do artigo 110.º, n.º 1, alínea b), e n.º 4, do Código Penal requer se declare a perda das vantagens obtidas pelas arguidas A… e J…, com a prática dos factos descritos de 1. a 12., o que faz com os fundamentos que seguem:


*

***


III – Apreciação do recurso

            O Mº Público insurge-se contra o despacho recorrido que, a título de questão prévia, declarou a inexistência da acusação deduzida em segundo lugar no processo (13.12.2025)  por entender que a única alteração que ocorreu foi a da identidade da arguida (de S… para J…)  e em consequência a imputação dos crimes a esta última, mais alegando que a descrição factual da “primeira acusação” mostra-se imutável já que os factos são exatamente os mesmos, não foram alterados e estão presentes os elementos do crime em questão, no caso, do crime de furto.

Nos termos do disposto no art. 262º do Código de Processo Penal a direção da fase do inquérito cabe ao Ministério Público e findo este, haverá que proferir despacho de encerramento que pode consistir num despacho de arquivamento, na opção pela suspensão provisória do processo ou num despacho de acusação.

Como se salienta João Conde Correia [Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, pág. 1189]: “O despacho de acusação cumpre, no essencial, três funções (…): Desde logo uma função de promoção processual, imprescindível nos processos de estrutura acusatória (Art. 32º/5 CRP). A acusação introduz (como acabámos de ver) o facto em juízo, permitindo que um terceiro, independente e imparcial, decida o caso. Sem ela, o juiz não pode conhecer e julgar, ainda que oficiosamente os factos imputados ao arguido (ne procedeat judex ex officio). Por isso mesmo, a falta de acusação é causa de invalidade insanável (Art. 119º/b): A mesma entidade já não pode, repetimos, ao mesmo tempo promover e julgar. Em segundo lugar, a acusação cumpre uma função informativa. O arguido fica a saber os factos que lhe são imputados, podendo Começar a preparar a sua defesa e exercer finalmente e de forma global o contraditório (Art. 32º /5 CRP). Em terceiro lugar, a acusação tem uma função delimitativa. O objeto do processo fica, em princípio fixado. Tende haver uma certa identidade entre a acusação e a sentença [Sentencia debet esse conformis libelo]”.

A prolação de despacho final de inquérito constitui, pois, o corolário do dever de decidir por parte do Ministério Público e, consistindo num despacho de acusação, também o corolário do principio do acusatório, seja pela vinculação temática seja pela separação de quem acusa e de quem julga (como acima referimos).

Damião da Cunha [ O caso Julgado Parcial – Questão da Culpabilidade e questão da sanção em num processo de estrutura acusatória, pág. 485] afirma: “"... tanto o despacho de arquivamento como o ato de acusação, correspondem a um «dever de decidir» por parte do MP - pelo que implicam sempre o dever de o MP não proferir nova decisão quanto à matéria decidida - dever que se institui quando alguém é constituído arguido. Visto por este prisma, e em obediência estrita a um princípio de acusação materialmente entendido, o ne bis in idem significa, para o MP, tanto «processualmente», como «institucionalmente», a impossibilidade de proferir uma nova decisão (através de nova acusação ou de um despacho de arquivamento), e, por isso, de voltar a exercer os poderes de autoridade sobre a matéria decidida". ... "se, de facto, a proibição do ne bis in idem, presente no processo penal, tem uma intenção política de garantia do arguido, exatamente como proibição de «duplo processo» (sobre os mesmos factos), tal garantia tem que valer já na fase de inquérito, o que implica que ninguém possa ser constituído duas vezes arguido quanto ao «objeto» da fase de inquérito."

O mesmo autor [ “Ne bis in idem” e exercício da acção penal, Que Futuro para o Direito Processual Penal?: Simpósio em homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, por ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal Português (pág 568)] escreve: “Assim, o ponto de partida de toda a construção dogmática do ne bis in idem tem de assentar no princípio de que o poder punitivo do Estado está representado na e pela acção penal. Solução que não deve ser considerada novidade; antes ela é uma consequência necessária de tudo quanto se disse anteriormente. Neste sentido, o ne bis in idem implicaria, primariamente, a proibição de um cidadão/arguido ser sujeito a duas decisões (tomadas) definitivas sobre os mesmos factos (solução que obviamente se impõe nas formas, legais, alternativas de resolução de conflitos penais).

E no Acórdão do TRP de 02.02.2022 [processo nº 114/20.0T9PRD-A.P1, disponível in www.dgsi.pt] citando  Paulo Dá Mesquita (in Direção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, pág. 207 e 290 e 291) escreve-se: “Dissertando também sobre esta questão, Paulo Dá Mesquita[3] explica que "da articulação do modelo jurídico-constitucional do Ministério Público com a estrutura do processo penal, em particular dos princípios do acusatório e do contraditório, resulta uma tendencial irretratabilidade dos atos decisórios do inquérito, sendo essa auto-vinculação imediata quando em causa está um despacho de acusação".

