I - A atribuição de Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho Habitual (IPATH) resulta de uma análise que conjuga a avaliação médica (questão de facto) com a aplicação da lei (questão de direito).
II - O nosso mais alto Tribunal tem vindo a sublinhar que a incapacidade permanente para o trabalho habitual possui uma componente jurídica, não sendo necessário que o trabalhador fique incapaz para o exercício de todas as funções compreendidas no seu trabalho habitual, para que essa incapacidade possa ser afirmada; é suficiente que exista incapacidade para o exercício das funções essenciais.
III - A prova pericial está sujeita à livre apreciação do julgador. Das disposições conjugadas dos artigos 389.º do Código Civil e 489.º do Código de Processo Civil, extrai-se que a prova pericial não tem força probatória vinculativa. Por maioria de razão sê-lo-á quando a questão se subsume a um problema de interpretação jurídica.
IV - Para a atribuição de Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho Habitual (IPATH), o Tribunal, além dos exames médicos, pode considerar o parecer solicitado ao Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP), conforme o artigo 21.º, n.º 4, da NLAT, e deve ter em conta as Instruções gerais n.º 5-A., alíneas a), b), b.1) e 13), alíneas a) e b), da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais (TNI).
V - Ainda que a sacroleíte tenha sido agravada por lesão subsequente/consecutiva ao acidente, a incapacidade deve ser avaliada como se tudo tivesse resultado do acidente, exceto se a sinistrada já estiver a receber pensão ou tiver recebido capital de remição (o que também não foi o caso).
(Sumário do acórdão elaborado pela sua relatora nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil)
Origem: Comarca do Porto, Juízo do Trabalho de Maia – ...
(secção social)
Relatora: Juíza Desembargadora Sílvia Gil Saraiva
Adjuntos: Juiz Desembargador Nelson Nunes Fernandes
Juiz Desembargador António Joaquim da Costa Gomes
Recorrida: AA
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I.RELATÓRIO[1]:
Na presente ação especial emergente de acidente de trabalho em que são partes a sinistrada AA (Autora), e a entidade responsável “A... – Companhia de Seguros de Ramos Reais, S.A.” (Ré), verificou-se, conforme o auto de tentativa de não conciliação, que a divergência se circunscreveu ao coeficiente de desvalorização que afeta a sinistrada.
Foi oportunamente requerida a realização de junta médica.
Após a junta médica na especialidade de Medicina do Trabalho, para apuramento de atribuição de Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho Habitual (IPATH), a Ré seguradora solicitou a realização de nova junta médica, desta feita na especialidade de Ortopedia, para apreciação da mesma questão, pedido que foi indeferido.
Em 18 de março de 2025, foi proferida a sentença, cujo dispositivo se transcreve:
«Decisão.
Pelo exposto, reconhecendo-se que a Sinistrada foi vítima de um acidente de trabalho, nos termos do artigo 140.º, n.º 1 do Código de Processo do Trabalho:
a) Decide-se que a Sinistrada AA, em consequência do acidente de trabalho em apreço nos presentes autos, sofreu uma incapacidade permanente parcial para o trabalho de 15% (IPP 15%) com IPATH;
b) Condena-se a Responsável A..., Companhia de Seguros de Ramos Reais, S.A. a pagar à Sinistrada a pensão anual, vitalícia e atualizável de € 5.389,04 (cinco mil, trezentos e oitenta e nove euros e quatro cêntimos), devida desde 06/07/2022 acrescida de juros de mora à taxa legalmente fixada para os juros civis em cada momento devidos desde a data de 06/07/2022 até integral e efetivo pagamento;
a. Atualização de 2023 - € 5.841,71;
b. Atualização de 2024 - € 6.192,21;
c. Atualização de 2025 - € 6.353,20.
c) Condena-se a Responsável A..., Companhia de Seguros de Ramos Reais, S.A. a pagar à Sinistrada o subsídio de elevada incapacidade permanente de € 4.315,25 (quatro mil, trezentos e quinze euros e vinte e cinco cêntimos), acrescido de juros de mora à taxa legalmente fixada para os juros civis em cada momento devidos desde a data de 06/07/2022 até integral e efetivo pagamento;
d) Condena-se a Responsável A..., Companhia de Seguros de Ramos Reais, S.A. a pagar ao Sinistrado a quantia de € 0,94 (noventa e quatro cêntimos), devida a título de indemnização devida pelo período de ITA, acrescida de juros de mora à taxa legalmente fixada para os juros civis em cada momento devidos desde a data de 06/07/2022;
e) Condena-se a Responsável A..., Companhia de Seguros de Ramos Reais, S.A. a prestar à Sinistrada 25.º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, assistência medicamentosa e farmacêutica mais concretamente medicação analgésica de posologia e tipologia a definir pelo médico assistente;
f) Condena-se a Responsável A..., Companhia de Seguros de Ramos Reais, S.A. a pagar à Sinistrada a quantia de € 20,00 (vinte euros) a título de despesas com deslocações ao Tribunal e ao Instituto Nacional de Medicina Legal, acrescida de juros de mora à taxa legalmente fixada para os juros civis em cada momento devidos desde a data de 20/04/2023 até efetivo e integral e pagamento.
Custas a cargo da Entidade Responsável, nos termos do artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Valor da ação: € 80.122,26 (artigo 120.º do Código de Processo do Trabalho).
Registe e notifique.» (Fim da transcrição)
Inconformado com tal decisão veio a Ré Seguradora interpor recurso de apelação visando a sua revogação.
Termina as suas alegações com as seguintes Conclusões:
1. Asseveraram os Srs. Peritos Médicos do Tribunal e da Sinistrada – posição seguida pelo douto Tribunal - que a trabalhadora se encontra afetada de IPATH (por maioria), porquanto “a lesão sofrida e as lombalgias existentes foram determinantes para a sua incapacidade de realizar tarefas que impliquem manipulação de cargas, agachamentos e torções da coluna vertebral, movimentos necessários para a totalidade das tarefas que lhe são exigidas”, sem prejuízo de admitirem uma situação prévia de patologia discal.
2. Relevam, no entanto, que “coexistem queixas decorrentes de uma doença natural agravada, prévia ao acidente em apreço, designadamente, as relacionadas com sacroleíte (…)”.
3. Discorda o Sr. Perito Médico da Seguradora, na pessoa do Dr. BB, cuja opinião ficou consignada nos seguintes termos: “as lesões que a sinistrada apresenta são devidas a patologia preexistente não havendo agravamento da doença natural. Admite-se a existência de dor lombar residual como sequela do acidente não sendo esta motivo para considerar a sinistrada com IPATH. A sinistrada, antes do acidente, já estava medicada (…) e morfina (previamente à terapêutica dirigida à doença Behçet).”
4. Ora, decorria do parecer unânime do anterior exame por junta médica na especialidade de ortopedia que do evento dos autos resultou uma hérnia discal lombar L4-L5, submetida a tratamento cirúrgico e respetivas sequelas de raquialgia e rigidez da coluna lombal, cuja incapacidade permanente parcial corresponderia a 15% (cfr. cap. I 1.1.1 alínea c) da TNI).
5. O mesmo capítulo da Tabela Nacional de Incapacidades (TNI) e respetivo coeficiente de incapacidade foi igualmente atribuído no exame médico-legal, que considerou os antecedentes de Doença de Behçet de que a sinistrada padecia.
6. Em face do exposto, a Seguradora solicitou que a atribuição de IPATH fosse esclarecida em sede de exame por junta médica na especialidade de Ortopedia, que não foi admitido.
7. Ora, sem a fundamentação devida sobre a IPATH, não pode a mesma ser atribuída mesmo que a maioria dos peritos assim tenham considerado.» (Fim da transcrição)
A Autora apresentou contra-alegações ao recurso interposto pela Recorrente, pugnando pela manutenção do decidido.
Esta bonificação está prevista na alínea a) do n.º 5 das Instruções Gerais da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais.
A Recorrida AA, notificada do referido despacho (referência CITIUS n.º 422441), declarou nada ter a opor à aplicação da bonificação de 1.5 ao coeficiente residual da incapacidade (15%).