E acrescenta mais à frente aquele autor[4] este princípio da irretratabilidade da ação penal tem como corolário lógico, no que respeita ao despacho de acusação, a vinculação externa do Ministério Público, com a consequente proibição de intervenção intra-orgânica revogatória, poder de intervenção que, no ato processual de encerramento do inquérito, se cinge apenas a determinadas decisões de arquivamento.

Assim sendo, à prolação das decisões finais de inquérito, incluindo pois as de arquivamento e de acusação, está associado um efeito de preclusão, no sentido negativo, ou seja, no da consunção da ação penal e positivo obrigando o Mº Público a aceitar a sua decisão a não reiterar, quanto ao mesmo objeto, a ação penal.

Salienta-se no Acórdão do TRG de 24.04.2017 [processo nº 180/07.4JABRG.G1, disponível in www.dgsi.pt]: “Um dos princípios processuais que enformam o direito processual é o princípio da preclusão, que se pode definir como «a perda, a extinção ou a consumação de uma faculdade processual» Cfr. Chiovenda, apud, Teixeira de Sousa, Preclusão e Caso Julgado, disponível em http://www.academia.edu/24956415/TEIXEIRA_DE_SOUSA_M._Preclus%C3%A3o_e_caso_julgado_05.2016.. Este princípio manifesta-se em várias vertentes, sendo uma delas habitualmente designada por consumativa, que é precisamente a perda da oportunidade de se praticar o ato processual, por o ato já ter sido praticado, já estar consumado.

Encontramos uma das materializações desta vertente do princípio da preclusão no artigo 613.º do Código de Processo Civil, ao estabelecer que uma vez proferida a sentença fica esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa. Princípio que se estende aos despachos, nos termos do n.º3 do mesmo normativo.

No Código de Processo Penal não há disposição semelhante, embora a sua aplicação se harmonize perfeitamente com as normas deste diploma, designadamente com a previsão, no seu artigo 380.º, e a título excecional, dos estritos casos em que os lapsos da sentença e dos demais atos decisórios do juiz e do Ministério Público Cfr. n.º 3 do artigo 380.º e respetiva remissão para o artigo 97.º, ambos do Código de Processo Penal. podem ser objeto de correção. Sendo por conseguinte aquele artigo 613.º do Código de Processo Civil aplicável também ao processo penal, por força da remissão feita no artigo 4.º do Código de Processo Penal.

Por outro lado, também não se pode olvidar que a natureza una e indivisível da magistratura do Ministério Público obriga a considerar a posição de cada seu representante – feita na sede e nos termos legais e no exercício de competência própria – como a posição definitiva. Impondo-se que uma eventual divergência de posições entre os vários representantes dessa magistratura seja resolvida no interior da organização e através dos mecanismos próprios, como seja a disciplina hierárquica, designadamente através das possibilidades legais expressas nos artigos 276º, nº 6, e 278.° do Código de Processo Penal, mas nunca no sentido de apagar ou modificar o que a seu tempo foi sustentado como a posição do Ministério Público, numa dissonância de opiniões voltada para o exterior Cfr., precisamente neste sentido, Figueiredo Dias, Sobre os sujeitos processuais no Novo Código de Processo Pena", Jornadas de Processo Penal, 1988, pág. 30.”

Assim sendo, temos que concluir que através do despacho proferido a 18.10.2024 o Mº Público declarou encerrado o inquérito. E, tendo proferido acusação está processualmente impossibilitado de voltar a trás para exercer, uma vez mais, os seus poderes de autoridade sobre matéria já anteriormente decidida, seja contradizendo uma acusação com um arquivamento e vice versa, seja substituindo uma acusação por outra de teor diferente da acusação já deduzida.

Não olvidamos que o art. 380º do Código de Processo Penal, que por força do seu nº 3 é aplicável aos despachos proferidos nos autos permite que sejam corrigidos oficiosamente ou a requerimento os despachos (neles se incluindo os atos decisórios do Mº Público) que contiverem “erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.”.

Ou seja, o legislador estatuiu no artigo 380.° do Código de Processo Penal, um regime próprio de correção das decisões, atribuindo a possibilidade de quem proferiu a decisão a expurgar de “erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade” que possa conter, contudo, sem que a correção possa ir além ou ficar aquém daquilo que, bem ou mal, está decidido, ou, na expressão da lei, não pode importar modificação essencial da decisão [Acórdão do STJ de 14-07-2021, Processo n.º 128/19.3JAFAR.E1.S1, in www.dgsi.pt].

Esta possibilidade não contraria, antes sustenta o referido princípio da preclusão pois a regra é a da estabilidade das decisões que são tomadas no âmbito do processo.