O objeto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente [artigos 635.º, n.º3 e 4, e 639.º, n.ºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, ex vi, artigo 1.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo do Trabalho], por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso e da indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
A questão central a decidir é a seguinte:
- Se a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que determine a realização das diligências probatórias solicitadas pela Recorrente (v.g. a realização do exame por junta médica na especialidade de ortopedia).
Matéria de facto dada como provada em primeira instância[2]
*
a) A Sinistrada nasceu no dia ../../1974.
b) No dia 24 de fevereiro de 2021, pelas 14h30m, a Sinistrada quando sob as ordens, direção e fiscalização da sociedade comercial “B..., Unipessoal, Lda.”, com o NIPC ...65, com sede na rua .../frente A, ..., ..., foi vítima de um acidente ao subir uma escada para abrir uma janela, escorregou e caiu de pé.
c) Como consequência do acidente referido em b) resultou-lhe traumatismo da coluna lombar com lombalgia após impacto.
d) A Sinistrada auferia o salário anual de € 10.168,00 (€665,00 x 14 meses + € 78,00 x 11 meses – salário base e subsídio de alimentação).
e) A responsabilidade infortunística-laboral da entidade empregadora encontrava-se transferida para a empresa de seguros A..., Companhia de Seguros de Ramos Reais, S.A. pela totalidade do salário anual mencionado em d), mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...54.
f) Pelos períodos de incapacidades temporárias que sofreu a Sinistrada recebeu da Companhia de Seguros a quantia de € 9.874,55.
g) A Sinistrada despendeu a importância de € 20,00 em deslocações para comparecer neste Tribunal e no Instituto Nacional de Medicina Legal, na fase conciliatória.
h) AA com alta clínica a 5 de julho de 2022, em consequência do acidente identificado em b), apresenta uma Incapacidade Permanente Parcial de 22,5%, com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH) de Operária Avícola, por sequelas de raquialgia e rigidez da coluna lombar, manifestando-se em queixas de lombalgia intensa[3].
Conforme salientado, no Acórdão desta Secção Social, de 3 de fevereiro de 2025 (cujo relator é o aqui Desembargador 1.º Adjunto), Processo n.º 15268/22.3T8PRT.P1[4], cuja fundamentação se subscreve:
«(...) Cumprindo-nos pronúncia, começaremos por evidenciar, como o fizemos no anterior acórdão proferido nos presentes autos, que, não obstante a existência / verificação da incapacidade permanente absoluta para todo e qualquer trabalho (IAQT) ou de incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH) serem vistas, por parte significativa da jurisprudência, como assumindo a natureza de questões de facto, ainda assim, não deixam de impor, também ao julgador, a consideração, do mesmo modo, para o efeito, do quadro normativo aplicável, em que se inclui, para além do mais, mesmo em termos processuais, precisamente por estar em causa a determinação da incapacidade do sinistrado, o dever ser submetida, sem prejuízo do mais se necessário, a perícia médica (na fase conciliatória do processo especial emergente de acidente de trabalho a realização de exame médico singular e, sendo esse o caso, depois, exame por junta médica, na fase contenciosa).(...)» (Fim da transcrição)
A atribuição de Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho Habitual (IPATH) resulta, assim, de uma análise que conjuga a avaliação médica (questão de facto) com a aplicação da lei (questão de direito).
O nosso mais alto Tribunal[5] tem vindo a sublinhar que a incapacidade permanente para o trabalho habitual possui uma componente jurídica, não sendo necessário que o trabalhador fique incapaz para o exercício de todas as funções compreendidas no seu trabalho habitual, para que essa incapacidade possa ser afirmada; é suficiente que exista incapacidade para o exercício das funções essenciais.
Como é sabido, a prova pericial está sujeita à livre apreciação do julgador. Das disposições conjugadas dos artigos 389.º do Código Civil e 489.º do Código de Processo Civil, extrai-se que a prova pericial não tem força probatória vinculativa.
No entanto, sendo um leigo nas matérias apreciadas, o juiz deve assegurar-se de que reuniu no processo todos os elementos necessários para proferir uma decisão firme e justa.
Conforme se lê, no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27.05.2022 (relator: Azevedo Mendes), Processo n.º 1142/12.5TTLRA.1.C1[6]:
“I – Na prova pericial, o juízo dos peritos pode ser afastado pelo tribunal, no exercício dos poderes de livre convicção do juiz, embora a divergência deva ser fundamentada.
II – Para a qualificação de IPATH, para além dos exames médicos, o tribunal pode apoiar-se em parecer, por perito especializado, requisitado ao IEFP, no âmbito dos arts. 21.º, n.º 4, da LAT e 18.º do DLei n.º 167-C/2013, de 31-12, caso em que o relatório subscrito por aquele perito constitui documento autêntico (emanado de autoridade pública competente) e goza da presunção de autenticidade e força probatória plena quanto aos factos relativos à autoria do relatório e qualificação profissional do seu subscritor.
III – Para a atribuição de IPATH basta que o sinistrado fique impossibilitado de executar, com caráter permanente, as tarefas que constituem o núcleo essencial da sua atividade profissional, como no caso de um serrador de mármore que, por força das limitações decorrentes das sequelas apresentadas, não mais voltou a desempenhar as respetivas funções, passando a executar tarefas de limpeza e como auxiliar na área de produção, procedendo a limpezas e lubrificação de máquinas.” (Fim da transcrição)
Nesse sentido, veja-se, ainda, entre outros, o vetusto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.10.2000, in Coletânea da Jurisprudência; Ano 2000, TII, p. 167.º, no qual se lê: «Os laudos da junta médica, mesmo os emitidos por unanimidade, enquanto prova pericial, não são vinculativos para o tribunal.» (Fim da transcrição)
Se assim é na generalidade dos casos em que deve prevalecer o princípio da livre apreciação da prova e a convicção sobre a prova produzida, por maioria de razão sê-lo-á quando a questão relevante se subsume a um problema de interpretação jurídica.
Posto isto, a questão de atribuição ou não de IPATH reveste-se de extrema importância.
Com a sua atribuição, além da tutela geral da “integridade produtiva”, acresce a ponderação do dano pela perda de um estatuto profissional já adquirido.
Como é sabido, com a apresentação de elementos probatórios que não coincidem, é pertinente afirmar subsistirem dúvidas fundamentadas acerca da existência, ou não, de Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho Habitual.
Preceitua o artigo 21.º, n.º 4, da Lei n.º 98/2009, de 04.09[7] (NLAT):
“Sempre que haja lugar à aplicação do disposto na alínea b), do n.º 3, do artigo 48.º e no artigo 53.º, o juiz pode requisitar parecer prévio de peritos especializados, designadamente dos serviços competentes do ministério responsável pela área laboral”. (negrito nosso)
Os serviços competentes do ministério responsável pela área laboral abarcam o Instituto do Emprego e da Formação Profissional, I.P., ou o Instituto Nacional para a Reabilitação, I.P.
Segundo a Instrução geral n.º 5-A., alíneas a), b), b.1) da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais (Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de outubro)[8]:
“A atribuição de incapacidade absoluta para o trabalho habitual deve ter em conta:
a) A capacidade funcional residual para outra profissão compatível com esta incapacidade atendendo à idade, qualificações profissionais e escolares e a possibilidade, concretamente avaliada, de integração profissional do sinistrado ou doente.
b) A avaliação é feita por junta pluridisciplinar que integra:
b.1) Um médico do Tribunal, um médico representante do sinistrado e um médico representante da entidade responsável, no caso de acidente de trabalho (AT);
Ademais segundo a Instrução 13.º, alíneas a) e b), da TNI[9]:
“A fim de permitir o maior rigor na avaliação das incapacidades resultantes de acidente de trabalho e doença profissional, a garantia dos direitos das vítimas e a apreciação jurisdicional, o processo constituído para esse efeito deve conter obrigatoriamente os seguintes elementos:
a) Inquérito profissional, nomeadamente para efeito de história profissional;
b) Análise do posto de trabalho, com caracterização dos riscos profissionais e sua quantificação, sempre que tecnicamente possível (para concretizar e quantificar o agente causal de AT ou DP).”