Na verdade:

Erro, para efeito do regime legal em análise é somente o de expressão ou de cálculo, nunca o erro de apreciação nem o erro de raciocínio. Corrigível é, assim, apenas o defeito da decisão que ocorre quando se mencionou nomes, empregou palavras e frases ou utilizou números que, manifestamente, não exprimem corretamente o seu raciocínio. Erro é unicamente aquele que a mera leitura do despacho imediatamente demonstra, evidenciando que os nomes que refere, determinada palavra ou alguma expressão, certos algarismos e operações de cálculo surgem ali manifestamente descontextualizados. Se o erro de escrita ou de cálculo não se depreende claramente do texto do acórdão, não admite correção nos termos das normas citadas.

Lapso, para efeito da norma em apreço, é essencialmente o lapsus calami, resultante de gralhas, da omissão ou interposição de palavras, frases ou números, designadamente por menor atenção, pressa ou descuidado, que patentemente ficaram por escrever ou surgem fora do contexto.

Obscuridade é a falta de claridade, a ininteligibilidade da decisão. Obscuro é o acórdão de difícil compreensão, que contenha algum passo ininteligível, cujo sentido exato não pode alcançar-se.

Ambiguidade significa ambivalência, pluralidade de sentidos, dúvida. Ambíguo é o acórdão confuso, de sentido dúbio, que contém alguma passagem equivoca, que se presta, razoavelmente, a interpretações diferentes. Que diz uma coisa e o seu contrário. Ao qual podem razoavelmente atribuir-se dois ou mais sentidos diferentes.[1]

Apesar de o ora recorrente alegar que apenas se limitou a corrigir um lapso de escrita quanto ao nome da arguida, a verdade é que o novo despacho de encerramento de inquérito não se limitou a tal correção mas antes como refere a Exma. Procuradora Geral Adjunta “o Ministério Público não se limitou a substituir o nome das arguidas por lapso da sua identificação, o que fez foi reformular o despacho final proferido em 18.10.2024, depois de ter sido notificado aos sujeitos processuais, substituindo-o por outro que determinou o arquivamento, nos termos do disposto no art.º 277.º, n.º 2 do CPP, quanto à arguida S… (a quem no primeiro despacho imputava a prática, em coautoria material de um crime de furto, p.p. pelos art.º 26.º, 203.º, n.º 1 do CP) e deduziu acusação contra a arguida J…, imputando-lhe a prática, em coautoria de um crime de furto, p.p. pelo art.º 23.º, do C.P.( a quem no primitivo despacho imputava a autoria material da prática de um crime de ofensa à integridade física, p.p. pelo art.º 143.º, n.º 1 do C.P.).

Podemos pois afirmar que não se tratou de um mero lapso na identificação do sujeito passivo da relação processual, mas antes de um verdadeiro erro de imputação objetiva e subjetiva, não havendo qualquer lapso, reformulação, retificação ou correção na primeira acusação, nos termos do disposto no art.º 380.º do CPP, mas, ao invés, de uma verdadeira substituição da 1.ª acusação proferida em 18.10.2024, com a nova acusação datada de 03.12.2024.

A permitir-se um tal entendimento, acabaria por “conferir ao Ministério Público a prerrogativa de reformular ou substituir uma acusação ou um despacho de arquivamento constituiria uma violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade consagrados nos artigos 13º, nº 1 e 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesas, pois tratar-se-ia de conceder àquele uma faculdade que não tem paralelo quanto aos demais sujeitos processuais. O assistente não tem a faculdade de completar, reformular ou substituir a acusação particular ou o requerimento de abertura de instrução, nomeadamente quando tais peças processuais são omissas na narração dos factos imputados ao arguido relativamente ao tipo subjetivo da infração (cfr. a este propósito os AFJ nº 7/2005 de 12.05.2005 e nº 1/2015 de 27.01.2015), neste sentido e em idêntica situação à dos autos, acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 02.02.2022, disponível in www.dgsi.pt.”

Na verdade, pondo em confronto as duas acusações deduzidas nos autos vemos que no segundo despacho de acusação a arguida AA é acusada não apenas da prática de um crime de ofensa à integridade física mas, também, da prática, em coautoria material, de um crime de furto na forma consumada, sendo-lhe imputada a totalidade da matéria factual anteriormente atribuída à arguida BB.

E, como consequência, previamente foi proferida decisão de arquivamento relativamente à arguida S….

Deste modo, nenhuma censura merece o Tribunal a quo quando afirmou: “Ora, à luz das mais basilares regras, não há retificação do ato por não ser lapso de escrita, pois imputar à arguida requerente que “os bens foram levados pelas arguidas A… e J…, fazendo deles coisas suas” (7 da acusação de 3.12.2024) não é o mesmo que “os bens foram levados pelas arguidas A… e S…, fazendo deles coisas suas” (7 da acusação de 18.10.2024).