E segundo a Instrução n.º 8 da mesma Tabela: “O resultado do exame é expresso em ficha apropriada, devendo os peritos fundamentar todas as suas conclusões”.
Importa, agora, analisar o seguinte:
O exame da junta médica na especialidade de medicina do Trabalho concluiu, por maioria, pela atribuição da Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho Habitual à sinistrada, corroborando o parecer elaborado pelo Instituto do Emprego e Formação Profissional (cf. ref.ª 38822750.ª Citius).
Em suma, conclui-se que as queixas de lombalgia intensa são clinicamente incapacitantes, decorrem das lesões sofridas no acidente e são incompatíveis com a realização de tarefas repetitivas de elevado ritmo e intensidade de carga ao longo de uma jornada de trabalho.
A Recorrente opõe-se à atribuição em causa, fundamentando a sua posição no anterior exame por junta médica na especialidade de Ortopedia. Deste exame, resultou que o evento em questão provocou uma hérnia discal lombar L4-L5, submetida a tratamento cirúrgico, com sequelas de raquialgia e rigidez da coluna lombar. A incapacidade permanente parcial daí decorrente foi fixada em 15%, conforme o capítulo I, 1.1.1, alínea c), da Tabela Nacional de Incapacidades (TNI).
Segundo a Recorrente, a atribuição de Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho Habitual (IPATH) deveria ser esclarecida no âmbito de um novo exame por junta médica na especialidade de Ortopedia. Tal pretensão baseia-se na sua consideração de que a maioria das alterações da sinistrada provêm de uma situação de doença natural preexistente, não agravada pelo acidente de trabalho.
Com o devido respeito pela opinião contrária, não acompanhamos este raciocínio.
O exame de junta médica na especialidade de Ortopedia foi devidamente realizado em 4 de setembro de 2023, não havendo razões para a sua repetição. Na sequência do resultado desse exame por junta médica, a questão da IPATH foi subsequentemente debatida com a solicitação de parecer ao Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) e o posterior exame por junta médica na especialidade de Medicina do Trabalho.
Acresce ainda a importância de considerar o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 11.º da Nova Lei de Acidentes de Trabalho (NLAT).
Nas palavras de Carlos Alegre[10]:
«A predisposição patológica não é, em si, doença ou patogenia: é, antes, uma causa patente ou oculta que prepara o organismo para, num prazo mais ou menos longo e segundo graus de vária intensidade, poder vir a sofrer determinadas doenças. O acidente de trabalho funciona, nesta situação, como agente ou causa próxima desencadeadoras da doença ou lesão.» (Fim da transcrição)
Assim, a predisposição patológica não exclui o direito à reparação integral, salvo se for ocultada (artigo 11.º, n.º 1 da LAT).
Mesmo que a predisposição patológica tenha sido a causa única da lesão ou doença, o direito à reparação não é excluído, ocorrendo tal exclusão apenas quando, além de existir a predisposição patológica, esta tenha sido ocultada[11].
Contudo, é necessária a existência de um acidente de trabalho, ou seja, que exista uma causa próxima desencadeadora da lesão e o sinistrado sofra sequelas desta que não sofreria se não fosse a causa, patente ou oculta, em que se consubstancia a predisposição patológica.
Acresce que, nos termos do n.º 2, do artigo 11.º da LAT, quando a lesão ou doença consecutiva ao acidente for agravada por lesão ou doença anterior, ou quando esta for agravada pelo acidente, a incapacidade avalia-se como se tudo dele resultasse, a menos que, pela lesão ou doença anterior, o sinistrado já esteja a receber pensão ou tenha recebido um capital de remição nos termos da presente Lei.
O artigo 11º, n.º 2 da LAT, trata de duas situações que nada têm que ver com a predisposição patológica, devendo antes qualificar-se como situações de concurso de causas/danos.
Preveem-se aqui as situações em que se verifique:
ü Lesão ou doença anterior ao acidente, que agrave a lesão ou doença consecutiva ao acidente.
ü Agravação da lesão ou doença anterior ao acidente por causa de lesão ou doença consecutivas ao acidente.
Em qualquer das situações, a incapacidade avalia-se como se tudo resultasse do acidente, exceto se, pela lesão ou doença anterior, a vítima já esteja a receber pensão ou tenha recebido um capital de remição nos termos da LAT [vide, ainda, a instrução geral n.º 5, alínea e), da TNI].[12]
Note-se, porém, que a utilidade da presunção estabelecida no n.º 2 do artigo 11.º, serve apenas para dispensar o sinistrado ou os seus beneficiários da prova do nexo de causalidade entre o evento e as lesões. Contudo, esta presunção não os iliba de provar a ocorrência do próprio evento que causou as lesões.
Assim, uma predisposição patológica, mesmo que tenha sido a causa única da lesão ou doença, não afasta o direito à reparação integral do acidente de trabalho, salvo quando essa predisposição tenha sido ocultada, o que não se verificou no presente caso.
No caso em análise, mesmo que a sinistrada/Recorrida padecesse de uma doença natural prévia como a sacroleíte, o certo é que o traumatismo lombar decorrente do acidente de trabalho evidenciou a hérnia lombar, com necessidade de indicação cirúrgica. Esta cirurgia, realizada através de artrodese L4-L5, resultou nas sequelas de raquialgia e rigidez da coluna lombar, manifestando-se em queixas de lombalgia intensa.
Por conseguinte, ainda que a sacroleíte tenha sido agravada por lesão subsequente/consecutiva ao acidente, a incapacidade deve ser avaliada como se tudo tivesse resultado do acidente, exceto se a sinistrada já estiver a receber pensão ou tiver recebido capital de remição (o que também não foi o caso).
Assim sendo, o recurso improcede, mantendo-se, com ligeiras adaptações, a decisão da sentença recorrida.
Porquanto:
É fundamental aplicar a bonificação de 1.5 ao coeficiente residual da incapacidade (equivalente a 15% de Incapacidade Permanente Parcial - IPP). Esta aplicação justifica-se pelo facto de a Recorrida estar afetada por uma Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho Habitual (IPATH) como Operária Avícola, não sendo possível a sua reconversão em relação ao seu anterior posto de trabalho.
Vejamos o que preceitua a Instrução Geral n.º 5, alínea a), da Tabela Nacional de Incapacidades (TNI), que possui a seguinte redação:
“Na determinação do valor da incapacidade a atribuir devem ser observadas as seguintes normas, para além e sem prejuízo das que são específicas de cada capítulo ou número:
a) Os coeficientes de incapacidade previstos são bonificados, até ao limite da unidade, com uma multiplicação pelo factor 1.5, segundo a fórmula: IG + (IG x 0,5), se a vítima não for reconvertível em relação ao posto de trabalho ou tiver 50 anos ou mais quando não tiver beneficiado da aplicação desse factor.”
Conforme é sublinhado, no sumário do Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça de 28.01.2015 (relator: António Leones Dantas), Processo n.º 28/12.8TTCBR.C1.S1[13]:
«1 – A expressão “se a vítima não for reconvertível em relação ao posto de trabalho” contida na alínea a) do n.º 5 das Instruções Gerais da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidente de Trabalho ou Doenças Profissionais, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro, refere-se às situações em que o sinistrado, por virtude das lesões sofridas, não pode retomar o exercício das funções correspondentes ao concreto posto de trabalho que ocupava antes do acidente;
2 – Não ocorre incompatibilidade entre o estatuído na alínea b) do n.º 3 do artigo 48.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, relativo a fixação de pensões nas situações de incapacidade absoluta para o trabalho habitual e a alínea a) do n.º 5 das Instruções Gerais da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, editada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro, podendo cumular-se os benefícios nelas estabelecidos.