Há um pedaço de vida novo.  E há imputação diversa quando, a 18.10.2024, à arguida requerente a autoria de um crime de um crime de ofensa à integridade física previsto no artigo 143 n.º 1 do C.P., e após em novo ato decisório no mesmo processo como autora por um crime de ofensa à integridade física previsto no artigo 143 n.º 1 do C.P. e em concurso efetivo como autora de um crime de furto previsto no artigo 203 do C.P..

A preclusão pode vir da repetição ou do tempo.

Ocorre este último caso com os prazos perentórios.

Ocorre aqueloutro caso com a extinção do poder que lhe é atribuído, no caso, o de acusar, ou na perspetiva

de garantias processuais no “ne bis in idem” latamente formulado (em que julgar é o mesmo que acusar) e artigo 29 n.º 5 da Lei Fundamental (C.R.P.).

Basta-nos argumentar com a preclusão por extinção do poder.

A acusação de 18.10.2024 foi dada aos autos e consuma o poder atribuído ao M.P., a simile o que resulta dos artigos 619 n.º 1 e 620 n.º 1 do C.P.C. ex vi artigo 4º do C.P.P., e aplicável à norma-texto a extrair dos artigos 97 n.º 3 e 276 n.º 1 do C.P.P.”.

E concordamos também com o Tribunal a quo quando referiu: “A segunda acusação é assim inexistente uma vez imprestável para produzir qualquer efeito, inapta ao nível da eficácia do ato, traduzindo-se num nada em consequência do vício que enferma (irrepetibilidade e assim extinção do poder de decidir).

Breve, o “Código de Processo Penal não prevê segundas chances para acusar”, cfr. Ac. RP de 15.1.2025, rel. MARIA JOANA GRÁCIO, www.dgsi.pt ..”.

Como se salienta no Acórdão do TRG de 24.04.2017 (já acima mencionado): “Precisamente para casos como este, em que o ato não tem o mínimo de requisitos imprescindíveis ao seu reconhecimento jurídico De que a lei não fala já que atos de processo e não atos que não são processuais., a doutrina e a jurisprudência admitem pacificamente no quadro das invalidades a figura da inexistência, que é insuscetível de sanação Cfr. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, reimp. Lisboa, 1981, vol. I, págs. 268 a 273, vol. III, págs. 9 e 10; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, 3ª ed., Lisboa/S.Paulo, 2002, págs. 92 a 94; Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 15ª ed., Coimbra, 2005, págs. 293 a 294..”.

De facto, tendo a acusação junta ao processo a 13.12.2024 sido deduzida num momento em que já se havia precludido o respetivo poder de decidir, outro não pode ser o vício que não o da inexistência, pois que, esta segunda acusação padece de uma invalidade mais grave do que as próprias nulidades principais que, sendo insanável, pode ser conhecida a todo o tempo e, como tal, objeto de apreciação – como o foi – a título de questão prévia em sede de decisão instrutória.

Deste modo, atentas as características deste vício, não pode ao abrigo de uma pretensa autonomia do despacho que procedeu à retificação, pretender-se extrair a possibilidade de correção do que a Lei Adjetiva e muito concretamente o art. 380º do Código de Processo Penal não permite.

Ora, no caso presente o Tribunal a quo limitou-se a considerar que a situação não era subsumível ao disposto no art. 380º do Código de Processo Penal, como efetivamente não o é, pois que não ocorre uma situação em que se tenha escrito algo diferente do pretendido, mas antes ocorreu um “verdadeiro erro de imputação objetiva e subjetiva”, e, consequentemente, considerou não ser possível a sua substituição integral por outra peça processual, o que também não surge violador de quaisquer princípios constitucionais e muito concretamente do disposto no art. 219º da CRP invocado.

Opção diferente permitiria, ela sim, uma violação do principio da determinabilidade das leis da confiança e segurança jurídica, pois permitiria que através da alegação de um erro de escrita – quando na verdade está em causa um erro de imputação com a atribuição de diferentes factos e qualificação jurídica à arguida AA -  a substituição integral de uma peça processual já após o exercício do respetivo poder de decisão em violação do princípio ne bis in idem.


***

IV- DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam as Juízas da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo Mº Público, e consequentemente manter o despacho recorrido nos seus precisos termos.

Sem custas.

Notifique.


*

Coimbra, 8 de julho de 2025

 [Texto elaborado pela relatora e revisto por todas as subscritoras- artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal]

Sandra Ferreira

 (Juíza Desembargadora Relatora)

Sara dos Reis Marques

(Juíza Desembargadora Adjunta)

Maria Alexandra Guiné

(Juíza Desembargadora Adjunta)



[1] Acórdão do STJ de 12-05-2021, já citado.