3 – Encontrando-se o sinistrado afetado de uma Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho Habitual e não sendo reconvertível em relação ao seu anterior posto de trabalho de montador de tetos falsos, deve o respetivo coeficiente global de incapacidade ser objeto da bonificação de 1,5, prevista na alínea a) do n.º 5 das Instruções Gerais da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais.» (Fim da transcrição)
Assim, em consequência do acidente de trabalho em discussão nos autos, a Recorrida é portadora de uma IPP global 22,5 % [15% + (15% x 0,5)], com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual de Operária Avícola.
Por conseguinte, são-lhe devidos os seguintes montantes:
· O acidente de trabalho ocorreu no dia 24.02.2021, data em que a sinistrada auferia uma retribuição anual de €10.168,00 €;
· A sinistrada apresenta uma Incapacidade Permanente Parcial (IPP) de 22,5 %, com uma Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho Habitual de “Operária Avícola”.
· A data da consolidação médico legal (data da alta) foi em 05.07.2022.
Em conformidade, a Recorrida é credora de uma pensão anual e vitalícia, a pagar adiantada e mensalmente, até ao 3.º dia de cada mês, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão anual (sendo os subsídios de férias e de Natal pagos, respetivamente, nos meses de junho e de novembro) – compreendida entre 50% a 70% da retribuição que auferia, conforme maior ou menor capacidade funcional residual compatível, ou seja, credora da pensão anual e vitalícia de 5.541,56 € [cfr. os artigos 19.º, n.º 3; 23.º, alínea b); 47.º, n.º 1, alínea c) e n.º 3 (parte final); 48.º, n.º 2 e n.º 3, alínea b); 50.º, n.º 2 e 72.º n’s 1 e 2, todos da NLAT].
P = (€10.168,00 RA x 0,7) – (€10.168,00 RA x 0,5) x 0,225 (IPP para outras profissões) + (€10.168,00 RA x 0,5)
(€7.117,60 - €5.084,00) x 0,225 + €5.084,00
€2.033,60 x 0,225 + €5.084,00
€457,56 + €5.084,00 = €5.541,56.
A pensão é atualizável (cf. artigos 75.º, n.º 1, a contrario sensu, e 82.º, n.º 2, ambos da NLAT).
As atualizações são as seguintes:
· Em 01.01.2023 - (Portaria n.º 24-A/2023, de 09-01 – 8,4%) = €5.541,56 x 1.084 = €6.007,05;
· Em 01.01.2024 - (Portaria n.º 423/2023, de 11-12 – 6%) = €6.007,05 x 1.06 = €6.367,47;
· Em 01.01.2025 - (Portaria n.º 6-A/2025/1, de 06-01 – 2,6%) = €6.367,47 x 1.026 = €6.533,02.
É-lhe ainda devido o subsídio de elevada incapacidade permanente, de atribuição única, previsto nos artigos 23.º, alínea b), 47.º, n.º 1, alínea d) e n.º 3, 67.º n’s 1, 3 e 5 da NLAT, cujo valor retificado é o seguinte:
S = [(IAS €438,81[14]x 1,1) x 12) – (IAS €438,81 x 1.1) x 12 x 0,7)] x 0,225 + [(IAS €438,81 x 1,1) x 12 x 0,7)] = (€5.792,28 - €4.054,60) x 0,225 + €4.054,60 = €4.445,58.
Consigna-se que as retificações à decisão recorrida são devidas nos termos do artigo 74.º do Código de Processo do Trabalho (condenação extra vel ultra petitum), ainda que a questão não tenha sido suscitada no recurso, dado que os direitos emergentes de acidentes de trabalho são direitos irrenunciáveis e indisponíveis.
Face ao exposto, impõe-se a alteração da decisão recorrida.
I) Julgar totalmente improcedente o recurso interposto pela Recorrente/seguradora, mantendo-se a decisão recorrida.
II) No entanto, altera-se a decisão da 1.ª instância nos seguintes termos [as alíneas a), b) e c)]:
a) Decide-se que a Sinistrada AA, em consequência do acidente de trabalho em apreço nestes autos, sofreu uma incapacidade permanente parcial para o trabalho de 22,5% (IPP 22,5%), com Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho Habitual de “Operária Avícola”;
b) Condena-se a Responsável A..., Companhia de Seguros de Ramos Reais, S.A. a pagar à Sinistrada uma pensão anual, vitalícia e atualizável de €5.541,56, devida desde 6 de julho de 2022. A esta pensão acrescem juros de mora à taxa legalmente fixada para os juros civis em cada momento, devidos desde 06.07.2022 até integral e efetivo pagamento;
As Atualizações da pensão são as seguintes:
a. Atualização em 01.01.2023 - €6.007,05;
b. Atualização em 01.01.2024 - €6.367,47;
c. Atualização em 01.01.2025 - €6.533,02.
c) Condena-se a Responsável A..., Companhia de Seguros de Ramos Reais, S.A. a pagar à Sinistrada o subsídio de elevada incapacidade permanente de €4.445,58, acrescido de juros de mora à taxa legalmente fixada para os juros civis em cada momento, devidos desde 06.07.2022 até integral e efetivo pagamento.
Custas pela Recorrente, com taxa de justiça conforme tabela I-B anexa ao Regulamento Custas Processuais (cfr. artigo 7.º, n.º 2 do Regulamento Custas Processuais).
Retifica-se o valor da causa para €84.403,52, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 3 do artigo 120.º do Código de Processo do Trabalho.
Valor do recurso: o da ação (artigo 12.º, n.º 2 do Regulamento Custas Processuais).
Porto, 10 de julho de 2025
Sílvia Gil Saraiva (Relatora)
Nelson Nunes Fernandes (1.º Adjunto)
António Joaquim da Costa Gomes (2.º Adjunto)
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[1] Segue-se, com ligeiras alterações, o relatório da decisão recorrida.
[2] Objeto de transcrição.
[3] Aditado oficiosamente pelo Tribunal ad quem, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 662.º, n.º 1, e 663.º, n.º 2, bem como do artigo 607.º, n.º 4, todos do Código de Processo Civil ex vi artigo 1.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo do Trabalho.
[4] Acórdão sem publicação nas bases de dados [ao que supomos – consultável no “registo de sentenças” – (leia-se Acórdãos)].
[5] Veja-se, por todos, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.12.2023 (relator: Júlio Gomes), Processo n.º 3053.19.4T8LSB.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[6] Disponível in www.dgsi.pt e, veja-se, ainda, nesse sentido, o recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de maio de 2025 (relatora: Paula Leal de Carvalho), Processo n.º 698/23.1T8STB.E1.S1, disponível in www.dgsi.pt.
[7] Doravante, designada NLAT.
[8] Doravante, designada TNI.
[9] Nota: De acordo com as instruções gerais da TNI - pontos 5.º, alíneas a) e b), 6.º, alínea b), e 13.º -, e sem prejuízo das instruções específicas de cada capítulo ou número, deve-se graduar as repercussões danosas da lesão em função da idade e/ou do posto de trabalho da vítima.
[10] ALEGRE, Carlos, in “Acidentes de Trabalho e doenças Profissionais”, Regime jurídico Anotado - 2.ª edição, Almedina, 2001, p. 69.
[11] Veja-se, neste sentido, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 01.06.2006 (relator: António F. Martins), Processo n.º 478/06 e de 15.02.2016 (relator: Jorge Loureiro), Processo n.º 636/12.7T4AVR.P1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
[12] Neste sentido, veja-se, entre outros, os Acórdãos desta secção social de 18.02.2013 (relatora: Paula Leal de Carvalho), Processo n.º 118/10.1TTLMG.P1; Supremo Tribunal de Justiça de 12.09.2013 (relatora: Isabel São Marcos), Processo n.º 118/10.1TTLMG.P1.S1; Tribunal da Relação de Lisboa de 19.11.2014 (relator: Duro Mateus Cardoso), Processo n.º 3512/06.9TTLSB, e de 23.11.2022 (relatora: Manuela Fialho), Processo n.º 711/16.9T8BRR:L1-4, todos disponíveis in www. dgsi.pt.
[13] Disponível in www.dgsi.pt.
[14] Artigo 2.º da Portaria n.º 27/2020, de 31.01, sem atualização no ano de 2021 o indexante de apoio social (IAS).